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segunda-feira, 25 de março de 2024

AS PINCELADAS DO ESCRITOR

Foto de Suzi Kim

Não faz muito tempo, comecei a organizar com maior rigor as minhas leituras, refletindo sobre os assuntos do meu interesse, traçando planos e tomando notas, seja para depois escrever resenhas ou como forma de estudo. Em 2022, li um total de 53 livros. Número que só decorei porque, coincidentemente, no ano seguinte li a mesma exata quantia. Isso dá uma média de pouco mais de quatro livros por mês, ou um por semana. Mas em janeiro de 2024 eu li um único livro. Em fevereiro também. E tudo bem. Porque estou tentando ler melhor.

Eu já vinha pensando em exercitar uma leitura mais analítica, embora essa ideia só tenha se apresentado com clareza por causa do livro Para ler como um escritor (editora Zahar), em que a estadunidense Francine Prose explica como a leitura atenta a fez uma leitora melhor qualificada e, por consequência, uma escritora mais habilidosa.

“Leio minuciosamente, palavra por palavra, frase por frase, ponderando cada aparentemente mínima decisão tomada pelo escritor”, diz a autora, que também dá aulas de escrita. Para ela, “todos nós começamos como leitores atentos. […] É palavra por palavra que aprendemos a ouvir e depois a ler, o que parece adequado, porque, afinal, foi assim que os livros que lemos foram escritos”.

Essa consciência do ritmo, da dicção, do tom, da maneira como as frases são construídas e como a informação é transmitida, como o escritor estrutura a trama, cria personagens, menciona detalhes e desenvolve diálogos, entre outros pormenores, requer um carinho especial do leitor com a forma do texto. E não pode haver nada mais importante. Pois é a forma que diferencia uma narrativa literária de um relato qualquer.

A apreciação estética de um texto literário convoca o leitor a usufruir com maior profundidade da escrita como arte. Mais do que a disposição para entender a história contada, ela trata do como se conta, de quais recursos estilísticos foram empregados, quais foram as escolhas do escritor e, claro, as suas consequências na leitura. Ler com esse prazer pela linguagem é semelhante a ouvir uma música com atenção às notas e arranjos da sua execução.

Francine Prose enumera ainda outras camadas que essa leitura suscita. Como os casos em que as revelações cruciais de uma trama estão nos interstícios, ou seja, estão apenas sugeridas nos não ditos, nos espaços entre as palavras. Podemos pensar também em como as frases se ordenam para enfatizar um sentido interpretativo. Ou como mudanças de parágrafo indicam deslocamentos nos pontos de vista da narrativa. Como os diálogos trazem implícitas as intenções dos personagens ou a parcialidade do narrador. Por qual motivo nos identificamos, ou não, com eles. Como os detalhes situam um personagem em seu ambiente, ou como um gesto sutil é capaz de apresentar algo fundamental da sua subjetividade. Quem conduz a narrativa. Com quem fala. Quais são os tempos verbais. Como se estabelecem as relações entre um personagem e outro. Como a linguagem parece adequada a determinado contexto. Como o autor usa os estranhamentos para revelar novas perspectivas sobre algo tornado banal. Ou, ainda, como a gramática é empregada, como as normas são subvertidas, como outro usos da língua são inventados para dar conta de um propósito narrativo.

Acontece que isso tudo implica uma leitura exigente. Que demanda, em primeiro lugar, atenção. E em segundo lugar requer lentidão. Requer maior preocupação com a qualidade do que com a quantidade. Além de um olhar treinado.

Francine Prose fala sobre ler de perto, como quando nos aproximamos de uma pintura de Rembrandt para observar suas pinceladas. Claro, afinal, as palavras são matéria-prima para o escritor, assim como as tintas para o pintor, ou as notas musicais para o compositor. Seguindo com as comparações, a autora cita o russo Isaac Bábel, para quem a linha é tão importante na prosa quanto na gravura.

E mesmo ensinando escrita há décadas, Francine Prose vê a atividade com desconfiança, claramente dando preferência à maneira como se formou, ou seja, lendo com entusiasmo, com empenho, com olhar crítico. Para ela, oficina de escrita e leitura atenta são práticas complementares. Que todavia operam em sentidos opostos: enquanto a primeira, assim como os manuais de estilo, expõe o lado “negativo”, ou seja, o que não se deve fazer, a segunda reúne modelos positivos, destacando o brilhantismo de certos profissionais da área.

E se você não tem pretensões de aprender o ofício, ainda assim é possível se aperfeiçoar como leitor. Em ambos os casos, ler muito não significa, necessariamente, ler bem. Não tenho dúvidas de que se pode argumentar ainda que tudo depende do propósito que leva cada pessoa a buscar um livro. Porque há tantos os aficionados pela arte das letras quanto aqueles que não querem mais do que um passatempo tranquilo. A depender da ocasião, um mesmo leitor pode ser A ou B, não há motivo para fronteiras rígidas.

Para ler como um escritor traz, no final, uma entrevista com a autora. E em meio às respostas dela se encontra a seguinte provocação, que destaco como última reflexão para todos nós: “Há escritores que seriam mais lidos – e, inversamente, escritores que nunca seriam lidos – se as pessoas realmente observassem quão bem ou quão mal eles escreviam. Na maioria dos casos, eu preferiria ler algo que está lindamente escrito e não aborda grandes temas a ler algo aparentemente mais denso que não tenha um tipo de uso novo ou revigorante da linguagem”.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

QUANTO É CURTO O SUFICIENTE?

 

Foto de Gabriella Clare Marino


Dia desses, um colega de trabalho alegou ter horror a livros de contos por causa da ansiedade que as histórias curtas lhe provocam. Não foi a primeira vez que ouvi algo semelhante. Lembro-me bem de quando uma amiga escritora confessou sua preferência por romances porque, quando ela “começa a se envolver com a trama dos contos, a história acaba”. Até mesmo Mário de Andrade afirmou certa vez que “o livro de contos fatiga muito mais que o romance. […] A leitura de vários contos seguidos nos obriga a todo um esforço pleno de apresentação, recriação e rápido esquecimento de um exército de personagens, às vezes abandonados com saudade”.

Sou um caso suspeito, mas tenho cada vez mais preguiça de romances. Não necessariamente pela extensão, mas pelo “formatão” convencional que pouquíssimos escritores subvertem. Em minhas aulas, costumo fazer um paralelo com a pintura: a ilusão perspectiva, a luz e sombra, a marca da pincelada, as cores realistas, tudo isso está dado e pronto para ser reproduzido como tantas vezes já se fez. Como reinventar essa tradição?

Há quem me contradiga, explicando que grandes experimentações romanescas correm o risco de provocar estafa mental ao longo de tantas páginas. Talvez, talvez. Existem exemplos excelentes que derrubam essa tese, embora sejam exceções, admito. Além do mais, estamos falando em oferecer uma nova experiência de leitura ou repetir o que já se conhece? Precisamos fazer escolhas assim a cada novo arquivo que abrimos no computador.

Mesmo encontrando mais ousadia nos contos, nossos leitores têm preferência pelo romance, como mostra a pesquisa Retratos da leitura no Brasil. De modo geral, os contos perdem em todos os perfis de público. Resultado que se vê também nas prateleiras das livrarias e nos catálogos das editoras, onde a oferta de um gênero é bem maior que a do outro. Situação dada e estabelecida, apesar da ponderação de especialistas no setor, como a do editor Cide Piquet, para quem “alguns dos melhores momentos da literatura brasileira passam pelos contos de Machado de Assis e Guimarães Rosa”.

E o que falar do microconto? Porque se há contos de dez, vinte, cinquenta páginas, há também de dez, vinte, cinquenta palavras. Esses quase não aparecem em livros. Uma exceção é o Universos breves: antologia do microconto de língua espanhola, publicado no Brasil pela editora Cobogó em 2022.


 
Algumas hipóteses sobre a menor adesão aos contos – e em especial aos microcontos – surgiram quando terminei a leitura dessa obra. E estão relacionadas ao que já vínhamos observando:

1) É mais difícil se envolver com tramas e personagens tão breves.

2) O experimentalismo não é para qualquer leitor.

3) Os microcontos, de modo geral, não passam de uma simples ideia.

Esta última foi a que mais me pegou. Em especial porque, em vez do livro completo de um escritor, li uma coletânea que apresenta 39 autores diferentes, com cinco textos cada. Uma miscelânea e tanto.

Digo por experiência própria: meu livro O belo e a besta, embora não tenha somente contos, reúne textos curtos que, a meu ver, encontram seu pleno potencial no conjunto. Lê-los isoladamente não é a mesma coisa. Um deles, por exemplo, é uma lista de expressões populares cujos termos se associam ao mundo animal. Uma lista. Que naquele contexto ganha outros sentidos. Tanto que não entendo esse livro como uma coletânea, mas um projeto cuja coerência e interesse surgem enquanto o leitor percorre as páginas e cria conexões entre as cenas.

Não sei se cada microconto no Universos breves vem de um livro como o meu. Suponho que não. E isso significa que, de fato, aqueles textos não conseguem nos levar para muito além das suas poucas linhas. Podem se constituir de uma frase de efeito, uma tirada bem ou mal-humorada, um lampejo, um jogo de significados. Cuja graça também fica, assim, limitada.

E por que isso acontece? Notei que microcontos tendem a prescindir de elementos fundamentais da narrativa, seja personagem, tempo, espaço, narrador ou, na maioria das vezes, enredo. Se tais elementos são chamados de fundamentais, é porque fazem falta quando ausentes, em especial pela identificação que criam – ou não – com quem lê. Aliás, abrindo mão disso, será que ainda podem ser chamados de contos?

Vou deixar o debate aberto. Chamo atenção apenas para que, sem poderem desenvolver profundidade psicológica, microcontos apresentam personagens que mais parecem figuras manipuladas, submetidas ao desejo do autor. Sem conflitos complexos, suas histórias rumam para o chiste ou o arroubo de linguagem. E assim por diante.

A consequência é que os microcontos, em geral, são fracos se comparados ao prazer estético proporcionado pela literatura mais convencional. Naquela mesma matéria, Piquet cita o fato de muita gente afirmar que “um romance, e não um livro de contos, marcou e foi fundamental em sua vida”. Improvável que microcontos ganhem essa relevância. Mas será que querem? Ou sua pretensão é mesmo descontrair, acender uma faísca, quem sabe apontar algo inusitado?

Ainda assim, penso que microcontos poderiam resultar em uma experiência das mais radicais, e estaria aí um desafio aos escritores: superar a condição de argumento não desenvolvido, ou de jogo de palavras com fim em si mesmo.

Outro ponto interessante nisso tudo são os meios de circulação que o formato encontra. Pois, se os livros são raros, as redes sociais estão repletas desses textículos. Veja o exemplo das Histórias bermudas, perfil que Nathalie Lourenço e Rafael Zoehler mantêm no Instagram. Há inúmeros mais.

Mesmo tendo sua força na economia dos meios narrativos, é sempre um desafio dizer se o conto – ou microconto – está na medida certa. E, se a brevidade destes tem seus problemas, muito pior é ser professor de escrita de contos e ouvir que um leitor não está nem aí para ficção que não seja romance.

No caso daquele colega de trabalho – que acabou provocando este artigo, veja bem –, o que fiz foi enviar uma lista de livraços de contos para ele conhecer. Fiz por vontade própria, sem que me fosse solicitado. A conversa se encerrou assim. Vamos ver se a amizade terá próximos capítulos.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

QUANDO A PALAVRA NÃO DÁ CONTA DE DIZER


Foto de Sincerely Media

Os significados das palavras costumam ser um dos principais interesses de todo escritor. Contudo, com o passar dos anos fui sendo convocado a pensar também numa espécie de caminho inverso, quer dizer, naquilo que as palavras não alcançam. Seus limites. Suas falhas. Ou lacunas. 

Encontrei eco para esse pensamento num pequeno ensaio chamado Lições nas trevas, do italiano Giorgio Agamben, que compõe seu livro Quando a casa queima (publicado no Brasil pela editora Âyiné). 

O filósofo afirma que o profeta se dirige às trevas de seu tempo, e para isso deve se deixar investir por elas, abrindo mão da própria lucidez. Em seguida, aproxima-o do poeta, e por consequência sugere um ponto comum entre as palavras proféticas e as poéticas. 

O autor já havia desenvolvido esse conceito de trevas ao menos em outro texto, bastante conhecido, cujo título pergunta: O que é o contemporâneo? Pois elas, as trevas, representam para ele uma potência do que pode vir a ser, e que à sua maneira já está em nosso tempo, nos limites da definição; qualidade do que é obscuro, portanto do que ainda não conseguimos perceber com clareza. 

Ao transportar esse conceito para o âmbito da palavra, Agamben fala de um significado não racionalizado, mas de algum modo percebido; espécie de sentido que precede a possível compreensão. Poderíamos, a partir daí, seguir com a ideia de que o profeta detém a capacidade de perceber no presente algo que ainda não está evidente, “prevendo o futuro”. O mesmo valeria para o poeta e os artistas em geral. Mas não é esse caminho que interessa agora; vamos nos ater à questão das palavras em si. 

Porque a palavra profética, cujo significado está sempre por vir, teria um caráter insurgente em relação à gramática e aos nomes, ao léxico e à sintaxe, oferecendo acesso a outra experiência da linguagem. Para enfatizar esse atributo, Agamben diz inclusive que tal palavra é, de certo modo, ilegível. Enquanto sua insurgência, ou nova experiência pela palavra, é a própria obra da poesia. 

Parece complicado? Mas existe nisso um ponto muito simples, com o qual é fácil concordar: pela poesia nós podemos escapar dos significados imediatos e, assim, experimentar outras possibilidades das palavras. 

Aliás, é importante assinalar que poesia, nesse caso, não se resume à forma versificada: vale também para a prosa e qualquer outro tipo de texto que proporcione ao leitor uma experiência estética. A poesia seria, digamos assim, o recurso criativo que permite vencer os limites das palavras, deslocando a experiência de leitura para longe da pretensa exatidão delas; ela está nesse deslocamento entre a norma e a insurgência, sugere Agamben. E o escritor espera, claro, que algo virtuoso aconteça em tal movimento. 

Eu voltei a essas ideias quando li o conto Réveillon, de Rafael Gallo, que abre seu primeiro livro, Réveillon e outros dias (editora Record). Mais para o fim da história, o protagonista – jovem adulto e surdo – diz que, às vezes, gostaria que seu pai fosse surdo também, porque isso não deixaria as falas o distraírem da linguagem mais profunda. Essa vontade se dissipa quando o filho observa o velho gesticular para se comunicar com ele. “Sempre tivemos um idioma que falava por intermédio de tudo: de nossas mãos, olhares, palavras, todo o corpo. Todos os nossos gestos tinham o mesmo valor, e acho que isso nos fez compreender um ao outro quase inteiramente”, reflete. 

Para o surdo, os gestos feitos com o corpo levariam a uma compreensão mais complexa do outro, ou seja, possibilitariam ir além do que as palavras dizem por si mesmas. O “fundo por trás da palavra”, explica o narrador do conto. Ou o que o protagonista definia como a linguagem mais profunda do mundo: “o idioma que, liberto das cercanias das palavras, se define apenas por ele mesmo e seus nomes impronunciáveis”. 

Enquanto Agamben trata de um sentido que antecede o significado das palavras, o personagem no conto de Gallo busca um jeito de extravasá-lo. Preocupações que, no meu entender, também deveriam ser de todos os que têm na palavra o seu ofício. Afinal, se no dia a dia “escrever bem” é dominar os significantes e significados para assim produzir textos muito claros, a “arte de escrever” é outra coisa: diz respeito a elaborar o que há de impreciso nas palavras para, no que se esconde atrás delas, ou em suas trevas, permitir que o texto leve cada leitor a uma experiência singular.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

O CONTO (OU CRÔNICA) ESTÁ NOS OLHOS DE QUEM LÊ

Mulher com chapéu (1905), de Henri Matisse

Qual a diferença entre conto e crônica? A pergunta invariavelmente retorna. Desta vez, aconteceu durante minhas aulas na pós-graduação em escrita criativa.

Quem deu o exemplo foi a mesma aluna que perguntou: certa noite, tomada por uma insônia brava, ela desceu diversas vezes a escada do sobrado onde mora para beber água na cozinha, ao ponto em que começou a criar inimizade com o próprio cachorro. Quando, enfim, o sono veio, ela precisou se levantar outras tantas vezes para não molhar a cama.

Isso seria enredo para conto ou crônica? É verdade que esta última quase sempre traz as características da sinopse acima: leveza, bom humor, acontecimentos banais que sugerem alguma reflexão. Mas por que não poderíamos também escrever um conto com isso? E mais: em que um texto seria diferente do outro?

Foi Mário de Andrade que, meio sem paciência, afirmou que conto é o que o autor chamar de conto, e ponto final. E a crônica, seguiria a mesma fórmula rabugenta?

Na discussão em sala, ocorreu-me que a diferença talvez esteja menos na forma do texto e mais na relação que o leitor cria com ele. Se ambos são narrativas ficcionais, a expectativa de quem lê aponta para lados opostos.

Explico: ao lermos uma crônica, tendemos a acreditar que o caso narrado aconteceu de verdade. Que o sujeito da história não é mero personagem, mas o autor em si. Que nada se cria, tudo se copia – ou se imita da realidade, no caso. Como se o autor da crônica quase não escrevesse, apenas transcrevesse.

Nada mais ilusório. Se você já escreveu uma crônica – ou qualquer outra narrativa, cá entre nós –, sabe bem que tudo é invenção. O ponto de partida pode ter algum fundamento na realidade, mas ele logo se transforma em palavras, perspectivas, enfoques que separam o que será contado e o que permanecerá não dito. Torna-se outra coisa, ganha outra existência.

Um texto ficcional é um texto, e assim deve ser apreciado. Isso me faz lembrar de uma anedota sobre Henri Matisse. Conta-se que, durante exposição no Salão de Outono, em Paris, uma pessoa desdenhou da obra Mulher com chapéu, alegando que não existia mulher com nariz amarelo. A retratada não estaria bem pintada, portanto; pois não condizia com a realidade. O pintor teria respondido que aquilo não era uma mulher, mas um quadro.

Um leitor assíduo de crônicas pode se decepcionar ao descobrir que o que lê nas horinhas de descuido é fruto de criação – e nós não vamos acabar com a felicidade dele, combinado? Aquilo tem sabor de verdade, mas esse sabor é idêntico ao ficcional. Porque, convenhamos, trata-se de um texto; um retrato verbal, artístico; não a realidade em si. São palavras dispostas uma ao lado da outra com o objetivo de proporcionar uma experiência estética.

Lembrei-me também de uma ideia que Umberto Eco desenvolve na quarta das seis conferências oferecidas em 1993 em Harvard, todas elas reunidas e publicadas no Brasil sob o título de Seis passeios pelos bosques da ficção. Ele explica ali que a norma básica para se lidar com uma obra literária é o leitor aceitar o “acordo ficcional”. Quer dizer, o leitor precisa assumir que está lendo uma história imaginária, mas nem por isso pensar que o escritor está contando mentiras.

Recorto aqui um trechinho: “Quando entramos no bosque da ficção, temos de […] estar dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo fala; mas, quando o lobo come Chapeuzinho Vermelho, pensamos que ela morreu (e essa convicção é vital para o extraordinário prazer que o leitor experimenta com sua ressurreição). […] A obra ficcional nos encerra nas fronteiras de seu mundo e, de uma forma ou de outra, nos faz levá-lo a sério”.

A crônica abusa desse princípio, fazendo o leitor acreditar que seu mundo fictício se confunde com a realidade nossa de cada dia. Quando, na prática, as escolhas do escritor visam fazer o texto ter coerência interna e, assim, cumprir sua missão. Sem necessariamente assumir qualquer compromisso com a verdade. A estrutura narrativa está toda lá, com seus elementos fundamentais: personagem, tempo, espaço, enredo, linguagem, narrador. Caso a verdade fosse primordial, a crônica rumaria para os lados do ensaio, que é uma forma de não ficção.

Aliás, naquela mesma conferência, Umberto Eco faz outra provocação que nos interessa: “À parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos romances porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro”.

Ele diz romance, mas podemos pensar o mesmo sobre os contos. E sobre as crônicas. Em todos eles, a ideia de verdade se sustenta conforme o desejo do escritor e se o leitor o acompanhar. Enquanto, fora do texto, a coisa é bem mais complicada. Quer ficção maior do que uma verdade absoluta?

Em suma, o que fiquei pensando a partir daquela pergunta da estudante é que um mesmo texto pode ser lido como conto ou crônica, a depender da expectativa que o leitor cria a seu respeito. A solução vale para todos os contos e crônicas já escritos? Não. Mas vale para uma porção. Os demais, espero que rendam outras boas questões.

Publicado originalmente em LiteraturaBr.

sexta-feira, 31 de março de 2023

MINHA ESTREIA NO PORTAL LITERATURABR

 

Clique aqui para acessar

Escrevi durante 14 anos para o caderno de cultura do Correio Popular. O que de início foi a concretização de um sonho aos poucos se revelou uma oportunidade incrível de construir carreira e exercitar o pensamento. No jornal, tive a oportunidade de experimentar os mais diversos tipos de textos, dialogar com leitores e desenvolver meios de divulgar o meu trabalho.

Esse ciclo se encerrou no ano passado. Achei que era hora de me dedicar a outras coisas, mas o “impulso ensaístico”, por assim dizer, continuou a me requerer.

Pois é com imensa alegria que inicio agora uma contribuição com o portal LiteraturaBr. Sou muito grato pela acolhida e pelo espaço que me concederam. Esse é um site repleto de conteúdo bem cuidado, dedicado a valorizar a cultura em geral, com destaque para a literária. Tem podcast, clube de leitura, artigos, resenhas, excerto de livros e muito mais, vale a pena conhecer.

Sinta-se mais do que convidado, convidada, convidade a acessar o LiteraturaBr. E aproveite para assinar a newsletter deles, que é gratuita e leva para o seu e-mail alguns destaques do conteúdo publicado ali.

Pretendo seguir escrevendo sobre literatura e artes visuais. E o primeiro texto, que acaba de sair, trata exatamente do embate entre essas duas áreas iniciado na Renascença e revisitado pelos impressionistas. Espero que goste. 😊

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

ESTATUTO SOCIAL DA PINTURA

Por que paisagens impressionistas como as de Camille Pissarro, Claude Monet ou Alfred Sisley, hoje apreciadas em termos estéticos e econômicos, causaram tanto escândalo ou foram vítimas de tamanho desprezo em sua época, na segunda metade do século XIX?

Prados de Sahurs no sol da manhã (1894), de Alfred Sisley

Essa é uma daquelas perguntas que podem ser respondidas de maneiras diversas, muitas delas tomando como base a questão técnica – as pinceladas de cores puras que, por sua proximidade, criam certo efeito ótico – ou o fato de os artistas deixarem o ateliê para buscarem registrar impressões visuais em suas telas diretamente da observação da natureza, num dado local e numa dada circunstância atmosférica, com uma rapidez de execução inaceitável pelos mestres das academias de belas artes. Rapidez que às vezes se tentava confundir com facilidade ou como falta de rigor por estes, que, ao contrário, passavam dias e dias retocando à perfeição um músculo de cavalo ou o reluzir de um metal precioso.

Mas outra maneira de explicar o tal escândalo remonta ao empreendimento renascentista de legitimação social e teórica da pintura, que pretendia conceder a ela o reconhecimento então dedicado apenas às artes da linguagem. Os artistas visuais queriam, eles próprios, gozar da dignidade dos liberais, uma vez que pintura e escultura eram consideradas ocupações mecânicas, tal como a construção civil ou a marcenaria. Em suma, o pintor não queria ser tomado por operário ou simples artesão, mas como profissional culto e letrado. Ao mesmo tempo, sua atividade deveria deixar o posto de ilustração e ser apreciada como um saber em si mesma.

Essa diferença tinha origem bem mais antiga. Horácio, no século I a.C., ao meditar sobre a ideia defendida por Simônides de Ceos de que “pintura é poesia muda e poesia é pintura que fala”, deu sua famosa declaração “ut pictura poesis”, ou seja, a pintura é como a poesia. Esse paralelo entre as artes da imagem e as da palavra ganhou fôlego no Renascimento e perdurou pelo menos até Lessing contestá-lo no século XVIII, preferindo pensar na especificidade de cada arte em vez de naquilo que porventura tivessem em comum.

Acontece que a máxima de Horácio deriva de um erro de interpretação. A frase completa – “ut pictura poesis erit” – coloca a imagem como termo referencial da comparação, não o contrário. Ou seja, o poeta romano na realidade privilegiava as artes da visão, dizendo que um poema existe tal como uma pintura. Isso porque, assim como se fazia em relação a esta última, ninguém teria dificuldade para reconhecer na poesia a realidade, ainda que imaginária, como o escudo do herói Aquiles ou o drama de Laocoonte.

O erro de interpretação pode não ter sido tão despropositado, uma vez que permitiu aos intelectuais da Renascença galgarem um novo estatuto para a pintura. O quadro, sendo como um poema, teria assim o mesmo nível valorativo. Mas como fazer versos com pincel e tinta?

Fato é que a linguagem gozava, desde a Antiguidade, do privilégio de pertencer à ordem da razão e do discurso. De modo que a pintura somente poderia obter a mesma legitimidade absorvendo a poética e a retórica para contar histórias, ou melhor, para “narrar com o pincel”, como se dizia no século XVII.

Em termos de hierarquia pictórica, o gênero que se utilizou daquelas categorias do discurso para contar grandes feitos, transpondo uma sequência narrativa – portanto temporal – para o espaço da visibilidade, foi a pintura de história, que ostentava entre os acadêmicos o estatuto da mais alta expressão da arte de pintar. Tomando seus temas da literatura e da tradição, esses pintores gozaram ao máximo da dignidade concedida aos artistas liberais.

Assim, retomando nosso ponto inicial, quando os impressionistas abriram mão dos ricos ateliês das academias para pintarem, no meio do mato, banalidades como montanhas e vegetação, puseram em xeque uma posição social confortável, conquistada pelos artistas visuais a duras penas. Questionaram também a concepção de que a pintura poderia, sim, provir da sensibilidade, em vez do intelecto; da matéria, em vez da ideia; e da prática, em vez da teoria.

Banida dos famosos salões, que funcionavam como espaços de legitimação de uma arte específica e produzida segundo critérios e regras bem estabelecidos, a pintura impressionista construiu seu lugar no mundo da arte desde a margem, inicialmente atacada pela crítica e pelo público, cujo olhar era educado a apreciar uma determinada forma e nada além dela.

Ao longo do século XX, esse olhar foi se transformando e, por consequência, o gosto pelas novas formas, que ganharam destaque entre os artistas, na crítica e, claro, no mercado de arte.

Poderíamos seguir por aí, adentrando a história da arte moderna pelo menos até os experimentos com a abstração, o que se estenderia por páginas e páginas, inclusive atualizando o interminável embate entre a poesia e as artes visuais, que de alguma maneira ainda persiste. Sem que isso caiba num artigo despretensioso como este, deixo aqui uma provocação: existe imagem que não evoque palavras e palavras que não sugiram imaginários?

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

O QUE FAZ DE PICASSO UM PICASSO?

Gertrude Stein (1905-1906), de Pablo Picasso

Essa pergunta pode ser respondida de inúmeras maneiras e sob inúmeros aspectos. Um deles é o de sua amiga Gertrude Stein, que escreveu a respeito do artista ainda em 1938. No pequeno livro intitulado Picasso, publicado no Brasil pela editora Âyiné, ela traça um elogio da técnica, do talento e, principalmente, do seu olhar aguçado, que fez dele um verdadeiro “criador”. Segundo Stein, Picasso foi o primeiro capaz de enxergar sua época com os olhos do século XX. Afinal, se “nada muda nas pessoas de uma geração para a outra exceto a maneira de ver e de ser visto”, como lemos ali, o criador é o sujeito capaz de perceber esse movimento. “Ele é sensível às mudanças pois a vida e sua arte são inevitavelmente influenciadas pela maneira como cada geração está vivendo, pela maneira como cada geração está sendo educada e pela maneira como as pessoas se movem, tudo isso cria a composição dessa geração”.

Essa ideia se inspira num pronunciamento de Sir Edward Grey, citado por Stein, para quem os generais da 1ª Guerra Mundial ainda batalhavam como no passado, apesar de possuírem armamento do século XX. Apenas no auge do conflito eles teriam mudado essa percepção, o pensamento e as ações de combate.

A guerra é um ponto relevante no argumento do livro. A autora inverte o senso comum de que tudo se transforma com ela ao explicar que as mudanças na verdade já aconteceram e que o conflito apenas obriga as pessoas a reconhecê-las. Aliás, como Stein bem observa, as mudanças e as guerras jamais acabam, elas apenas dão a impressão de terminar. É aí que o olhar do criador se diferencia. Em suas palavras, “um criador não está à frente de sua geração, mas ele é o primeiro entre os seus contemporâneos a ter ciência do que está acontecendo”. Ele percebe e expressa a guerra antes que ela seja declarada. E o público, depois, deve reconhecer o seu trabalho, assim como as mudanças evidenciadas pelo confronto.

Todos foram obrigados a aceitar Picasso, que anteviu o conflito mundial ainda na década de 1900, diz Stein. Seu cubismo já expressava essa nova maneira de ver e de viver.

Dado o seu pioneirismo, para Gertrude Stein, Picasso foi herói de uma era, embora não tivesse clareza da amplitude do que fazia. Ela explica que “há heróis em todas as eras em que são feitas coisas que não podem deixar de ser feitas, e nem eles nem os outros entendem como nem por que essas coisas acontecem. Ninguém jamais entende, antes de elas serem completamente criadas, o que está acontecendo, e ninguém entende nada do que fez antes de terminar tudo”.

Depois de realizado, aquilo que parecia estranho vai sendo assimilado, ao ponto de ninguém mais se lembrar por que se estranhavam, por exemplo, as composições cubistas. Todavia, a grande luta de Picasso foi justamente pelo estranhamento, quer dizer, pela sua capacidade de estranhar aquilo que a todos parecia evidente. Com seu esforço para pintar como se desconhecesse, como se visse pela primeira vez, ele focou numa parte do todo por vez, tal como os nossos olhos fazem. Picasso percebeu que vemos no outro apenas uma sobrancelha ou um braço, o ombro esquerdo ou a mão direita; se observamos a boca, as orelhas serão uma construção da memória ou complementos da imaginação, o que simplesmente não o interessava. “Os pintores nada têm a ver com reconstruções, nada a ver com memória, eles se preocupam apenas com coisas visíveis”, afirma Stein, categórica. Assim, Picasso foi desconstruindo um paradigma visual e reeducando o olhar para perceber a contemporaneidade do século XX.

Fez isso pintando o corpo, ou melhor, a materialidade. A alma das coisas e das pessoas não lhe dizia respeito. E Picasso pintava como ele próprio via, não como os demais ou com uma visão generalizante. Essa insatisfação com certa aparência comum seria a sua singularidade, que em pouco tempo, porém, foi sendo absorvida e reproduzida, fazendo surgir réplicas de Picasso, secundárias em todos os sentidos.

E nem mesmo Pablo Picasso era um Picasso o tempo inteiro. Stein usa a imagem de expansões ou acúmulos para se referir a seus períodos de se deixar influenciar. E trata seus momentos de reinvenção como esvaziamentos daquilo que o afastava do seu “temperamento espanhol”, que para ela seria uma espécie de essência do artista. Os colegas franceses, a escultura africana, as cores de Matisse, tudo isso que comumente entendemos como elementos constitutivos da obra de Picasso, para Stein eram desvios.

Essa ideia de essência, tal qual a de gênio moderno (“que já nasceu sabendo tudo sobre pintura”, como ela escreve), mais as generalizações acerca das nacionalidades (como se todas as pessoas de um determinado país fossem iguais) e a lógica exagerada que busca justificar os resultados (como se a criação artística e a vida pudessem ser reduzidas a explicações simples) são alguns dos defeitos do livro, muitos dos quais perceptíveis apenas hoje, com o distanciamento que acumulamos em relação ao Modernismo. Todavia, a proximidade que a autora manteve com Picasso e o encanto por sua obra trazem pontos de vista bem mais cativantes do que encontramos outros textos teóricos ou críticos também disponíveis. Com sua intensa amizade e admiração, Stein faz de Picasso ainda mais Picasso.