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quinta-feira, 9 de setembro de 2021

QUANDO O MUNDO LÁ FORA NÃO FAZ SENTIDO


 
“Eu imitava com grande facilidade o vídeo de treinamento a que assistimos na sala dos fundos, ou os gestos que o instrutor nos mostrava. Até então, ninguém jamais havia feito essa gentileza de me explicar claramente: ‘Este é o jeito normal de sorrir, este é o jeito normal de falar’.” (p. 22) 
 
Vencedor de prêmios importantes, best-seller internacional, Querida Konbini chega a soar um tanto ingênuo e repetitivo. Acontece que essas são também características da protagonista, funcionária temporária – há 18 anos – de uma loja de conveniência (konbini) em Tóquio, o que é considerado um desastre, profissionalmente falando. 
 
Seu jeito estranho de compreender as relações sociais, embora inadequado aos padrões, obedece a uma racionalidade sistemática típica daquele comércio popular, que todos os cidadãos frequentam e sabem como funciona. Percebe o paradoxo? É uma mulher tão bem encaixada no mecanismo que por isso mesmo deixa ver seu desencaixe. 
 
Li o romance em poucos dias e ele permanece crescendo em mim. É uma leitura que instiga com sua simplicidade, nos coloca diante da estranha ordem contemporânea e, oscilando entre risos e espantos, mostra como nossa sensibilidade também segue uma espécie de manual de atendimento ao cliente. 
 
Querida Konbini, de Sayaka Murata, foi traduzido do japonês e publicado no Brasil pela editora Estação Liberdade.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

CRIATIVIDADE EMBOTADA

Possivelmente assim como você, estou em casa com esposa e filha desde o início de março, onde vida familiar e profissional nunca estiveram tão misturadas, indiscerníveis até. É sem dúvida um privilégio se comparado a quem precisa sair, expondo a própria saúde e a de seus próximos. Há também outros aspectos positivos. Por exemplo, acompanho cada momento desse terceiro ano de minha menina. Fico a imaginar quanto teria perdido se continuássemos na rotina anterior, em que ela passava dez horas por dia na escola. Os pontos negativos, claro, são inúmeros, nem caberia elencá-los aqui. Todavia, um deles me chamou a atenção recentemente, e pude discuti-lo com amigos escritores e artistas que vivem situação semelhante à minha, quando concluí que existe mesmo uma constante: ao longo da quarentena, o contato com aquele pulso mais criativo, tão típico do ser humano, foi sendo minado até quase desaparecer. Aconteceu devagar, um pouquinho por semana, de modo que não consigo identificar um ponto exato de ruptura, apesar de ser assim que me sinto agora, apartado dele por completo.

Foto de Julia Joppien em Unsplash (detalhe)

De início, tentei elaborar a nova condição imposta pelo vírus, e como os tempos mais alargados já não cabiam, optei por trabalhar com poemas breves. Havia neles o engenho da palavra e, mais importante, uma reapresentação da vida, perturbada com as mudanças que eu observava ao redor. Tais poemas foram escasseando. Não porque me faltavam palavras, mas porque faltava vida.

Pode soar paradoxal, em especial se levarmos em conta que certa inércia das primeiras semanas foi logo preenchida com mais e mais trabalho, ao ponto em que jamais produzi tanto, profissionalmente falando, como neste último mês de novembro. As horas estiveram todas ocupadas, como se não houvesse sequer alguns minutos de respiro. Porém tais realizações não foram além de um modelo automático, dedicado a quem contrata meus serviços de redação. Talvez você se pergunte: é possível escrever sem criatividade? Sim e não, eu diria. Neste caso, basta um apuro técnico com as palavras, como se eu escrevesse com um jogo de peças de montar. O que não é suficiente para escrever literatura, não basta para desenvolver ensaios críticos, coisas que muito me interessam. Talvez você sinta o mesmo em relação à sua área de atuação e seus interesses particulares.

E por que não basta? Porque falta vida. Foi assim que me dei conta de como eram importantes as quase duas horas por dia no transporte público, o horário preservado para o almoço, as pausas para o café. Tanto quanto os passeios de fim de semana no parque, nos centros de cultura, em restaurantes e até mesmo no comércio. O encontro com conhecidos e desconhecidos. Como bem disse uma amiga, visitar uma exposição no museu é muito mais do que estar frente a frente com obras de arte. Vemos pessoas ali e nos percursos de ida e volta, ouvimos uma música, somos atravessados por trechos de conversas, sustos e deleites. O corpo se põe em movimento, sentimos os cheiros da rua, somos tocados pelo sol e pelas sombras. Carros pedem passagem, pássaros nos dão cantadas, desviamos olhares e trajetórias. Reagimos de improviso o tempo inteiro. Estamos abertos ao espontâneo.

É a essa vida que eu me referia, acusando a sua falta. É dela que advém a intensidade criativa capaz de se converter em poesia. É da natureza desse dia a dia social e político se apresentar como uma verdadeira experiência estética a quem se permite. O fato de não poder mais vivenciá-lo leva a um automatismo psíquico e, com certeza, a um comportamento produtivo, porém sem vitalidade. No limite, sinto-me como que morto; um morto-vivo, digamos.

Aquela dificuldade de separar minimamente o pessoal e o profissional tem provocado sentimentos controversos, como a alegria de estar junto de quem amo e a culpa por não realizar algo prazeroso, como pesquisar, por exemplo. Se algum tempo se abre na rotina de trabalho obrigatório, não consigo pegar um livro e apreciá-lo, sabendo que minha filha espera companhia para brincar. Quero estar com ela o máximo possível, ao mesmo tempo em que me pego torcendo pela sua hora de soneca. Quando saio em fins de semana para fazer algum exercício, pedalando, penso que devo retornar o quanto antes.

Claro que a força criativa às vezes encontra falhas no casco e vaza. Acontece de eu despertar de madrugada para escrever alguma coisa que me convoca. Comecei também a fazer pães, de maneira que não me sinto tão culpado com o tempo que demandam, pois todos na casa usufruímos deles. Encontro aí alguma energia para manter o pulso. Mas sinto que mesmo essas atividades começam a vestir o uniforme fabril.

Dizem que 2020 ficará marcado como o ano da doença, enquanto 2021 será o ano da cura. Sem dúvida são narrativas factíveis, ainda que leve um bom tempo até sermos vacinados, ao que tudo indica. Outra amiga manifestou a necessidade de um rito de passagem, como o próprio réveillon, que simboliza o encerramento de um ciclo e o início de outro. De minha parte, sinto que ele não terá esse poder; ainda teremos muito 2020 no ano que vem.

“Vai dar certo no final”, seja lá o que isso signifique, assim como a ideia de um “novo normal” em que a sociedade será mais compreensiva e solidária são visões generalistas, ou seja, não servem para muita coisa, exceto nos ludibriar. Infelizmente, não estou em condições de ir muito além na elaboração de futuros possíveis.

Não quero, contudo, parecer pessimista. Sigo o ritmo que me cabe agora, tentando de uma maneira ou de outra um descompasso, um desvio, um tropeção, que seja. Que me permita cair no mundo outra vez e me conectar com a vitalidade criativa de maneira mais intensa do que a favorecida pela fibra ótica. Se posso desejar algo neste fim de ano é que eu consiga reinventá-lo pela arte. A qual, tenho certeza, me aguarda tão ávida quanto aguardo por ela.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

CRIAR, GUARDAR, COLECIONAR

Na Companhia dos Objetos #8 (2009), de Flávia Junqueira

A história da humanidade pode ser contada por meio dos objetos que utilizamos, acumulamos, passamos de geração em geração, descartamos ou até mesmo sepultamos com nossos restos mortais. Por menos materialistas que pretendamos ser, temos com eles uma relação especial, que é exclusiva da nossa espécie. Uma relação que se manifesta de diferentes maneiras ao longo do tempo e dos povos, mas que mantém um princípio comum com a sobrevivência. São marcas da civilização: as ferramentas, as vestimentas, os adornos; os objetos sagrados e os profanos, os especiais e os banais. Artesanias que passam a existir por meio de um gesto transformador, o qual diferencia a matéria da sua natureza original. Todo artefato é também um artifício justamente porque criado pelo homem e incorporado a uma cultura. Adquire, de algum modo, um aspecto simbólico, um sentido prático, uma função.

O que são esses objetos no rack da sala, exibidos às visitas? Quais são os que guardamos no quartinho da bagunça, longe dos nossos próprios olhos? O que dizem sobre nós, proposital ou inadvertidamente? Quando foram adquiridos, em que circunstância? Quais desejos estão associados a eles? Por que ainda os temos? Que memórias eles sustentam? Que sentimentos produzem?

Lemos no poema Aspectos de uma casa, de Carlos Drummond de Andrade: “Ajudemos Maria (dizem eles / no dizer sem nome dos objetos) / a compor sua casa / como de um baralho de sons / se compõe a estrutura musical”. Antes, ainda, ele escreve: “Maria cria sua casa / como o pássaro cria seu voo”. Ao longo dos demais versos, o poeta enumera coisas que fazem daquele teto um lar, cada qual no quarto do seu respectivo dono, outros no espaço comum do living. São elas as protagonistas da narrativa; são elas que, numa dada organização, compõem o cenário, expõem o enredo e nos fazem imaginar os coadjuvantes humanos que não estão ali, exceto por seus rastros. Não obstante, Maria cria sua casa por instinto, num certo improviso que reage às ações da vida, tal como o pássaro cria o voo.

A organização para uns é a desorganização de outros. Como vemos no breve documentário Nova Iorque, mais uma cidade, que acompanha a indígena Patrícia Ferreira durante sua visita ao Museu Americano de História Natural, onde observa peças dos nativos sul-americanos. Nas vitrines, encontra coisas que em sua opinião não deveriam estar ali, descontextualizadas e distantes das pessoas que as possuíam, abertas a interpretações quaisquer, o que para a cineasta configura um desrespeito à cultura guarani.

O que provocamos ao transferir objetos de lugar, ao reorganizá-los em novas composições, ao exclui-los da vista ou ao trazer à tona os costumeiramente invisíveis? Essas questões foram caras a artistas como Marcel Duchamp, Kurt Schwitters, Pablo Picasso e Salvador Dalí, entre outros que fizeram e ainda fazem, desde o Modernismo, experiências do gênero. Penso, por exemplo, no mictório que Duchamp levou ao espaço expositivo; nos pertences de amigos incorporados por Schwitters a sua Merzbau; nos materiais da vida comum que Picasso agregou as suas pinturas, como retalhos de tecido e jornais; nos objetos oníricos de Dalí, modificados em sua forma e função originais.

Seja em casa ou no museu, por que acumulamos coisas? E por qual motivo as colecionamos, instituindo métodos de escolha e preservação? Quais legendas acompanham essas coleções? Que histórias elas formulam? Que conhecimentos advêm delas?

No conto O colecionador, Maria Esther Maciel fala de um homem que reunia nomes de mulheres. Primeiro os que traziam o som da água, depois os nomes florais, por vezes aqueles com uma inicial específica. Os que não se enquadravam nas categorias “ficaram apenas em sua memória como uma causa perdida”. Até que um dia, sem motivo aparente, tal homem desiste da pesquisa e passa noites em claro, perturbado com o desafio de achar uma mulher sem nome.

Pode, no domínio da humanidade, haver existência não nomeada, talvez naquele “dizer sem nome dos objetos”, como Drummond escreveu? Pode existir objeto que não esteja acompanhado de palavra? No desenlace do poema, acontece algo semelhante ao que vemos no conto de Maciel: após observar as coisas que se encontram na casa de Maria, uma pomba alça voo e vai-se embora. Pois tanto elas quanto seus nomes, para o pássaro, nada significam.

quarta-feira, 6 de março de 2019

PEDAGOGIA DA AUTONOMIA


“Minha mãe só me faz estudar. Não adianta estudar se a pessoa é burra”, reclamou uma garota à amiga que a acompanhava no metrô de São Paulo. Tinham uns treze anos e mochila nas costas. Eu estava próximo, lendo a Pedagogia da autonomia, portanto a situação não podia ser mais contraditória. A pessoa em questão era a encarnação do fatalismo neoliberal que Paulo Freire critica em seu livro. Estava bem ali, diante de mim, a comprovar que a teoria se fundamenta na realidade.

Eu ainda não tinha lido um livro inteiro de Paulo Freire. Sentia uma vergonha danada por desconhecer a obra do intelectual brasileiro mais influente nas ciências humanas – é o terceiro autor mais citado em trabalhos científicos da área em nível mundial, batendo gigantes como Karl Marx e Michel Foucault, por exemplo. Fiquei ainda mais curioso por conta das faixas de protesto que, a favor da candidatura de Bolsonaro, pediam o fim da “doutrina Paulo Freire”.

Resultou que Pedagogia da autonomia é um dos escritos ensaísticos mais bonitos que já li. Sensível, esperançoso e necessário, como parece ser toda a obra freireana. Também ficou claro o motivo da oposição reacionária a ele: sua “prática educativo-progressista” se põe contra toda discriminação, aposta no diálogo entre pessoas com concepções de mundo diversas e trabalha a inserção do educando na realidade, e não a sua mera adaptação a ela. Segundo Freire, somos condicionados às formas da vida, então somos também capazes de mudar tal condição – justamente o contrário daquele fatalismo mencionado há pouco, que implica a subordinação às situações vigentes. Diferente do que acreditava a garota no metrô, para Freire ninguém é e permanecerá “burro” e ponto final: nada é determinado, tudo pode ser modificado.

Vem daí a noção de autonomia, associada à formação dos estudantes, e não à sua domesticação. Formar é muito mais do que treinar habilidades técnicas. De acordo com o autor, implica reforçar sua capacidade crítica, sua curiosidade epistemológica, sua insubmissão. Não é o educador que molda os educandos – seu papel é oferecer condições para que eles encontrem suas próprias formas de ser, o que requer tanto uma ética quanto uma estética. De modo que se assumam como sujeitos do próprio saber e das responsabilidades subsequentes.

Esse é o ponto em que começa a incomodar os reacionários. Porque, ao deixar de ser objeto de um governo, o sujeito assume o poder, o direito e o dever de agir para transformar a sua realidade. Ele não será vítima da fatalidade que o quer apático. Aprender a pensar criticamente é um gesto emancipatório de empoderamento e insurgência contra todo tipo de violência governamental; não apenas contra políticas de Estado opressoras, mas também formas menos evidentes de governança sobre a vida.

Freire defende a rebeldia legítima das minorias, fazendo-as perceber que podem transformar a história, se assim quiserem. Rebeldia que tem potencial para revolucionar e assim necessariamente perturbará a ordem em vigor, a qual o conservadorismo pretende manter a todo custo.

É muito bonito porque incentiva o pulso da vida que pode e faz. Vida que opera os próprios desejos em vez de esperar que sejam realizados por seus representantes.

A fome, por exemplo, não é uma fatalidade, mas uma imoralidade, diz Freire. É imoral que haja fome nos tempos atuais. Se deixamos que aconteça é porque não assumimos responsabilidade sobre ela. O rompimento de barragens é uma imoralidade; a corrupção, a discriminação e a repressão idem. O desmanche dos sistemas educativo, previdenciário, trabalhista e de saúde. Se aceitamos tamanhas imoralidades é porque nosso desejo foi colonizado por uma lógica que privilegia o aspecto financeiro em detrimento do desenvolvimento social e nos destitui da condição de sujeitos políticos.

Daí a impossibilidade de a prática educativa ser neutra, como querem iniciativas do tipo “escola sem partido”. Já em 1996 Paulo Freire alertava para o fato de que um espaço pedagógico assim é aquele em que a ideologia dominante treina os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser neutra. O professor em sala de aula não deve ser omisso, mas um sujeito de opções, capaz de analisar, optar, romper.

No lugar da pretensa neutralidade, Paulo Freire propõe o respeito entre educador e educando, de maneira que opiniões divergentes possam se ouvir e se deixar afetar uma pela outra.

A pedagogia da autonomia é toda fundamentada na liberdade, na dignidade e na escuta dos envolvidos. Não confunde autoridade com autoritarismo. Mais do que conteúdos decorados, ensina a manter uma postura vigilante. E acredita na educação como meio de problematizar e reverter ordens injustas.

Se por vezes parece utópica, sonhadora ou “otimista”, como o próprio Freire diz, nada tem de ingênua. É uma proposta baseada na vivência e no exercício da pedagogia. É plausível, pragmática, passível de ser implementada. Se a julgamos idealista – ou pior, “ideológica”, como alguns sugerem – talvez seja porque nós, capturados pela subjetividade capitalística, sustentamos certa desesperança.

Uns anos atrás, ao término de uma disciplina de pós-graduação na USP com a qual colaborei, eu e a docente responsável pedimos aos estudantes que avaliassem o semestre, tanto em relação ao conteúdo quanto às próprias trajetórias. Uma moça deu um depoimento que me marcou profundamente. Sentia-se burra no início do curso – foram estas as suas palavras. Não compreendia os textos, não acompanhava os debates, cogitou desistir. A mãe fez com que sustentasse a insegurança e persistisse, pois acreditava na capacidade da filha.

Hoje percebo que a estudante não desistiu também porque encontrou um contexto de sala de aula que a acolheu e ofereceu condições para enfrentar o novo. Uma abertura que possibilitou o desenvolvimento da sua autonomia. A estudante terminava o semestre mais forte, satisfeita com o que experimentara. Não sei dizer como se apropriou dos conteúdos da disciplina, e na verdade isso não me preocupa. Importante foi ter revertido o fatalismo que se impunha e, com isso, exercido o corajoso gesto de formar-se.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

A ARTE DA APRECIAÇÃO

A 33ª Bienal de São Paulo nos pediu para apreciar a arte. O verbo, no caso, não significa necessariamente gostar, mas olhar com atenção, dedicar-se a olhar e dedicar o próprio olhar a trabalhos que, não à toa, são chamados de artes visuais. Apreciar significa experimentar com os olhos antes de tentar compreender. Com esse viés foi sem dúvida uma bienal diferente das imediatamente anteriores, mais conceituais. A arte conceitual, ainda que visual, conduz o olhar até uma “ideia”, quase como se pudéssemos decodificá-la e esclarecer seu mistério. Verdade que não é tão simples assim, mas no limite há sempre uma espécie de racionalidade calculada por detrás das produções de caráter conceitual. Essas obras foram menos numerosas na bienal passada. Os curadores, alguns deles artistas, privilegiaram trabalhos pautados na materialidade e no fazer artísticos. Em que a “ideia”, que de uma maneira ou de outra está sempre lá, não se apresenta com a lucidez do conceito, no sentido filosófico do termo. Talvez ela se apresente sem clareza alguma e nos convoque a apreciar sua obscuridade. Mais pelo sentido – ou seja, pelo sentir – do que pelo significado. Mais pela intuição do que pela lógica. Mais pela conotação do que pela denotação. Nestes tempos ávidos por explicação, argumentação, justificativa, parâmetro e esclarecimento, a bienal propôs um desafio e tanto.

Exposição de Antonio Ballester Moreno durante abertura ao público da 33ª Bienal de São Paulo. © Leo Eloy / Estúdio Garagem / Fundação Bienal de São Paulo.

Os brasileiros se digladiavam pelas eleições quando a exposição foi inaugurada. Tive a impressão de que ela passou despercebida do público geral, que só tinha olhos para outras questões, por sinal muito urgentes. Fosse uma edição abertamente politizada como as que a antecederam, talvez jogasse um balde de gasolina na fogueira. Não foi. A bienal de 2018 propôs um desvio. Alguns toparam seguir com ela, grande parte preferiu caminhos diversos. Eu mesmo a visitei com alguma reticência, sem conseguir me deixar afetar por ela, tamanha a afetação que o cenário nacional provocava. Apesar disso admiro a tentativa da organização, mesmo que tenha realizado um perigoso recuo diante da sua potência sociopolítica. Cabe à bienal experimentar, assim como cabe a nós avaliar os resultados das propostas.

Toda vez que trabalhos artísticos se voltam à materialidade, às formas e aos seus procedimentos, a arte recai sobre as características que a constituem a priori. Podemos dizer que se volta a si mesma, às suas regulagens internas, à sua intimidade. Fosse engajada, proporia-se ativista, guerrilheira, protestante. Não foi o caso agora. E não me entenda mal: nunca é somente uma coisa e não outra, absolutas; são intensidades. Por vezes observamos uma seleção de trabalhos mais assim, por vezes a proposta curatorial prefere um recorte mais assado. Disso advêm prós e contras conforme este ou aquele ponto de vista.

Eu falava de uma dificuldade que a arte oferece ao priorizar a plasticidade no lugar do conceito. A qual requer de nós sustentar certo não saber, aceitar o estranhamento e domar a ansiedade de “entender”. Uma dificuldade de olhar sem de imediato interpretar.

Certa vez acompanhei estudantes a uma exposição de Mira Schendel. Eles circulavam entre suas linotipias, decalques e pinturas; trabalhos delicados compostos por papéis, tintas e tipos gráficos, entre outros elementos visuais típicos de ateliê. A conversa que se seguiu à visita evidenciou precisamente a dificuldade de que tratamos aqui, manifestada quase como impossibilidade de descrever os trabalhos sem agregar um significado, um suposto propósito da artista ou um “para mim evoca...” Minha questão era simples: o que vemos? Entretanto, salvo exceções, ninguém conseguia dizer: diferentes qualidades de papel, manchas coloridas, pinceladas; gestos trêmulos de um corpo que risca a superfície com lápis carvão; obras de tamanho similar emolduradas e distribuídas com simetria pelas paredes do museu, na altura média dos visitantes adultos, conforme o padrão expográfico etc.

Intitulada “Afinidades afetivas”, a 33ª Bienal de São Paulo nos convocou a prestar demorada atenção a essa materialidade e a esses procedimentos que são próprios do saber artístico. E que parecem cada vez mais inacessíveis. Aprendemos ali que não devemos prescindir da matéria quando apreciamos arte visual. Ainda que fale outra língua, a matéria testemunha uma história e muitas vezes diz o que as palavras não conseguem. Toda matéria é uma possibilidade de forma e tema, que vêm à tona pela criação poética. Ela apresenta problemas e a subsequente dificuldade de responder a eles sem, com isso, encontrar solução definitiva – talvez até mesmo sem encontrar solução alguma.

Se já prestamos melhor atenção a tais informações visuais, em que momento perdemos essa habilidade? Se já pudemos nos demorar diante de uma única imagem, por que deixamos de fazê-lo? Se já conseguimos apreciar o obscuro, o incerto, a sensação de estranhamento, como hoje é tão difícil?

No catálogo da mostra, o crítico Jacopo Crivelli Visconti explica que a artista Lúcia Nogueira mantém seu trabalho “à beira do abismo da incompreensão”. O mesmo pode ser dito sobre vários outros artistas apresentados ali. Terminada a recente batalha eleitoral e tendo em vista os abismos que nos aguardam, o exercício de apreciação que a arte propõe à subjetividade contemporânea parece um tanto promissor para desenvolver racionalidades e temporalidades diversas, e mesmo uma ética na relação com o outro.

sábado, 26 de maio de 2018

VIVEMOS TEMPOS NEOBARROCOS?

Cesto de frutas (c. 1598), de Caravaggio

Embora críticos sejam sempre atrasados em relação às criações artísticas, há casos em que suas leituras parecem previsões sagazes. O exemplo que nos últimos meses não sai de minha cabeça é o do esteta italiano Mario Perniola. Já em 1990 ele apresentou uma tese, que agora parece evidente, e que se encontra no livro Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte. Entre as ideias desenvolvidas ali, há uma sobre revalorizações do barroco do século XVII. Um primeiro neobarroco teria surgido entre o fim do século XIX e cerca de 1930; sua sensibilidade se anunciava com Verlaine, Mallarmé, Huysman, Eliot, entre outros, até os expressionistas alemães. Era possível entrever esse movimento nas leituras da modernidade realizadas por Baudelaire, e ele se estabeleceria em definitivo com as críticas de Wölfflin, Riegl e Worringer.

Outro neobarroco teria se iniciado nos anos 1960 e permanecia aberto quando o livro de Perniola foi publicado, quase trinta anos atrás. Minha questão é que, de acordo com as suas observações, ele não apenas continua aberto como assumiu uma dimensão preocupante.

O barroco seiscentista foi um acontecimento marcado pela volúpia, exuberância e êxtase, que mascaravam o regramento, o dogmatismo e a opressão da Igreja contrarreformista, cujos parâmetros foram determinados pelo Concílio de Trento e desembocaram nas perseguições do Santo Ofício. A arte barroca apresenta o desequilíbrio violento e bizarro próprio da sua época, figurado na técnica do chiaroscuro, nas alegorias e artifícios, em exagerada pompa e evocação sublimes. Sua pintura desrealiza o dado e substitui o natural pelo enigmático e artificioso, passa da estética do exemplar clássico à do simulacro e satisfaz a necessidade de estranhamento do homem com uma vontade de estilo.

O homem barroco, de acordo com Perniola, seria um sujeitado, passivo e alienado em relação às forças exteriores, de teor absolutista, que predominam em sua realidade e determinam sua forma de vida. Uma burguesia vítima da própria fraqueza que se iludia com o fausto e o cerimonial. Mais ou menos como a atual classe média brasileira.

Sabemos que o barroco desembocou na Inquisição, e que o primeiro neobarroco terminou nos horrores do nazifascismo. O segundo, que em tese permanece ativo, nos levará a quê?

De maneira similar àqueles, o neobarroco social dos nossos tempos se pauta em movimentos morais, de caráter emotivo, dirigidos pelo “intento de restaurar a religião, relançar os ideais humanistas, retornar à disciplina escolar e à seriedade profissional”, como escreve o esteta. Tais movimentos têm um núcleo resistente e “fornecem palavras de ordem nas quais centenas de milhares de pessoas se reconhecem e têm um peso determinante na vida dos estados e dos partidos”.

Como uma espécie de contrarreforma, esses movimentos morais configuram uma inversão da tendência anti-institucional dos anos 1960 e 1970, e são fáceis de identificar nas contradições que permeiam nosso cotidiano. O que Perniola não podia saber é que sua análise chegaria a este momento temeroso em que as bancadas governistas conservadoras, entre religiosas, latifundiárias e militares, dominam o poder; o moralismo e a precariedade cultural dominam a educação; o fascismo domina a juventude; o consumismo domina o desejo; entre tantos outros governos lamentáveis.

Como o autor explica, “não se trata de esperar o advento de um mundo menos cínico, menos bárbaro e menos ignorante (tudo isso entra no âmbito das boas intenções!), mas de compreender como numa sociedade cínica, bárbara e ignorante, como a que vivemos, uma grande quantidade de pessoas possa aderir a um imaginário religioso, humanista e científico, sem por outro lado conseguir tornar essa sociedade menos cínica, menos bárbara e menos ignorante! A efetividade dos ‘movimentos morais’ não diz respeito à substância daquilo que propugnam, que é mais irreal do que jamais tenha sido, mas à existência nua das suas consequências”.

Os trabalhos de arte contemporâneos chamam atenção para esse ponto mesmo quando não são expostos, como no caso da mostra Queermuseu, criticada por organizações embrutecedoras e censurada pelo Santander Cultural. Podemos ainda falar da performance La Bête, no MAM-SP, e dos ataques ao filme Vazante, no Festival de Brasília, só para citar alguns casos recentes.

Entre a sensualidade e a espiritualidade religiosa, prazeres exacerbados e ascetismos severos, diversidade e restrições formais, há o paradoxo da própria arte, que contraria e também endossa certo conservadorismo, na medida em que precisa se sustentar enquanto instituição. Como diz Perniola, “o neobarroco contemporâneo é a transformação da arte em dispositivo solene”. Com isso ele alerta que também a arte se coloca como causa nobre a ser conservada. Traduzindo seu italiano intelectual para o bom português, estamos num mato sem cachorro.

Se existe uma esperança nesta crise, acredito que esteja no que Perniola apenas indica, e que Jacques Rancière desenvolve no livro A partilha do sensível. O primeiro fala de um neo-páthos expressionista que, ao contrário do que o senso comum acredita, implica a suspensão do eu, considerado na sua identidade e no seu papel psicossocial. Rancière fala em um compartilhamento que devemos buscar, diluindo o eu identitário no comum da experiência coletiva, que não pressupõe diversidade, mas um convívio de diferenças pautado na ética do dissenso. Isso é difícil de entender, dada a nossa subjetividade capitalística, e ainda mais difícil de realizar. Mas sugere, entre outros pontos, buscar a emancipação pelas vias de alteridade, ou seja, pela abertura ao outro. Jamais pelo estado de exceção, disfarçado de paternalismo positivista, que fundou nossa república e continua a afundá-la na mediocridade política que denominamos governo, com toda a infelicidade semântica que o termo contém.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

ENTRAR NA DANÇA

Dois dançarinos (1937), de Henri Matisse

Dois garotos falavam alto e gingavam na plataforma da estação Sé do metrô de São Paulo, brincando um com o outro. Sua atitude inoportuna incomodava a maioria dos passageiros. Só podia ser assim, uma vez que desobedeciam às normas da boa conduta social. Essa é uma maneira de olhar para eles. Outra maneira seria considerar que, se existe um padrão de comportamento, todos nós de alguma maneira o desobedecemos. Isso porque não há nada mais antinatural do que um padrão; a vida não cabe em padrão algum. Com isso em mente, pode ser que consigamos perceber nuances naquela atitude que, a princípio, parece apenas impertinente.

Não se trata de afirmar que uma maneira é a certa e a outra é errada, mas de perceber que o “sistema” quer sempre estabelecer esse tipo de padrão para lidar com grande quantia de singularidades. Por mais que tente, ainda não consegue investir nas sutilezas de cada indivíduo. Acabamos encaixotados com nossos semelhantes conforme o que consumimos – cadastros de lojas, perfis de redes sociais, listas de interesses, desde Netflix a aplicativos de relacionamentos, entre inúmeros outros exemplos. Habitamos as ditas “bolhas de iguais”, ou seja, estamos em contato com pessoas de hábitos, gostos e pensamentos similares, das quais concordamos inclusive nas formas de discordar. Somos padronizados como lote de produtos recém-fabricados. As bolhas tornam nossos mundinhos mais confortáveis, seguros, acolhedores – e mais ilusórios também.

É o princípio de redes como o Facebook, onde vemos atualizações de poucas pessoas em nossa linha do tempo, ainda que tenhamos milhares de conexões. São os perfis que o sistema elege como compatíveis de acordo com um cruzamento de dados bastante complexo, mantendo os mais próximos em evidência a fim de nos entreter por mais tempo e, claro, fazer consumir mais anúncios. O algoritmo do programa afirma que temos muito em comum: somos atraídos pelos mesmos assuntos, frequentamos os mesmos lugares, temos os mesmos desejos, compartilhamos ideias e amigos. Porém estamos muito longe de instituir um comum, no sentido comunitário em que as individualidades se dissolvem numa experiência coletiva.

Um caso pessoal: costumo encomendar muitos livros pela internet. Ao escolher um título, recebo a mensagem sugestiva: quem comprou este também se interessou por... Na sequência há indicações de leitura baseadas em pedidos feitos por clientes de perfil compatível com o meu. Reiterando certa padronização, o sistema mostra opções de que também posso gostar e, de preferência, consumir. Não tenho dúvida de que se trata de uma ferramenta para conhecer autores. Entretanto a programação oferece as mesmas leituras aos mesmos leitores, desenvolvendo padrões de gosto viciados, manipuláveis e lucrativos. Se a ferramenta quisesse sugerir algo diferente, teria que inverter os dados e dizer: quem se interessou por este jamais compraria A ou B. Você gostaria de arriscar?

É claro que nenhuma empresa implementaria despropósito tão inusitado e incompatível com seu objetivo de venda. Porém se quisermos lidar com a diversidade sociocultural própria de nossos tempos, precisamos tentar escapar das capturas do sistema. Ler páginas de Facebook de cujo conteúdo discordamos ou, melhor ainda, abandonar a rede para conhecer quem não está nela. Buscar livros em outras seções da livraria, evitando os best-sellers importados. Quem sabe participar de encontros com escritores nacionais nas bibliotecas públicas? E também frequentar outros parques, restaurantes, bairros etc. São exemplos rotineiros, que podemos desenvolver de maneiras variadas. Talvez assim seja possível criar furos nas bolhas de iguais, deixando-as mais permeáveis à alteridade.

Se o diferente nos perturba, é essa perturbação que pode desestabilizar o funcionamento dos nossos próprios sistemas e nos tornar menos automáticos. Não é fácil. Aliás, é um tanto exigente. Mas é um princípio para nos fazer diferentes de nós mesmos; não há maior sinal de vitalidade do que a transformação.

Isso ajuda a pensar os casos em que a normatização pode ser ainda mais violenta, como no acompanhamento de menores infratores ou de usuários dos Centros de Atenção Psicossocial, por exemplo.

Neste semestre, tenho colaborado com o programa de estágio do Laboratório de Estudo e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da USP. Uma das estagiárias teve que lidar com situação inusitada durante suas atividades práticas: a senhora acompanhada por ela, que apresenta grave quadro de sofrimento psíquico, se pôs a dançar no Centro Cultural São Paulo. Ninguém mais dançava, sequer música havia. O que fazer?

Uma maneira de lidar com o caso seria impedi-la de burlar a moralidade e interromper sua dança. Uma resposta paradoxal às políticas de inclusão, fazendo com que a senhora em questão se comportasse como os demais ao seu redor, ou seja, agisse “normalmente”. É a primeira reação da maioria: voltar às regras, deixar de incomodar, obedecer aos preceitos sociais. Mas o que significa “ser normal”? Que padrão de comportamento queremos e a que custo? A estagiária titubeou. E optou por outra atitude: acompanhou a senhora na dança.

Alguns comportamentos que extrapolam as expectativas podem tirar as pessoas do conforto oferecido pela existência-modelo, verdadeiro porto seguro. Mas podemos entender algumas desobediências não como atentados às regras, e sim como oportunidades de algo diferente vir ao mundo.

Havia uma beleza transgressora naquela dança em meio ao CCSP. A dançarina sequer notou, ela apenas deu forma ao seu desejo. Nossa estagiária teve o privilégio de assisti-la. Só uma senhora “fora do padrão” poderia oferecer tal oportunidade. Que, se não tivesse se realizado, o dia da estagiária teria sido igual a todos os dias da maioria das outras pessoas. Nem mesmo este texto teria sido escrito.

quarta-feira, 7 de março de 2018

O QUE NÃO É INFERNO

Hoje não me parece absurdo afirmar que todo entendimento sobre o mundo se localiza em algum ponto entre o que se vê e o que se diz a respeito do visível. Incluem-se nesse vacúolo de sentidos também os dizeres secundários: discursos repetidos, distorcidos e retorcidos. Como é que vemos e como produzimos narrativas? A questão me interessa há muito, e busco respostas pelas artes visuais, que operam e por vezes desarticulam a educação do olhar. Faz menos tempo que a questão se desdobrou em outra: o que permanece invisível, indizível e impensável? Como é que isso toma forma em nossas configurações de mundo?


Li As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, treze anos atrás. O livro me deixou uma forte marca, embora eu não lembrasse o motivo exato. Retomei-o agora por causa do trabalho. Na época me faltava maturidade para dar voz às questões instigadas pelo autor; nas anotações espalhadas pelas páginas descubro tentativas de diálogo – intuições que, mais tarde, tornaram-se interesses efetivos. Seriam problemas prontos, encubados, ou seriam meu primeiro contato com problemas que se apuraram depois, ganharam corpo e se reinventaram? Talvez um pouco de cada?

Calvino revive o veneziano Marco Polo na corte de Kublai Khan, imperador dos tártaros. Enviado em missões diplomáticas, o viajante retorna com relatos sobre as cidades visitadas, que o Khan somente conhece por meio de seus olhos e suas palavras; a distância é condição daquele governo. Ocorre que Marco Polo é diferente dos demais diplomatas: ele vê nas cidades o que passa despercebido pela maioria, seu olhar é menos panorâmico e mais penetrante. Não bastasse isso, seus relatos são também singulares; Polo evita narrar as formas gerais e os aspectos técnicos; com lirismo e significados abertos, prefere a experiência sensível.

Ele próprio explica a diferença num dos primeiros capítulos, quando afirma que se pode falar de Doroteia pela perspectiva das suas muralhas, torres e pontes levadiças, seus canais, chaminés e casas comerciantes. Ou pode-se contar a história do cameleiro que, muito jovem, chegou a Doroteia e se encantou de imediato com os clarins, as mulheres e as cores do mercado, onde não faltava nenhum dos bens que esperava da vida. Com os anos, porém, esse homem sentiu saudade dos desertos, e percebeu que havia encantos neles, exibidos com tanta clareza que ele não podia distingui-los.

Voltemos aos nossos domínios. Onde o desejo de ver com tal frescor soa ingênuo; aqui os acontecimentos chegam por demais mediados, chegam como palavras de ordem a serem tomadas por verdades. A experiência se dilui na imensa quantia de informações, além de manter uma relação sórdida com o consumismo.

Também seria ingênuo querer fugir dessa apropriação da experiência para narrá-la com palavras próprias. Não existe maneira individual de narrar, assim como é impossível olhar somente com olhos privados. Isso porque o olhar e o dizer já estão impregnados pela cultura geral, ou seja, por maneiras, crenças e formas prontas que predominam. Mais do que nunca inexiste a folha em branco, ela se apresenta repleta de pressuposições das quais é impossível escapar por completo. Mesmo a liberdade de pensamento já é uma ideia construída previamente e assim, por paradoxal que seja, configura um aprisionamento, uma ilusão, uma promessa falsa. Marco Polo conseguiria exercer sua singularidade nos tempos atuais?

Poderíamos concluir que nada resta, senão seguir o traçado do destino. Não é preciso sermos tão dogmáticos. Para mim, restam como alternativas os desvios da arte, que podem ser formas de sobrevivência. Eles são a recusa das palavras de ordem, a profanação do inquestionável, a felicidade clandestina. Restam as cidades invisíveis que não querem mostrar nenhuma verdade; elas nos convocam a imaginar possibilidades. Resta a força insurgente da poesia, que fratura o estabelecido e levanta condições outras, e esse é o ponto em que oferece chance de resistir à morte, como Gilles Deleuze pensava.

O livro de Calvino continua a instigar minhas pesquisas, gestos e criações. Foi um prazer revisitá-lo. Ele denuncia a banalidade, o risco e a violência dos lugares-comuns que aceitamos prontamente e reproduzimos no dia a dia por preguiça, desatenção ou ignorância. Denuncia o perigo de consumir as narrativas parciais que nos são ofertadas como certas, por vezes sedutoras, agradáveis, até mesmo desejáveis.

Ao mesmo tempo, fica sugerida uma esperança, que requer ver como quase ninguém vê, dizer o que poucos têm coragem de dizer, pensar o que a maioria não ousa. Isso porque, quase sempre, somos como o cameleiro no deserto: estamos por demais envolvidos com a aridez à nossa volta para perceber que, mesmo ali, há vida. E que essa vida peculiar, por vezes tão singela, não se encontra entre a abundância encantadora do mercado estrangeiro.

O final do livro é arrebatador. Nas palavras de Marco Polo: “o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

A CADA MANHÃ DE MINHA VIDA

O dia 23 de janeiro era como outro qualquer até este ano de 2018, quando nasceu minha pequena Lis. Agora a data será sempre especial.

Sinto-me privilegiado por ser pai de menina. Durante a gestação, várias vezes percebi olhares desapontados, vindos de homens e mulheres, como se a expectativa fosse um bebê macho. Porque homem quer menino para fazer companhia, porque menino dá menos custo, porque menino carrega o nome da família. Nunca entendi essas crenças. Eu sempre quis uma menina.

Algumas amigas entendiam perfeitamente. Conheciam a origem do meu desejo: as meninas têm um projeto ambicioso pela frente, que é tornar o mundo mais feminino. É uma missão urgente, da qual precisamos muito. Não depende só delas, mas é nelas que vejo a força para realizar o devir feminino da humanidade.

Numa entrevista a Jonathan Cott parcialmente publicada pela revista Rolling Stone em 1979 e depois transformada em livro, Susan Sontag disse acreditar que o mundo seria mais atraente “se os homens fossem mais femininos, e as mulheres mais masculinas”. Isso tem menos a ver com sexualidade e mais com forma-de-vida ou, ainda, com ser no mundo. Feminilidade e masculinidade são como intensidades manifestas tanto nos homens quanto nas mulheres. Infelizmente a masculinidade anda forte demais em ambos.

Eu concordo com Sontag, em especial no que diz respeito ao mundo ser mais feminino. Porque a subjetividade dominante é machista, lógica, belicosa. Ela nos faz acreditar que é melhor ser menino. Faz, inclusive, as meninas acreditarem nessa bobagem. Ao ponto em que, de fato, passa a ser melhor por ser mais fácil.

Movimentos feministas se empenham há pelo menos um século para virar o jogo. Agem de variadas maneiras, as quais aprovamos ou reprovamos, e por aí o debate se estenderia ao longo de muitas páginas. Eu tampouco me sinto o suficiente apropriado do assunto, prefiro deixá-lo a quem sabe dizer melhor. Por ora, posso apenas voltar à minha Lis e fantasiar que desenvolva certa sabedoria feminina, sensível, mágica, intuitiva, que tanta falta nos faz na dureza do hoje.

Por sua vez, nenhum relato meu daria conta do poder da mulher gestante, que tanto me surpreendeu. Pena que a sociedade não se organizou para acolher, respeitar e dar vazão a ele. Talvez o maior mistério da vida esteja se realizando agora mesmo, perto de você, e poucas pessoas se solidarizam, seja para dar lugar no ônibus, seja para lutar por melhores condições trabalhistas, seja para admirar.

A distinção fica evidente no parto, quando a mulher se contrai em fé e dor para o bebê vir à luz, enquanto o homem ao lado não pode fazer nada, exceto estar junto. A sensação de impotência sobressai a toda macheza da cultura. Eu estava ali e nada dependia de mim, não havia nada a fazer. O momento era todo dela.

Penso se não é também por isso que a cesariana ganhou tanto espaço, ao ponto de o Brasil ser uma aberração frente a demais países – porque ela atenua esse poder que é só da mulher, transformando o mito da criação num procedimento cirúrgico automatizado. Claro que a questão é mais complexa. Existe ainda a idealização do “mundinho feliz”, em que é proibido sentir dor, em que o parto requer maquiagem. Existe a conveniência dos obstetras que agendam nascimentos como horários de cabeleireiro. Existem as extorsões que Ministério da Saúde e convênios fingem desconhecer.

Outra coisa que minha filha me ensinou nesses seus primeiros dias de vida é que não devo me sentir estúpido por saber tão pouco a seu respeito, mas privilegiado pela oportunidade de aprender. Lis é um animalzinho cheio de instinto que dominou tempo e espaço. Menospreza meu linguajar rebuscado ao ponto de ele ser inútil. Eu é que preciso aprender seus meios para convivermos.

Numa dessas madrugadas de colo, enquanto me punha a dançar para acalentá-la, Lis botou os olhinhos num quadro que tenho na cozinha, estampado com versos de Neruda que dizem: “assim, a cada manhã de minha vida trago do sonho outro sonho”.

As últimas madrugadas, confusas entre o sono e a vigília, foram como sonhar acordado. Aos poucos a fantasia esmaece perante a luz do sol e revela uma bebê em sua pequenez, respirando paz, indiferente a tudo o que imagino para ela.

Percebo que minha vontade pouco importa. Não deixa de ser uma espécie de egoísmo, talvez até um preconceito disfarçado de boas intenções (o tipo mais perigoso). Aqueles projetos, ambições e expectativas precisam ser depostos. Não devo colocar em suas costas os desejos meus nem os que penso ser da humanidade. Devo é estar ao seu lado, oferecendo a ela toda a condição possível para que encontre os seus próprios desejos. Para que exercite, ao longo da vida, sua potência de ser. Meu papel, daqui em diante, é preparar o solo para a flor de Lis. Eu não poderia estar mais realizado.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

ATOS DE CRIAÇÃO E DE RESISTÊNCIA

Arlequin au violon (1919), de Juan Gris
Os cubistas tinham olhar acurado. Sabiam que tudo pode ser visto por inúmeras perspectivas. Ao mesmo tempo, deixaram-se iludir pela ideia impossível de reunir todos aqueles pontos de vista num mesmo plano. Seus trabalhos de arte resultam num exercício árduo de desconstrução da visualidade. Que nos oferece um método de pensamento e aponta para uma utopia. Após o Cubismo, não podemos ignorar que muitos olhares se voltam para o mesmo mundo e, nele, veem mundos diferentes.

A reunião de pontos de vista não fundamenta verdade absoluta sobre o assunto. Pelo contrário, ela apenas comprova que não pode existir verdade que não seja meio ficcional e meio ilusória. Mas o exercício de construir um comum a partir de tantas perspectivas pode levar a um dissenso, ou seja, a um lugar onde a diversidade convive com dignidade. Um comum onde os direitos são assegurados, onde todos têm voz e onde a ética medeia as relações. Uma utopia, sem dúvida. Que precisa ser sonhada, buscada, experimentada. Tal como os cubistas fizeram.

Toda relação provoca tensões. Por mais semelhantes que sejam em suas complexidades, há sempre pontos de discórdia entre um e outro sujeito. São as tensões que mantêm as relações pulsando. O exercício político deve cuidar para que elas continuem a manter vivo o organismo social. “Verdade absoluta é outro nome que se dá para a morte”, Jean Baudrillard escreveu certa vez.

Há quem pense que a arte está aí para atenuar as tensões. Eu acredito no contrário. O próprio ato de criação já implica embates terríveis do artista com a obra. Embates violentos. O pintor, por exemplo, precisa destruir o seu próprio olhar para produzir uma imagem de arte. Precisa rasgar a tela, rasgar os clichês, rasgar a si mesmo; arrancar de si um ponto de vista que desconhecia. O escultor deve destruir sua própria forma para criar condições ao surgimento de outra. O coreógrafo precisa esvaziar-se de movimentos para que seu corpo produza gestos. O músico deve desaprender a ouvir para ressoar sonoridade outra. O fotógrafo deve deseducar o olhar. E assim por diante. Sempre tensões vitais.

O mesmo vale para outros campos do conhecimento? Não tenho afinidade, mas suponho que sim. O professor deve destituir-se do lugar de enunciador para criar pedagogias e didáticas. O advogado precisa escapar dos manuais de direito. O neurocientista precisa levantar-se contra os procedimentos tradicionais da ciência para criar novos paradigmas. O arquiteto deve pôr abaixo ideais de construção para projetar o edifício jamais habitado. Todos mirando a comunidade que vem.

Posso falar com alguma propriedade do escritor. Ele precisa desativar os mecanismos da própria língua. Não ceder aos significados prontos; desviar das armadilhas do lugar-comum. Refiro-me ao escritor que pretende fazer arte – há diversas atuações para o profissional da escrita, e nem todas têm essa vocação. Mas o artista das letras precisa jogar a própria língua contra a parede, torturá-la, fazê-la confessar o que não sabe. Deve levar cada palavra ao limite da sua realização, àquele ponto de caos em que ela já não se reconhece. Deve, com essas palavras, criar cenas e situações capazes de provocar a realidade. Falhará, inevitavelmente. É impossível sustentar tamanha destruição. Ficará devendo. Quem disse que é fácil?

Há quem pense que a arte está aí para atenuar tensões. Eu acredito no contrário: a arte vem para produzir tensões, ou para explicitar as que se encontram debaixo do tapete, ou simplesmente para potencializá-las. Mesmo quando agrada, a arte deve instigar o pensamento. Por que agrada? Em que o agrado se baseia? Quais perversidades minhas se realizam nesse prazer inexplicável? O encantamento estético oculta perigos traiçoeiros. Convém abrir os olhos.

A arte não informa nada. Ela desinforma, deforma, desenforma. Gilles Deleuze explicou assim durante uma convenção de cinema, em 1987: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando alguém informa, diz a você em que deve crer. A informação é o sistema de controle. A obra de arte não é um instrumento de comunicação, ela não contém estritamente a menor informação. A obra opera como contrainformação e se torna eficaz quando é ato de resistência.

De acordo com o filósofo, apenas o ato de resistência resiste à morte, seja sobre a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens.

Eu tenho dúvidas sobre como proceder com a resistência. Porque me parece que em raras ocasiões ela não é apenas um adversário jogando o mesmo jogo com as mesmas cartas, tentando assumir o poder. Raras vezes o resistente não fará girar as engrenagens tradicionais da máquina de governo.

Por sua vez, se não houver resistência, como será possível pensá-la? Se não houvesse Cubismo, como poderíamos analisá-lo e produzir críticas? É preciso olhar com cuidado e sempre perguntar em que medida a resistência de fato é um ato criador e em que medida apenas reitera os mecanismos do poder. Se este último caso prevalecer, é preciso inventar formas outras de resistir. É preciso que os insurgentes se destruam a si próprios para criar novos meios e métodos de levante.

Se a resistência parece hoje um tanto desvitalizada, ou pior, se ela se confunde cada vez mais com a brutalidade reacionária, os resistentes precisam ter a audácia de destruírem a si próprios. Toda destruição é também ato de criação; uma potência de vida capaz de sobreviver ao extermínio da diversidade, das tensões e das formas de existência no comum.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

NOTA SOBRE O ENCERRAMENTO DA EXPOSIÇÃO QUEERMUSEU

Triste (e preocupante) esse recuo do Santander Cultural (RS), que decidiu encerrar a exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. Em primeiro lugar porque o tema é relevante, atual, urgente. Depois, porque é próprio da arte o lugar de provocação, contestação, inquietação. Se você fecha os olhos (e as portas) para essas questões, apenas reitera a ignorância nossa de cada dia. Isso tudo está além de concordar ou não, de apoiar esta ou aquela causa. A posição assumida pela instituição é, simplesmente, tornar inacessível um espaço de discussão que tinha tudo para ser promissor, dando ouvidos a clamores que não querem discutir nada, e que se escondem sob a desculpa da "ofensa" e da "moral".

Ao dar ouvidos a grupos reacionários (e pedir desculpas a eles!), o Santander Cultural tenta escapar de boicotes ao banco Santander. Explicita, assim, um dos problemas graves da instituição privada: ela tenderá sempre a moldar seus valores nos valores do capital. É, por isso, incapaz de atuar em âmbitos da cultura que sustentam minorias, oposições, insurgências.

Se o Santander Cultural prefere ficar ao lado dos censores, é porque estes são a maioria ou porque falam mais alto. Se os insurgentes fossem maioria, se tivessem voz, o banco ficaria com eles. É dessa maneira pervertida que se organiza a sua ética.

Pois ficou decidido que uns não serão ofendidos agora, enquanto outros continuarão ofendidos como sempre foram. Esse é o lugar que o Santander Cultural lhes concede; um lugar em que a diferença, para variar, não pode entrar. Triste. E preocupante.

Cabeça coletiva, de Lygia Clark.
Um dos trabalhos que faziam parte da exposição
Eis a nota divulgada pelo Santander Cultural, justificando o encerramento da exposição:

"Nos últimos dias, recebemos diversas manifestações críticas sobre a exposição Queermuseu - Cartografias da diferença na Arte Brasileira. Pedimos sinceras desculpas a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra.

O objetivo do Santander Cultural é incentivar as artes e promover o debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo, e não gerar qualquer tipo de desrespeito e discórdia. Nosso papel, como um espaço cultural, é dar luz ao trabalho de curadores e artistas brasileiros para gerar reflexão. Sempre fazemos isso sem interferir no conteúdo para preservar a independência dos autores, e essa tem sido a maneira mais eficaz de levar ao público um trabalho inovador e de qualidade.

Desta vez, no entanto, ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana.

O Santander Cultural não chancela um tipo de arte, mas sim a arte na sua pluralidade, alicerçada no profundo respeito que temos por cada indivíduo. Por essa razão, decidimos encerrar a mostra neste domingo, 10/09. Garantimos, no entanto, que seguimos comprometidos com a promoção do debate sobre diversidade e outros grandes temas contemporâneos."

segunda-feira, 26 de junho de 2017

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Norwich (2013), de Ed Fairburn


A lei do ventríloquo livre
é só encenação?

* * *

Largar tudo e pé na estrada. Sonho clichê, mas a intenção era boa. Liberdade, enfim. Das amarras do capitalismo produtivista, dos imbróglios sociais, das normas e regras e leis, do machismo branco europeu dominante e também do feminismo regurgitante, do moralismo cristão, do controle e blá e blé e blue. Eu avisei: um sonho clichê. De intenção sincera. Assim foi, pé na estrada. Não cabe a mim julgar. Parece sonho de juventude fora de época, enraizado lá nos anos retrôs, desculpe, não cabe a mim julgar. Que outro sonho poderia ser? Como se sonha hoje? No que você está pensando? Compartilhe suas experiências num clique. Conte-me como foi! Conte-nos do que mais gostou! Viu os lugares que todos pre-ci-sam ver, comeu nos restaurantes que você pre-ci-sa comer, fotografou a estátua mais fotografada do mundo. Parece maior do que ela, né? Cabe na palma da mão! Não, não, me poupe! Não queria nada disso, queria deixar a estrada guiar sua fuga, vida leva eu; a sorte – não o destino, mas a sorte – mostrar a verdade lá fora. Reencontrar a liberdade perdida quando: nasceu, foi à escola, parcelou o smartphone, criou perfil na rede social, conquistou o cargo promissor. Quando tudo deu certo. Fez por merecer. Sim, sim, abriu mão disso tudo. Pode julgar, a pessoa não liga! Muito bem resolvida, partiu sem rumo, não precisou dar satisfação a ninguém, entende? Lugar maravilhoso, lugarzinho terrível, sujeito incrível, sujeitinha medíocre, longe, muito longe. Sabático. Caiu na estrada, foi para todos os cantos do mundo. Foi a todos os cantos onde tem estrada, jamais se arriscou fora dela. Liberdade assistida? Falei que era sonho clichê, que o inferno está cheio de intenções assim. Quem sou eu para julgar?

* * *

Livre para falar o que quer
Quando quer como quer.
De onde vem tanto querer?
O que ele quer de mim?

* * *

O suspeito foi identificado antes que a polícia terminasse de contar os mortos. O número crescerá até o jornal da noite; com sorte, amanhã já teremos outra notícia no lugar. Um recado antes de sair! Não estamos aqui para falar das vítimas, e sim do algoz: um menino. Tão jovem! Como pode uma coisa dessas? Tinha tudo na vida: dinheiro, família, futuro. Tudo! Imigrado para um país livre, moderno, cheio de oportunidades. Foi se meter com aqueles malucos? Fizeram lavagem cerebral, certeza. Os pais não sabiam de nada, o governo não sabia de nada, teriam intervido. Foi pela internet. Como monitorar quem nunca deu motivos para suspeita?, pronunciou-se o primeiro ministro. Todos abriremos mão das nossas confidencialidades em prol da segurança do país? Abriremos mão dos nossos direitos, das nossas liberdades? Todos abriremos, amém. Bomba caseira, feita com ingredientes de supermercado. Clique agora para utilizar seu cupom de desconto! Um menino tão jovem, assassino cruel. Podia escolher o que quisesse, por que não fez a escolha certa? Juiz, empresário, senador, latifundiário, investidor, não. Escolheu um fundamentalismo outro.

* * *

“O senhor fala como se fosse fácil, questão de escolha. Que tá o certo e o errado na frente e a gente vai lá e segue por um caminho. Não to falando que não tem opção, é que a porta do certo tá muito mais estreita que a do errado. O senhor tá falando de vislumbre. Eu falo de necessidade.” (trecho do livro Em conflito com a lei, de Lucas Verzola.)

* * *

Liberdade é uma estátua.
Sim, precisa pagar pra ver.

* * *

Quem comprou também gostou. Não conhece? Aproveite! Tem o seu perfil. Você tem total liberdade de escolher qualquer um dos itens disponíveis. Compre para fazer o seu estilo. Desconto exclusivo para você. Só hoje! Incrível, não é? Ninguém tem igual, você é única. O sistema avalia e oferece a opção mais adequada. Tem um minutinho para responder à nossa pesquisa? Assim poderemos oferecer uma experiência personalizada. Deixe sua opinião para ajudar outros clientes. Compartilhe a sua experiência. Responda como quiser: A, B, C ou D? Perfeito! Muito obrigado por escolher a nossa marca. Quer saber mais? Se você fosse personagem, qual seria? Como agiria? Quais características melhor representam você? Faça o teste! Estes anúncios todos no site de notícias, como eles adivinham? Pesquisei gravidez, agora vejo fralda, mamadeira, carrinho, roupinha, banheirinha, inhos e inhas em todo lugar. Hoje estou no computador do meu marido. E esses anúncios de balada gay.

* * *

Por quê?
Porque tenho o direito.

* * *

A ideia era criar um filho com total liberdade de pensamento. Que pudesse exercer sua autonomia desde o berço. Que fosse inteligente e capaz de fazer escolhas e arcar com consequências individuais ou coletivas. Começaram muito bem. Até comprarem para ele o primeiro livro infantil. Onde estava velada, sob disfarce de coelho, uma cartilha da vida adulta.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

DESESCREVER

Planejar minuciosamente meus textos serve apenas para eu me certificar do que não escreverei, que será exatamente o conteúdo do planejamento. Porque, quando inicio a execução do projeto, uma frase descamba noutra qualquer, a terceira surge do nada para me surpreender, a quarta se improvisa, a quinta já nem sei qual é. Na medida em que vou desescrevendo o texto, ele me inscreve e circunscreve. Ao final resta um autor reconhecido por suas linhas tortas. Por seus escritos irreconhecíveis. Um autor meramente ilustrativo.

Texto vivo (2013/2014), de Ana Hupe

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

CONSCIÊNCIA DO CORPO

A apresentar o garoto Jorge Alberto Gomes, de 14 anos, que acendeu a pira olímpica na praça da Candelária, a repórter mencionou que ele “estuda atletismo” na Vila Olímpica da Mangueira. Achei bonita essa expressão: estudar atletismo. Porque é comum usar os verbos “treinar” e “fazer” quando falamos de esporte; enquanto “estudar” acaba associado a outras atividades de conhecimento, a maioria delas mais valorizadas, como se pudesse haver grau hierárquico nesse quesito. Pois existe um conhecimento que é próprio do esporte, que vai além do aprendizado técnico e da prática exaustiva, ou seja, vai além de treinar e fazer. É uma inteligência especial que se produz através do corpo – pelo desenvolvimento físico, pelo aguçamento da sensibilidade e pelo atravessamento do mundo no corpo. Uma inteligência tão difícil de localizar que por vezes acaba desconhecida, menosprezada e raramente experimentada nesta atualidade em que os corpos são quase sempre objetos de violência, suportes de cabeça ou prolongamento de máquinas. Onde o esporte, em geral, é considerado apenas instrumento de saúde, fábrica de beleza ou mero entretenimento.

Eu mesmo não sou nada esportista, sinto-me pouco afeito à prática e muito menos ao seu aperfeiçoamento. Minhas atividades físicas se resumem a caminhadas e bicicletadas eventuais, despretensiosas, que me fazem sair do escritório, habitar um pouco a cidade e chegar a um destino específico. Porém faz alguns anos que me aproximei das interfaces entre arte e clínica, que encontram recursos para a intervenção terapêutica nas atividades de sensibilização e de linguagem corporal. Isso me leva a acreditar que o esporte é um poderoso meio de expressão dessa humanidade encarnada, que não existe somente por causa da razão esclarecida, mas também porque está implicada num ser sensível, ou seja, num corpo que sente o mundo ao mesmo tempo em que age no mundo. Um ser que existe não apenas porque pensa logicamente, como afirmou Descartes, mas porque incorpora pensamentos, afetos e sensações para assim gerar uma existência singular, que percorre outras estradas na interioridade e exterioridade da vida, tanto no âmbito particular quando no coletivo.

O filósofo José Gil fala de uma “consciência do corpo” que se encontra além do simples reconhecimento de que o corpo existe, possui forma e pode sentir dor ou prazer. Seria a impregnação da consciência pelo corpo; uma instância de recuperação das forças do mundo e de devir as suas formas, intensidades e sentidos. Não falaríamos mais de separação do físico e do psíquico, como se corpo e mente fossem entidades alheias; carne e consciência seriam, em sua ambiguidade, manifestação de uma outra inteligência.

Segundo Gil, a percepção do mundo não provém do interior nem do exterior do corpo, mas desse lugar fronteiriço em que ambos se sobrepõem. Um conhecimento formado na ambiguidade do dentro e do fora, que exige um importante trabalho de abertura do corpo aos afetos. Em suas palavras, “é todo o corpo que se transforma. O seu em-redor torna-se espaço, confunde-se com um espaço de intensidades, de osmose potencial, de visões e tatos à distância, espaço pronto a entrar em conexão com intensidades de outros corpos. (...) Abrir o corpo é, antes de mais nada, construir o espaço paradoxal, não empírico, do em-redor do corpo próprio. (...) Um espaço-à-espera de se conectar com outros corpos, que se abrem por sua vez, formando ou não cadeias sem fim. (...) O espaço e o corpo-consciência são afetivos porque neles se formam turbilhões poderosos de vida”.

Como podemos nutrir esse espaço relacional ao redor de nós mesmos, de nossos corpos, de nossas vidas? Além da simples prática do esporte, devemos investir no seu estudo. De modo que seja possível apurar essa consciência do corpo e o abrir aos afetos que nos convocam o tempo inteiro. Estudar o esporte para que possamos, por meio da consciência que ele gera, experimentar os problemas do mundo numa outra perspectiva, com outros valores e sentidos.

Isso não significa transformar o esporte num objeto de análise acadêmica, como as faculdades de educação física ou mesmo a medicina e suas ramificações fazem há muito tempo. Significa perseguir e aguçar aquele conhecimento que só é possível através da atividade corporal enquanto linguagem; ou seja, da consciência, da sensibilização e da expressão que se desenvolvem através do corpo do esportista.

Nos últimos séculos a humanidade vem ignorando enfaticamente diversas instâncias de conhecimento em prol de uma única, hegemônica, que é a da razão, da lógica, das justificativas de ordem pragmática. Acho vital, para nossa sobrevivência diante da hostilidade capitalista que nos oprime cotidianamente – e que é vivida no corpo e pelo corpo –, que providenciemos lugar onde outras inteligências possam se desenvolver e onde elas se complementem. Onde possamos partilhar o que existe de sensível no mundo e, daí, colher uma sabedoria mais adensada e intensificada.

Costumo defender que a arte é um desses lugares de sobrevivência. Outro com certeza é o esporte. Mais do que a prática de ambos, devemos lutar pela consciência que eles podem aprimorar. Lutar para que a educação pelo esporte seja tão relevante quanto pela matemática, pela história, pela biologia etc. Uma sociedade com tamanha defasagem educacional como esta em que vivemos jamais será justa com os seus desejos e as suas potências. Por ora, como bem sabemos, ela só condiz com o próprio sistema que a oprime.

Quem sabe os jogos olímpicos, apesar de toda a problemática política, econômica e social que trouxeram ao Brasil, não provoquem também algum contágio em relação ao esporte? Que esse contágio seja grave o suficiente para irromperem regimes de consciência mais complexos, que deem conta de apreender a situação do país, unir as pessoas e transformar o sistema político-social de forma mais efetiva, onde os demais modos de consciência e de conhecimento têm falhado dia após dia, ato após ato.

domingo, 10 de julho de 2016

ESTADO DE CAOS

Um conforto perigoso habita a opinião benquista. Pois é cômodo dizer aquilo que os demais querem ouvir, é um alívio ser aplaudido por tamanho consenso; um prazer ainda maior do que ouvir do outro a ideia com a qual concordamos sem tirar nem pôr, com a qual compactuamos, ou seja, selamos um pacto. Obtemos, em ambos os casos, paz de espírito, confiança e tranquilidade na ordem geral das coisas; na qual, confortavelmente, nos enquadramos muito bem.

O que há de perigoso nisso? Sucumbir à regra. "Pois é da opinião que vem a desgraça dos homens", afirmam Deleuze e Guattari na conclusão do livro O que é a filosofia? Para eles, o termo "opinião" se refere àquelas ideias prontas que se encadeiam segundo um mínimo de regras constantes e nos fornecem o sentimento de proteção, semelhança, contiguidade, causalidade e ordem.

A contrapartida seria o caos: o inconstante, o incerto, o desvio, o dissenso, aquilo que não se deixa determinar pelas regras nem pela moral e que produz embates com o instituído. O estado de caos provoca insegurança, conflitos e desordem geral.

Salto no vazio (1960), de Yves Klein
O que pode ser positivo. Porque é no caos que reside a potência transformadora; é somente daquele desconhecido que pode surgir o novo. Segundo Deleuze e Guattari, a filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e mergulhemos no caos. Não para nos afogar nele, mas para que possamos traçar novos planos de imanência.

O artista mergulha no caos à procura de variedades; ele sensibiliza o caos para que dali nasça um ser sensível, para que possamos experimentar novas sensações, novas formas, novas possibilidades de existência.

"Será preciso sempre outros artistas para operar as necessárias destruições", dizem aqueles filósofos. Porque o artista enfrenta o caos e apressa o desregramento, querendo produzir uma sensação que desafia toda opinião pronta, todo clichê – até que a própria destruição vire regra e sua potência de arte esmaeça. Afinal, a arte deve se manter em movimento, continuar sempre a se reinventar. Para assim se manter viva.

A arte viva provoca inquietação, ainda que sutil. Por mais encantadora que seja, por mais agradável e benquista, a arte viva não é mera opinião – ela opera, justamente, um desgaste das regras, das instituições, das formas de existência enrijecidas. Enquanto que, por outro lado, a arte livre de conflitos perde sua conexão com o caos e se cristaliza num pastiche.

Ignorar o caos leva invariavelmente às atitudes fascistas. Que implicam negar a vivacidade, a potência e a diferença do outro. De maneira a impor a ele como regra a própria opinião, os próprios modos de ver, pensar e fazer do fascista, como se fossem "os corretos", como se não pudesse haver outros. Nesse sentido, o fascismo é a impossibilidade da vida comunitária, pois nega a existência dos demais seres.

O mito fundador desse termo remete à velha Itália de Mussolini, quase um século atrás, porém seu uso permanece em alta. Sim, existe esse outro perigo que nos contagia e que habita boa parte das opiniões sobre o fascismo atual: a institucionalização do fascista como um personagem, meio Cunha meio Bolsonaro, que deve ser cassado/caçado a todo custo.

Esse estereótipo, que se encontra sempre no outro, acaba por atrair atenção para si e por ocultar o fascista que nos habita e nos constitui. Que parece inofensivo, apesar da crueldade de suas ideias. Que não se percebe como fascista porque olha apenas para fora. Um comportamento perigoso, comum e banalizado, que Foucault já apontava no prefácio de O anti-Édipo, outro livro de Deleuze e Guattari.

Nesse texto, Foucault sugere um exercício que cabe a nós ininterruptamente, como verdadeiro esforço para o conviver social: atentar, identificar e banir todas as formas de fascismo, não somente as colossais, que nos envolvem e nos esmagam, mas também – e principalmente – as formas miúdas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas. O fascismo que ronda nossos espíritos e nossa conduta, que nos faz gostar do poder, que está incrustado na cultura ao ponto de parecer normal, como uma simples ordem geral das coisas.

Como não agir como fascista, mesmo quando se acredita ser um militante revolucionário?, pergunta o filósofo. Como livrar do fascismo nosso discurso e nossas atitudes, nosso coração e nossos prazeres? Como lutar para que os outros sejam como desejam ser, e não conforme nós acreditamos que devem ser?

Abrindo as portas ao diálogo, acolhendo o diferente, livrando-se da conduta moralista, polarizada entre o bem e o mal, o certo e o errado, o real e o falso. Evitando desqualificar ou repudiar movimentos sociais sem conhecê-los de perto, sem se deixar afetar por suas causas. Deixando de reproduzir os modelos que se quer combater e as suas violências. Preferindo o positivo e o múltiplo ao invés da falta e do uniforme. Liberando a ação política da paranoia totalizante. Lutando com alegria.

O medo constitui uma das mais antigas formas de manipulação. Um povo com medo aceita se submeter às promessas de segurança do governo que anulam direitos e jamais se cumprem por completo. Um povo com medo vive sujeitado a um estado policial, acreditando que somente assim terá paz.

Precisamos vencer o conforto da ordem e mergulhar no caos. Abandonar a lógica sistêmica, os números sem sujeito, os projetos organizados administrativamente, que nunca darão conta de compreender o que é vivo e se transforma a todo instante. Porque o vivo escapa das regras, ao ponto de ser ingenuidade querer enquadrá-lo nos formulários todos com que sonha a nossa vã burocracia. Precisamos mergulhar no caos e traçar, a partir dali, nossas intenções de futuro. Precisamos inventar, poeticamente, o país que queremos ser. É pelo estado de caos, sobretudo, que nos veremos livres deste atual caos de Estado.

sábado, 28 de maio de 2016

A PARTE DO LEÃO


A Vaca, a Cabra e a paciente Ovelha se associaram um dia com o Leão para gozar de uma vida tranquila, pois as depredações do monstro (como o chamavam pelas costas) as mantinham numa atmosfera de angústia e inquietação da qual dificilmente poderia escapar se não fosse pelas boas.

Com a conhecida habilidade cinegética dos quatro, certa tarde caçaram um ágil Cervo (cuja carne, por falar nisso, repugnava à Vaca, à Cabra e à Ovelha, acostumadas como estavam com as ervas que colhiam) e de acordo com o convênio dividiram o enorme corpo em partes iguais.

Aqui, proferindo em uníssono toda espécie de queixas e juntando ainda a incapacidade de defesa e extrema debilidade, as três se puseram a vociferar de modo acalorado, combinando antecipadamente em ficar também com a parte do Leão, pois, como ensinava a Formiga, queriam guardar alguma coisa para os dias duros do inverno.

Mas desta vez o Leão nem se deu ao trabalho de enumerar as conhecidas razões pelas quais o Cervo pertencia só a ele, e o comeu todo ali mesmo de uma sentada, no meio dos enormes gritos das três, entre os quais se escutava expressões como contrato social, Constituição, direitos humanos e outras coisas igualmente fortes e decisivas.

A ovelha negra e outras fábulas, de Augusto Monterroso

quinta-feira, 26 de maio de 2016

A OVELHA NEGRA


"Em um país distante existiu faz muitos anos uma Ovelha negra.
Foi fuzilada.
Um século depois, o rebanho arrependido lhe levantou uma estátua equestre que ficou muito bem no parque.
Assim, sucessivamente, cada vez que apareciam ovelhas negras eram rapidamente passadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e vulgares pudessem se exercitar também na escultura."

A ovelha negra e outras fábulas, de Augusto Monterroso

sexta-feira, 15 de abril de 2016

A ESCRITA CONTRAPRODUTIVA


O que significa escrever nestes tempos de alta tecnologia de comunicação, de imensa produção e consumo? Quando mal terminamos a mensagem e o destinatário já está a ler? Quando o leitor, cada vez mais ansioso, deseja significados e sentidos prontos, bem formatados, fáceis de reconhecer, entender e de concordar com eles? O que significa escrever para além das palavras, dobrando a língua, torcendo a moral? Escrever como ato de resistência e/ou dissidência, a inventar não-lugares? Escrever sem reproduzir discursos prontos, ideologias, preconceitos, verticalidades, pretensas verdades. Uma escrita que seja também ato político; que provoque, pela experiência estética, certa perturbação da ordem, certa reformulação das leituras e dos leitores. Que pode ser delicada; um toque sutil. Não necessariamente uma escrita combativa e muito menos persuasiva; mas sim uma que dissolva, areje, desconstrua; que seja dissonante e dissensual. Qual é o lugar dessa escrita hoje, no país em que vivemos, na situação que enfrentamos?

O escritor que percorre caminho tão inseguro está por fora, não está com nada. Está de parabéns. Seu trabalho não presta, seja ficcional ou não; o que significa que não alimenta o maquinário produtivo deste sistema de dominação e submissão, não dá corda à própria forca. Pois inventar um mundo de palavras implica, ao mesmo tempo, inventar o "mundo real" por meio das palavras.

Que seja descoberto em camadas, cada vez mais fundo; que não dite regras nem explique nada, não estabeleça certo ou errado. Um convite ao diálogo. Que pergunte mais e responda menos, incentivando a vontade de questionar e refletir. Que não subjugue nem menospreze o leitor, mas em vez disso o desloque do conforto da luz na direção das sombras desconhecidas. Que permita a ele, nessa escuridão sem fim, sonhar com horizontes mais encantadores.

Em entrevista ao jornal Rascunho, publicada na edição de fevereiro deste ano, Gonçalo M. Tavares fala da protagonista de seu romance Uma menina está perdida no seu século à procura do pai. Chama-se Hanna e é portadora da síndrome de Down. Tida como frágil pelos demais personagens, revela uma potência inesperada. O autor explica: "Essa ideia de que a fraqueza pode gerar novos acontecimentos me parece importante. Nós estamos muito habituados a pensar que é a força que gera acontecimentos, que a força é que faz as coisas, e o que vemos em muitos episódios do livro é que a fraqueza potencializa situações, que a fraqueza e a fragilidade de Hanna é que mudam muitas vezes as condições". Gonçalo notou esse movimento entre os portadores da síndrome com quem trabalha há vários anos e fez dele literatura. Em vez de inferiorizá-los num dramalhão, ele reverte a passividade costumeira e dá a ver seus conflitos.

Luiz Ruffato pensa de modo similar. Acusado de ser "difícil", portanto um "escritor para intelectuais", ele rebate com uma aula de política nada assistencialista: "Esta posição pressupõe que se o outro é um proletário, então ele é imbecil, ele só vai conseguir ler um texto ordenado de forma básica. (...) O mundo que eu quero é o mundo em que as pessoas tenham condições de ler qualquer coisa. (...) Aquela linguagem é abertura e não fechamento. Se faço um livro em que falo de favela, usando linguagem absolutamente pobre e falando de violência de uma maneira absolutamente pobre, que graça tem? Qual o sentido de reforçar, com a minha literatura, um pretenso papel de inferioridade do outro?"

Se a política se define como experiência de linguagem e o nosso ser político se forma em atos de linguagem – conforme Marcia Tiburi explica no livro Como conversar com um fascista –, impor ideias ao escrever denota autoritarismo. Pois a língua é um lugar de poder. Cujo exercício autoritário se dá no discurso que nega ou desautoriza o outro em prol da verdade do autor. Ao mesmo tempo, é pela palavra que as pessoas vulneráveis ou fragilizadas podem se empoderar e fazer corpo político – então devemos abrir ouvidos àquelas vozes e nos esforçar para que, ao falarem, adquiram sua emancipação.


Como criar estratégias que abram o texto à experiência de leitura, ao invés de fechá-lo num sistema pré-concebido que somente reproduz a lógica do entretenimento? Que ampliem o vocabulário e, com ele, os limites da língua, tanto quanto o nosso entendimento sobre o outro? Esse é o desafio que rompe com o banal e apresenta a possibilidade de uma experiência estética. Olhar atentamente para tal questão resulta em escritores melhores, textos melhores, leitores melhores e, afinal, um mundo melhor. Esse sistema de retroalimentação opera por instabilidade. Porque é somente assim que podemos transformar o ser humano a tempo de evitar o colapso.

Precisamos criar um país de leitores. Lemos pouco e lemos mal. Cidades sem bibliotecas públicas são inconcebíveis. Escolas sem bibliotecas idem. O projeto social que fará um Brasil inteligente, propositivo, autocrítico é a implantação de uma rede de bibliotecas ativas, com bom acervo, bons profissionais e boa programação cultural. Se não é este governo autoritário e manipulador, seduzido pelo poder, que promoverá tamanha transformação, cabe aos escritores, às editoras, aos pais, alunos e professores, às associações civis e, no limite, à sociedade em geral exercer a tarefa.

A boa escrita desmancha realidades para que possamos fantasiar outras mais interessantes. Para que sentimentos ganhem forma. O bom texto não é estático nem preso ao seu tempo; é um fluxo de forças que percorre culturas; é a energia e também o alicerce para humanidades mais conscientes de si, dos seus problemas e soluções possíveis. É o único caminho? Não. Mas é ainda um caminho. À margem da via excludente, fria e agressiva da produção capitalista, preocupada apenas com desempenhos do mercado. A escrita necessária vai à contramão: prefere transitar pela presença, pela sensibilidade, pelo conhecimento, pela desconfiança e pelo diálogo. Prefere inventar o caminho enquanto transita por ele. Um caminho de ética e poética.


Obs.: As imagens que compõem este texto são excertos do Caderno de Escritos de Janmari, publicado na França em edição fac-símile.