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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

QUANDO A PALAVRA NÃO DÁ CONTA DE DIZER


Foto de Sincerely Media

Os significados das palavras costumam ser um dos principais interesses de todo escritor. Contudo, com o passar dos anos fui sendo convocado a pensar também numa espécie de caminho inverso, quer dizer, naquilo que as palavras não alcançam. Seus limites. Suas falhas. Ou lacunas. 

Encontrei eco para esse pensamento num pequeno ensaio chamado Lições nas trevas, do italiano Giorgio Agamben, que compõe seu livro Quando a casa queima (publicado no Brasil pela editora Âyiné). 

O filósofo afirma que o profeta se dirige às trevas de seu tempo, e para isso deve se deixar investir por elas, abrindo mão da própria lucidez. Em seguida, aproxima-o do poeta, e por consequência sugere um ponto comum entre as palavras proféticas e as poéticas. 

O autor já havia desenvolvido esse conceito de trevas ao menos em outro texto, bastante conhecido, cujo título pergunta: O que é o contemporâneo? Pois elas, as trevas, representam para ele uma potência do que pode vir a ser, e que à sua maneira já está em nosso tempo, nos limites da definição; qualidade do que é obscuro, portanto do que ainda não conseguimos perceber com clareza. 

Ao transportar esse conceito para o âmbito da palavra, Agamben fala de um significado não racionalizado, mas de algum modo percebido; espécie de sentido que precede a possível compreensão. Poderíamos, a partir daí, seguir com a ideia de que o profeta detém a capacidade de perceber no presente algo que ainda não está evidente, “prevendo o futuro”. O mesmo valeria para o poeta e os artistas em geral. Mas não é esse caminho que interessa agora; vamos nos ater à questão das palavras em si. 

Porque a palavra profética, cujo significado está sempre por vir, teria um caráter insurgente em relação à gramática e aos nomes, ao léxico e à sintaxe, oferecendo acesso a outra experiência da linguagem. Para enfatizar esse atributo, Agamben diz inclusive que tal palavra é, de certo modo, ilegível. Enquanto sua insurgência, ou nova experiência pela palavra, é a própria obra da poesia. 

Parece complicado? Mas existe nisso um ponto muito simples, com o qual é fácil concordar: pela poesia nós podemos escapar dos significados imediatos e, assim, experimentar outras possibilidades das palavras. 

Aliás, é importante assinalar que poesia, nesse caso, não se resume à forma versificada: vale também para a prosa e qualquer outro tipo de texto que proporcione ao leitor uma experiência estética. A poesia seria, digamos assim, o recurso criativo que permite vencer os limites das palavras, deslocando a experiência de leitura para longe da pretensa exatidão delas; ela está nesse deslocamento entre a norma e a insurgência, sugere Agamben. E o escritor espera, claro, que algo virtuoso aconteça em tal movimento. 

Eu voltei a essas ideias quando li o conto Réveillon, de Rafael Gallo, que abre seu primeiro livro, Réveillon e outros dias (editora Record). Mais para o fim da história, o protagonista – jovem adulto e surdo – diz que, às vezes, gostaria que seu pai fosse surdo também, porque isso não deixaria as falas o distraírem da linguagem mais profunda. Essa vontade se dissipa quando o filho observa o velho gesticular para se comunicar com ele. “Sempre tivemos um idioma que falava por intermédio de tudo: de nossas mãos, olhares, palavras, todo o corpo. Todos os nossos gestos tinham o mesmo valor, e acho que isso nos fez compreender um ao outro quase inteiramente”, reflete. 

Para o surdo, os gestos feitos com o corpo levariam a uma compreensão mais complexa do outro, ou seja, possibilitariam ir além do que as palavras dizem por si mesmas. O “fundo por trás da palavra”, explica o narrador do conto. Ou o que o protagonista definia como a linguagem mais profunda do mundo: “o idioma que, liberto das cercanias das palavras, se define apenas por ele mesmo e seus nomes impronunciáveis”. 

Enquanto Agamben trata de um sentido que antecede o significado das palavras, o personagem no conto de Gallo busca um jeito de extravasá-lo. Preocupações que, no meu entender, também deveriam ser de todos os que têm na palavra o seu ofício. Afinal, se no dia a dia “escrever bem” é dominar os significantes e significados para assim produzir textos muito claros, a “arte de escrever” é outra coisa: diz respeito a elaborar o que há de impreciso nas palavras para, no que se esconde atrás delas, ou em suas trevas, permitir que o texto leve cada leitor a uma experiência singular.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

O CONTO (OU CRÔNICA) ESTÁ NOS OLHOS DE QUEM LÊ

Mulher com chapéu (1905), de Henri Matisse

Qual a diferença entre conto e crônica? A pergunta invariavelmente retorna. Desta vez, aconteceu durante minhas aulas na pós-graduação em escrita criativa.

Quem deu o exemplo foi a mesma aluna que perguntou: certa noite, tomada por uma insônia brava, ela desceu diversas vezes a escada do sobrado onde mora para beber água na cozinha, ao ponto em que começou a criar inimizade com o próprio cachorro. Quando, enfim, o sono veio, ela precisou se levantar outras tantas vezes para não molhar a cama.

Isso seria enredo para conto ou crônica? É verdade que esta última quase sempre traz as características da sinopse acima: leveza, bom humor, acontecimentos banais que sugerem alguma reflexão. Mas por que não poderíamos também escrever um conto com isso? E mais: em que um texto seria diferente do outro?

Foi Mário de Andrade que, meio sem paciência, afirmou que conto é o que o autor chamar de conto, e ponto final. E a crônica, seguiria a mesma fórmula rabugenta?

Na discussão em sala, ocorreu-me que a diferença talvez esteja menos na forma do texto e mais na relação que o leitor cria com ele. Se ambos são narrativas ficcionais, a expectativa de quem lê aponta para lados opostos.

Explico: ao lermos uma crônica, tendemos a acreditar que o caso narrado aconteceu de verdade. Que o sujeito da história não é mero personagem, mas o autor em si. Que nada se cria, tudo se copia – ou se imita da realidade, no caso. Como se o autor da crônica quase não escrevesse, apenas transcrevesse.

Nada mais ilusório. Se você já escreveu uma crônica – ou qualquer outra narrativa, cá entre nós –, sabe bem que tudo é invenção. O ponto de partida pode ter algum fundamento na realidade, mas ele logo se transforma em palavras, perspectivas, enfoques que separam o que será contado e o que permanecerá não dito. Torna-se outra coisa, ganha outra existência.

Um texto ficcional é um texto, e assim deve ser apreciado. Isso me faz lembrar de uma anedota sobre Henri Matisse. Conta-se que, durante exposição no Salão de Outono, em Paris, uma pessoa desdenhou da obra Mulher com chapéu, alegando que não existia mulher com nariz amarelo. A retratada não estaria bem pintada, portanto; pois não condizia com a realidade. O pintor teria respondido que aquilo não era uma mulher, mas um quadro.

Um leitor assíduo de crônicas pode se decepcionar ao descobrir que o que lê nas horinhas de descuido é fruto de criação – e nós não vamos acabar com a felicidade dele, combinado? Aquilo tem sabor de verdade, mas esse sabor é idêntico ao ficcional. Porque, convenhamos, trata-se de um texto; um retrato verbal, artístico; não a realidade em si. São palavras dispostas uma ao lado da outra com o objetivo de proporcionar uma experiência estética.

Lembrei-me também de uma ideia que Umberto Eco desenvolve na quarta das seis conferências oferecidas em 1993 em Harvard, todas elas reunidas e publicadas no Brasil sob o título de Seis passeios pelos bosques da ficção. Ele explica ali que a norma básica para se lidar com uma obra literária é o leitor aceitar o “acordo ficcional”. Quer dizer, o leitor precisa assumir que está lendo uma história imaginária, mas nem por isso pensar que o escritor está contando mentiras.

Recorto aqui um trechinho: “Quando entramos no bosque da ficção, temos de […] estar dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo fala; mas, quando o lobo come Chapeuzinho Vermelho, pensamos que ela morreu (e essa convicção é vital para o extraordinário prazer que o leitor experimenta com sua ressurreição). […] A obra ficcional nos encerra nas fronteiras de seu mundo e, de uma forma ou de outra, nos faz levá-lo a sério”.

A crônica abusa desse princípio, fazendo o leitor acreditar que seu mundo fictício se confunde com a realidade nossa de cada dia. Quando, na prática, as escolhas do escritor visam fazer o texto ter coerência interna e, assim, cumprir sua missão. Sem necessariamente assumir qualquer compromisso com a verdade. A estrutura narrativa está toda lá, com seus elementos fundamentais: personagem, tempo, espaço, enredo, linguagem, narrador. Caso a verdade fosse primordial, a crônica rumaria para os lados do ensaio, que é uma forma de não ficção.

Aliás, naquela mesma conferência, Umberto Eco faz outra provocação que nos interessa: “À parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos romances porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro”.

Ele diz romance, mas podemos pensar o mesmo sobre os contos. E sobre as crônicas. Em todos eles, a ideia de verdade se sustenta conforme o desejo do escritor e se o leitor o acompanhar. Enquanto, fora do texto, a coisa é bem mais complicada. Quer ficção maior do que uma verdade absoluta?

Em suma, o que fiquei pensando a partir daquela pergunta da estudante é que um mesmo texto pode ser lido como conto ou crônica, a depender da expectativa que o leitor cria a seu respeito. A solução vale para todos os contos e crônicas já escritos? Não. Mas vale para uma porção. Os demais, espero que rendam outras boas questões.

Publicado originalmente em LiteraturaBr.