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segunda-feira, 19 de julho de 2021

AS "EXISTÊNCIAS MÍNIMAS" DE FLÁVIA RIBEIRO


Existências mínimas, de Flávia Ribeiro, na exposição Continuum

Em dado momento da pandemia, com a crise pessoal agravada, a artista Flávia Ribeiro precisou se recolher num sítio. Ali, não poderia continuar seus trabalhos com bronze fundido, então levou consigo algumas tintas guache, entre elas o seu vermelho favorito. Ao longo dessa temporada, recolheu gravetos de um velho ipê, já muito doente, algumas pedras, toquinhos de madeira remanescentes de uma construção feita há pouco no local. Não pensou em, com eles, criar arte, no sentido de executar um projeto artístico, muito menos em expor as pequenas esculturas que surgiam do longo processo de entalhar os gravetos com uma faquinha, pintar os toquinhos, empilhar pedras em formações instáveis. Todavia, depois de criadas, ficou impossível ignorá-las.

Na exposição Continuum, na Galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, essas esculturazinhas foram reunidas sob o título de Existências mínimas. Trata-se de uma referência ao livro As existências mínimas, de David Lapoujade, publicado no Brasil pela N-1 Edições, que fala de certas entidades virtuais, ou potencialidades que acompanham cada ser e carecem de realidade, como se não houvesse lugar para elas no mundo real. Aquilo que poderia ser e até certo ponto é; porém, de uma maneira precária, provisória, fictícia, sempre em busca do direito de existir mais intensamente.

Das cerca de trinta peças criadas no sítio, algumas já se quebraram, tamanha a fragilidade da sua composição. Essa fragilidade física talvez seja a grande força do conjunto que me chamou a atenção em meio aos demais trabalhos da mostra, disposto com singularidade entre a leveza e a translucidez dos desenhos em papel manteiga e a carga histórica e corpórea dos bronzes. Pois, criadas com uma espécie de gesto mínimo, também basta um sopro para se desfazerem, deixando de ser como são, e se tornarem outra coisa. Elas apontam, assim, para a nossa impermanência e ao mesmo tempo para a suposta longevidade da arte, talvez para o contrário também.

É com essa iminência que tais seres requerem seu direito de existir no mundo real e conquistam um lugar distinto na obra da artista, inclusive colocando o restante em questão. Como ela mesma comentou com o grupo de discussão sobre arte contemporânea do qual faço parte, as Existências mínimas surgiram sem planejamento e então foi preciso lidar com elas. Foi preciso se interrogar a respeito do que provocam, do que trazem de novo, de que relações estabelecem com a sua produção anterior; oferecem, assim, a oportunidade de se aprender com isso.

“Os virtuais têm a força do problemático”, diz Lapoujade. Para quem a força de um problema não é a sua tensão interna, mas a incerteza que ele introduz na (re)distribuição de realidade. Uma nova perspectiva irrompe e confunde a ordem de determinado plano de existência, deslocando os centros de gravidade.

Existência mínima, 2020, de Flávia Ribeiro

O filósofo explica ainda que cada existência provém de um gesto que a instaura, mas esse gesto não emana de um criador, é imanente à própria existência. De modo que, para ter lugar, ela precisa vencer a dúvida, o ceticismo ou a negação que contesta o seu direito de existir.

Pois não seria essa a qualidade daquelas pequenas esculturas de Flávia Ribeiro? Apresentarem-se sem serem convidadas, como um estrangeiro que bate à sua porta e coloca em questão o que acredita saber sobre si mesma? Um estranho imprevisto com o qual precisa dialogar, que invariavelmente a transforma, força-a para além do lugar-comum?

Elas são começos, esboços, fragmentos; quase se confundem com o puro nada, explica Lapoujade. Evidente que as Existências mínimas da artista não são uma representação do conceito desenvolvido no livro. Mas não tenho dúvidas de que as aproximações enriquecem de sentido ambos. Afinal, é próprio desses seres virtuais expandirem as possibilidades. “Seu ‘gesto’ próprio é suscitar outros gestos”, diz o filósofo; “são os virtuais que introduzem um desejo de criação, uma vontade de arte no mundo. Eles são a origem de todas as artes que praticamos”.

Como o novo está sempre posto em relação com o pré-existente, vejo também similitudes com outros trabalhos de Flávia Ribeiro, inclusive alguns da própria exposição. Por exemplo, com as estruturas delicadas do Campo para pensar I, espaço de imantação formado por uma base de parafina em que ideias ganham materialidade, como que desenhadas no ar com fios de arame e organza. Ou com o proposto “vir a ser” das suas esculturas intituladas Pré-objetos. Ou, ainda, com a pulsação da cor vermelha, que acentua algumas peças e, assim, em pitadas, se faz sempre presente.

As Existências mínimas são a amostra mais viva da intuição poética de Flávia Ribeiro, talvez um ponto de virada em sua trajetória, e com certeza um ponto de inflexão. Propõem caminhos alternativos, como as forquilhas do ipê. Carregam algo da brincadeira das crianças, que encaram o jogo da vida com seriedade, mas sem a sisudez de quem já se acostumou com as maneiras convencionais de existir. São receios e fragilidades assumidos; inconsistências e evanescências elaboradas na forma de uma coragem irregular, orgânica, primitiva, tão necessária para sobreviver na dureza do mundo real.


segunda-feira, 26 de abril de 2021

ARTE É PESQUISA?


Boa parte da obra de Angelo Venosa se apresenta em camadas. Quando tratamos de pintura, não é incomum pensar nas camadas de tinta que se sobrepõem para criar efeitos visuais. Porém, logo no início de sua carreira, esse artista optou por trabalhar com objetos, os quais, por convenção, chamaremos de esculturas, embora as técnicas que lhes dão forma sejam diferentes dos tradicionais entalhe e modelagem. E o que vemos é que suas esculturas são, em grande número, criadas a partir da junção de camadas de matéria. Algumas delas são visíveis: Angelo acumula superfícies planas estreitas de modo a construir um corpo substancioso, mais ou menos como fazemos quando empilhamos folhas de papel numa resma. Outras esculturas suas, todavia, têm camadas estruturais ocultadas debaixo de uma pele, como ele próprio diz ao rever peças da década de 1980. Elas podem ser acessadas em seu site. São produzidas como um corpo animal em que primeiro existem os ossos, depois a carne, depois a pele. Não vemos tudo isso que as constitui, mas está lá, tornando possível a visualidade da obra.


A questão estrutural é uma chave de leitura importante na arte de Angelo Venosa. Seu interesse nela é inegável. Desde os primeiros trabalhos, existe uma verdadeira engenharia de hastes e dobradiças sob as superfícies de tecido e gesso. Algo ali da cenografia aprendida com o pai, talvez? Cujo resultado ora lembra cadeias montanhosas, ora longos tentáculos negros; são assim difíceis de localizar num sentido mais exato, em especial porque lhes faltam títulos. Inclusive, raras são as peças intituladas pelo artista, que alegando certa dificuldade nisso acaba por não encerrar com palavras certos entendimentos que são da ordem da imagem, da matéria, do sensível. Entendimentos que não cabem em razões discursivas. Pois Angelo “sente desejo de forma, não de representação”, explica.

Aquela engenharia de que falávamos aponta também para a engenhosidade processual da sua criação, cujos métodos se desenvolvem junto com cada trabalho e, de maneira surpreendente, pouco se repetem, apesar de as camadas serem uma constante. Aliás, essas camadas talvez sejam materializações da sua maneira de pensar e de produzir conhecimento.

Amílcar de Castro, outro grande artista brasileiro, explorou poucos procedimentos ao longo de sua trajetória – apenas três, segundo o crítico Rodrigo Naves, que de maneira resumida seriam: cortar e dobrar; cortar e deslocar; e movimentos ininterruptos de pincel. Amílcar trabalhou basicamente com aço corten e tinta preta sobre tela ou papel. Com esses recursos limitados, criou uma obra que talvez só não seja reconhecida mundialmente como uma das mais importantes por questões geográficas, administrativas e, claro, financeiras, que o impactaram no incipiente mercado nacional do século passado. Sem me prolongar demais nisso, quero explicar que citei Amílcar de Castro como contraponto à imensa variedade de formas, dimensões e técnicas de Angelo Venosa. Variedade também de materiais nelas envolvida: sal, piche, bronze, chumbo, ossos, madeira, acrílico, sisal, vidro, tecido, tinta, aço etc. A lista é longa. Segundo o artista, as coisas têm muitas possibilidades de ser. E eu me pergunto: como então definir uma forma para o trabalho e, com ele pronto, permitir de continue a ser múltiplo?

“O grande barato é o caminho”, disse Angelo durante sua visita virtual ao grupo de discussão de arte contemporânea conduzido por Germana Monte-Mór, do qual tenho participado com muito prazer. Com isso, ele se referia aos desafios do próprio fazer artístico, que tanto o instigam. E à beleza poética do descobrimento e da invenção de soluções para os problemas que a obra apresenta. Mesmo que nos últimos anos tenha utilizado recursos digitais e impressoras 3D para desenvolver seus objetos, ainda é a perseguição da ideia durante o processo de criação que lhe interessa. Para isso, não basta ter a ideia e depois executá-la: tudo se faz consecutivamente. Seu objetivo não é a escultura; não é a ela que Angelo se dirige, ao menos não de forma tão consciente. Seu objetivo é a execução em si; o objeto artístico acaba por ser a consequência dessa busca pressentida, não premeditada. Um ponto sutil que faz toda a diferença.

Em suas palavras, “é seguir pelo cheiro algo que não se conhece muito bem”. Isso, aliado à sua curiosidade natural, o faz explorar um universo de possibilidades plásticas. Não tenho dúvidas de que Angelo produziu, junto com sua coleção de objetos, um riquíssimo estudo de meios, formas e matérias. Precisou aprender a lidar com tudo aquilo para realizar seus trabalhos artísticos. Afinal, recortar vidro é diferente de moldar aço, pregar madeira, engessar tecidos, fixar dentes em cera etc. Para cada ação é necessária uma dimensão de conhecimento e de experiência técnica, artesanal e conceitual.

Sem titubear, dou a isso o nome de pesquisa. Mas Angelo Venosa tem uma questão com o termo, que ele evita, argumentando: “eu me atiro sem muita clareza e vou fazendo arte. Um sujeito se afogando está fazendo pesquisa? Não, está tentando sobreviver”. Apesar da força dessa expressão, fiquei intrigado, para não dizer descrente. Não cabe aos artistas pesquisar? Angelo prefere deixar o termo com os cientistas. E essa “deixa” me sugeriu uma forma de compreendê-lo. Pois me parece que, assim como evita títulos para não localizar com precisão os significados dos seus objetos, ele prefere não se referir ao próprio processo de investigação como pesquisa para evitar que vejamos o conhecimento artístico tal qual o científico, e as descobertas da arte tais quais as da ciência. Pois, enquanto esta última se desenvolve por meios racionalizados que visam estabelecer uma ordem universal geral e necessária, a arte – ao menos a arte de Angelo Venosa – se faz por deambulações, acasos, erros, além de arriscada experiência e rigorosa dedicação, que acabam por estabelecer um objeto singular.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

JORNADA DE PESQUISA EM ARTE PPG IA/UNESP 2017


Amanhã, a partir das 14h, eu estarei no Instituto de Artes da Unesp (São Paulo/SP), participando da Jornada de Pesquisa em Arte. O título da minha fala é Humanidade Ficcionada, Humanidade Profanada: Patricia Piccinini e Ron Mueck em São Paulo. Ela faz parte da Mesa 11: Arte Moderna e Contemporânea em São Paulo). Todos estão convidados!

Mais informações sobre o evento estão aqui: https://jornadadearteunesp.wixsite.com/pesquisa2017/2017

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

SOMOS TODOS ARTISTAS

Capa do catálogo da exposição realizada
no SESC Pompeia em 2010
Seria possível moldar a sociedade assim como o barro, dando a ela forma aproximada daquilo que deseja? O artista alemão Joseph Beuys acreditava que sim, e dedicou a vida para nos apresentar modos de fazer. Segundo ele, tudo que está rígido demais precisa ser amolecido, e o que ainda não consegue se sustentar carece de estrutura. Assim a organização social pode, aos poucos, ser transformada de acordo com as demandas mais atuais, adquirindo linhas contemporâneas e abandonando o que tem de retrógrado.

A rigidez da homofobia, do preconceito racial contra negros, dos abusos sobre as culturas e terras indígenas, por exemplo, deve ser trabalhada, tornada maleável, moldada até condizer melhor com a realidade de hoje, com as necessidades de espaço e acolhimento, com direitos sociais respeitados e defendidos por todos.

Seguindo a mesma lógica, os homossexuais, os negros e os índios precisam ganhar peso político, participar em mesmo nível que os demais grupos, usufruir dos mesmos direitos. Isso vale para todas as questões que nos atravessam e para as quais, infelizmente, muitos viram as costas: legalização do aborto, descriminalização das drogas, violência policial, jovens em conflito com a lei, dogmatismo religioso na política, implementação de transportes alternativos como as ciclovias, entre outros devires menores que clamam atenção. Tudo deve ser moldado: apertado, experimentado, errado, feito de novo, tentado de outro jeito... até que finalmente se obtenha forma satisfatória, a qual permanecerá apenas enquanto for conveniente, pois assim que surgir nova demanda o trabalho terá que ser retomado.

Beuys falava de "escultura social". E afirmava que todos somos artistas, uma vez que temos não apenas capacidade mas obrigação de agir na substância da sociedade que constituímos e que à sua maneira nos une, alguns queiram ou não.

Ao propor isso ele expandiu o território da arte para diversos outros, embaçando fronteiras e modificando o mapa inteiro no processo. Atuou em organizações políticas, fundou partidos; deu aulas, criou um conceito próprio de universidade livre; promoveu debates, participou de eventos em museus, galerias, redes de rádio e televisão; escreveu, viajou, transformou a si mesmo numa obra de arte com abrangência mundial e procurou meios alternativos para divulgar suas ideias sobre a atitude/responsabilidade transformadora que todos deveríamos assumir.

As mudanças começam no próprio pensamento. Por isso o aspecto conceitual de sua obra é tão importante. É a partir de uma transformação na maneira de pensar que podemos chegar a uma melhor concepção de mundo. Por meio da escultura social seria possível alcançar a emancipação, ou seja, certa liberdade para viver e compartilhar.

Cartaz de Joseph Beuys apresentado
na 15ª Bienal de São Paulo, em 1979
Quando participou da 15ª Bienal de São Paulo, em 1979, Beuys reproduziu em cartaz um longo texto escrito no ano anterior, intitulado Conclamação à Alternativa. Dele extraí o trecho a seguir, que serve como aperitivo das suas propostas, traz um alerta imprescindível e surpreende por sua atualidade.

Neste ano que se inicia, após uma Copa do Mundo catastrófica (não me refiro ao 7 x 1), manifestações sociais no país inteiro, confrontos políticos violentos e uma 31ª edição da Bienal que, de tão provocadora e relevante, talvez tenha passada despercebida pela grande mídia, vale retomar Beuys e refletir sobre os próximos passos. Quem sabe assim evitamos novos tropeços – e mais graves?

"É preciso alertar contra uma mudança irrefletida. Diante da questão: O QUE PODEMOS FAZER?, temos de nos perguntar COMO DEVEMOS PENSAR?, a fim de evitar que o discurso dos mais altos ideais da humanidade, proclamado atualmente por todos os programas partidários, continue a se reproduzir como expressão do contraste crasso com a vida prática da realidade econômica, política e cultural em todo o mundo.

Comecemos pela REFLEXÃO DE CADA UM SOBRE SI MESMO. Perguntemo-nos sobre as razões que nos dão ensejo de abandonar o que seguimos até agora. Procuremos as ideias que nos indicam a direção a tomar nessa mudança de rumo.

Repassemos a evolução da vida social e política no século 20.

Reexaminemos os conceitos segundo os quais se estabeleceram as condições reais no Oriente e no Ocidente.

Reflitamos sobre o efeito desses conceitos: terão eles incentivado nosso organismo social e seu relacionamento com as bases naturais, propiciando o surgimento de uma existência saudável – ou, pelo contrário, não terão tornado a humanidade doente, não lhe terão aberto feridas, não lhe terão trazido desgraças, colocando em questão sua própria sobrevivência, hoje? Aprofundemos nossa reflexão observando cuidadosamente nossas próprias necessidades: estarão os princípios do capitalismo ocidental e do comunismo oriental abertos para receber o que vai se revelando cada vez mais claramente, a partir da evolução dos últimos tempos, como o impulso central na alma da humanidade, ou seja, a vontade de autorresponsabilidade concreta? Em outros termos, trata-se de um impulso que leva o ser humano a emancipar-se das relações sociais pautadas unicamente por mando e submissão, poder e privilégio."

terça-feira, 1 de abril de 2014


"Queriam que eu fizesse esculturas aqui. E, vendo que não conseguiam, me impuseram todo tipo de aborrecimento. Nestes momentos de festas, penso sempre em nossa querida mamãe. Eu não a revi desde aquele dia quando vocês tomaram a funesta resolução de me enviar a um asilo de alienados."

Carta de Camille Claudel ao irmão Paul (dezembro de 1939)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

ESTÉTICA & POLÍTICA

Torso Belvedere, nos Museus Vaticanos

“A ruptura estética instalou, assim, uma singular forma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma ruptura da relação entre as produções das habilidades artísticas e dos fins sociais definidos, entre formas sensíveis, significações que podem nelas ser lidas e efeitos que elas podem produzir. Pode-se dizer de outro modo: a eficácia de um dissenso. O que entendo por dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos. É o conflito de vários regimes de sensorialidade. É por isso que a arte, no regime da separação estética, acaba por tocar na política. Pois o dissenso está no cerne de política. Política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. Seu âmbito não é definido, em primeiro lugar, pelas leis e instituições. A primeira questão política é saber que objetos e que sujeitos são visados por essas instituições e essas leis, que formas de relação definem propriamente uma comunidade política, que objetos essas relações visam, que sujeitos são aptos a designar esses objetos e a discuti-los. A política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem ‘natural’ que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. Essa lógica dos corpos tem seu lugar numa distribuição do comum e do privado, que é também uma distribuição do visível e do invisível, da palavra e do ruído, é o que propus designar com o termo polícia. A política é a prática que rompe a ordem da polícia que antevê as relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis. Ela o faz por meio da invenção de uma instância de enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns. Tal como Platão nos ensina a contrario, a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das competências – ou incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era ouvido apenas como ruído dos corpos.” (p. 59-60)

Jacques Rancière
O Espectador Emancipado

sábado, 30 de março de 2013

O EU E O OUTRO

Comecei a ler mais um livro sobre o artista suíço Alberto Giacometti. Já é o quinto ou sexto, nem sei dizer. Sua obra inspira, em especial porque é também sua própria vida, seus amigos e familiares, o ateliê e as questões de forma e expressão que ele remoeu dia após dia, até seu falecimento em 1966. Identifico-me com Giacometti. Não porque somos parecidos, mas justamente pela diferença que existe entre nós. Eu admiro sua obsessão, a profundidade de suas investigações estéticas e seu desprendimento em relação à obra pronta. Eu queria ser um pouco assim, transformar minha leviandade em projeto, concretizar as flutuações, abrir mão dos compromissos e me enfiar de cabeça na poética para nunca mais ser arrancado de lá. Claro que não poderei jamais fazer isso. Não sou Alberto Giacometti, não vivo como ele vivia, não penso como ele pensava nem nada disso. Tampouco tenho um projeto tão bem estruturado, tão consistente. O que me agrada na comparação é simplesmente descobrir o que não sou naquilo que ele foi, e do mesmo modo descobrir a mim mesmo nas lacunas que Giacometti deixou por preencher.

O velho debate a respeito do que a arte é leva-nos a um número infinito de respostas, nenhuma delas conclusiva. Podemos elencar uma série de coisas que não parecem arte para, quem sabe, encontrar a resposta no que restará. Duvido que funcione, seria fácil demais, porém ainda assim é uma estratégia de ação. Arte, para mim, é tudo o que chamamos de arte e tudo o que os homens um dia chamaram de arte, entre outras possibilidades. A exclusão é um risco, enquanto a inclusão não ameaça; basta deixar a poética livre para se manifestar. Vejo arte em todas as pessoas, em todas as coisas e em todos os lugares, seja na forma de obra ou na de potência. Mas existe um porém a esse respeito que soa plausível: a obra requer o outro para ser arte. Quer dizer, não existe arte sem que haja alguém para vê-la, ouvi-la, lê-la etc. Ela não existe para si; esse é o limite da sua dita autonomia. Pintura não exibida, música não tocada, livro não publicado... longe das pessoas, as obras não conseguem se manifestar e permanecem inertes em si mesmas, na materialidade banal do mundo. 

O que chama atenção nas criações de Giacometti é esse cruzamento de olhares. Sua obsessão por retratar uma pessoa da maneira como a via produziu séries de obras feitas e refeitas umas sobre as outras, criadas, destruídas e recriadas novamente. Os relatos do crítico James Lord reunidos no livro Um retrato de Giacometti nos apresentam esse método angustiante, é uma leitura que recomendo a todos que se interessam por processo criativo e trabalho de arte. O livro fala de um retrato encomendado ao artista, cuja produção não demoraria mais do que uma tarde, mas que se estendeu ao longo de meses e meses, até esgotar a paciência do retratado. Porque, na medida em que o pintor o conhecia melhor, mudava a imagem que fazia dele, mudava a percepção do sujeito, a qual se refletia na impressão pictórica. Giacometti queria pintar a verdade fundamental de seus modelos, um idealismo inalcançável tornado insuficiência e sofrimento. Terminava a sessão feliz com o resultado, a missão quase cumprida, bastariam uns poucos retoques. Só que na manhã seguinte tanto ele quanto o outro estavam diferentes, então a tela era apagada e recomeçada; de novo, de novo e de novo.

Nessas obras, os retratados olham para nós, que nos colocamos diante da tela. Nós devolvemos o olhar. Mas o que vemos, na verdade, é o olhar do artista sobre o assunto; sua expressão manifestada na expressividade daquelas figuras. Descobrimos, desse modo, o próprio Giacometti por meio das obras que deixou. Suas pinturas e esculturas são também retratos do próprio artista. Ele está contido nelas de maneira tão intensa que o termo "contido" não é justo – o artista se expande para além da superfície da obra. Vemos claramente suas questões estéticas, suas crises e suas vontades.

Percebo também a mim mesmo. Não no que Giacometti pintou, mas nos espaços em branco, no que não há de mim na obra, no que não está dado. Descubro minha identidade pela diferença, olhando o que não sou, imaginando como gostaria de ser. Converso com Giacometti por meio de suas criações; descubro a arte como um campo necessariamente intersubjetivo. O outro não é o meu limite, como se costuma dizer, mas a experiência que me faz existir como eu mesmo, consciente de mim. Um corpo reflexivo que olha e é olhado, que toca e é tocado. "Quando o outro reflete a minha imagem espelhada, é às vezes ali onde eu melhor me vejo", cita o psicanalista João A. Frayze-Pereira. E completa: "é na diferença sensível existente entre o eu e o outro que se afirma a identidade".

Leio mais uma vez sobre Alberto Giacometti. A obra é sempre aprendizado. Entre as linhas, nas fissuras abertas por sua vida e arte, descubro a mim mesmo, leio a história do meu próprio ser, que também se faz e refaz a cada dia pelo gesto poético de existir, de estar no mundo, de me colocar à disposição da alteridade. Descubro minha vocação no que falta ao mundo, e o mundo em tudo aquilo que falta a mim. É por conta disso que ele é tão grande, tão rico, tão entusiástico e misterioso.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

VERGONHAS À MOSTRA


Um homem para no meio da rua, olha para cima, aperta os olhos contra o céu. Outro chega perto, fica olhando também, perguntando-se se é possível. Ele já tinha ouvido histórias assim, e agora uma delas acontece bem na sua frente. Dali a pouco, uma mulher grita: Pula não! Pronto, era o que faltava para a balbúrdia começar. Pula não, homem!, imploram uns. Pula sim, aconselha outro, porque sempre tem um espírito de porco no meio. Chamam os bombeiros, é a maior confusão. Por fim, o suicida fica lá, parado como estátua. Pelo simples fato de que é uma estátua mesmo, colocada no beiral do edifício pelo artista inglês Antony Gormley.

Várias estátuas, na verdade, espalhadas pela cidade de São Paulo, a maioria delas no alto dos prédios. Suas silhuetas observam os passantes formigarem com indiferença pelas ruas. Elas compõem a exposição Corpos Presentes, em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil.

Quando percebe a farsa, a multidão se dispersa. A nova realidade já não tem tanta urgência. Brincadeira sem graça! Cada pessoa segue seu rumo. Mas há quem vire para dar uma última conferida. Para ter certeza. Porque nunca se sabe, né?

Por sua vez, quem adentra o CCBB se depara com diversos outros homens peladões, feitos de ferro fundido, pesando cerca de 630 quilos cada. Estão caídos no chão, amontoados no saguão, pendurados de cabeça para baixo por cabos de aço que descem do andar superior.

As crianças fazem a festa, imitando as posições retorcidas das estátuas, sem preconceitos com a arte, sem grandes expectativas para frustrar. Os adultos também participam, claro, tirando fotos, relutando e fazendo piada. A mostra provoca a imaginação. Porém, quando se descobre que as estátuas são cópias moldadas diretamente no corpo do artista, há quem o julgue um pervertido. Precisa mostrar tudinho assim?

(Porque uma deusa grega pode, mas o inglês contemporâneo não.)

Já devo ter escrito meia dúzia de vezes no Correio Popular sobre o complicado embate entre realidade e ficção. Porque a ficção é algo bem próprio da arte. Antes, porém, está infiltrada em nosso cotidiano de maneira tão profunda que sequer a percebemos. Sim, toda verdade não passa de uma ficção bem apresentada, na qual a gente escolhe acreditar.

Não tem nada a ver com mentira. A ficção não possui o mesmo teor pejorativo, tampouco se opõe à ideia de verdade. "Em vez de falsificar, ela alarga e potencializa o mundo. Em vez de mentir, ela inventa novas maneiras de dizer as coisas do real", escreveu José Castello no jornal literário Rascunho. É verdade, nós ficcionamos o tempo todo. Quando contamos aos amigos uma peripécia de adolescente, quando damos um parecer na reunião da empresa, quando ensinamos nossos filhos que é errado colar na prova. Trata-se de uma característica inerente ao ser humano, simplesmente um registro distinto de compreensão do mundo. Tanto que, para o filósofo Jacques Rancière, a realidade precisa ser ficcionada para ser compreendida. É por causa disso que a arte, em geral, consegue lidar com questões fundamentais da nossa existência sem recorrer à tarja preta ou aos grupos de controle. Um romance, uma música ou uma escultura possibilitam descobertas tão ricas quando qualquer experimento científico. Talvez até mais.

Só que, às vezes, somos muito racionais para perceber a infinita ironia da ficção. Queremos a verdade incontestável, tintim por tintim, sem digressões, como se isso fosse possível. É só ela que aceitamos. Juro, temos necessidade de significado imediato, racional, explicado, comprovado e justificado. Números! Pesquisas! As emoções não valem nada quando comparadas à lógica esclarecida. Assim, o mundo passa despercebido por nossos sentidos.

No texto anterior, falei sobre o artista Hervé Fischer que, vestido de farmacêutico, conversava com transeuntes numa praça de São Paulo e receitava pílulas para todo tipo de problema, por mais absurdo que fosse. Pílulas para obter um bom emprego, para aprender a dançar, para reaparecer cabelo na careca. Eram bolinhas de isopor, embaladas num saquinho plástico e etiquetadas com a frase "A vida está nas pílulas!" Só que muita gente acreditou. Foi difícil, Hervé precisou explicar que era apenas uma provocação artística, com objetivo de fazer o sujeito refletir sobre os próprios problemas e buscar uma solução. Porque a realidade deve ser ficcionada para ser compreendida.

Ainda assim, tenho certeza de que alguns acabaram tomando as bolinhas de isopor. Nunca se sabe, né? Talvez até arranjaram emprego, aprenderam a dançar e recuperaram o cabelo. Eu acredito. É o tal efeito placebo, que, para desespero dos médicos, às vezes cura desenganados. Porque a ficção age misteriosamente dentro de nós, nesse corpo tão incrível e desconhecido que acabamos considerando indecente; que banalizamos e rechaçamos por receio de lidar com a realidade nua e crua.

Aqui tem um making of interessante da mostra, para quem não pode vê-la pessoalmente:

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Annette, 1961

"Não conheço ninguém que seja tanto quanto ele [Alberto Giacometti] sensível à magia dos rostos e dos gestos; observa-os com uma avidez apaixonada, como se fosse de outro reino. Mas, às vezes, enfastiado, tentou mineralizar seus semelhantes: via as multidões avançando sobre ele às cegas, rolando pelos bulevares como pedras de uma avalanche. Assim, de cada uma de suas obsessões ficava um trabalho, uma experiência, um modo de vivenciar o espaço."

"O que o incomoda é que esses esboços moventes, sempre a meio caminho entre o nada e o ser, sempre modificados, melhorados, destruídos e refeitos, passaram a existir por si mesmos e, de fato, empreenderam longe dele uma carreira social. Ele os esquecerá. A unidade maravilhosa dessa vida é sua intransigência na busca do absoluto."

"Giacometti nunca fala da eternidade, nunca pensa nela. Gostei do que ele me disse certo dia, a respeito das estátuas que acabara de destruir: "Eu estava satisfeito com elas mas eram feitas para durar só algumas horas"."

 Jean-Paul Sartre, em A busca do absoluto


Leia sobre a exposição de Alberto Giacometti na Pinacoteca de São Paulo e conheça também a Fundação Alberto e Annette Giacometti, que zela pela obra do artista.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

COMO É QUE CHAMA O NOME DISSO?

Foi uma coincidência muito bacana. Estávamos conversando sobre literatura e uma amiga disse que tinha vontade de ler o romance Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, do brasileiro Marçal Aquino, simplesmente porque gostava do título. Eu também. Desde que me deparei com ele na prateleira da livraria, fiquei tentado a levá-lo para casa. É um título com tamanho poder de persuasão que me seduziu de imediato.

Como é que chama o nome disso?, quis saber o filhinho de Arnaldo Antunes. Uma questão tão pertinente que acabou virando título de um dos livros do pai. Tudo tem um nome. Acho incrível essa necessidade de batizar para identificar. Não que seja um problema, claro que não. É apenas curioso.

Algumas vezes, os nomes são pivôs de polêmicas. O artista francês Marcel Duchamp foi mestre em criar títulos assim, que chegaram a gerar mais discussão do que as próprias obras. Por exemplo: nos primórdios do modernismo, ele pintou uma figura robótica multifacetada e a chamou de Nu descendo uma escada. Os organizadores do Salão onde ela seria exibida, em Paris, ficaram horrorizados: o nu era um gênero clássico da arte pictórica. Consideravam aceitável aquela aparência caleidoscópica, que mal permitia uma apreensão lógica da figura – até porque o cubismo já ditara a moda e não convinha se manifestar contra. Pregar um retorno à tradição era batalha perdida. Mas a pintura de Duchamp estava mais para sacrilégio. Porque o nu se reclinava sobre o divã, deixava os raios de sol o acariciarem na relva, purificava-se nas fontes de água cristalina – mas jamais se sujeitaria a algo tão profano quando descer uma escada.

Parece frescura, mas fazia parte das reviravoltas da época. Propuseram então ao jovem artista que "apenas" mudasse o nome da obra. Atiçaram o demônio. Contrariado, ele pôs o quadro debaixo do braço e saiu do Salão dizendo poucas e boas. Em breve, seu Nu descendo uma escada seria aclamado no Armory Show de Nova York. E a arte moderna invadiria de uma vez por todas a América. Sim, Duchamp sabia dar nome aos bois. Começava também a identificar os melhores pastos para criá-los.

Os títulos das pinturas modernistas foram a última coisa que se rendeu ao abstracionismo. Chegávamos ao cúmulo de ver borrões coloridos chamados flores na janela – ou qualquer coisa do tipo – apenas para serem aceitos como arte legítima – e não como produto de insanidade. Dilema que também ficou no passado, para nossa sorte. Pois Kandinsky e Mondrian, entre outros, passaram a batizar seus experimentos, por exemplo, como Composição com branco, amarelo e vermelho ou Improvisação XI. Abstratos em todos os sentidos. Finalmente, tinham vencido a barreira da figuração, que dominara o pensamento ocidental durante milênios.

Dar nome à cria não é tarefa fácil. Os textos desta coluna, muitas vezes, ficam dias aguardando o título adequado. Precisa ser curto, interessante, instigar a leitura sem resolver o assunto numa só tacada, etc. Ser conciso é um problema amplo demais – sim, um verdadeiro paradoxo.

E vai além: tenho um romance em processo de confecção, por assim dizer, cujo primeiro risco já foi concluído e, agora, espera acabamento. Ele recebeu dois títulos por enquanto. Um foi descartado logo, o outro permanece sob avaliação. Parece que serve, este remanescente; entretanto, preciso criar muitos mais para comprová-lo.

Em uma das visitas que fez ao suíço Alberto Giacometti, o crítico James Lord descobriu uma escultura maravilhosa largada com displicência sob a escada, no canto do ateliê, e quis saber como o artista podia fazer aquilo com tamanha obra-prima. "Se for boa mesmo, se tiver essa força expressiva que você diz, ela aparecerá por si própria", respondeu Giacometti. Suponho que o mesmo vale para o título do livro. Se for bom o bastante, sobreviverá. Caso contrário, da mesma maneira como alguns casais grávidos trocam o nome planejado assim que a criança nasce – só porque bateram os olhos na Maria e ela tinha cara de Beatriz –, eu também escreverei um novo título quando a gestação da narrativa estiver concluída. Quem sabe?

Sobre o romance de Marçal Aquino, que iniciou essa divagação toda, confesso que demorei anos até o comprar e ler. Sou facilmente seduzido, só que custo a ceder, não tem jeito. Tais como o título estampado na capa, as páginas subsequentes são poéticas, intrigantes e escritas com muito talento. O nome, no entanto, surgiu de uma passagem breve – meio esdrúxula até –, que nem tem essa relevância toda. Só que ela combina perfeitamente com a história, sugere sentimentos ao invés de explicitá-los, instiga, contém um lirismo tão marcante quanto a sensibilidade do autor ao tratar desse assunto inexplicável chamado amor. Vou repetir porque vale a pena: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Um título único, que cumpre o papel com louvor. Uma beleza rara. Faz jus ao romance, justifica a paixão à primeira lida que acometeu a mim e à minha amiga. Dá vontade de ler. Ou seja, é bom como todo título deveria ser. Não à toa, ocupa lugar de destaque. No caso, mais do que merecido.

Imagens, na ordem:
1. Nu descendo uma escada (1912), de Marcel Duchamp
2. Improvisação XI (1910), de Wassily Kandinsky
3. Composição com branco, amarelo e vermelho (1936), de Piet Mondrian

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

PESSOAS PEQUENAS NA CIDADE GRANDE



A arte de Slinkachu é tão divertida de se conhecer quanto interessante de se analisar. Em suma: ele cria cenas peculiares pela cidade, utilizando bonecos minúsculos, e as fotografa de perto e de longe. Depois, abandona as pecinhas ali mesmo, e a própria cidade fica responsável pelo destino delas.

Faz a gente pensar na peculiaridade da vida urbana, na efemeridade da existência e em nossa pequenez perante o entorno. Também põe em questão o próprio objeto de arte, já que os bonequinhos são abandonados e o único registro que resta daquelas interferências são as fotografias feitas pelo próprio artista. Essas fotografias assumem o papel de obra, transformam-se em livro, são comercializadas, participam de exibições etc.

Escolhi algumas imagens no site do artista para ilustrar este post (clique para ampliá-las). Você pode conferir outras aqui: Slinkachu_Little People









segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ÁGUA MOLE, PEDRA DURA

Era para ser uma pintura rápida, um esboço a óleo sobre tela que, nas palavras do retratado, levaria uma ou duas horas para ser concluído. Alberto Giacometti e James Lord eram amigos, e aquilo tinha como propósito apenas a diversão de ambos. Um disse que queria, o outro respondeu que faria e pronto, estavam combinados. Só que a persistência do artista para obter um resultado satisfatório – entre suas tormentas existenciais e ameaças de abandono do projeto – levou o modelo a posar durante catorze dias não-consecutivos. Isso mesmo, catorze sessões de duas a quatro horas cada! Esse processo criativo foi registrado pelo escritor num divertido diário, que, além de revelar detalhes sobre a obra de Giacometti e sobre sua concepção de arte, também nos leva a pensar em nossas próprias vidas, em como reagimos às adversidades, na relevância de nossos planos e no que, afinal, nos faz felizes.

E tem mais: durante esse tempo todo, o artista pintou apenas a cabeça do amigo. Pintou e repintou, pintou e repintou, concentrando-se somente nela. Considerava a tarefa impossível, mas continuava tentando. Ao fim de cada sessão, os dois olhavam a tela e notavam certo avanço, mas no dia seguinte o pintor apagava tudo e recomeçava do zero. “Estou destruindo você”, dizia. James Lord se angustiava. Com o tempo, porém, aprendeu a dar de ombros e assentir: “É você quem manda”. Seu respeito pelas escolhas do mestre beirava à devoção. Em troca, Alberto lhe ensinou que cada passo adiante é sempre uma luta contra as próprias crenças, e que a superação depende também de muita cessão, além da tradicional força de vontade.

Em setembro de 1964, dinheiro e fama já não eram problemas para ele. Suas obras podiam ser vistas mundo afora e agradavam tanto o público quanto a crítica. O artista já tinha até mesmo conquistado o Grande Prêmio de Escultura da Bienal de Veneza, o mais importante de sua carreira. Ainda assim, persistia na empreitada, blasfemava que não entendia nada daquilo, que deveria desistir de uma vez por todas, pois jamais conseguiria fazer alguma coisa bem feita. As glórias do passado não iludiam seus olhos nem transbordavam sua autoconfiança. Todo dia era um novo dia, e isso ficou evidente durante a pintura do retrato. Seu temperamento exagerado pedia toda a paciência de James Lord. No entanto, ao ler o diário, publicado propositadamente sob o ambíguo título de Um retrato de Giacometti, ele chega a ser hilariante.

Pois bem, qual é a relação disso tudo com a nossa busca por felicidade? No livro A arte da vida, o filósofo Zygmunt Bauman afirma que a vida é uma obra de arte e que “devemos, tal como qualquer outro tipo de artista, estabelecer desafios que são difíceis de confrontar diretamente; devemos escolher alvos que estão muito além de nosso alcance, e padrões de excelência que, de modo perturbador, parecem permanecer teimosamente muito acima de nossa capacidade de harmonizar com o que quer que estejamos ou possamos estar fazendo. Precisamos tentar o impossível”.

Alberto Giacometti parece ter sido a encarnação perfeita dessa proposta. Em um momento de desânimo, chegou a prometer os milhões de sua poupança a alguém que pintasse “aquela maldita cabeça” por ele.

“Tenho certeza de que, por essa quantia, muitos o fariam”, comentou o modelo na ocasião, ao que o artista prontamente retrucou: “Não fariam à minha maneira”. Não se tratava apenas de uma saída irônica. Ele realmente assumia a tarefa como um desafio pessoal e precisava cumpri-la a qualquer preço. A razão da sua arte consistia em representar o mundo da maneira como ele se mostrava a seus olhos, e só com muito suor conseguia executá-la – o dinheiro não lhe valia de nada.

No citado livro, Bauman faz uma comparação interessante entre renda e felicidade, mostrando que, após serem atendidas as exigências básicas para se viver com dignidade, o nível de felicidade continua estagnado, mesmo que a renda se multiplique exponencialmente. Em outras palavras, o crescimento econômico só influencia a felicidade das pessoas até certo ponto.

No geral, continuamos acreditando que comprar nos deixa mais felizes. Bauman alerta para o perigo de se cair no conto do publicitário, que sempre apresenta uma nova etapa nessa busca. Prolongando o caminho, nunca atingimos o fim. E, durante a jornada, acabamos nos esquecendo de coisas mais importantes, que o dinheiro não compra.

Uma delas é o desafio que se impõe a cada dia e nos obriga a superar obstáculos para realizarmos um bom trabalho, digno de orgulho próprio, exatamente como fazia Giacometti. Trata-se de uma satisfação cada vez mais rara. Confrontando-se com problemas que pareciam insolúveis, ele reinventava a si e a sua arte. Possivelmente foi essa incessante busca que o fez, além de um talento mundialmente reconhecido, um homem feliz. A persistência, como sugere o ditado, leva à realização. O diário de James Lord é testemunha disso e, por que não?, serve de manual para uma vida melhor, em que tanto a arte quanto a felicidade estão ao alcance de todos.

quarta-feira, 30 de março de 2011

COLEÇÃO NEMIROVSKY: PATRIMÔNIO NACIONAL

Em carta aberta à população brasileira, a Pinacoteca do Estado de São Paulo pede auxílio para continuar a gerir a importante Coleção Nemirovsky, permitindo que ela esteja sempre acessível a todos.

Quem quiser colaborar pode usar o link Pinacoteca de São Paulo e aderir ao abaixo assinado.


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

GRANDES MUSEUS REUNIDOS ONDE VOCÊ ESTIVER



Sempre me surpreendo com as invenções da Google. Não tem jeito, eles ficam criando essas coisas espetaculares que, em pouco tempo, se tornam essenciais.

Não bastasse o Street View, que nos permite caminhar digitalmente por ruas do mundo inteiro utilizando o Google Maps, agora apareceu o Google Art Project, que traz os grandes museus para dentro de nossas casas e ainda mata aquela curiosidade gostosa proporcionada pela arte. Porque não dá para visitar pessoalmente todos eles, muito menos com a frequência com que gostaríamos. Então, fazemos a visita pelo computador.

Não adianta ficar fazendo propaganda aqui. Clique logo no link abaixo, faça um bom passeio cultural e torça para que essa tecnologia chegue o mais rápido possível aos museus brasileiros.


sábado, 11 de dezembro de 2010

HISTÓRIA SEM FIM


A persistência da memória (1931), de Salvador Dali

O ano vai acabar e, se não tivéssemos calendário, nem teríamos notado. Afinal, um dia termina em 2010 e outro começa em 2011 exatamente da mesma maneira como os outros 364 que os antecederam. Mas a gente sabe que não é assim. Chega dezembro, chegam as férias escolares, chegam convites para confraternizações e cartões de felicitação. O ritmo diminui, deixa-se para o ano que vem o que poderia ser feito hoje, mas é Natal, é compreensível. É hora de pensar nos presentes, na decoração, no cardápio da ceia e em convencer as crianças arteiras a se comportarem, de modo a provarem ao Papai Noel que merecem uma recompensa. Acho incrível esse poder que o fim do ano exerce sobre nós, capaz de mudar o comportamento do mundo inteiro. Tudo isso por quê? Não se trata apenas de uma data como outra qualquer, inserida num calendário inventado pelo próprio homem? Aliás, o calendário que usamos hoje foi modificado diversas vezes ao longo do tempo, seguindo os interesses mais variados. Como era quando ele ainda não existia? Como o tempo era percebido? Porque o tempo não são os ponteiros do relógio ou os dias que vamos riscando na folhinha; é algo muito mais complexo, um conceito físico e psicológico que mal conseguimos definir.

As horas, os dias e os anos não são o tempo; são apenas uma maneira que inventamos para mensurá-lo. Como um grande número de pessoas concorda e aceita, o tempo é assim. Mas poderia ser diferente. Veja o calendário judaico, já está no ano 5771. Está errado? Claro que não, trata-se apenas de um outro jeito de medir o tempo. Se pensarmos que a idade da Terra é estimada entre 4,6 e 15 bilhões de anos, que diferença faz uns milhares a mais ou menos?

Certa vez, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty fez uma observação acerca do ato de ver. Segundo ele, a visão não está no olho e nem no objeto visto, mas na relação que se estabelece entre eles. Portanto, a visão é algo que está no mundo e que pertence a ele, e todos nós vemos e somos vistos pelas coisas. Merleau-Ponty chamou essa relação de transcendência. Acho que o mesmo vale para o tempo: não está em nós e não está nos objetos; está no mundo, estabelecendo relações que são percebidas de maneira diferente pelas pessoas. É por isso que uma tarde atarefada passa mais rápido que uma ociosa, assim como as férias voam enquanto os outros meses se arrastam. O dia 31 de dezembro chegará e não será igual aos outros. Será o encerramento de mais um capítulo do livro inesgotável que chamamos de história.

Isso me lembra duas obras de arte do brasileiro Antonio Dias que vi há poucos meses numa bonita individual realizada pela Pinacoteca do Estado de São Paulo. A primeira, de 1968, é um saco plástico cheio de terra e etiquetado com o título História. Pois o passado em que acreditamos é isso: apenas um pedaço do que existiu, recolhido e etiquetado como uma amostra de pesquisa. A margem de erro é imensa, ou seja, muita coisa aconteceu e não deixou registro, não temos a menor ideia do que foi, quando foi e como foi, assim como nossas atitudes no dia-a-dia se perdem sem que a História seja capaz de registrá-las com a devida precisão científica.


History (1968), de Antonio Dias

Aliás, a segunda obra trata justamente disso. Criada em 1971, seu título, escrito em inglês, diferencia dois conceitos de história de um jeito que a língua portuguesa não permitiria: History/Story, ou seja, "história como ciência/história como ficção". Ambas as palavras estão inseridas numa tela de grandes dimensões, cuja pintura faz alusão ao Universo. Elas compartilham o mesmo espaço e, naquele momento, ficou claro para mim o que são ciência e ficção: nada mais do que dois modos distintos de perceber a mesma coisa. Qual é o verdadeiro? Nenhum. Qual merece crédito? Os dois.

Tudo que guardamos na memória pessoal está fadado a desaparecer com nós. O que sobrevive ao tempo é somente aquilo que pertence à memória coletiva – são os fatos que "entram para a história".

Dia a lenda que Aquiles, filho de um deus grego com uma mulher humana, teve que escolher entre ter uma vida breve porém gloriosa ou viver muito como homem comum. Para desespero de sua mãe, ele optou pela primeira, impediu a derrota dos gregos na Guerra de Troia e morreu como herói. Para sustentar sua escolha, Aquiles disse que a verdadeira morte não é aquela que consome o corpo, mas a que o apaga da memória alheia. Realmente, nesse sentido, ele permanece vivo até hoje, basta abrir um livro de mitologia e conferir.


History/Story (1971), de Antonio Dias

Na 16ª edição da revista Chiclete com Banana, de 1989, os cartunistas Laerte e Angeli publicaram a irônica História do sujeito que queria entrar para a história. Ali, um mauricinho metido a esperto chega à porta da História e tenta convencer o segurança a deixá-lo entrar. Como seus feitos não são dignos de nota, ele se desespera e cai no choro, até que seu pai, um desses magnatas que estamos cansados de ver, paga "duzentos paus" e coloca o filho para dentro.

Será que é fácil assim entrar para a história? Em alguns casos, talvez. Mas acredito mesmo é nas palavras do artista francês Marcel Duchamp, para quem é a própria história que decide quem desaparece e quem permanece existindo, não importa quais são os nossos desejos e esforços.

A História é como o tempo: não está em nós e não está nos objetos; ela está no mundo. Por isso, minha filosofia para 2011 continua a mesma: procurar ser bom, não tirar vantagem dos outros, não me achar melhor do que ninguém e agir sempre pensando no coletivo, ética e moralmente, procurando entender suas razões e as aceitando.

Com o tempo, aprendi que é assim que as portas se abrem, independentemente de termos ou não duzentos paus no bolso. Porque a vida acaba, mas a história que estamos encenando não termina nunca. Desejo sinceramente que todos sejam felizes durante o espetáculo. Um dia, quem sabe?

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

TRÊS PALÁCIOS PARA A ELITE BRASILEIRA


Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão

Estive em Campos do Jordão no fim de semana passado e resolvi visitar o Palácio Boa Vista, residência de inverno do governador do Estado de São Paulo. Fazia mais de quinze anos que não passava por ali, nem me lembrava de como era. Imagine minha surpresa ao encontrar, decorando os aposentos, um impressionante acervo de arte moderna brasileira.

A coleção foi adquirida a partir de 1969 e nela figuram artistas como Di Cavalcanti, Guignard, Rebolo, Volpi, Brecheret, Anita Malfatti e Walter Zanini, entre outros. São pinturas e esculturas relevantes, daquelas que todo colecionador disputaria a tapas num leilão, se tivesse cacife para bancá-las. O destaque fica para Tarsila do Amaral, que tem uma sala só para ela, com obras das suas mais diversas fases – inclusive do começo da carreira, que raramente temos oportunidade de ver.

Vale lembrar que, além do Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão, fazem parte do grupo o Palácio dos Bandeirantes (no bairro do Morumbi, em São Paulo) e o Palácio do Horto (no Horto Florestal, também em São Paulo). Pelo que descobri depois, a riqueza do acervo não é exclusividade daquele; os três possuem ótimos exemplares e costumam ainda receber exposições temporárias, montadas a partir de outras coleções.

As visitas são acompanhadas por educadores e, nos palácios de São Paulo, são gratuitas. Em Campos do Jordão, a entrada custou R$ 5,00. Para mim, foi um dinheiro bem gasto. Fiz um passeio diferente e, além de conhecer um prédio histórico do país, levei de brinde uma ótima exposição de arte.

Mais informações: www.acervo.sp.gov.br


Retrato de Mário de Andrade (1922), Autorretrato I (1924) e Operários (1933), de Tarsila do Amaral, são pinturas que constam no acervo do Palácio Boa Vista

sábado, 6 de novembro de 2010


Arco inclinado (1981), de Richard Serra

"As tensões ainda existentes entre o público em geral e a arte, ostensivamente concebida com o total bem-estar público em mente, ficaram patentes na discussão do destino do Arco inclinado de Serra, encomendado em 1981 por um programa oficial para a Federal Plaza de Nova York. A escultura em aço – muito mais alta que um homem – cortava a praça, restringindo em muito a visão e o trânsito dos pedestres. Em 1985, o protesto dos que trabalhavam em edifícios das imediações tornou-se tão intenso que a Administração dos Serviços Gerais, o órgão governamental que havia encomendado a obra, anunciou que ela seria removida. Seguiu-se um processo jurídico, com Serra afirmando que sua remoção constituiria uma violação ao seu contrato e que uma proposta de deslocamento para um dos lados da praça era inútil, pois a obra havia sido concebida para ocupar sua posição original. Qualquer alteração nessa concepção destruiria a obra. Ela foi finalmente removida em 1989."

Retirado de Arte contemporânea: uma história concisa, de Michael Archer