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segunda-feira, 25 de março de 2024

AS PINCELADAS DO ESCRITOR

Foto de Suzi Kim

Não faz muito tempo, comecei a organizar com maior rigor as minhas leituras, refletindo sobre os assuntos do meu interesse, traçando planos e tomando notas, seja para depois escrever resenhas ou como forma de estudo. Em 2022, li um total de 53 livros. Número que só decorei porque, coincidentemente, no ano seguinte li a mesma exata quantia. Isso dá uma média de pouco mais de quatro livros por mês, ou um por semana. Mas em janeiro de 2024 eu li um único livro. Em fevereiro também. E tudo bem. Porque estou tentando ler melhor.

Eu já vinha pensando em exercitar uma leitura mais analítica, embora essa ideia só tenha se apresentado com clareza por causa do livro Para ler como um escritor (editora Zahar), em que a estadunidense Francine Prose explica como a leitura atenta a fez uma leitora melhor qualificada e, por consequência, uma escritora mais habilidosa.

“Leio minuciosamente, palavra por palavra, frase por frase, ponderando cada aparentemente mínima decisão tomada pelo escritor”, diz a autora, que também dá aulas de escrita. Para ela, “todos nós começamos como leitores atentos. […] É palavra por palavra que aprendemos a ouvir e depois a ler, o que parece adequado, porque, afinal, foi assim que os livros que lemos foram escritos”.

Essa consciência do ritmo, da dicção, do tom, da maneira como as frases são construídas e como a informação é transmitida, como o escritor estrutura a trama, cria personagens, menciona detalhes e desenvolve diálogos, entre outros pormenores, requer um carinho especial do leitor com a forma do texto. E não pode haver nada mais importante. Pois é a forma que diferencia uma narrativa literária de um relato qualquer.

A apreciação estética de um texto literário convoca o leitor a usufruir com maior profundidade da escrita como arte. Mais do que a disposição para entender a história contada, ela trata do como se conta, de quais recursos estilísticos foram empregados, quais foram as escolhas do escritor e, claro, as suas consequências na leitura. Ler com esse prazer pela linguagem é semelhante a ouvir uma música com atenção às notas e arranjos da sua execução.

Francine Prose enumera ainda outras camadas que essa leitura suscita. Como os casos em que as revelações cruciais de uma trama estão nos interstícios, ou seja, estão apenas sugeridas nos não ditos, nos espaços entre as palavras. Podemos pensar também em como as frases se ordenam para enfatizar um sentido interpretativo. Ou como mudanças de parágrafo indicam deslocamentos nos pontos de vista da narrativa. Como os diálogos trazem implícitas as intenções dos personagens ou a parcialidade do narrador. Por qual motivo nos identificamos, ou não, com eles. Como os detalhes situam um personagem em seu ambiente, ou como um gesto sutil é capaz de apresentar algo fundamental da sua subjetividade. Quem conduz a narrativa. Com quem fala. Quais são os tempos verbais. Como se estabelecem as relações entre um personagem e outro. Como a linguagem parece adequada a determinado contexto. Como o autor usa os estranhamentos para revelar novas perspectivas sobre algo tornado banal. Ou, ainda, como a gramática é empregada, como as normas são subvertidas, como outro usos da língua são inventados para dar conta de um propósito narrativo.

Acontece que isso tudo implica uma leitura exigente. Que demanda, em primeiro lugar, atenção. E em segundo lugar requer lentidão. Requer maior preocupação com a qualidade do que com a quantidade. Além de um olhar treinado.

Francine Prose fala sobre ler de perto, como quando nos aproximamos de uma pintura de Rembrandt para observar suas pinceladas. Claro, afinal, as palavras são matéria-prima para o escritor, assim como as tintas para o pintor, ou as notas musicais para o compositor. Seguindo com as comparações, a autora cita o russo Isaac Bábel, para quem a linha é tão importante na prosa quanto na gravura.

E mesmo ensinando escrita há décadas, Francine Prose vê a atividade com desconfiança, claramente dando preferência à maneira como se formou, ou seja, lendo com entusiasmo, com empenho, com olhar crítico. Para ela, oficina de escrita e leitura atenta são práticas complementares. Que todavia operam em sentidos opostos: enquanto a primeira, assim como os manuais de estilo, expõe o lado “negativo”, ou seja, o que não se deve fazer, a segunda reúne modelos positivos, destacando o brilhantismo de certos profissionais da área.

E se você não tem pretensões de aprender o ofício, ainda assim é possível se aperfeiçoar como leitor. Em ambos os casos, ler muito não significa, necessariamente, ler bem. Não tenho dúvidas de que se pode argumentar ainda que tudo depende do propósito que leva cada pessoa a buscar um livro. Porque há tantos os aficionados pela arte das letras quanto aqueles que não querem mais do que um passatempo tranquilo. A depender da ocasião, um mesmo leitor pode ser A ou B, não há motivo para fronteiras rígidas.

Para ler como um escritor traz, no final, uma entrevista com a autora. E em meio às respostas dela se encontra a seguinte provocação, que destaco como última reflexão para todos nós: “Há escritores que seriam mais lidos – e, inversamente, escritores que nunca seriam lidos – se as pessoas realmente observassem quão bem ou quão mal eles escreviam. Na maioria dos casos, eu preferiria ler algo que está lindamente escrito e não aborda grandes temas a ler algo aparentemente mais denso que não tenha um tipo de uso novo ou revigorante da linguagem”.