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sexta-feira, 31 de março de 2023

MINHA ESTREIA NO PORTAL LITERATURABR

 

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Escrevi durante 14 anos para o caderno de cultura do Correio Popular. O que de início foi a concretização de um sonho aos poucos se revelou uma oportunidade incrível de construir carreira e exercitar o pensamento. No jornal, tive a oportunidade de experimentar os mais diversos tipos de textos, dialogar com leitores e desenvolver meios de divulgar o meu trabalho.

Esse ciclo se encerrou no ano passado. Achei que era hora de me dedicar a outras coisas, mas o “impulso ensaístico”, por assim dizer, continuou a me requerer.

Pois é com imensa alegria que inicio agora uma contribuição com o portal LiteraturaBr. Sou muito grato pela acolhida e pelo espaço que me concederam. Esse é um site repleto de conteúdo bem cuidado, dedicado a valorizar a cultura em geral, com destaque para a literária. Tem podcast, clube de leitura, artigos, resenhas, excerto de livros e muito mais, vale a pena conhecer.

Sinta-se mais do que convidado, convidada, convidade a acessar o LiteraturaBr. E aproveite para assinar a newsletter deles, que é gratuita e leva para o seu e-mail alguns destaques do conteúdo publicado ali.

Pretendo seguir escrevendo sobre literatura e artes visuais. E o primeiro texto, que acaba de sair, trata exatamente do embate entre essas duas áreas iniciado na Renascença e revisitado pelos impressionistas. Espero que goste. 😊

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

ESTATUTO SOCIAL DA PINTURA

Por que paisagens impressionistas como as de Camille Pissarro, Claude Monet ou Alfred Sisley, hoje apreciadas em termos estéticos e econômicos, causaram tanto escândalo ou foram vítimas de tamanho desprezo em sua época, na segunda metade do século XIX?

Prados de Sahurs no sol da manhã (1894), de Alfred Sisley

Essa é uma daquelas perguntas que podem ser respondidas de maneiras diversas, muitas delas tomando como base a questão técnica – as pinceladas de cores puras que, por sua proximidade, criam certo efeito ótico – ou o fato de os artistas deixarem o ateliê para buscarem registrar impressões visuais em suas telas diretamente da observação da natureza, num dado local e numa dada circunstância atmosférica, com uma rapidez de execução inaceitável pelos mestres das academias de belas artes. Rapidez que às vezes se tentava confundir com facilidade ou como falta de rigor por estes, que, ao contrário, passavam dias e dias retocando à perfeição um músculo de cavalo ou o reluzir de um metal precioso.

Mas outra maneira de explicar o tal escândalo remonta ao empreendimento renascentista de legitimação social e teórica da pintura, que pretendia conceder a ela o reconhecimento então dedicado apenas às artes da linguagem. Os artistas visuais queriam, eles próprios, gozar da dignidade dos liberais, uma vez que pintura e escultura eram consideradas ocupações mecânicas, tal como a construção civil ou a marcenaria. Em suma, o pintor não queria ser tomado por operário ou simples artesão, mas como profissional culto e letrado. Ao mesmo tempo, sua atividade deveria deixar o posto de ilustração e ser apreciada como um saber em si mesma.

Essa diferença tinha origem bem mais antiga. Horácio, no século I a.C., ao meditar sobre a ideia defendida por Simônides de Ceos de que “pintura é poesia muda e poesia é pintura que fala”, deu sua famosa declaração “ut pictura poesis”, ou seja, a pintura é como a poesia. Esse paralelo entre as artes da imagem e as da palavra ganhou fôlego no Renascimento e perdurou pelo menos até Lessing contestá-lo no século XVIII, preferindo pensar na especificidade de cada arte em vez de naquilo que porventura tivessem em comum.

Acontece que a máxima de Horácio deriva de um erro de interpretação. A frase completa – “ut pictura poesis erit” – coloca a imagem como termo referencial da comparação, não o contrário. Ou seja, o poeta romano na realidade privilegiava as artes da visão, dizendo que um poema existe tal como uma pintura. Isso porque, assim como se fazia em relação a esta última, ninguém teria dificuldade para reconhecer na poesia a realidade, ainda que imaginária, como o escudo do herói Aquiles ou o drama de Laocoonte.

O erro de interpretação pode não ter sido tão despropositado, uma vez que permitiu aos intelectuais da Renascença galgarem um novo estatuto para a pintura. O quadro, sendo como um poema, teria assim o mesmo nível valorativo. Mas como fazer versos com pincel e tinta?

Fato é que a linguagem gozava, desde a Antiguidade, do privilégio de pertencer à ordem da razão e do discurso. De modo que a pintura somente poderia obter a mesma legitimidade absorvendo a poética e a retórica para contar histórias, ou melhor, para “narrar com o pincel”, como se dizia no século XVII.

Em termos de hierarquia pictórica, o gênero que se utilizou daquelas categorias do discurso para contar grandes feitos, transpondo uma sequência narrativa – portanto temporal – para o espaço da visibilidade, foi a pintura de história, que ostentava entre os acadêmicos o estatuto da mais alta expressão da arte de pintar. Tomando seus temas da literatura e da tradição, esses pintores gozaram ao máximo da dignidade concedida aos artistas liberais.

Assim, retomando nosso ponto inicial, quando os impressionistas abriram mão dos ricos ateliês das academias para pintarem, no meio do mato, banalidades como montanhas e vegetação, puseram em xeque uma posição social confortável, conquistada pelos artistas visuais a duras penas. Questionaram também a concepção de que a pintura poderia, sim, provir da sensibilidade, em vez do intelecto; da matéria, em vez da ideia; e da prática, em vez da teoria.

Banida dos famosos salões, que funcionavam como espaços de legitimação de uma arte específica e produzida segundo critérios e regras bem estabelecidos, a pintura impressionista construiu seu lugar no mundo da arte desde a margem, inicialmente atacada pela crítica e pelo público, cujo olhar era educado a apreciar uma determinada forma e nada além dela.

Ao longo do século XX, esse olhar foi se transformando e, por consequência, o gosto pelas novas formas, que ganharam destaque entre os artistas, na crítica e, claro, no mercado de arte.

Poderíamos seguir por aí, adentrando a história da arte moderna pelo menos até os experimentos com a abstração, o que se estenderia por páginas e páginas, inclusive atualizando o interminável embate entre a poesia e as artes visuais, que de alguma maneira ainda persiste. Sem que isso caiba num artigo despretensioso como este, deixo aqui uma provocação: existe imagem que não evoque palavras e palavras que não sugiram imaginários?

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

O QUE FAZ DE PICASSO UM PICASSO?

Gertrude Stein (1905-1906), de Pablo Picasso

Essa pergunta pode ser respondida de inúmeras maneiras e sob inúmeros aspectos. Um deles é o de sua amiga Gertrude Stein, que escreveu a respeito do artista ainda em 1938. No pequeno livro intitulado Picasso, publicado no Brasil pela editora Âyiné, ela traça um elogio da técnica, do talento e, principalmente, do seu olhar aguçado, que fez dele um verdadeiro “criador”. Segundo Stein, Picasso foi o primeiro capaz de enxergar sua época com os olhos do século XX. Afinal, se “nada muda nas pessoas de uma geração para a outra exceto a maneira de ver e de ser visto”, como lemos ali, o criador é o sujeito capaz de perceber esse movimento. “Ele é sensível às mudanças pois a vida e sua arte são inevitavelmente influenciadas pela maneira como cada geração está vivendo, pela maneira como cada geração está sendo educada e pela maneira como as pessoas se movem, tudo isso cria a composição dessa geração”.

Essa ideia se inspira num pronunciamento de Sir Edward Grey, citado por Stein, para quem os generais da 1ª Guerra Mundial ainda batalhavam como no passado, apesar de possuírem armamento do século XX. Apenas no auge do conflito eles teriam mudado essa percepção, o pensamento e as ações de combate.

A guerra é um ponto relevante no argumento do livro. A autora inverte o senso comum de que tudo se transforma com ela ao explicar que as mudanças na verdade já aconteceram e que o conflito apenas obriga as pessoas a reconhecê-las. Aliás, como Stein bem observa, as mudanças e as guerras jamais acabam, elas apenas dão a impressão de terminar. É aí que o olhar do criador se diferencia. Em suas palavras, “um criador não está à frente de sua geração, mas ele é o primeiro entre os seus contemporâneos a ter ciência do que está acontecendo”. Ele percebe e expressa a guerra antes que ela seja declarada. E o público, depois, deve reconhecer o seu trabalho, assim como as mudanças evidenciadas pelo confronto.

Todos foram obrigados a aceitar Picasso, que anteviu o conflito mundial ainda na década de 1900, diz Stein. Seu cubismo já expressava essa nova maneira de ver e de viver.

Dado o seu pioneirismo, para Gertrude Stein, Picasso foi herói de uma era, embora não tivesse clareza da amplitude do que fazia. Ela explica que “há heróis em todas as eras em que são feitas coisas que não podem deixar de ser feitas, e nem eles nem os outros entendem como nem por que essas coisas acontecem. Ninguém jamais entende, antes de elas serem completamente criadas, o que está acontecendo, e ninguém entende nada do que fez antes de terminar tudo”.

Depois de realizado, aquilo que parecia estranho vai sendo assimilado, ao ponto de ninguém mais se lembrar por que se estranhavam, por exemplo, as composições cubistas. Todavia, a grande luta de Picasso foi justamente pelo estranhamento, quer dizer, pela sua capacidade de estranhar aquilo que a todos parecia evidente. Com seu esforço para pintar como se desconhecesse, como se visse pela primeira vez, ele focou numa parte do todo por vez, tal como os nossos olhos fazem. Picasso percebeu que vemos no outro apenas uma sobrancelha ou um braço, o ombro esquerdo ou a mão direita; se observamos a boca, as orelhas serão uma construção da memória ou complementos da imaginação, o que simplesmente não o interessava. “Os pintores nada têm a ver com reconstruções, nada a ver com memória, eles se preocupam apenas com coisas visíveis”, afirma Stein, categórica. Assim, Picasso foi desconstruindo um paradigma visual e reeducando o olhar para perceber a contemporaneidade do século XX.

Fez isso pintando o corpo, ou melhor, a materialidade. A alma das coisas e das pessoas não lhe dizia respeito. E Picasso pintava como ele próprio via, não como os demais ou com uma visão generalizante. Essa insatisfação com certa aparência comum seria a sua singularidade, que em pouco tempo, porém, foi sendo absorvida e reproduzida, fazendo surgir réplicas de Picasso, secundárias em todos os sentidos.

E nem mesmo Pablo Picasso era um Picasso o tempo inteiro. Stein usa a imagem de expansões ou acúmulos para se referir a seus períodos de se deixar influenciar. E trata seus momentos de reinvenção como esvaziamentos daquilo que o afastava do seu “temperamento espanhol”, que para ela seria uma espécie de essência do artista. Os colegas franceses, a escultura africana, as cores de Matisse, tudo isso que comumente entendemos como elementos constitutivos da obra de Picasso, para Stein eram desvios.

Essa ideia de essência, tal qual a de gênio moderno (“que já nasceu sabendo tudo sobre pintura”, como ela escreve), mais as generalizações acerca das nacionalidades (como se todas as pessoas de um determinado país fossem iguais) e a lógica exagerada que busca justificar os resultados (como se a criação artística e a vida pudessem ser reduzidas a explicações simples) são alguns dos defeitos do livro, muitos dos quais perceptíveis apenas hoje, com o distanciamento que acumulamos em relação ao Modernismo. Todavia, a proximidade que a autora manteve com Picasso e o encanto por sua obra trazem pontos de vista bem mais cativantes do que encontramos outros textos teóricos ou críticos também disponíveis. Com sua intensa amizade e admiração, Stein faz de Picasso ainda mais Picasso.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

A RAZÃO DE BEATRIZ MILHAZES

O diamante (2002), de Beatriz Milhazes

Me surpreendo quando Beatriz Milhazes fala sobre a importância da razão em seu trabalho artístico, que sempre me pareceu fundamentalmente sensível. “Existe uma geometria por trás, embora minha pintura não possa se resumir a ela”, explica. Esse fascínio pelo aspecto racional tem origem em seu primeiro emprego como professora num colégio Montessori, que a ajudou a desenvolver o raciocínio sobre o próprio fazer. A ponto de ela afirmar que seu trabalho trata, sobretudo, de processos. E o que seriam eles? Técnicas, como por exemplo a de monotransfer, que desenvolveu pesquisando materiais e maneiras de aplicar a tinta – na prática, são monotipias feitas com tinta acrílica numa espécie de filme plástico, que Beatriz depois gruda na tela, construindo a imagem sem esboços preparatórios.

Outro dos seus processos de criação seria os desafios que ela se propõe. “A cada período, quero acrescentar novos elementos e preciso, assim, lidar com sua presença na imagem”, diz. Rendas, flores, arabescos, vestígios barrocos, crochês, folhagens, retalhos, frutas. Pergunto se ela tem a preocupação de desenvolver uma “visualidade brasileira”, arriscando afirmar uma identidade nacional. Beatriz gosta muito de Tarsila do Amaral e da nossa arte popular, que estão entre as suas principais referências, junto com o colorido de Matisse e o pensamento sistemático de Mondrian. Ela é também uma das nossas artistas mais conhecidas e valorizadas no exterior, o que sem dúvida traz indagações sobre a sua terra natal. “Minha origem me torna profundamente relacionada com este lugar”, comenta; e conclui que “não adianta aplicar aqui um aprendizado estrangeiro porque ele sempre será de certo modo incompatível; essa é a lição deixada por nossos modernistas”.

Beatriz Milhazes produz uma visualidade autêntica, que escapa dos estereótipos ao mesmo tempo em que valoriza o que é próprio da nossa cultura. Sem receio de se misturar ao tradicional e ao decorativo, ela atualiza os elementos que busca nesses territórios. “Através da arte decorativa é possível contar uma história da humanidade”, justifica. “O trabalho plástico obriga o artista a se haver com essa história, a elaborar um pensamento e a inventar com isso algo seu”.

Suas cores vêm dos tecidos do carnaval brasileiro, assim como o movimento e a alegria. Em 1995, quando a artista deixou de usar uma cola de tom ocre – por sugestão de técnicos do museu norte-americano onde expunha –, suas pinturas ganharam uma vivacidade contagiante. “A cor tem relação com a vida”, e com essa crença Beatriz estabelece um vínculo especial entre as pinturas e a realidade nossa de cada dia. Está aí aquela sensibilidade que extravasa a geometria e que sem dúvida dialoga com o Programa Ambiental de Hélio Oiticica, com a Roda dos Prazeres de Lygia Pape, com os Objetos Relacionais de Lygia Clark, artistas de geração anterior que também partiram de uma racionalidade – a concretista, no caso – e foram além.

Benguelé (2020), de Beatriz Milhazes

Nossos olhos ficam encantados diante de suas pinturas. Existe nelas uma beleza, mas também um movimento incessante, rodopios, reviravoltas; um encantamento mágico, difícil de localizar, tamanha a sua complexidade. Nada é simples e muito menos pacífico. “Quero uma obra que ofereça uma possibilidade de vertigem”, explica ela. “Uma estridência, o contraste das disputas”. Em suas obras há embates por espaços, intensidades, atenção; tensionamento próprio daquilo que é vivo e que não se deixa calar.

“Até mesmo o meio cultural pode ser fascista em relação a ideias e fazeres. Liberdade é fundamental em todos os lugares”, afirma a artista, que voltou às origens de docente ao oferecer atividades para crianças como parte do programa educativo de sua última exposição no MASP. Oportunidade de defender a liberdade experimentada desde a infância, quando desenhava muito. Mais tarde, decepcionada com a faculdade de jornalismo, contou com o incentivo da mãe, professora de História da Arte, ao se inscrever num curso de verão da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro.

Revendo sua trajetória, ela destaca a importância do aprendizado com o educador britânico Charles Watson. “Achei desafiante porque não entendia nada do que ele falava”. Essa confissão diz muito sobre a ousadia de sua personalidade e sua obra, cujo ponto de virada aconteceu no Salão Nacional da Funarte, em 1983. A ocasião lhe rendeu um convite para participar, ainda muito jovem, da famosa exposição “Como vai você, Geração 80?”, realizada no ano seguinte.

Atualmente, ganhando mercados na Ásia depois de se consolidar nas Américas e na Europa, a artista tem repensado as narrativas que acompanham sua obra pictórica. “Os chineses, por exemplo, têm como referência outra história da arte, não sabem o que se passou até chegar a minha geração”, explica. “Eles enxergam meu trabalho daqui para frente”.

De todo modo, Beatriz se interessa por algo capaz de sensibilizar qualquer cultura: o tracejar humano, a manufatura, o rastro de quem produz objetos estéticos. É isso que se propõe investigar. Apesar de todos os elementos figurativos que apresenta, ela se considera uma artista abstrata. “O pensamento é abstrato”, diz, mais uma vez se referindo à implicação geométrica que estrutura suas composições. Passados meses de elaboração, a pintura ganha camadas, e o espectador dificilmente consegue identificar nelas algum resquício da racionalidade que a originou. E tudo bem, não é necessário demonstrar, “o trabalho de arte visual deve se sustentar sem discursos”.

Quero saber dos títulos, que são curiosos. “Eles vêm por último e são muito importantes. Devem abrir as possibilidades de apreensão”. Não à toa, Beatriz dedica a eles um tanto de criatividade, assim como ao restante de sua obra. Criatividade, sensibilidade e, quem diria, alguma razão.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

ARTE, CONJUNÇÃO ADVERSATIVA

 
Plugue (2018), de Nina Beier
 
O título da 34ª Bienal de São PauloFaz escuro mas eu canto – é um verso escrito por Thiago de Mello em 1963. Embora seu poema fale do trabalho na lavoura, podemos lê-lo sob a chave das tensões sociopolíticas entre os movimentos libertários e as repressões da época, muitas das quais, infelizmente, continuamos a vivenciar. Faz escuro. Mas eu canto. A escuridão persiste, assim como as formas de resistência a ela, entre as quais a esperança, a poesia, a alegria. E a curadoria de Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada cria espaço propício para que se possa exercitar o ato verdadeiramente revolucionário, sugerido no poema pela conjunção “mas”. Está aí o levante, a indignação, a denúncia, a resiliência, a afirmação da adversidade, o rompimento do ciclo, o desejo de mudança, a experiência alternativa, a apreciação da complexidade do mundo através de mais do que apenas um ponto de vista. “Mas” é a arte que se apresenta no Parque do Ibirapuera, na capital paulista, até 5 de dezembro de 2021.
 
Os mais de 1,1 mil trabalhos em exibição, criados pelos 91 artistas participantes, elaboram por vezes o escuro, por vezes o canto, se quisermos usar a mesma metáfora que parece balizar as escolhas dos organizadores. Eles abrangem um arco temporal que remete à formação do universo – representada pelos dois meteoritos – às produções desenvolvidas especialmente para a ocasião. Isso tudo disposto de modo a suscitar relações e, claro, sentidos interpretativos, questionamentos, atritos, reflexões, diferenciações, encontros de forças, entre inúmeras outras possibilidades.
 
Gustavo Caboco
Essa “poética da relação” tem base no pensamento do martinicano Édouard Glissant, filósofo, poeta, ensaísta, autor de um livro com esse mesmo título e uma das grandes referências conceituais da mostra. Tais relações já podem ser notadas na entrada, numa “sala” montada em torno do meteorito de Bendegó, símbolo de sobrevivência por ter resistido a variadas situações de risco, sendo o incêndio do Museu Nacional em 2018 a mais recente delas. Embora não esteja fisicamente presente por conta da dificuldade de se transportar suas 5,36 toneladas desde o Rio de Janeiro até São Paulo, sua história é retomada junto a outros trabalhos de arte que também colocam em questão a memória, a ancestralidade, a origem e a extinção nos seus mais variados sentidos.

Vemos ali, além de um meteorito menor – o de Santa Luzia, segundo em tamanho encontrado no Brasil – e de bonecas indígenas doadas pelos seus criadores para substituírem as originais queimadas – ambos os itens também provenientes do acervo do museu incendiado –, uma espécie de cosmologia inventada pelo artista Gustavo Caboco para problematizar sua identidade indígena; performances com declamações de livros feitas de memória, que aludem às deliberadas destruições por fogo do romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; cerca de 150 monotipias da série Boca do Inferno, de Carmela Gross, criadas a partir de imagens de vulcões; entre outros trabalhos.

Coloquei aspas na palavra “sala” porque não se trata exatamente disso: a bienal apresenta as obras em nichos, separados por três tipos de divisórias chamadas “peles”. Elas são feitas de policarbonato, juta ou madeira, e suas transparências e opacidades remetem tanto à filosofia de Glissant quanto aos ocultamentos de culturas, saberes, pessoas etc. realizados por gestos opressores conscientes ou não.
 
Ainda que algumas peças ocupem o espaço com maior liberdade, boa parte delas fica reunida sob a imantação dos 14 enunciados propostos pela curadoria. Esses enunciados são objetos, ideias ou narrativas que não pertencem necessariamente ao campo das artes, mas que carregam histórias e simbologias. O Museu Nacional é um deles, assim como o sino da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos, dita Capela do Padre Faria, em Ouro Preto; os retratos do abolicionista estadunidense Frederick Douglass; a obra de Paulo Freire; o filme Hiroshima mon amour, de Alain Resnais; e assim por diante.

Mais do que um punhado de grandes nomes, me parece que os curadores conseguiram fazer do conjunto de obras e artistas a verdadeira potência da exposição. A temática, de modo geral, trata das relações entre culturas, temporalidades, valores, atitudes, com destaque para questões oriundas do colonialismo – entre as quais, e talvez principalmente, as sobre a diáspora africana por meio do tráfico de escravos e o extermínio dos povos originários. Há também menções a práticas democráticas ou autoritárias, como por exemplo em A carga e Presunto, trabalhos criados nos anos 1960 e que se atualizam no Brasil de 2021. Isso tudo configura a força de resistência, assim como as limitações que toda exposição de arte apresenta.
 
Arjan Martins
As diferenças entre os participantes e as muitas semelhanças estéticas e formais de suas obras, por um lado, fazem pensar em como essas proximidades são construídas na contemporaneidade. Já as dificuldades que senti para assimilar certas propostas talvez indiquem minha condição de estrangeiro, inclusive em minha própria terra e entre as pessoas que aqui habitam. Isso é algo previsto, pois existe na mostra um convite declarado a que se estabeleçam relações, mesmo que as partes não sejam perfeitamente compreensíveis entre si.
 
“Da adversidade vivemos”, afirmou Hélio Oiticica em seu famoso ensaio sobre a Nova Objetividade brasileira. Esse artista, falecido em 1980, compõe um dos enunciados da 34ª Bienal de São Paulo. E a exposição, como um todo, parece reiterar sua proposta, mostrando que pela diferença entre as formas de vida se produzem também variadas criações artísticas.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

DE ONDE A ARTE VEM

Salto no vazio (1960), de Yves Klein
“Entre as ideias, tem algo que a gente não conhece, não sabe o que é, e não sabemos nomear. E é exatamente por isso que eu me interesso, pelo que eu não conheço”, disse o artista Carlito Carvalhosa em 2011, numa entrevista ao curador Hans Ulrich Obrist. A conversa faz parte do livro Entrevistas brasileiras, volume 2, recém-publicado pela editora Cobogó. Esse seu interesse pelo desconhecido é uma constante entre artistas. Willem De Kooning, por exemplo, disse em 1972: “É isso que me fascina, fazer algo de que nunca terei certeza, e de que ninguém mais vai ter”. Como se o trabalho de arte surgisse entre lacunas do conhecimento, entre escombros de verdades, entre esboços de vidas possíveis.

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Nenhuma solidez ou consistência têm os seres virtuais elaborados por Étienne Souriau e comentados por David Lapoujade no livro As existências mínimas, do qual falei no artigo anterior. É da natureza deles o caráter de esboço; “são perfeita e intrinsecamente inacabados”, afirma o autor. Podem até mesmo ser confundidos com o puro nada. De modo que é preciso atenção para percebê-los, cuidado ao manejá-los, sensibilidade para apreender seu valor. Ao mesmo tempo, “sua arte é suscitar ou exigir a arte; seu ‘gesto’ próprio é suscitar outros gestos”. Esse princípio de criação é como uma célula-tronco; potencialmente, pode ganhar qualquer forma. A cada escolha do artista, a obra pode viver ou morrer.

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O brasileiro Paulo Pasta tem uma relação de reciprocidade com suas criações. “Caminho na medida em que o trabalho também caminha, e o reconheço na medida em que também sou reconhecido por ele”, escreve no livro A educação pela pintura. Ele também explica que, dada a condição especular de sua relação com a arte, ela mostra quem ele é de verdade, não quem imagina ser. O artista existe pela obra e ela existe pelo artista; e a maturação de ambos acaba por equivaler ao tempo de uma vida. São longos anos de dedicação a um mesmo tema, que se transforma sutilmente. Ao comentar essa suposta lentidão, Paulo esclarece que se trata também de uma estratégia para evitar que a ideia precipite imediatamente em projeto. Em suas palavras, “a pintura talvez seja a construção da distância entre o desejo e o projeto”.

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Naquele mesmo livro de entrevistas que mencionei, Jac Leirner diz a Obrist: “Fico quase passiva no trabalho, porque tento seguir aquilo que já está lá. Não sou eu quem propõe, é a coisa em si que se impõe”. A artista fica à mercê da obra, que se adianta a ela, coloca as regras, exige a execução. Cria sob um sentimento de dominação.

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Um ser virtual só toma posse de si mesmo se encontrar um mediador. Por sua vez, o criador é sempre apenas o hospedeiro das suas virtualidades, explica Lapoujade. Para quem possuir não significa se apropriar, mas fazer existir de maneira apropriada. “Fazer existir é sempre fazer existir contra uma ignorância ou um desprezo”. Quanto mais “possuída”, mais real é a existência daquele ser a princípio frágil, evanescente.

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Em um vídeo curto divulgado pelo Museu de Arte Moderna de São Francisco, nos Estados Unidos, Philip Guston aparece pintando e divagando sobre seu ofício. Ele conta de uma pintura que realizou num único dia e que então lhe parecia muito boa. Naquela mesma noite, porém, ao observá-la mais uma vez, algo lhe desagradou, e ele recomeçou a trabalhar nela. As mudanças na parte direita da tela o induziram a mudar também o lado esquerdo, e um tempo depois tudo tinha desaparecido. “A pintura que estava quase terminada não parecia ruim, ela era ok”, diz Guston. “Mas é quase como se fosse boa demais. Como se eu não tivesse experimentado nada”. Se experimentar é tentar responder da melhor maneira a perguntas ainda não formuladas, o trabalho de arte precisa trazer algum risco, alguma incerteza, algum estranhamento. Ele obriga o artista a se lançar numa espécie de vazio, como o famoso salto de Yves Klein, fotografado em 1960.

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“A partir de certo ponto não há mais retorno. É este o ponto que deve ser alcançado”, diz o quinto aforismo do escritor Franz Kafka. A expressão “ponto de não retorno” tem emprego na aviação: trata-se daquela posição na trajetória e a partir da qual a autonomia de combustível da aeronave não permite que ela volte para seu local de origem. É preciso, assim, encontrar um novo lugar, seja para pousar em segurança, seja para despencar. Para pintar o espaço, propôs Klein, é preciso estar no espaço.

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Quando participou do nosso grupo de discussão de arte contemporânea, Paulo Pasta ofereceu uma excelente definição: “Aprender a desenhar é começar a reconhecer as suas dificuldades”. Não existe um certo e um errado a priori; o trabalho de arte vem do enfrentamento das adversidades encontradas no próprio fazer.

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No fim de sua entrevista, Carlito Carvalhosa dá um conselho ao artista jovem: “Você não deveria saber o que está fazendo”.

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Artista é o responsável por intensificar as potencialidades das obras de arte até que adquiram autonomia. Ele faz isso por meio da instauração de formas, que lhes dão estrutura, consistência e visualidade. Advoga em seu nome e pelo seu direito de existirem, legitimando sua maneira de ocuparem um espaço-tempo. Saberemos dar aos seres virtuais, ou às ideias em arte, a realidade que merecem? Como fazer isso? O argumento e as perguntas são de Lapoujade. As respostas, todavia, permanecem em aberto.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

AS "EXISTÊNCIAS MÍNIMAS" DE FLÁVIA RIBEIRO


Existências mínimas, de Flávia Ribeiro, na exposição Continuum

Em dado momento da pandemia, com a crise pessoal agravada, a artista Flávia Ribeiro precisou se recolher num sítio. Ali, não poderia continuar seus trabalhos com bronze fundido, então levou consigo algumas tintas guache, entre elas o seu vermelho favorito. Ao longo dessa temporada, recolheu gravetos de um velho ipê, já muito doente, algumas pedras, toquinhos de madeira remanescentes de uma construção feita há pouco no local. Não pensou em, com eles, criar arte, no sentido de executar um projeto artístico, muito menos em expor as pequenas esculturas que surgiam do longo processo de entalhar os gravetos com uma faquinha, pintar os toquinhos, empilhar pedras em formações instáveis. Todavia, depois de criadas, ficou impossível ignorá-las.

Na exposição Continuum, na Galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, essas esculturazinhas foram reunidas sob o título de Existências mínimas. Trata-se de uma referência ao livro As existências mínimas, de David Lapoujade, publicado no Brasil pela N-1 Edições, que fala de certas entidades virtuais, ou potencialidades que acompanham cada ser e carecem de realidade, como se não houvesse lugar para elas no mundo real. Aquilo que poderia ser e até certo ponto é; porém, de uma maneira precária, provisória, fictícia, sempre em busca do direito de existir mais intensamente.

Das cerca de trinta peças criadas no sítio, algumas já se quebraram, tamanha a fragilidade da sua composição. Essa fragilidade física talvez seja a grande força do conjunto que me chamou a atenção em meio aos demais trabalhos da mostra, disposto com singularidade entre a leveza e a translucidez dos desenhos em papel manteiga e a carga histórica e corpórea dos bronzes. Pois, criadas com uma espécie de gesto mínimo, também basta um sopro para se desfazerem, deixando de ser como são, e se tornarem outra coisa. Elas apontam, assim, para a nossa impermanência e ao mesmo tempo para a suposta longevidade da arte, talvez para o contrário também.

É com essa iminência que tais seres requerem seu direito de existir no mundo real e conquistam um lugar distinto na obra da artista, inclusive colocando o restante em questão. Como ela mesma comentou com o grupo de discussão sobre arte contemporânea do qual faço parte, as Existências mínimas surgiram sem planejamento e então foi preciso lidar com elas. Foi preciso se interrogar a respeito do que provocam, do que trazem de novo, de que relações estabelecem com a sua produção anterior; oferecem, assim, a oportunidade de se aprender com isso.

“Os virtuais têm a força do problemático”, diz Lapoujade. Para quem a força de um problema não é a sua tensão interna, mas a incerteza que ele introduz na (re)distribuição de realidade. Uma nova perspectiva irrompe e confunde a ordem de determinado plano de existência, deslocando os centros de gravidade.

Existência mínima, 2020, de Flávia Ribeiro

O filósofo explica ainda que cada existência provém de um gesto que a instaura, mas esse gesto não emana de um criador, é imanente à própria existência. De modo que, para ter lugar, ela precisa vencer a dúvida, o ceticismo ou a negação que contesta o seu direito de existir.

Pois não seria essa a qualidade daquelas pequenas esculturas de Flávia Ribeiro? Apresentarem-se sem serem convidadas, como um estrangeiro que bate à sua porta e coloca em questão o que acredita saber sobre si mesma? Um estranho imprevisto com o qual precisa dialogar, que invariavelmente a transforma, força-a para além do lugar-comum?

Elas são começos, esboços, fragmentos; quase se confundem com o puro nada, explica Lapoujade. Evidente que as Existências mínimas da artista não são uma representação do conceito desenvolvido no livro. Mas não tenho dúvidas de que as aproximações enriquecem de sentido ambos. Afinal, é próprio desses seres virtuais expandirem as possibilidades. “Seu ‘gesto’ próprio é suscitar outros gestos”, diz o filósofo; “são os virtuais que introduzem um desejo de criação, uma vontade de arte no mundo. Eles são a origem de todas as artes que praticamos”.

Como o novo está sempre posto em relação com o pré-existente, vejo também similitudes com outros trabalhos de Flávia Ribeiro, inclusive alguns da própria exposição. Por exemplo, com as estruturas delicadas do Campo para pensar I, espaço de imantação formado por uma base de parafina em que ideias ganham materialidade, como que desenhadas no ar com fios de arame e organza. Ou com o proposto “vir a ser” das suas esculturas intituladas Pré-objetos. Ou, ainda, com a pulsação da cor vermelha, que acentua algumas peças e, assim, em pitadas, se faz sempre presente.

As Existências mínimas são a amostra mais viva da intuição poética de Flávia Ribeiro, talvez um ponto de virada em sua trajetória, e com certeza um ponto de inflexão. Propõem caminhos alternativos, como as forquilhas do ipê. Carregam algo da brincadeira das crianças, que encaram o jogo da vida com seriedade, mas sem a sisudez de quem já se acostumou com as maneiras convencionais de existir. São receios e fragilidades assumidos; inconsistências e evanescências elaboradas na forma de uma coragem irregular, orgânica, primitiva, tão necessária para sobreviver na dureza do mundo real.


terça-feira, 13 de julho de 2021

A PRESENÇA DA ARTE

Composição em cinza, de Arcângelo Ianelli

É possível permanecer
depois de há muito
ter partido
encher os olhos
com resquícios
de uma existência
antever a crise, o caos
inverter a memória em realidade
experienciar a intensidade – que pulsa
ressoar o espírito do tempo
em tocante melodia
e assim
fazer-se inteiro
pleno-sempre
sobre o chão
estar disposto
único
entre outros
porque a arte
instaura essa presença
frente a toda vida
que desvanece.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

ALGUNS OLHARES PARA A ARTE DO PASSADO

Ao analisarmos uma pintura pelo viés da história da arte, vamos querer vê-la em seu tempo e seu contexto, tentando compreender o que representou para seus contemporâneos. A história de A noite estrelada, por exemplo, reconstrói a biografia de Vincent Van Gogh, sua internação voluntária no asilo de Saint-Rémy, na Provença, a janela do quarto por onde ele observava o céu noturno, a arquitetura dos vilarejos holandeses que o artista resgatou da memória e incluiu naquele vale iluminado pelo luar. Tudo isso por meio de documentos, como as cartas trocadas com seu irmão Théo, diários, registros variados deixados por pessoas próximas, relatos, análises técnicas da própria obra etc. A crítica de arte segue caminho semelhante, sendo por vezes indiscernível da historiografia. E tais narrativas se atualizam na medida em que novidades são descobertas e outras associações vão se produzindo. Mas estas não são as únicas formas de olhar a arte do passado.

No livro Studiolo, traduzido do italiano e publicado este ano no Brasil pela editora Âyiné, o filósofo Giorgio Agamben apresenta uma coleção de pequenos textos inspirados por trabalhos de arte que, conforme advertência do próprio autor, pretendem se colocar na tradição do comentário e não da crítica e da história. “Se chamamos de presente o instante em que uma obra chega à sua legibilidade, as obras comentadas no livro, ainda que compostas em um arco de tempo que começa em 5000 a.C. e chega até hoje, são todas igualmente presentes, convocadas aqui e agora em um instante eterno”, explica.

Ou seja, se a história e a crítica de arte leem as obras do passado sob a luz do nosso presente e contribuem, assim, para a elaboração de certa linha de tempo, a abordagem de Agamben é radicalmente outra: seu interesse nelas é ler o hoje sob a luz do passado, considerando que esse passado nunca se interrompeu. Afinal, de que maneira aquelas obras de arte impactam o entendimento de nossa época? Que heranças nos constituem enquanto seres humanos? Por que agimos como agimos e pensamos da maneira como pensamos?

A visão linear da história sempre foi um dos objetos da sua crítica, que desconstrói o formato cronológico ao investigar eventos que nunca cessam de acontecer. No caso da pintura de Van Gogh que citei antes, poderíamos pensar, talvez, na questão da loucura, na condição do olhar do artista, no imaginário e na memória, nas relações do sistema econômico com a organização social, na potência da criação artística e assim por diante. Todavia, A noite estrelada não é um dos trabalhos comentados em Studiolo.

O total de vinte e um textos – a maioria associados a pinturas de épocas muito diversas, desde a antiguidade clássica à modernidade – traça relações entre o próprio fazer artístico, observações acerca da imagem, história, literatura, filosofia, política, teologia, iconologia, entre outras áreas do conhecimento, como é comum nos escritos de Agamben. E, dada a sua extensão de, em média, apenas duas ou três páginas cada, eles se apresentam como lampejos; ideias pontuais, potencialmente muito maiores do que a forma concisa em que foram concebidos.

O título Studiolo remete ao gabinete particular onde os príncipes da Renascença se retiravam para meditar ou ler, rodeados pelas suas obras de arte favoritas. Agamben justifica, assim, a seleção das obras que comenta, as quais a princípio têm pouco ou nada em comum.

A respeito de Ninfa e pastor, pintura tardia de Ticiano, Agamben fala sobre a perda do mistério por meio da satisfação dos amantes e, assim, de certa inoperosidade da natureza humana, conceito já desenvolvido em outros livros seus. Ao dissertar sobre a janela de A noite, óleo sobre tela de Isabel Quintanilha, o autor trata dos limiares entre a realidade e a representação. Ao lermos seus escritos sobre o afresco pompeiano Aquiles renuncia a Briseida, aprendemos sobre certa condição do olhar. No comentário sobre Las hilanderas, de Velázquez, é colocada em questão uma possível ambiguidade entre o divino e o profano. Ao se debruçar sobre uma estatueta de traços femininos esculpida sete mil anos atrás, Agamben fala sobre a importância de entendermos o conceito de origem não como um ponto distante no passado, mas como a única via de acesso ao presente.

“A tarefa do pensamento”, escreve ele, “é arrancar os fenômenos da sua situação cronológica para restituí-los a essa dimensão de insurgência”. De modo que assim se sustente a inquietação causada pela distância temporal, ou seja, sem apaziguá-la por meio de uma consciência histórica que produz distanciamento confortável e se fazendo incapaz de enxergar a atualidade das obras do passado.

O pensamento, para Agamben, não pode ser apartado da forma. Ele jamais deixa de ser uma experiência de e com a linguagem. Por isso seu interesse na poesia e nas artes visuais. Por isso os comentários articulados com tamanho apuro. Se Studiolo não consta nas listas das obras fundamentais Giorgio Agamben, nem por isso deixa de ser uma leitura relevante para quem busca conhecer seus textos de teor estético e, claro, exercitar outras formas de olhar para a arte.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

ARTE É PESQUISA?


Boa parte da obra de Angelo Venosa se apresenta em camadas. Quando tratamos de pintura, não é incomum pensar nas camadas de tinta que se sobrepõem para criar efeitos visuais. Porém, logo no início de sua carreira, esse artista optou por trabalhar com objetos, os quais, por convenção, chamaremos de esculturas, embora as técnicas que lhes dão forma sejam diferentes dos tradicionais entalhe e modelagem. E o que vemos é que suas esculturas são, em grande número, criadas a partir da junção de camadas de matéria. Algumas delas são visíveis: Angelo acumula superfícies planas estreitas de modo a construir um corpo substancioso, mais ou menos como fazemos quando empilhamos folhas de papel numa resma. Outras esculturas suas, todavia, têm camadas estruturais ocultadas debaixo de uma pele, como ele próprio diz ao rever peças da década de 1980. Elas podem ser acessadas em seu site. São produzidas como um corpo animal em que primeiro existem os ossos, depois a carne, depois a pele. Não vemos tudo isso que as constitui, mas está lá, tornando possível a visualidade da obra.


A questão estrutural é uma chave de leitura importante na arte de Angelo Venosa. Seu interesse nela é inegável. Desde os primeiros trabalhos, existe uma verdadeira engenharia de hastes e dobradiças sob as superfícies de tecido e gesso. Algo ali da cenografia aprendida com o pai, talvez? Cujo resultado ora lembra cadeias montanhosas, ora longos tentáculos negros; são assim difíceis de localizar num sentido mais exato, em especial porque lhes faltam títulos. Inclusive, raras são as peças intituladas pelo artista, que alegando certa dificuldade nisso acaba por não encerrar com palavras certos entendimentos que são da ordem da imagem, da matéria, do sensível. Entendimentos que não cabem em razões discursivas. Pois Angelo “sente desejo de forma, não de representação”, explica.

Aquela engenharia de que falávamos aponta também para a engenhosidade processual da sua criação, cujos métodos se desenvolvem junto com cada trabalho e, de maneira surpreendente, pouco se repetem, apesar de as camadas serem uma constante. Aliás, essas camadas talvez sejam materializações da sua maneira de pensar e de produzir conhecimento.

Amílcar de Castro, outro grande artista brasileiro, explorou poucos procedimentos ao longo de sua trajetória – apenas três, segundo o crítico Rodrigo Naves, que de maneira resumida seriam: cortar e dobrar; cortar e deslocar; e movimentos ininterruptos de pincel. Amílcar trabalhou basicamente com aço corten e tinta preta sobre tela ou papel. Com esses recursos limitados, criou uma obra que talvez só não seja reconhecida mundialmente como uma das mais importantes por questões geográficas, administrativas e, claro, financeiras, que o impactaram no incipiente mercado nacional do século passado. Sem me prolongar demais nisso, quero explicar que citei Amílcar de Castro como contraponto à imensa variedade de formas, dimensões e técnicas de Angelo Venosa. Variedade também de materiais nelas envolvida: sal, piche, bronze, chumbo, ossos, madeira, acrílico, sisal, vidro, tecido, tinta, aço etc. A lista é longa. Segundo o artista, as coisas têm muitas possibilidades de ser. E eu me pergunto: como então definir uma forma para o trabalho e, com ele pronto, permitir de continue a ser múltiplo?

“O grande barato é o caminho”, disse Angelo durante sua visita virtual ao grupo de discussão de arte contemporânea conduzido por Germana Monte-Mór, do qual tenho participado com muito prazer. Com isso, ele se referia aos desafios do próprio fazer artístico, que tanto o instigam. E à beleza poética do descobrimento e da invenção de soluções para os problemas que a obra apresenta. Mesmo que nos últimos anos tenha utilizado recursos digitais e impressoras 3D para desenvolver seus objetos, ainda é a perseguição da ideia durante o processo de criação que lhe interessa. Para isso, não basta ter a ideia e depois executá-la: tudo se faz consecutivamente. Seu objetivo não é a escultura; não é a ela que Angelo se dirige, ao menos não de forma tão consciente. Seu objetivo é a execução em si; o objeto artístico acaba por ser a consequência dessa busca pressentida, não premeditada. Um ponto sutil que faz toda a diferença.

Em suas palavras, “é seguir pelo cheiro algo que não se conhece muito bem”. Isso, aliado à sua curiosidade natural, o faz explorar um universo de possibilidades plásticas. Não tenho dúvidas de que Angelo produziu, junto com sua coleção de objetos, um riquíssimo estudo de meios, formas e matérias. Precisou aprender a lidar com tudo aquilo para realizar seus trabalhos artísticos. Afinal, recortar vidro é diferente de moldar aço, pregar madeira, engessar tecidos, fixar dentes em cera etc. Para cada ação é necessária uma dimensão de conhecimento e de experiência técnica, artesanal e conceitual.

Sem titubear, dou a isso o nome de pesquisa. Mas Angelo Venosa tem uma questão com o termo, que ele evita, argumentando: “eu me atiro sem muita clareza e vou fazendo arte. Um sujeito se afogando está fazendo pesquisa? Não, está tentando sobreviver”. Apesar da força dessa expressão, fiquei intrigado, para não dizer descrente. Não cabe aos artistas pesquisar? Angelo prefere deixar o termo com os cientistas. E essa “deixa” me sugeriu uma forma de compreendê-lo. Pois me parece que, assim como evita títulos para não localizar com precisão os significados dos seus objetos, ele prefere não se referir ao próprio processo de investigação como pesquisa para evitar que vejamos o conhecimento artístico tal qual o científico, e as descobertas da arte tais quais as da ciência. Pois, enquanto esta última se desenvolve por meios racionalizados que visam estabelecer uma ordem universal geral e necessária, a arte – ao menos a arte de Angelo Venosa – se faz por deambulações, acasos, erros, além de arriscada experiência e rigorosa dedicação, que acabam por estabelecer um objeto singular.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

O CAMINHAR NA HISTÓRIA DA ARTE RUMO A PAULO NAZARETH: ALGUNS PONTOS DE PARADA E OBSERVAÇÃO



Em 2019, tive o prazer de apresentar mais uma pesquisa no Seminário de Estética e Crítica de Arte provido pelo Grupo de Estudos em Estética Contemporânea da USP. 

Falei sobre a caminhada como prática artística, com destaque para uma performance do artista Paulo Nazareth (em especial no que dialoga com a história da arte e com transformações do olhar, identidade latino-americana e condição de estrangeiro na atualidade). 

O texto decorrente agora pode ser lido neste belo livro recém-publicado, disponível online gratuitamente, que você acessa clicando aqui >> Anais do IV Seminário de Estética e Crítica de Arte da USP: Políticas da Recepção

domingo, 21 de fevereiro de 2021

DA ARTE À MESA


Como é que o conhecimento oriundo de uma determinada área pode servir tão bem a outras? Essa questão me reabriu o apetite desde que assisti a um documentário de apenas quatro capítulos sobre culinária. Chama-se Sal, gordura, acidez e calor, foi produzido pelo Netflix em 2018 e se baseia num livro da chef Samin Nosrat, que também o protagoniza. Ela viaja por Itália, Japão, México e Estados Unidos para verificar como essas culturas lidam com os elementos que dão título à série, respectivamente. A ideia é interessante e os episódios são divertidos, em boa parte por conta da espontaneidade de Samin, que conversa com outros famosos da gastronomia e com pessoas muito simples, para quem a comida é mais um hábito do que uma arte. Além das supostas delícias ou estranhezas dos pratos, fiquei tocado com algumas falas dos entrevistados, que têm me ajudado a pensar também cozinha afora. Aqui, fiz a associação com o universo da criação artística, com o qual tenho maior familiaridade, mas tenho certeza de que é possível harmonizá-las com diversos outros, a seu gosto.

Durante a visita a um fabricante de queijos na Itália, Samin pede para mexer a massa que fermenta num imenso caldeirão. Para isso, usa uma espécie de colher também gigante, difícil de manipular, que tem o propósito de “desgrudar o queijo do fundo do tacho”, por assim dizer. Tudo deve ser feito com delicadeza, de maneira uniforme e lentamente, explica o responsável pela produção. Que justifica com a seguinte máxima: “o leite precisa ser respeitado”.

No episódio sobre o sal, Samin visita um dos poucos mestres japoneses que ainda fazem molho de soja artesanalmente. A atividade demanda dois anos de fermentação, atenção impecável e uns tonéis de madeira de que resta apenas um único fabricante no país. Fez-me lembrar de uma visita que eu mesmo tive o prazer de realizar a uma antiga acetaia italiana em Modena, onde se produzem vinagres balsâmicos que demandam uma década de envelhecimento e têm a aparência de xarope. O prazer de experimentar uma colherada é indescritível. E único. Sequer na Itália esse tipo de produto é fácil de encontrar, assim como muitos japoneses passam a vida sem provar o molho de soja tradicional, dada a produção restrita. A grande questão, todavia, é que aquele mestre não se considerava responsável pela fatura do molho: conforme explica, “os micro-organismos” o fazem; ele apenas cria o ambiente onde podem se desenvolver.

O terceiro episódio trata de acidez no México. Onde conhecemos uma senhora de aparência humilde, que mói seu milho hidratado em um moinho comunitário para, com a massa resultante, fazer até duzentas e cinquenta tortilhas por dia, assadas num fogareiro rústico. São modeladas à mão, uma a uma, com a ponta dos dedos, delicadamente. Ao ser questionada sobre o motivo de fazer tortilhas por conta própria, em vez de mandá-las à cidade para serem feitas à máquina, a velha mexicana responde: “porque estamos acostumados a comê-las assim”.

O episódio final se passa nos Estados Unidos, quase todo na casa de Samin, onde são servidas refeições para seus familiares e amigos. É ela mesma quem diz, em tom de quem revela uma intimidade: “para mim, cozinhar nunca se tratou de comida, mas do que acontece à mesa”.

Essas foram as quatro pessoas cujo conhecimento e sabedoria me comoveram. E que me ajudaram a pensar como essa relação com o alimento tem similitudes com a criação artística.

Em primeiro lugar, aquele produtor de queijo na Itália me trouxe o respeito aos meios e materiais utilizados, pois eles requerem ser conhecidos, bem tratados, jamais menosprezados. Sejam palavras, tintas, um palco ou instrumento musical, qual seja o que concretiza sua arte, é preciso que se estabeleça aí uma relação honesta, de amor e profunda admiração.

Com o mestre japonês, descobrimos como é fundamental entender que não se pode controlar tudo. A criação tem uma parcela de acaso e outra de providência, de modo que o processo precisa ser cuidado para atuar em seu favor. Fazemos isso com rigor, afeição, desejo. E com abertura para acolher o inesperado, maturidade para percebê-lo, segurança para assumi-lo.

No universo artístico também é necessário tomar lugar numa história maior, que é de muitos assim como é de cada um de nós. Não me refiro apenas à história da arte, mas a um passado da humanidade que torna possível atuar no presente. No documentário, Samin explica que a produção artesanal das tortilhas só é possível graças a um processo químico desenvolvido pelos maias séculos antes da chegada dos europeus ao atual México. Talvez aquela senhora entrevistada nem soubesse disso. Mas é tocante perceber que ela carrega na ponta dos dedos uma herança imensurável, eclipsada pela banalidade do gesto simples de amassar. Nenhuma criação é obra de um único criador; ela é sempre um ponto a mais em uma rede de começo e fim desconhecidos.

Por fim, vale considerar que essa criação só se torna arte propriamente dita quando é compartilhada, vista, experimentada esteticamente. Quer dizer, talvez fazer arte não se trate apenas de criar, mas também disso que acontece depois, em âmbito social. Não foi Duchamp quem afirmou que a obra só termina quando encontra o espectador?

Fato é que a arte, assim como a comida, nos reúne desde sempre e nos dá força para seguir adiante. Se existe uma tristeza em saber que jamais conseguiremos acessar todo o conhecimento originado nessas e em outras atividades humanas, é por sua vez um privilégio poder nos banquetear com quantos forem possíveis.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

O QUE É A SUA OBRA DE ARTE?


Onde e como foi feita? Quanto tempo levou? Por que foram usados esses materiais, por que a técnica? A quem ela se destina? Por onde circula, onde está exposta? Do que ela trata; quais questões a mobilizam e quais ela agencia? Dialoga com alguém, apresenta referências específicas? Como ela se enquadra na sua trajetória artística? Já se falou algo a respeito disso tudo? 

No livro O que é um artista?, a escritora e socióloga Sarah Thornton entrevista “33 artistas em 3 atos”, conforme explica o título original em inglês, se traduzido ao pé da letra. No geral, são pessoas internacionalmente famosas e muito valorizadas pelo mercado, com vendas na casa dos milhões de dólares, alguns deles batendo centenas de milhões.

Evidente que se trata de um mundo bastante particular, que o livro faz parecer ainda mais restrito, como se existissem apenas aqueles artistas e que eles estivessem em todo lugar. Seja América, Europa ou Ásia, sejam as galerias de Manhattan, a Bienal de Veneza ou leilões em Dubai, Sarah encontra sempre os mesmos nomes, que encerram o escopo de sua pesquisa. E lá está ela, buscando definir a “persona” de cada artista, ou seja, a imagem e o discurso que o acompanham e que antecipam significados de seus trabalhos.

Sarah se interessa, especialmente, por isso que a celebridade artística tem de personalidade pública: um construto em larga medida ficcional e poderoso. De acordo com sua tese, “artistas não fazem apenas arte. Artistas criam e preservam mitos que tornam suas obras influentes”.

Um tanto generalista, sem dúvida. Inclusive, sabemos que uma parcela ínfima de artistas se sustenta apenas com a venda das próprias obras. Também no mundo da arte a desigualdade econômica é brutal. É preciso levar isso em consideração para ler os relatos do livro sem se iludir.

Sarah fez suas entrevistas em cafés, palestras, galerias, museus e nos estúdios ou residências dos seus interlocutores, entre outros locais. Seja em grandes eventos ou em situações intimistas, chama a atenção a maneira articulada como eles falam sobre a própria obra. Um discurso na maioria das vezes bem afinado, que se incorpora aos trabalhos e compõe a tal persona do artista. Concordando ou não com essas narrativas, sua persuasão é fascinante. Na medida em que respondem àquelas perguntas com que iniciei este texto, fui me dando conta de como elas qualificam a obra e o seu autor. Inclusive discursos “óbvios como o de Jeff Koons”, que fazem Sarah se “sentir na presença de um ator interpretando o artista”.

Cerca de três anos atrás, tive a oportunidade de entrevistar a brasileira Adriana Varejão, que não consta no sumário de Sarah Thornton, embora pudesse constar. Sua generosidade rendeu uma conversa de duas horas, durante a qual divagamos juntos, buscando esmiuçar e significar seus trabalhos. Eu havia me preparado para a ocasião, lendo quase todos os catálogos e entrevistas com a artista disponíveis. Ainda assim, foi um desafio fazer a conversa descolar daquela narrativa já conhecida a seu respeito, que não apenas insinua uma identidade para Adriana como também estabelece um lugar de conforto. Isso porque sua obra se encontra um tanto apresentada, ao ponto em que o discurso ameaça a todo instante sobrepassá-la.

Tomo esse exemplo pessoal para tentar compreender o que acontece com a tese de Sarah Thorton – cujos relatos são, além de tudo, habilmente interrelacionados, como se afinal lêssemos uma só história feita de capítulos sequenciais. Ainda sobre a persona, a autora explica: “não é fácil defender esse tipo de autoridade, mas é essencial para um artista que deseja obter sucesso”.

O sucesso a que ela se refere está diretamente associado à aceitação do mercado, todavia não se restringe àqueles poucos artistas milionários. Ao que me parece, saber falar sobre a própria obra é importante para todo o escalão, no sentido de que facilita seu conhecimento, aceitação e circulação. Entre outros benefícios.

A verdade é que esse quesito me pegou em cheio. Não produzo arte visual, mas literatura, e a ideia serve para ambas, assim como para o cinema, o teatro, a música etc. Fato é: ainda sinto uma dificuldade considerável de falar sobre meus trabalhos, articular as questões que me instigam, ajudar o público a se localizar. Estaria aí uma fraqueza? Afinal, se eu não consigo falar claramente sobre meus livros, como esperar que os leitores falem?

Ai Weiwei trata de liberdade de expressão; Damien Hirst, da linguagem do dinheiro; Andrea Fraser, das instituições artísticas; e assim por diante. Francis Alÿs, Cindy Sherman, Marina Abramovic, Gabriel Orozco e Beatriz Milhazes, entre os demais citados por Sarah Thornton, têm uma habilidade impressionante de colocar suas produções em palavras.

Ainda que essas narrativas tenham sido desenvolvidas com ajuda de diversos colaboradores, não podemos negar que existe aí também um exercício importante para o próprio artista: aprender a apresentar seus motivos, seus caminhos, sua intuição e sensibilidade; tudo isso em que acredita e que persegue esteticamente pela via da criação. Colocar em palavras formas de expressão por vezes indizíveis, que talvez habitem outro lugar que não o da razão e falem outra língua. Gerar empatia e abrir possibilidades de diálogo. 

Com um detalhe fundamental: falar da obra de modo a não esclarecer as questões nela implicadas, o que extinguiria toda a sua vitalidade, mas sim pretendendo enunciá-las. Ou seja, de modo que esse discurso possa compor a obra sem determiná-la. Um desafio do qual dificilmente se escapa, ao menos segundo a perspectiva de Sarah Thornton. De minha parte, adoraria saber o que pensa você, que chegou até este ponto dito final – e que por sorte nunca é.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

PERGUNTAS, PERGUNTAS, PERGUNTAS

Aprender a perguntar e se deixar sensibilizar pelas questões dos outros são atitudes importantes para construirmos um novo tempo. 

O material produzido pelos participantes deste laboratório conduzido pelo artista Fábio Tremonte no Museu de Arte Moderna de São Paulo agora está disponível para download (clique aqui para baixar). 

São dezenas de perguntas elaboradas pelos participantes. Quais delas também são suas?

domingo, 27 de dezembro de 2020

CIDADE EM BRANCO

Foto de Frank Busch


O lugar é amplo e bem iluminado. Tudo é pintado de branco: as paredes, o teto e até o piso, tal como nos famosos e muito criticados museus “cubos brancos” surgidos com a arte moderna, ainda bastante comuns. Para esta performance, é importante que seja assim, o que não implica, necessariamente, uma ideia ultrapassada. Veremos.

No centro do recinto há uma mesa grande e redonda, talvez com um buraco no meio, como se olhássemos para o aro de uma roda de bicicleta gigante. É importante que seja circular e branca. Do lado de fora dessa mesa há cadeiras, no mínimo duas dezenas. São brancas. E são belas, quer dizer, não são simples cadeiras plásticas, dessas que usamos em ocasiões quaisquer. Temos ali uma ocasião especial.

A mesa se encontra forrada com papel manteiga, como nos restaurantes que eu frequentava quando criança. Toalhas brancas de tecido por baixo, folhas de papel manteiga em cima. Tocá-las é prazeroso, é como acariciar uma tépida combinação de lisura e veludo, quase uma pele de bebê. De fora, não temos como saber; contudo se trata de mais um detalhe importante.

A mesa está posta também com pratos, garfos, facas, colheres, taças e guardanapos de tecido. Todos eles brancos e em número exato e correspondente à quantidade de cadeiras.

O público não deve se aproximar demais por enquanto, embora não exista nenhuma barreira concreta que o impeça, como um cordão de isolamento, por exemplo. Basta uma iluminação diferente. A mesa e as cadeiras estão dispostas sob fortes holofotes. O público, ao redor, permanece em certa penumbra, como acontece durante um espetáculo convencional de teatro. Ou nos cinemas. Assim, todos saberão para onde direcionar o olhar.

Nenhuma produção sonora é necessária; por ora, ouvimos o burburinho controlado típico dos ambientes museais. Em breve, esse ruído amansará naturalmente, quando os convidados chegarem.

Eles demoram apenas uma brevidade, o suficiente para o público começar a se perguntar se tudo corre conforme o planejado. Não há dúvidas de que existe um roteiro. Mesmo assim, conhecemos a nossa ansiedade. Também ela se faz presente.

Os convidados entram aos poucos, um ou dois por vez, no máximo. São de idades, etnias e gêneros diversos e têm suas marcas físicas pessoais preservadas. Todavia, vestem-se inteiramente de branco. O detalhe é importante: apenas branco em todos os trajes, que exceto por isso podem ser de qualquer modelo. Lembrando apenas que se trata de uma ocasião especial, uma celebração pública e coletiva, em que a vestimenta de um manifesta o valor da presença do outro.

Cada convidado ocupa seu lugar à mesa. Aproxima-se, senta-se e aguarda até o último se acomodar e todas as cadeiras estarem ocupadas. Pega então seus talheres e, junto com os demais, passa a rabiscar o papel manteiga. Quem já frequentou restaurantes com mesas forradas dessa maneira sabe que o papel branco, à menor pressão, produz uma marca branca em tom diferente, portanto é possível, com a ponta de uma faca, por exemplo, desenhar em branco sobre branco. Kazimir Malevich pintou um quadrado assim mais de um século atrás na Rússia revolucionária, porém utilizando tinta a óleo sobre tela. A referência me ocorre agora, mas não sei dizer até que ponto influencia a performance a que assistimos.

É importante dizer que os convidados não desenham qualquer coisa: foram instruídos a registrarem os locais da cidade que frequentam com prazer. Seus espaços públicos favoritos, agora reproduzidos de memória. Daí a importância de que essas pessoas sejam selecionadas entre os habitantes da cidade específica onde a performance é realizada. Exceto por isso, cada um tem liberdade para desenhar o que quiser e da maneira como achar mais conveniente. São pessoas comuns, que se dispuseram a participar de acordo com o roteiro propositivo.

Cinco a dez minutos me parecem suficientes para que alguns croquis ganhem forma. Um dos convidados, que observa o tempo em seu relógio de pulso, é o primeiro a depositar de volta na mesa os talheres utilizados. Atentos, os demais repetem seu gesto, até que ninguém mais desenhe nada. Nesse momento, todos se levantam e caminham ao redor da mesa, fazendo o percurso que preferirem, tomando alguns minutos para apreciarem os desenhos dos companheiros. As impressões da experiência são guardadas para si; o silêncio não é quebrado em momento algum.

Aos poucos, assim como adentraram o recinto, os convidados partem. Cada um em seu ritmo e no máximo dois por vez. A ordem não é combinada previamente e varia. Importante é que não haja pressa. Quando o último se vai, todas as luzes do salão se acendem, sugerindo que o público se aproxime.

Uma conversa com os convidados é organizada no dia seguinte, na qual eles já vestem suas roupas pessoais e falam sobre a experiência para que os interessados, ali presentes, possam ouvir. Quais questões surgem, então? Desde esse dia seguinte, as folhas de papel manteiga com os desenhos ficam expostas no mesmo ambiente onde a performance se realizou, penduradas em varais com pregadores brancos, de modo que possam ser observadas em ambos os lados por quem visitar a mostra.

Enquanto ela durar, mesas e cadeiras também permanecerão no local, com as folhas de papel manteiga sendo repostas toda vez que estiverem suficientemente preenchidas. Os visitantes estarão convidados a desenhar nelas com os palitos de dentes brancos disponíveis. Demais utensílios como pratos, talheres e taças terão sido recolhidos.

As folhas desenhadas pelos visitantes devem ser levadas por eles ou destruídas, caso não haja como reciclá-las. As folhas produzidas na performance podem ser incorporadas ao acervo da instituição promotora ou ao acervo público da cidade; se não houver interesse dessas partes, serão destruídas.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

CRIATIVIDADE EMBOTADA

Possivelmente assim como você, estou em casa com esposa e filha desde o início de março, onde vida familiar e profissional nunca estiveram tão misturadas, indiscerníveis até. É sem dúvida um privilégio se comparado a quem precisa sair, expondo a própria saúde e a de seus próximos. Há também outros aspectos positivos. Por exemplo, acompanho cada momento desse terceiro ano de minha menina. Fico a imaginar quanto teria perdido se continuássemos na rotina anterior, em que ela passava dez horas por dia na escola. Os pontos negativos, claro, são inúmeros, nem caberia elencá-los aqui. Todavia, um deles me chamou a atenção recentemente, e pude discuti-lo com amigos escritores e artistas que vivem situação semelhante à minha, quando concluí que existe mesmo uma constante: ao longo da quarentena, o contato com aquele pulso mais criativo, tão típico do ser humano, foi sendo minado até quase desaparecer. Aconteceu devagar, um pouquinho por semana, de modo que não consigo identificar um ponto exato de ruptura, apesar de ser assim que me sinto agora, apartado dele por completo.

Foto de Julia Joppien em Unsplash (detalhe)

De início, tentei elaborar a nova condição imposta pelo vírus, e como os tempos mais alargados já não cabiam, optei por trabalhar com poemas breves. Havia neles o engenho da palavra e, mais importante, uma reapresentação da vida, perturbada com as mudanças que eu observava ao redor. Tais poemas foram escasseando. Não porque me faltavam palavras, mas porque faltava vida.

Pode soar paradoxal, em especial se levarmos em conta que certa inércia das primeiras semanas foi logo preenchida com mais e mais trabalho, ao ponto em que jamais produzi tanto, profissionalmente falando, como neste último mês de novembro. As horas estiveram todas ocupadas, como se não houvesse sequer alguns minutos de respiro. Porém tais realizações não foram além de um modelo automático, dedicado a quem contrata meus serviços de redação. Talvez você se pergunte: é possível escrever sem criatividade? Sim e não, eu diria. Neste caso, basta um apuro técnico com as palavras, como se eu escrevesse com um jogo de peças de montar. O que não é suficiente para escrever literatura, não basta para desenvolver ensaios críticos, coisas que muito me interessam. Talvez você sinta o mesmo em relação à sua área de atuação e seus interesses particulares.

E por que não basta? Porque falta vida. Foi assim que me dei conta de como eram importantes as quase duas horas por dia no transporte público, o horário preservado para o almoço, as pausas para o café. Tanto quanto os passeios de fim de semana no parque, nos centros de cultura, em restaurantes e até mesmo no comércio. O encontro com conhecidos e desconhecidos. Como bem disse uma amiga, visitar uma exposição no museu é muito mais do que estar frente a frente com obras de arte. Vemos pessoas ali e nos percursos de ida e volta, ouvimos uma música, somos atravessados por trechos de conversas, sustos e deleites. O corpo se põe em movimento, sentimos os cheiros da rua, somos tocados pelo sol e pelas sombras. Carros pedem passagem, pássaros nos dão cantadas, desviamos olhares e trajetórias. Reagimos de improviso o tempo inteiro. Estamos abertos ao espontâneo.

É a essa vida que eu me referia, acusando a sua falta. É dela que advém a intensidade criativa capaz de se converter em poesia. É da natureza desse dia a dia social e político se apresentar como uma verdadeira experiência estética a quem se permite. O fato de não poder mais vivenciá-lo leva a um automatismo psíquico e, com certeza, a um comportamento produtivo, porém sem vitalidade. No limite, sinto-me como que morto; um morto-vivo, digamos.

Aquela dificuldade de separar minimamente o pessoal e o profissional tem provocado sentimentos controversos, como a alegria de estar junto de quem amo e a culpa por não realizar algo prazeroso, como pesquisar, por exemplo. Se algum tempo se abre na rotina de trabalho obrigatório, não consigo pegar um livro e apreciá-lo, sabendo que minha filha espera companhia para brincar. Quero estar com ela o máximo possível, ao mesmo tempo em que me pego torcendo pela sua hora de soneca. Quando saio em fins de semana para fazer algum exercício, pedalando, penso que devo retornar o quanto antes.

Claro que a força criativa às vezes encontra falhas no casco e vaza. Acontece de eu despertar de madrugada para escrever alguma coisa que me convoca. Comecei também a fazer pães, de maneira que não me sinto tão culpado com o tempo que demandam, pois todos na casa usufruímos deles. Encontro aí alguma energia para manter o pulso. Mas sinto que mesmo essas atividades começam a vestir o uniforme fabril.

Dizem que 2020 ficará marcado como o ano da doença, enquanto 2021 será o ano da cura. Sem dúvida são narrativas factíveis, ainda que leve um bom tempo até sermos vacinados, ao que tudo indica. Outra amiga manifestou a necessidade de um rito de passagem, como o próprio réveillon, que simboliza o encerramento de um ciclo e o início de outro. De minha parte, sinto que ele não terá esse poder; ainda teremos muito 2020 no ano que vem.

“Vai dar certo no final”, seja lá o que isso signifique, assim como a ideia de um “novo normal” em que a sociedade será mais compreensiva e solidária são visões generalistas, ou seja, não servem para muita coisa, exceto nos ludibriar. Infelizmente, não estou em condições de ir muito além na elaboração de futuros possíveis.

Não quero, contudo, parecer pessimista. Sigo o ritmo que me cabe agora, tentando de uma maneira ou de outra um descompasso, um desvio, um tropeção, que seja. Que me permita cair no mundo outra vez e me conectar com a vitalidade criativa de maneira mais intensa do que a favorecida pela fibra ótica. Se posso desejar algo neste fim de ano é que eu consiga reinventá-lo pela arte. A qual, tenho certeza, me aguarda tão ávida quanto aguardo por ela.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

OUTRO OLHAR PARA UMA HISTÓRIA

A adoração dos Magos (1564), de Pieter Bruegel, o Velho

Para lembrar o Dia da Consciência Negra, compartilho algo que aprendi ontem: Gaspar, um dos Reis Magos, começa a ser pintado como negro no século XV, após a queda de Constantinopla. Entre os motivos está o fato de que, estando o caminho tradicional para a Terra Santa bloqueado pelos muçulmanos, os europeus precisaram buscar uma alternativa via África, onde após alguns anos os portugueses enfim encontraram o lendário reino negro e cristão da Etiópia. 

Diante daquela descoberta, Gaspar passou a ser representado como negro, normalmente jovem e mais distante do menino Jesus, enquanto os outros Magos são mais velhos e próximos, pois o pequeno Deus deveria ser louvado em todas as fases da vida e por todos os povos, inclusive os mais estrangeiros. 

Na Europa, não era incomum ter escravos negros antes mesmo da exploração como mão de obra nas lavouras americanas. Suas representações como serviçais, em pinturas, eram muito mais antigas. A cor preta, no mundo cristão, tinha sentido negativo, normalmente relacionada ao mal.

O primeiro rei negro na história da arte europeia data apenas de 1460, pintado por Andrea Mantegna. 

Adoração dos Magos (1460), de Andrea Mantegna

O Gaspar de Bruegel, de 1564, atualmente na National Gallery de Londres, é o único dos Reis Magos na pintura que não olha para o sexo do menino, no qual a circuncisão marcaria a encarnação de Deus. 

Segundo a engenhosa leitura de Daniel Arasse (no livro Nada se vê), esse estrangeiro tem ali uma função especial: fornecer a chave para "como" ver o mito da adoração, em vez de ser apenas luz para o que se vê. Ele faz isso justamente por meio do seu olhar desviante. Diz o autor do ensaio: "o rei negro é o único, junto conosco, a ter bons olhos e, apesar disso, a não ver aquilo que deveria ser a prova que a humanação de Deus [o sangramento do prepúcio retirado no rito judeu], mistério fundador da fé cristã, se cumpriu. [...] Um belo paradoxo: a pintura está ali para mostrar que a fé não precisa de provas, visuais ou tangíveis. [...] Bruegel restituiu uma fonte de inspiração em que o negro, o olhar do negro, era portador da mais elevada espiritualidade e atestava a vocação universal da fé cristã, o que significava também, nos termos da época, a universalidade da humanidade dos homens".

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

CRIAR, GUARDAR, COLECIONAR

Na Companhia dos Objetos #8 (2009), de Flávia Junqueira

A história da humanidade pode ser contada por meio dos objetos que utilizamos, acumulamos, passamos de geração em geração, descartamos ou até mesmo sepultamos com nossos restos mortais. Por menos materialistas que pretendamos ser, temos com eles uma relação especial, que é exclusiva da nossa espécie. Uma relação que se manifesta de diferentes maneiras ao longo do tempo e dos povos, mas que mantém um princípio comum com a sobrevivência. São marcas da civilização: as ferramentas, as vestimentas, os adornos; os objetos sagrados e os profanos, os especiais e os banais. Artesanias que passam a existir por meio de um gesto transformador, o qual diferencia a matéria da sua natureza original. Todo artefato é também um artifício justamente porque criado pelo homem e incorporado a uma cultura. Adquire, de algum modo, um aspecto simbólico, um sentido prático, uma função.

O que são esses objetos no rack da sala, exibidos às visitas? Quais são os que guardamos no quartinho da bagunça, longe dos nossos próprios olhos? O que dizem sobre nós, proposital ou inadvertidamente? Quando foram adquiridos, em que circunstância? Quais desejos estão associados a eles? Por que ainda os temos? Que memórias eles sustentam? Que sentimentos produzem?

Lemos no poema Aspectos de uma casa, de Carlos Drummond de Andrade: “Ajudemos Maria (dizem eles / no dizer sem nome dos objetos) / a compor sua casa / como de um baralho de sons / se compõe a estrutura musical”. Antes, ainda, ele escreve: “Maria cria sua casa / como o pássaro cria seu voo”. Ao longo dos demais versos, o poeta enumera coisas que fazem daquele teto um lar, cada qual no quarto do seu respectivo dono, outros no espaço comum do living. São elas as protagonistas da narrativa; são elas que, numa dada organização, compõem o cenário, expõem o enredo e nos fazem imaginar os coadjuvantes humanos que não estão ali, exceto por seus rastros. Não obstante, Maria cria sua casa por instinto, num certo improviso que reage às ações da vida, tal como o pássaro cria o voo.

A organização para uns é a desorganização de outros. Como vemos no breve documentário Nova Iorque, mais uma cidade, que acompanha a indígena Patrícia Ferreira durante sua visita ao Museu Americano de História Natural, onde observa peças dos nativos sul-americanos. Nas vitrines, encontra coisas que em sua opinião não deveriam estar ali, descontextualizadas e distantes das pessoas que as possuíam, abertas a interpretações quaisquer, o que para a cineasta configura um desrespeito à cultura guarani.

O que provocamos ao transferir objetos de lugar, ao reorganizá-los em novas composições, ao exclui-los da vista ou ao trazer à tona os costumeiramente invisíveis? Essas questões foram caras a artistas como Marcel Duchamp, Kurt Schwitters, Pablo Picasso e Salvador Dalí, entre outros que fizeram e ainda fazem, desde o Modernismo, experiências do gênero. Penso, por exemplo, no mictório que Duchamp levou ao espaço expositivo; nos pertences de amigos incorporados por Schwitters a sua Merzbau; nos materiais da vida comum que Picasso agregou as suas pinturas, como retalhos de tecido e jornais; nos objetos oníricos de Dalí, modificados em sua forma e função originais.

Seja em casa ou no museu, por que acumulamos coisas? E por qual motivo as colecionamos, instituindo métodos de escolha e preservação? Quais legendas acompanham essas coleções? Que histórias elas formulam? Que conhecimentos advêm delas?

No conto O colecionador, Maria Esther Maciel fala de um homem que reunia nomes de mulheres. Primeiro os que traziam o som da água, depois os nomes florais, por vezes aqueles com uma inicial específica. Os que não se enquadravam nas categorias “ficaram apenas em sua memória como uma causa perdida”. Até que um dia, sem motivo aparente, tal homem desiste da pesquisa e passa noites em claro, perturbado com o desafio de achar uma mulher sem nome.

Pode, no domínio da humanidade, haver existência não nomeada, talvez naquele “dizer sem nome dos objetos”, como Drummond escreveu? Pode existir objeto que não esteja acompanhado de palavra? No desenlace do poema, acontece algo semelhante ao que vemos no conto de Maciel: após observar as coisas que se encontram na casa de Maria, uma pomba alça voo e vai-se embora. Pois tanto elas quanto seus nomes, para o pássaro, nada significam.