Com o perdão da paródia, essa pergunta foi uma das que me
ocorreram enquanto lia
Fazer amor no século XX, de
Clarice Dall’Agnol,
editado no fim de 2023 pela Quelônio.
O livro é na verdade uma plaquete com 44 páginas e 33
poemas. Obra que, já de início, chama atenção pela coragem. Afinal, a
humanidade tomou caminhos tão bizarros – guerras, ameaças nucleares, pobreza,
extremismos políticos etc. – que falar de amor agora é seguir na contramão. Ou,
no mínimo, um gesto anacrônico. E logo esse assunto tão enraizado na história
da literatura!
É bonito porque encontramos ali amores variados, que escapam
do sentimentalismo pasteurizado comum em romances “água com açúcar”, filmes,
músicas, reflexões de redes sociais etc. São amores alegres, dramáticos,
inquietantes, voluptuosos, perturbadores, dolorosos, motivadores, sutis,
cativantes, poderosos, que vão alinhavando diferenças e aproximações. E que
ganham forma na companhia de outros temas, como o mar, o sul, o corpo, a
memória, as amizades, o ofício da poetisa.
Clarice produziu um livro tocante. Que traz ainda a
qualidade de ter a medida exata – falar demais sobre o amor pode ser um perigo!
Assim, também paro por aqui, deixando o convite a quem quiser experimentar a
leitura.
Passo a palavra à autora, que foi muito gentil em responder
às perguntas a seguir.
Por que fazer amor – e falar de amor – no século XXI?
E por que não fazer? Ou falar? Penso que mesmo que muito se
tenha falado e escrito sobre o amor ao longo da história universal, ainda
assim, não foi o suficiente, ou não estaríamos vivendo uma imensa (e coletiva!)
crise existencial, emocional, de valores, de intenções, de finalidades. Nossa
geração teme amar, porque teme também o desfazimento do amar. Evitamos amar,
para não sentir tanto, e, assim, não sofrer decepções. Sempre costumo dizer que
“amo até a última gota” (e essa frase também já foi morar em meus versos):
sinto em demasia, e justo porque o ato de amar (e igualmente o de deixar de
amar, ou de ser amada) são alimentos para minha poesia. “Porque demais
sinto/muito me derramo em palavras”, digo em meu poema “À Flor da Pele”. Não
tenho medo nenhum de amar (ou de escrever sobre o amor), e acredito que
transmutar esse meu “não medo” do amor em poesia pode, de algum modo, convidar
quem me lê a experimentar mais intensamente as variadas formas de amor que se
apresentam nestes tempos tão fluidos e complexos em que vivemos, principalmente
no mundo pós-pandêmico. Duas de minhas maiores influências poéticas, Sylvia
Plath e Ana Cristina Cesar, que fizeram poesia confessional como poucas,
ensinaram-me a me libertar de toda e qualquer amarra em prol de um constante
resgate do que em mim mais recolhido (porém, pulsante) está. Precisamos seguir
amando sem fronteiras, para nunca deixar de escrever sobre amar, e sobre o
amor, porque, ao final, é sempre ele que desata os mais intricados nós. E
desata-nos, desvenda-nos.
Seu livro evoca amores diversos – de juventude, de
memória, de mãe, de amigos, platônico, vividos ou observados, entre outros –
sem, contudo, recair em lugares-comuns. Qual é o seu segredo para reinventar o
amor em poesia?
Conforta-me ouvir que meus poemas sobre o amor não soam como
lugares-comuns. Não que isso tenha sido uma preocupação consciente ao longo de
meu processo de escrita desses poemas, porém, reconheço que não é tarefa fácil
fugir de clichês quando se fala de amor em poesia. Enquanto escrevo esta
resposta, neste exato momento, penso que talvez o segredo para essa reinvenção
do amor em poesia, sem que meus versos se tornem simplórios - mas que sigam
sendo sempre singelos, porque, como leitora desde a infância de meu
conterrâneo, o mestre Mario Quintana, penso que é na simplicidade que reside o
mais belo e profundo do fazer poético – o segredo é justo livrar-me de qualquer
censor interno que possa ceifar o que há em mim de mais genuinamente
confessional. Se eu não puder ouvir minha voz poética mais livre e autêntica,
não serei mais capaz de escrever poesia. Tudo o que me amarra me impede de
criar.
Algumas das dedicatórias que acompanham os poemas trazem
homenagens a mulheres (“an amazing and smart girl-woman” ou “a mais incrível
das mulheres”, por exemplo). O amor é um poder – e talvez um território –
feminino?
Adorei essa frase! Daria um baita poema. Arrisco-me a dizer
que o amor sempre foi um poder (e, sim, um território feminino!), porém, fiquei
estarrecida ao ler recentemente em um ensaio escrito por Virginia Woolf (cuja
vida e obra fazem parte de minha pesquisa de Doutorado), que, nos primórdios da
literatura universal, as mulheres não faziam poesia, porque o patriarcado não
lhes atribuía nenhuma capacidade em qualquer tipo de sensibilidade (que incluía
o “saber” amar, ou sobre ele versar, veja que absurdo...!). A poesia, sendo
considerada arte extremamente sofisticada e sublime, só cabia, infelizmente, a
alguns poucos “vocacionados”, todos do sexo masculino. Foi apenas de modo
muitíssimo lento que as mulheres (e por óbvio, também as artistas) foram
adentrando os territórios absolutamente dominados pela sociedade patriarcal em
várias áreas, o que incluía a literatura e a poesia. Não afirmo aqui, de modo
algum, que o amor seja (hoje) poder e território exclusivo das mulheres (seja
para vivê-lo, ou escrevê-lo), contudo, a partir do domínio gradual do feminino
sobre a arte e a liberdade de amar, pode-se dizer que nós mulheres tomamos por
completo as rédeas sobre nossos sentimentos, nossos corpos e nossos desejos, de
um modo extremamente corajoso, assertivo e contundente, jamais experimentado
pela sociedade, historicamente; porém, sem perder a sensatez, o lirismo e a
ternura. E isso é irreversível (ainda bem!).
Sei que você tem uma produção de décadas, mas só agora
está lançando seu primeiro livro solo. Como foi esse processo de escrita,
maturação, seleção e publicação?
Sim, escrevo em realidade desde muito jovem, e publico em
meios virtuais desde 2003, porém, posso dizer que a coragem de lançar meu
primeiro livro “no papel” veio somente no ano passado, em 2023.
Os 33 poemas de meu “Fazer Amor” foram selecionados dentre
minha produção poética do final de 2021, quando a pandemia já iniciava a dar
sinais de melhora, até julho de 2023, quando enviei o original para a editora.
Os poemas já tinham sido publicados no coletivo cultural virtual do qual faço
parte desde 2005, o
PáginaDois.
Inicialmente, não havia pensado em unir os poemas pelo “fio condutor” do amor e
seus desdobramentos, porém, aos poucos, comecei a perceber que, sim, mais do
que o amor, o “amar” estava ali naqueles poemas, sob suas mais variadas formas,
sob as mais diversas experiências, minhas, e das pessoas que me rodeiam. Em
realidade, eles estão em uma ordem cronológica, mas decrescente (de julho de
2023 a novembro de 2021).
Surgiu-me então a oportunidade incrível de publicar pela editora
Quelônio, que admiro desde seu
início no mercado editorial, com essa publicação artesanal belíssima, da qual
tive o prazer de participar de todo o processo, desde as primeiras conversas
com o editor, Bruno Zeni, que foi maravilhoso, passando por um primoroso e cuidadoso
trabalho de preparação dos originais, escolha de tipos móveis, layout, cores de
capa e costura, pelas mãos lindas e criativas da designer gráfica Silvia
Nastari, até culminar no livro prontinho para publicação. Meu livro é parte de
uma coleção de outros sete títulos, de autoria de seis escritoras e um
escritor, meus parceiros nessa empreitada inesquecível que durou 5 sábados em
2023, nas dependências da tipografia da Quelônio. Bem, amei o resultado, ficou
lindíssimo! Agradeço muito ao querido amigo
Eduardo Almeida pela
perfeita review que fez do livro, e também ao coletivo
Discórdia pelo
interesse em meus versos, e pelas instigantes perguntas. Foi um prazer
respondê-las!