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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

CAMADAS DE UM TRABALHO ARTÍSTICO

Tinha ido à Pinacoteca de São Paulo por ocasião de uma palestra, se me lembro bem. Havia um horário a cumprir, e eu chegara trinta minutos antes. Decidi circular. Uma espécie de túnel cruzava o Octógono de um lado até o outro. Para quem não conhece, trata-se de um átrio localizado no centro do edifício, cuja forma geométrica lhe rendeu o nome. É costume que projetos especiais o ocupem (intervenções, esculturas de grande dimensão, performances etc.), ao invés de exposições convencionais. Dessa vez, havia um túnel branco, feito de madeira. De tempos em tempos, ouvia-se um estrondo, uma espécie de baque seco e potente, refletindo-se nas paredes ao redor. Fiquei curioso. Dei a volta até encontrar a entrada. O túnel se afundava em escuridão; não podia ver nada além de cinco ou seis metros à frente. O som, ali, era bem mais impactante. A identificação dizia "Um homem entre quatro paredes, de Alexandre Estrela". Entrei.

Um homem entre quatro paredes, de Alexandre Estrela. Vista interna da instalação.

Percorri toda a extensão no escuro, com cautela, tentando não esbarrar em nada nem ninguém. Segundo o artista, o objetivo do canal era executar uma "compressão prévia do sujeito". O volume do som crescia, enquanto o intervalo entre as batidas ficava mais curto. No fim, quando os olhos se acostumaram, me encontrei numa sala toda pintada de preto, com uma gigantesca imagem projetada numa das paredes e diversas pessoas acomodadas em pé ou no chão para observá-la. Descobri um espaço livre ao lado do subwoofer (caixa de som grave) que produzia aqueles estrondos e fazia tudo ao redor vibrar. No vídeo, apenas um pedaço de pele humana – uma fotografia, com enquadramento tão invasivo que mostrava os pelos, os poros e cinco pintas dispostas de modo matemático, formando esquinas de um quadrado mais um ponto no meio, bem centralizado.

Planta baixa do projeto de instalação
A foto se movia: emergia do centro até ocupar a tela inteira, sobrepondo a si mesma repetidas vezes. A cada sobreposição, uma pancada sonora; um incômodo evidente e cada vez mais veloz. Experiência angustiante, sem dúvida; algo claustrofóbica também. O som tomava conta do corpo, fazendo-o vibrar, ainda que sem vontade, sem querer se entregar à experiência. A imagem chamava atenção para as vibrações na pele, para o reflexo daquelas sensações no restante do organismo, para o andamento do coração em descompasso com o ambiente. Um conflito se impunha, e o resultado era a instabilidade, o desequilíbrio, a subserviência do sujeito em relação ao sistema dominante. Com a aceleração da imagem e do som, a angústia crescia. Eu queria sair da sala a todo custo, ao mesmo tempo em que precisava saber como aquilo acabaria.

Quando o ritmo das pulsações se aproximou do insuportável, tudo terminou de repente. O vídeo sumiu, o subwoofer silenciou. Fiquei no escuro. Tive a sensação ser empurrado para longe de mim; também certo alívio e solidão. Permaneci mais alguns minutos sentado, incorporando a experiência. Aos poucos, as pessoas deixavam a sala, caminhando pelo túnel na direção da luz. Segui junto com elas.

Na mesma semana, falei sobre a instalação com os alunos do curso de Terapia Ocupacional, na USP. Estudávamos os tecidos constitutivos do corpo, suas relações com o mundo, as camadas da pele, a reverberação, o pulso vital, percepção e sentimento, vivências disruptivas. Era possível pensar isso tudo por intermédio da experiência estética proposta na Pinacoteca.

Túnel no Octógono da Pinacoteca do Estado de SP.
Vista externa da instalação.
Meses depois, adquiri um livreto de entrevista, em que Alexandre Estrela comenta a obra. Meu entendimento a respeito dela se ampliou de maneira considerável. Pois aquilo que eu pensava serem pintas eram, na realidade, uma tatuagem comum entre presidiários portugueses. Os cinco pontos representavam o sujeito encarcerado; um homem entre quatro paredes. A instalação fora montada pela primeira vez em exposição promovida por uma companhia de seguros, batizada de Putting fear in its place (Colocando o medo em seu devido lugar). A entrevista envereda por ilusão de ótica, hospital do câncer, geometria, carga simbólica de tatuagens e seus limites como manifestação artística, divergências culturais, sistema carcerário, repetição serial como método de trabalho, realidade e veracidade, passividade do público do cinema, técnica e tecnologia, linguagem, marca e afetação, indústria do medo, entre outros assuntos. Tudo isso vinha à tona por conta de uma criação artística, cujas camadas de significado foram sendo dissecadas, aprofundando-se na direção de um núcleo – "centro conceitual e perceptivo", que perdura independentemente da montagem realizada, nas palavras de Alexandre. Uma "base de leitura", quer dizer, uma essência que se preserva qualquer que seja a roupagem empírica a envolvendo.

Levei meses até descobrir essa dimensão do trabalho, e tenho certeza de que é possível ampliá-lo ainda mais. Vale lembrar que estamos falando de uma só instalação. Tamanha a força de certas pesquisas contemporâneas.

Curiosamente, num curso sobre arte e filosofia que se realiza agora na mesma Pinacoteca, dois senhores na plateia, em dias distintos, revelaram-se encantados com as produções artísticas atuais. Os relatos foram similares: ambos descobriram a arte contemporânea somente com a chegada da aposentadoria, estavam impressionados com o seu potencial de conhecimento, crítica e reflexão, ao mesmo tempo em que frustrados por terem sido apresentados tão recentemente. Por que ninguém falou de arte contemporânea antes? Por que não se trata disso nas escolas? Por que tão pouca divulgação e tanta leviandade da mídia?

Faço minhas as palavras dos colegas.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A DANÇA DE CRUZ-DIEZ



Já tinha passado por um terço da exposição de Carlos Cruz-Diez quando percebi como aquilo era engraçado. Acontecia uma espécie de dança dos visitantes, tentando não esbarrarem uns nos outros, caminhando para cá e para lá sem tirar os olhos das obras. Não acontecia por acaso, o artista transmite essa inquietação contagiante. Para ele, o simples olhar já é uma experiência interativa. A cor, mais do que um pigmento sobre a tela, é entendida como um elemento de natureza instável que provoca impactos emocionais. "Eu queria comunicar", diz Cruz-Diez em um dos trechos da entrevista adesivada nas paredes da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Essa comunicação se realiza com uma linguagem própria, uma mistura de luz, cor e movimento. É difícil mesmo desviar os olhos, a gente não quer perder nada, nem um compasso.

Cor aditiva 105, 1956 (clique na imagem para ampliá-la). 
Abaixo, detalhe da mesma obra.

Boa parte dessas obras pertence ao grupo intitulado Fisiocromia, algo como "o corpo da cor", que o artista desenvolve desde 1959. Os visitantes caminham de um lado para o outro porque, de acordo com o ponto de vista, a obra revela novas estruturas. Lembra um pouco a brincadeira de "ola" que se faz em estádios. Ou aquelas figurinhas holográficas que contêm diversas imagens num única face. Enfim, é tão difícil de explicar quanto de fotografar, e essa era a segunda coisa engraçada que acontecia na Pinacoteca: as pessoas queriam levar, como recordação, uma fotografia daquela experiência maravilhosa. Só que é impossível fixar numa imagem o fenômeno ótico e a sensação física subsequente. Os fotógrafos saíam frustrados.

Confesso que eu também queria uma foto bonita para colocar no blog, mas não me arriscava. Estava na cara que era impossível. Até eu me dar contar de que, se a questão era o movimento, a solução seria filmar. Fiz isso com o telefone, o que explica a precariedade dos vídeos disponíveis aqui. Seja como for, acho que passam uma ideia do que está exposto no museu.


Tem muitas obras lá, desde pinturas a óleo do início da carreira de Cruz-Diez até instalações com projeção de cores. No geral, todas compartilham da mesma curiosidade: colocar a superfície ou os expectadores em movimento, provocá-los com sensações cromáticas que se multiplicam em diversas outras, modulações óticas com um pé no ilusionismo e outro na ciência. Transitam por persistência retiniana, somatória visual, gestalt, relevo, sombras e arquitetura. Seu trabalho é intenso e consistente. Faz mais de meio século que estuda possibilidades emotivas do uso da cor, seja no quadro, no espaço, na cidade (com intervenções urbanas) ou em veículos. Existe até navio e avião "à lá Cruz-Diez". Em resumo, é uma experiência estética bastante divertida. Vale a pena entrar na dança.


Leia mais no site da Pinacoteca do Estado de São Paulo: Carlos Cruz-Diez

quinta-feira, 21 de junho de 2012

VERGONHAS À MOSTRA


Um homem para no meio da rua, olha para cima, aperta os olhos contra o céu. Outro chega perto, fica olhando também, perguntando-se se é possível. Ele já tinha ouvido histórias assim, e agora uma delas acontece bem na sua frente. Dali a pouco, uma mulher grita: Pula não! Pronto, era o que faltava para a balbúrdia começar. Pula não, homem!, imploram uns. Pula sim, aconselha outro, porque sempre tem um espírito de porco no meio. Chamam os bombeiros, é a maior confusão. Por fim, o suicida fica lá, parado como estátua. Pelo simples fato de que é uma estátua mesmo, colocada no beiral do edifício pelo artista inglês Antony Gormley.

Várias estátuas, na verdade, espalhadas pela cidade de São Paulo, a maioria delas no alto dos prédios. Suas silhuetas observam os passantes formigarem com indiferença pelas ruas. Elas compõem a exposição Corpos Presentes, em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil.

Quando percebe a farsa, a multidão se dispersa. A nova realidade já não tem tanta urgência. Brincadeira sem graça! Cada pessoa segue seu rumo. Mas há quem vire para dar uma última conferida. Para ter certeza. Porque nunca se sabe, né?

Por sua vez, quem adentra o CCBB se depara com diversos outros homens peladões, feitos de ferro fundido, pesando cerca de 630 quilos cada. Estão caídos no chão, amontoados no saguão, pendurados de cabeça para baixo por cabos de aço que descem do andar superior.

As crianças fazem a festa, imitando as posições retorcidas das estátuas, sem preconceitos com a arte, sem grandes expectativas para frustrar. Os adultos também participam, claro, tirando fotos, relutando e fazendo piada. A mostra provoca a imaginação. Porém, quando se descobre que as estátuas são cópias moldadas diretamente no corpo do artista, há quem o julgue um pervertido. Precisa mostrar tudinho assim?

(Porque uma deusa grega pode, mas o inglês contemporâneo não.)

Já devo ter escrito meia dúzia de vezes no Correio Popular sobre o complicado embate entre realidade e ficção. Porque a ficção é algo bem próprio da arte. Antes, porém, está infiltrada em nosso cotidiano de maneira tão profunda que sequer a percebemos. Sim, toda verdade não passa de uma ficção bem apresentada, na qual a gente escolhe acreditar.

Não tem nada a ver com mentira. A ficção não possui o mesmo teor pejorativo, tampouco se opõe à ideia de verdade. "Em vez de falsificar, ela alarga e potencializa o mundo. Em vez de mentir, ela inventa novas maneiras de dizer as coisas do real", escreveu José Castello no jornal literário Rascunho. É verdade, nós ficcionamos o tempo todo. Quando contamos aos amigos uma peripécia de adolescente, quando damos um parecer na reunião da empresa, quando ensinamos nossos filhos que é errado colar na prova. Trata-se de uma característica inerente ao ser humano, simplesmente um registro distinto de compreensão do mundo. Tanto que, para o filósofo Jacques Rancière, a realidade precisa ser ficcionada para ser compreendida. É por causa disso que a arte, em geral, consegue lidar com questões fundamentais da nossa existência sem recorrer à tarja preta ou aos grupos de controle. Um romance, uma música ou uma escultura possibilitam descobertas tão ricas quando qualquer experimento científico. Talvez até mais.

Só que, às vezes, somos muito racionais para perceber a infinita ironia da ficção. Queremos a verdade incontestável, tintim por tintim, sem digressões, como se isso fosse possível. É só ela que aceitamos. Juro, temos necessidade de significado imediato, racional, explicado, comprovado e justificado. Números! Pesquisas! As emoções não valem nada quando comparadas à lógica esclarecida. Assim, o mundo passa despercebido por nossos sentidos.

No texto anterior, falei sobre o artista Hervé Fischer que, vestido de farmacêutico, conversava com transeuntes numa praça de São Paulo e receitava pílulas para todo tipo de problema, por mais absurdo que fosse. Pílulas para obter um bom emprego, para aprender a dançar, para reaparecer cabelo na careca. Eram bolinhas de isopor, embaladas num saquinho plástico e etiquetadas com a frase "A vida está nas pílulas!" Só que muita gente acreditou. Foi difícil, Hervé precisou explicar que era apenas uma provocação artística, com objetivo de fazer o sujeito refletir sobre os próprios problemas e buscar uma solução. Porque a realidade deve ser ficcionada para ser compreendida.

Ainda assim, tenho certeza de que alguns acabaram tomando as bolinhas de isopor. Nunca se sabe, né? Talvez até arranjaram emprego, aprenderam a dançar e recuperaram o cabelo. Eu acredito. É o tal efeito placebo, que, para desespero dos médicos, às vezes cura desenganados. Porque a ficção age misteriosamente dentro de nós, nesse corpo tão incrível e desconhecido que acabamos considerando indecente; que banalizamos e rechaçamos por receio de lidar com a realidade nua e crua.

Aqui tem um making of interessante da mostra, para quem não pode vê-la pessoalmente:

terça-feira, 1 de maio de 2012

A ARTE DO DESAPEGO



Como se livrar da montanha de objetos que fomos acumulando ao longo da vida sem descartar, também, as lembranças atreladas a eles?

O americano Mac Premo propõe uma solução – não exatamente prática, cá entre nós, mas ainda assim uma solução, que cada pessoa pode executar à sua maneira: transformar o lixo em arte.

A ideia surgiu quando Mac teve que se transferir de um espaçoso estúdio em Nova York para um apartamento bem apertado. Na ocasião, ele selecionou cerca de 500 objetos, arranjou-os num contêiner e transformou isso tudo numa instalação aberta ao público. Quem quiser, pode conhecer um pouco da vida do artista por meio de sua tralha.

O contêiner está viajando por diversas cidades dos Estados Unidos. Quem não tiver a oportunidade de visitá-lo pessoalmente pode fazê-lo virtualmente. No site www.thedumpsterproject.com há uma fotografia de cada objeto, acompanhada de uma breve descrição.

A tranqueira que insistimos em guardar não serve apenas como ativadora de memória, ela também ajuda a afirmar nossa identidade. Sim, temos o péssimo hábito de dar aos objetos pessoais a função de dizer aos outros quem somos. Por isso é tão difícil se livrar deles, são como pedaços de nós. O museu de nós mesmos.

O que Mac mostra com seu projeto é que o desapego pode ser uma maneira de descobrir o que resta em nós depois que o excedente vai para o lixo. Se é que sobra alguma coisa.

Seja lá o que for, talvez esteja mais próximo da tão idealizada verdade.

O contêiner de Mac Premo em exibição no Brooklyn, Nova York
(clique nas imagens para ampliá-las)

domingo, 29 de janeiro de 2012

MEU CAMINHO SENTIDO



Foi uma das experiências mais incríveis que vivi numa instituição cultural (eu ia dizer "museu", mas não é bem o caso). Me refiro à instalação Seu Caminho Sentido, de Olafur Eliasson, que foi montada no Sesc Pompeia no segundo semestre de 2011 e permanece lá até hoje.

A obra é constituída por uma grande sala retangular cheia de fumaça. Uma das extremidades fica no escuro, enquanto a oposta é iluminada por lâmpadas frias. Andamos ali com passos curtos por receio de esbarrar nas outras pessoas, que estão perto, sim, podemos ouvi-las, porém não conseguimos vê-las. Seus vultos nos perseguem como fantasmas. Aparecem e desaparecem sem que possamos identificá-los. De repente, nos damos conta de que nós também somos vultos como aqueles, à solta na bruma, assombrando os outros visitantes. Ainda assim, não há qualquer sensação de pavor. Passada a angústia inicial de querer e não poder ver, entramos numa linda brincadeira estética.

Olafur Eliasson nos permite experimentar uma nova relação sensorial com o espaço. É mesmo um caminho sentido, como indica o título da obra, percebido pelo som e pelo olfato muito mais do que pelos olhos. Os sons e o cheiro predominam, enquanto a visão fica refém de dois tipos de cegueira, uma escura e outra clara.

O vídeo acima foi feito durante minha caminhada pela instalação (se preferir, assista diretamente no Youtube). Preste atenção nos barulhos - eles criam um interessante efeito com as imagens que se fazem e desfazem a todo instante. Abaixo, você pode ouvir um relato gravado assim que deixei a sala, com os sentidos ainda afetados pela experiência. Quis registrá-lo logo, supondo que, pelo seu frescor, ele esclareceria o "meu caminho sentido" de um jeito mais preciso do que qualquer outra descrição redigida depois.



Saiba mais sobre o artista aqui: Olafur Eliasson (no site, há também registros feito próprio artista na Pinacoteca do Estado de São Paulo e nas unidades Belenzinho e Pompeia do SESC, além de diversas outras exibidas mundo afora).

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

GRANDES MUSEUS REUNIDOS ONDE VOCÊ ESTIVER



Sempre me surpreendo com as invenções da Google. Não tem jeito, eles ficam criando essas coisas espetaculares que, em pouco tempo, se tornam essenciais.

Não bastasse o Street View, que nos permite caminhar digitalmente por ruas do mundo inteiro utilizando o Google Maps, agora apareceu o Google Art Project, que traz os grandes museus para dentro de nossas casas e ainda mata aquela curiosidade gostosa proporcionada pela arte. Porque não dá para visitar pessoalmente todos eles, muito menos com a frequência com que gostaríamos. Então, fazemos a visita pelo computador.

Não adianta ficar fazendo propaganda aqui. Clique logo no link abaixo, faça um bom passeio cultural e torça para que essa tecnologia chegue o mais rápido possível aos museus brasileiros.


sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A ORIGEM DO TERCEIRO MUNDO

Escrevi uma crítica da obra A origem do terceiro mundo (2007), do artista brasileiro Henrique Oliveira, para o Programa de Pós-Graduação do MAC/USP. Trata-se de uma instalação que conheci na Bienal passada e que sugere reflexões interessantes quando a penetramos – pois, percorrendo seus labirintos de tapume, acabamos por descobrir a nós mesmos. É por isso que chamei o texto de A origem do terceiro mundo e a origem de nossos próprios mundos.

Como ele é extenso demais para eu publicar aqui, gostaria de compartilhar com vocês ao menos as fotografias que fiz na ocasião.

Quem não foi ou não encontrou a obra no meio daquela abundância confusa da Bienal vai perceber que, reflexões à parte, era uma experiência bastante divertida. Saí de lá renascido. E acho que você vai entender por quê.









terça-feira, 30 de novembro de 2010

O SILÊNCIO TEM A PALAVRA


Gambiarra (1982), de Amelia Toledo

"Amélia, querida, sem palavras... Fiquei sem palavras, porque as palavras já não faziam sentido. Sua obra é grandiosa demais. Enquanto física e amante da arte e dos minerais, da luz e da cor, chego a ficar sem palavras diante da perfeita interação entre os elementos, o que surpreende os olhos e a alma. É a exposição mais perfeita que já vi em mais de sessenta anos de vida. Descrever é difícil. Relatar o que senti mais difícil ainda. Então é só ver, sentir, impregnar-se. Só hoje, depois de tantas vindas aqui, consegui escrever alguma palavra neste caderno. Assim mesmo, a emoção é muito mais do que qualquer palavra. Senti uma sensação esquisita quando entrei na exposição. Por isso gostei muito. É um choque maravilhoso. Só consigo sentir. Não consigo escrever o que sinto. Uma vontade de chorar ao tocar as pedras, calo-me para permitir apenas o sentir. O jogo de luz e a sombra, as cores e as pedras são fundamentais à interação corpo-espírito. É uma experiência única. Transcendental. É como se o dia especial, a emoção fundamental, a própria essência viessem a brotar agora. Do nada. Mas mostrando tudo. Arrancando das entranhas o néctar. Provando que o ser humano é capaz de coisas belíssimas... Não tenho palavras. Só pura emoção. Obrigada. É uma exposição que atravessa o Ser. Não há palavras para traduzir. É o silêncio que tem a palavra. Sobre a artista: ela é cruel, muito cruel. E sobre a exposição: ela é pura, natural. Mas é de tirar o fôlego. Obrigado."

O trecho acima foi montado a partir de recados deixados no livro de ouro – aquele caderno de visitas, sabe? – da exposição Entre, a obra está aberta, de Amelia Toledo, que se realizou na Galeria do Sesi, em São Paulo, entre 1999 e 2000. Ele integra a interessante análise que o psicanalista João Augusto Frayze-Pereira fez da reação do público com a obra da artista e com os resultados dessa relação.*

Achei muito bonita a maneira como os visitantes expõem seus sentimentos e agradecem Amelia pela experiência proporcionada. O artigo de João reúne outros trechos ainda mais emocionantes, mas resolvi compartilhar esse por dois motivos: pela poética do título, que foi citado por um dos visitantes, e pelo fato de que, mesmo sem palavras, eles conseguiram dizer muito.

A obra estava aberta. Bastou isso para que todos se sentissem à vontade e revelassem a si mesmos com profunda sinceridade. Foi uma exposição que não visitei e que, depois de lidos os relatos reunidos por João Frayze, deixou uma triste sensação de perda.


Glu-glu (1968), de Amelia Toledo. Esta obra pode ser vista – e experimentada – na 29ª Bienal de São Paulo.

Mais informações sobre a artista:
www2.uol.com.br/ameliatoledo e www.ameliatoledo.com

*O artigo completo, chamado A poética dos livros de ouro: Amelia Toledo, generosidade e gratidão, integra o livro Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise, de João Augusto Frayze-Pereira (Cotia: Ateliê Editorial, 2005).

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

NUNO RAMOS FALA DA POLÊMICA ENVOLVENDO SUA OBRA NA BIENAL

[Recebi o e-mail abaixo e achei por bem publicá-lo aqui. Pois muita gente está criticando a obra Bandeira Branca, de Nuno Ramos, em exposição na 29ª Bienal de São Paulo, sem nem mesmo tê-la visto. Ou sem conhecimento técnico suficiente para criticar sua instalação. Ou baseado apenas em reportagens. O que faltava nisso tudo era a palavra do artista. Aqui vai ela. Espero que esclareça parte da polêmica e sirva de informação para críticas posteriores, de preferência, melhor embasadas.]

Amigos,
Escrevi este texto como resposta aos acontecimentos da Bienal. Saiu na Ilustríssima de ontem. Estou enviando para quem não leu.
Se acharem que vale a pena, eu agradeceria se pudessem encaminhar à lista de contatos de vocês.
Um abraço e obrigado,
Nuno Ramos



BANDEIRA BRANCA, AMOR
Em defesa da soberba e do arbítrio da arte


RESUMO
Alvo de protestos de pichadores, jornalistas e militantes da causa animal, o trabalho "Bandeira Branca", de Nuno Ramos, foi desmontado na 29ª Bienal de São Paulo, por determinação do Ibama, que o havia autorizado. O artista faz uma defesa da legalidade da obra e reflete sobre consensos e rupturas inerentes à atividade artística.

PROCUREI INTENCIONALMENTE matar três urubus de fome e de sede no prédio da Bienal de São Paulo. Pus ali imensas latas cheias de tinta escura, para que se afogassem, além de espelhos, para que batessem a cabeça durante o voo. Construí túneis de areia preta, para que entrassem sem conseguir sair, morrendo ali dentro. E, para forçá-los a voar, costumo lançar rojões em sua direção.

ACUSAÇÕES
Como nos pesadelos ou nos linchamentos, não é possível responder a acusações desta ordem, que circularam pela internet e no boca a boca com força insaciável nas últimas três semanas, criando um caldo de cultura próximo à violência e à intimidação. Como resultado disso, em plena Bienal, entre faixas pedindo que eu fosse preso, meu trabalho foi atacado por um pichador, que driblou a segurança, rasgou a tela de proteção aos bichos e danificou uma das esculturas de areia.

Fomos cercados, eu e minha mulher, por militantes ecologistas, que nos xingavam e gritavam do outro lado do vidro do carro, a boca em câmera lenta, "a-li-men-ta-e-les!" – o que, claro, já havia sido feito naquele mesmo dia. Barbara Gancia, colunista da Folha, chegou a pedir, utilizando um imaginário de repressão militar ou de milícia fascista, que eu fosse colocado de cuecas contra um muro e submetido a uma ducha com as mangueiras para incêndio do corpo de bombeiros.

Ingrid E. Newkirk, presidente da organização não governamental Peta [pessoas pelo tratamento ético de animais, na sigla em inglês], num artigo feroz, publicado na Folha em 8/10, encontra apenas o que pressupõe desde o início: que eu quero aparecer (ela, não? alguém duvida que um dos temas da polêmica é justamente a disputa pelo espaço na mídia?); que sou (os termos são dela) cruel, "bad boy", sem compaixão e produtor de arte de má qualidade. Como não há argumentos e o raciocínio é circular, tudo retorna à ilibada consciência da articulista.

A notícia atravessou fronteiras raras para questões envolvendo arte (horários insuspeitos em todos os canais de TV, cadernos de jornal pouco afeitos à cultura e nas mais diversas regiões do país), passando a assunto de bar e padaria. Os urubus, definitivamente, haviam conseguido escapar e, para usar os versos de Augusto dos Anjos, pousaram na minha sorte.

TOM
Frequento uma área da cultura afastada dessa luz radioativa, e não quero errar o tom. Começo este texto, portanto, fazendo a minha lição de casa: o que quer que tenha acontecido, aconteceu por meio das instituições. A licença do Ibama de Sergipe, que permitiu o transporte e a exposição dos animais, era legítima e dentro de parâmetros absolutamente legais, bem como sua cassação pelo Ibama de Brasília.

Tentamos, eu e a Fundação Bienal, que me apoiou de todos os modos possíveis em defesa do meu trabalho, uma liminar na Justiça e perdemos. Acatamos e tiramos, no mesmo dia em que a decisão liminar saiu, as três aves. Sinto-me coibido, injustiçado e chocado com tudo isso, mas não posso dizer que fui censurado. E por entender que a forma que destruiu meu trabalho ao tirar as três aves é legítima, quero divergir completamente dela.

Como quase nenhuma informação sensata circulou, tenho primeiro que dizer o óbvio:

1) As aves que utilizei em meu trabalho são aves nascidas em cativeiro, e não sequestradas ao habitat natural; é para este cativeiro que voltaram (e onde estão neste momento), quando foram "soltas" do meu trabalho;

2) Pertencem ao Parque dos Falcões (criadouro conservacionista que funciona com autorização do Ibama, realizando atividades educacionais e pedagógicas, pelo Brasil inteiro, com aves de rapina), que as mantêm em exposição para o público, como num zoológico;

3) Estas mesmas três aves participaram em 2008 de uma versão bastante similar deste trabalho, no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, durante dois meses, adaptando-se perfeitamente ao espaço e sem nada sofrer, com plano de manejo aprovado pelo mesmo Ibama;

4) As aves foram adaptadas ao espaço da Bienal antes do início da mostra, com a presença do veterinário responsável por elas e de um tratador;

5) Esse tratador, o mesmo que cuida delas em Sergipe, ficou permanentemente com elas durante todo o tempo de exibição das aves ao público, literalmente abrindo e fechando a mostra:

6) Eram alimentadas por ele todas as manhãs, em quantidade e frequência estipuladas pelo plano de manejo;

7) O volume das caixas de som foi controlado, sendo mantido numa altura bastante inferior ao do murmúrio do público, para evitar estresse aos bichos;

8) O plano de manejo das aves, aceito pelo Ibama de Sergipe, foi revogado, já no meio da polêmica, pelo Ibama de São Paulo – mas sem recomendação de cassação. O que o laudo técnico, sério e sisudo do Ibama de São Paulo solicitava eram ajustes –basicamente, que desligássemos uma das caixas de som e que instituíssemos banhos de luz ultravioleta todas as manhãs, para suprir a falta de luz solar direta sobre os bichos (embora a luz do dia banhasse o espaço). Oferecia, ainda, uma licença de 15 dias, a ser prorrogada de acordo com a avaliação periódica sobre o bem-estar dos animais. O Ibama de Brasília, que, sob pressão política e midiática, determinou arbitrariamente a saída das aves, em desacordo com o laudo do Ibama de São Paulo, travou o que parecia ser um processo rico de colaboração entre técnicos sérios, com conhecimento sobre os animais, e um trabalho de arte;

9) Obtivemos laudo favorável do Departamento de Parques e Áreas Verdes da Prefeitura de São Paulo;

10) Técnicos do setor de aves do Zoológico de São Paulo, em vistoria ao trabalho, não manifestaram qualquer crítica específica ao manejo das aves – fiquei sabendo nesta visita, inclusive, que a jaula dos urubus era bem maior que qualquer jaula do zoológico, inclusive a do condor.


Bandeira Branca (2008), de Nuno Ramos, no CCBB de Brasília

EXPIAÇÃO
Por que, então, tanta confusão? Que é que está sendo expiado aqui?

Para começo de conversa, e como aproximação ao problema, quero lembrar que "Bandeira Branca" não é um trabalho de ecologia, nem eu sou especialista em aves de rapina, assim como "Guernica" de Picasso não é apenas um trabalho sobre a Guerra Civil Espanhola, nem Picasso um historiador. Por isso utilizei os serviços de uma entidade ecológica, o Parque dos Falcões, e obtive, tanto na montagem em Brasília, em 2008, quanto em São Paulo, autorização do órgão legal em meu país para esses assuntos.

Ou a lei não vale para todos? Tratar meu trabalho como crime e a mim como criminoso é fazer o que fazia a direita franquista, ao chamar "Guernica" de quadro comunista, ou a aristocracia francesa da segunda metade do século 19, quando ameaçava retalhar a "Olympia", de Manet, em nome dos bons costumes.

O que me foi negado com a criminalização do meu trabalho foi a possibilidade de um sentido – o sequestro, digamos, de qualquer sentido que ele pudesse propor. E é contra isso, mais do que contra a boataria e a calúnia, que escrevo hoje.

VALORES
Arte não cabe nos bons nem nos maus valores, por mais confiança que se tenha neles. Dela emana um signo aberto, para isso foi inventada, para que fanatismos como os que ouvi nessas últimas semanas não circunscrevam completamente o possível da vida. Claro que ninguém está acima da lei, e, repito, cumprimos, artista e instituição, rigorosamente a legislação ambiental brasileira – mas é a possibilidade de pensar diferente que está sendo criminalizada aqui.

Artistas extraordinários como Joseph Beuys (por sinal, fundador do Partido Verde na Alemanha), Jannis Kounellis, Hélio Oiticica, Nelson Felix, Tunga, Cildo Meireles, utilizaram animais em suas instalações. Provavelmente o trabalho de Beuys que inclui um coiote ("I Love America and America Loves Me") seja, sem nenhum favor, uma das mais importantes obras de arte do século 20.

"Tropicália", de Hélio Oiticica, que tem araras vivas em seu interior (curiosamente, exposta há poucos meses, com as aves, no prédio do Itaú Cultural de São Paulo, na avenida Paulista, sem despertar qualquer polêmica), é um trabalho fundamental para a compreensão do que somos e do que queremos ser. Negar o que estes artistas conseguiram com seus trabalhos – uma oxigenação radical de nosso imaginário- tratando-os como criminosos certamente seria regredir a épocas de triste memória.

Posso entender quem seja contra bichos em cativeiro. Seria interessante exigir um pouco de coerência dessa posição – ou seja, vegetarianismo radical, já que a quase totalidade da carne que comemos vem de animais em cativeiro, fechamento de todos os zoológicos, jóqueis-clubes, fazendas com animais para monta e, ainda, requalificação geral de nossas relações com bichos domésticos. Mas, mais do que coerentes, gostaria que fossem suficientemente democratas para aceitar que nem todos pensem como eles, nem todos se deem o lugar de xamãs, em contato íntimo com os desejos e sensações dos animais, e que dentro das regras públicas legais de cada país o acesso a esses animais possa se dar sem histeria nem calúnias.

BANDEIRA BRANCA
Como nada ou quase nada se falou sobre o trabalho, peço licença para interpretar o que eu próprio fiz, partindo de uma breve descrição. "Bandeira Branca" (este título, no meio de um bombardeio desses, é dessas coisas que só a arte explica) foi montado pela primeira vez há dois anos, no CCBB de Brasília, e agora, ampliado e modificado, recebeu uma segunda versão, especialmente para a 29ª Bienal.

O trabalho consiste em três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções "Bandeira Branca" (de Max Nunes e Laércio Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), "Boi da Cara Preta" (do folclore, por Dona Inah) e "Carcará" (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar). Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho.

O resultado é uma cena solene, entre a litania e a canção de ninar, que me parece ter cavado, em sua montagem em São Paulo, uma espécie de buraco negro no prédio da Bienal. Acho que o vão do prédio, uma das obras mais felizes de Niemeyer, com sua velocidade e otimismo, ganhou com meu trabalho um contraponto ambivalente, noturno e encantado, triste mas também próximo do mundo dos contos de fada.

Há uma espécie de espiral ascendente no trabalho, que se desmaterializa conforme o espectador sobe a rampa do prédio e as pesadas colunas de areia se transformam na geometria de quem vê as esculturas de cima. Feito primeiro de areia, depois de mármore, depois de vidro, depois de som, depois de voo, o trabalho faz em seu percurso o mesmo que as aves, num ciclo que a chuva de fezes brancas, caindo sobre as peças e sobre o chão, inicia novamente.

ANTIPENETRÁVEL
Mas o ponto crucial, acho eu, é que, apesar da monumentalidade do trabalho e da textura inacabada da areia, que solicitam o corpo do espectador, o público é mantido fora da obra, numa espécie de antipenetrável. A obra de certa forma já foi ocupada, já tem dono e por isso não podemos nos aproximar. A noite, as canções e os urubus são seus donos, e ao público resta assistir de fora a alguma coisa viva, que não precisa dele.

As canções e os bichos, forças ascensionais contra a inércia e o peso das esculturas, já tomaram conta da obra e a tela de proteção, que materializa o desenho do vão do prédio, marca essa passagem entre um exterior institucional e um interior ativo, fechado em si, mistura de cultura (canções), natureza (os urubus) e arquitetura.

As aves e as canções dão ao trabalho o seu agora, uma duração voltada para algo indiferente ao mundo lá fora. Daí que muita gente tenha me dito que se sentia observado pelas aves e não observador, dentro da grade e não fora dela. E que no meio de tanto tumulto, com certeza as três aves pareciam as únicas tranquilas.

Esta atividade interna autossuficiente está no coração deste trabalho e me acompanhou ao longo da balbúrdia destes dias difíceis. Fico feliz de perceber que de certa forma o trabalho já pressupunha isso, falava disso e defendia-se exatamente disso -queria estar consigo e não conosco, longe da barulheira que no entanto causava.

AUTOSSUFICIÊNCIA
Em vez da atividade do espectador, própria de tantas das melhores obras modernas, e que encontrou entre nós uma formulação extrema na ideia dos "Penetráveis" de Hélio Oiticica, a arte contemporânea parece estar se voltando para dentro, numa autossuficiência renitente.

Não é o lugar para desenvolver isto, mas, para dar dois exemplos memoráveis, acho que as "Elipses", de Richard Serra, apoiadas em si mesmas e não mais nas paredes das instituições, ou "O Ciclo Creamaster", de Matthew Barney, com suas infinitas dobras e relações internas, partilham esta característica. Meu trabalho acompanha de certa forma essa direção.

A institucionalização crescente da arte trouxe para junto dela uma pletora de discursos institucionais, todos perfeitamente centrados, seguros de si e disputando espaço na mídia e nas oportunidades orçamentárias. Isso vem, talvez, do estilhaçamento das grandes noções universais que acompanharam a formação do mundo moderno: política, religião, burguesia, proletariado, luta de classes, direita, esquerda etc.

Com a quebra dessas noções universais, os particulares (ecologia, minorias étnicas, minorias sexuais etc.) firmaram-se, cheios de si, pontudos, zelosos de suas verdades. A arte talvez seja a última experiência universalizante, ou ao menos não simétrica à discursividade do mundo, e acho que tende a ser cada vez mais atacada, toda vez que discrepar, como soberba e como arbítrio. Mas penso que é isso mesmo que ela deve manter: sua soberba e seu arbítrio, para que possa continuar criando.

DESFAÇATEZ
Pois isso para mim foi o mais impressionante de tudo: a absoluta incapacidade, digamos, interpretativa de quem me atacou, a recusa de ver outra coisa, de relacionar o sentimento de adesão ou de repulsa que meu trabalho tenha causado com qualquer coisa proposta por ele, em suma, a desfaçatez com que foi usado como trampolim para um discurso já pronto, anterior a ele, que via nele apenas uma possibilidade de irradiação.

Para isso, é claro, o principal ingrediente é que fosse tomado de modo absolutamente opaco e literal, espécie de cadáver sem significação. Para que possa ser veículo estrito de discursos e de grupos, sem que utilize seus recursos, digamos, naturais (sedução, desejo, ambivalência), o trabalho de arte tem de estar, de fato, desde o início definitivamente morto. Daí, creio, a ferocidade com que fui atacado -uma espécie de operação higiênica preventiva, para impedir que qualquer germe de espanto, ambiguidade, beleza, estupor, pudesse aparecer, desqualificando o desejado consenso.

No fundo, acho que a frase famosa de Frank Stella, que jogou uma pá de cal nas ilusões subjetivas de começos dos anos 60 e inaugurou as poéticas minimalistas que duram até hoje, "What you see is what you see" ("O que você está vendo é o que você está vendo"), parece ter migrado da arte para o mundo. A literalidade das obras de um Carl Andre ou de um Donald Judd transferiu-se inteira para as instituições e para o público.

Por isso talvez caiba hoje à arte a tarefa bastante simples, mas tão difícil, de dizer exatamente o contrário: "O que você está vendo NÃO é o que você está vendo". Ou seja, sonhar. Ou, como diz a letra da canção, "Bandeira branca, amor".

Nuno Ramos


Sobre a retirada dos urubus: Ibama determina retirada dos urubus da Bienal de SP

Entrevista com o artista

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

OBRA DE ARGENTINO É RETIRADA DA BIENAL

A 29ª Bienal de São Paulo ainda nem foi aberta ao público e já criou algumas boas polêmicas. Adoro isso. Uma delas é a obra do argentino Roberto Jacoby, que comentei anteriormente. O Ministério Público Federal entendeu que ela faz apologia ao PT e orientou a sua retirada do evento, para evitar possíveis complicações político-eleitorais. Saiba os detalhes na matéria publicada originamente em G1, que reproduzo abaixo:


Obra com fotos de Serra e Dilma é coberta na Bienal de São Paulo
Assessoria de imprensa do evento informou que trabalho será retirado.
Obra do argentino Roberto Jacoby contém apologia à candidata do PT.
Do G1, em São Paulo



A obra “El alma nunca piensa sin imagen” (“A alma nunca pensa sem imagem”, em português), do artista argentino Roberto Jacoby, foi coberta na tarde desta quarta-feira (22) na 29º Bienal de São Paulo.

A assessoria de imprensa do evento, que só abre para o público neste sábado, informou que a obra será retirada do Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo por orientação do Ministério Público Federal.

O trabalho de Jacoby inclui um palanque com microfone, vídeos e stencils que fazem apologia à campanha da candidata do PT à Presidência da República, Dilma Rousseff, retratada na obra em um grande mural com chapéu de cangaceira ao lado de um carrancudo José Serra.

Durante a montagem da obra, assistentes do artista usavam camisetas vermelhas com a frase "Brigada Argentina por Dilma".

Em um ofício enviado à Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo nesta terça-feira, os organizadores da Bienal afirmaram que, inicialmente, a obra de Jacoby "seria uma instalação que representaria, de forma fictícia, o momento das eleições presidenciais no Brasil, sem qualquer tendência política a partido ou mesmo a algum candidato". No mesmo texto, a entidade diz que ficou "surpresa" ao se deparar com "uma obra representando verdadeira campanha política" em favor de Dilma e pede orientações para "não ficar sujeita a qualquer penalidade decorrente de transgressão à legislação eleitoral".

'Cabos eleitorais'

O ofício enviado à PRE-SP menciona ainda uma reportagem publicada pelo jornal "Folha de S. Paulo" em 17 de setembro em que o artista afirmava sua preferência pela "continuidade do governo do PT" e dizia que sua obra na Bienal incluiria "25 cabos eleitorais argentinos distribuindo panfletos, adesivos e buttons do PT e de sua candidata".

Em resposta à Bienal, a PRE-SP revelou que a exibição da peça pode caracterizar crime eleitoral com base no artigo 37 da lei 9504/97, que proíbe a "veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta, fixação de placas, estandartes, faixas e assemelhados" em bens cujo uso dependa do Poder Públicos — a exposição acontecerá no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, local que se enquadraria na classificação.

A opção de retirar a obra do espaço expositivo foi comunicada ao artista na própria terça-feira em carta assinada por Salo Kibrit, um dos diretores da Fundação Bienal de São Paulo, e enviada ao G1 pela assessoria de imprensa do evento nesta quarta.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

POLÍTICA E, TALVEZ, ARTE



A 29ª Bienal de Arte de São Paulo está chegando – estreia dia 25 de setembro – e já se fala muito dela, basta abrir qualquer jornal ou revista especializada. O tema escolhido está diretamente relacionado com arte e política e, neste estranho ano eleitoral, parece bastante pertinente. Na verdade, espera-se que as discussões não o tomem ao pé da letra, mas que entendam "política" como uma manifestação social e expressiva, de significação mais ampla. Só que o argentino Roberto Jacoby deixará toda a poesia de lado e fará uma instalação inspirada na paixão que sente pelo PT. Ao que tudo indica, esta será precursora de alguns escândalos.

"Ao longo dos dois meses e meio da megaexposição internacional de arte, Jacoby terá cerca de 25 'cabos eleitorais' argentinos distribuindo panfletos, adesivos e buttons do PT e de sua candidata à Presidência da República", diz a Folha de São Paulo.

Segundo o autor da obra, "tudo é artístico" e a presença de Dilma Rousseff na Bienal é inevitável.

Será possível dissociar sua instalação de uma simples propaganda política?

Não que eu concorde com Jacoby ou aprecie a proposta, mas acho que existe sim uma possibilidade de entendê-la como arte e não como propaganda, e a resposta está num fato simples: ela acontece "no museu", quer dizer, dentro da instituição artística.

Essa solução é antiga. Em 1917, por exemplo, Marcelo Duchamp levou um mictório para dentro da galeria e aquela mudança de ambiente, somada à atitude do artista, o transformou em arte. Se voltarmos um pouco mais no tempo, chegaremos aos famosos Salões, que ditavam o que era arte de verdade e o que poderia ser descartado. Como faziam isso? Selecionando as pinturas que seriam expostas em suas paredes, ou seja, lá dentro, condecoradas e institucionalizadas.

Ao que parece, o PT não tem nenhum envolvimento direto com Jacoby; a manifestação acontece de pura e espontânea vontade, fruto de um fanatismo pra lá de esquisito. Mais esquisitas ainda foram suas declarações à Folha, ao admitir que gosta de Lula, porém não conhece Dilma muito bem: "O que conheço é o que está na internet. Sei que é economista, muito capaz, estudiosa e se transformou em especialista em energia elétrica num país tão grande como o Brasil. De Serra, não sei muito".

Fiquei curioso para ver a instalação. E ansioso pelos debates subsequentes. Porque, nessa proposta de unir arte e política num mesmo espaço – público, diga-se de passagem –, o mínimo que se espera é discussão. A arte está aí para isso. A reação dos visitantes também.


Leia a matéria completa da Folha.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

ARTE DE VERDADE, NUA E CRUA



A mostra Umbraculum, do belga Jan Fabre, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, não combina com estômagos fracos. São dezenove trabalhos, entre instalações, desenhos e vídeos, que quase sempre fazem referência à morte. Basta um primeiro olhar para sentir o clima: um crânio verde fixado à parede de maneira semelhante a um troféu de caça, mantos sacerdotais flutuantes e bichos pendurados em ganchos que pendem do teto. Só que é o segundo olhar que gera mais repulsa, amplificando aquele sentimento anterior. Isso acontece quando lemos as plaquinhas informativas e descobrimos que o crânio, por exemplo, é verde por conta das cascas de besouro que o envolvem; os mantos são constituídos de ossos humanos finamente cortados e costurados uns aos outros; e os bichos são – ou foram – reais, agora empalhados. Essa mudança na percepção do visitante é, na minha opinião, o mais curioso da mostra.

A opção do artista por materiais “de verdade” transforma completamente a apreensão do conteúdo. Os desenhos de papagaio, por exemplo, adquirem um novo significado quando descobrimos que foram coloridos com esperma. Na parede oposta, há outros, feitos com sangue. Além disso, o visitante ainda encontrará carne apodrecendo, um autorretrato coberto com pregos dourados e motosserras espalhados pelas salas do instituto. Esse aspecto grotesto, macabro, muitas vezes se sobrepõe ao simbolismo dos materiais, tais como a metamorfose do besouro e a transcendência da meditação e do trabalho, que a curadora Beatriz Bustos destaca no texto de apresentação. Mas, vencido o impacto inicial, é possível perceber ali algo além de nossos próprios preconceitos.



A tarefa não é fácil. Pois o artista se aproveita do choque para trazer à tona assuntos que normalmente evitamos no dia-a-dia, ou que preferimos mascarar com mitos, crenças e sentimentos enganosos. Como isso acontece contra a nossa vontade, nos sentimos agredidos, moralmente violados. Parte do mérito de Jan Fabre vem daí.

As obras exibidas abarcam cerca de trinta anos de uma carreira internacional consistente, que só agora recebe a primeira individual no país. Trata-se de uma boa oportunidade para conhecer o trabalho do artista e, de quebra, fazer um teste de resistência a enjoo. Ainda bem que os cérebros utilizados em uma das obras são de resina. Porque, se fossem de verdade, eu também teria colocado algumas entranhas à mostra. Eca!


UMBRACULUM para São Paulo.
Um lugar na sombra para pensar e trabalhar.

De 13 de agosto a 10 de outubro.
www.institutotomieohtake.org.br

sexta-feira, 16 de julho de 2010

MEMÓRIA, VERDADE, JUSTIÇA



A repressão durante a ditadura militar foi dura em todos os países da América do Sul. Agora, se já conhecemos pouco da história brasileira – os arquivos oficiais permanecem vergonhosamente fechados –, imagine as dos outros países.

Na cidade de Cordoba, a mais ou menos 600 quilômetros de Buenos Aires, encontrei esta antiga cadeia para presos políticos, onde muitos foram assumidamente assassinados ou simplesmente "desapareceram".

Ali funciona agora um memorial, nos moldes do nosso prédio do DOPS, no bairro da Luz, em São Paulo. As paredes externas exibem os nomes das vítimas da ditadura na Província de Cordoba. "Pessoas que entre 1969 e 1983 foram sequestradas, torturadas e executadas pelas forças repressivas do Estado", como diz o mural.

Tornar seus nomes públicos é uma maneira de mantê-los vivos na memória e dizer "Nunca Mais".


Para saber mais sobre a repressão no Brasil, acesse as Memórias Reveladas.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O SUGESTIVO BALANÇO DAS ÁGUAS



A sensação imediata é de se perder naqueles mares em fúria que se debatem em movimentos frenéticos pelas paredes do salão. Só que não há água de verdade ali, nada se movimenta, há apenas uma sugestão, uma imitação. E o gostoso mesmo é se deixar perder na solidão das ondas, na profundidade do azul, nos grafismos quase orientais que a artista Sandra Cinto realizou especialmente para o piso térreo do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.

Seu trabalho manual é tão complexo quanto poético. São pinturas de grandes dimensões feitas com tinta acrílica, caneta permanente prata (também conhecida como "caneta spray"), telas de algodão, placas de MDF e muita sensibilidade. Têm a imitação como princípio e deixam claro que se trata de criações inspiradas nas águas. Mas... em que águas? As chuvas, os mares, os rios, a natureza; tudo está ali, imitado, recriado, traduzido em arte.



Em alguns momentos, as pinturas lembram grafitti, talvez pelo aspecto metálico da tinta, talvez porque o MDF se confunde com as paredes do lugar. Aliás, paredes que também estão pintadas de azul e, junto com a imagem das águas, envolvem o espectador num mergulho profundo. Mérito do cuidado que a artista teve não apenas com os objetos, mas também com a arquitetura ao redor.

Há volume, imensidão, movimento. Eles evocam o sublime, aquele receio primordial que impele e repele, que dá vontade de explorar porém exige cautela, tudo aos pouquinhos, como nas fábulas, nas aventuras infantis.

Para completar a mostra, há também uma instalação feita com barquinhos de papel, todos eles espalhados voluptuosamente pelo chão, modificando a dureza do piso, transformando-o numa superfície líquida e móvel. Ela deixa-nos a navegar, navegar e navegar pelo oceano da imaginação.

Imitação da água é uma apologia a esse elemento ao mesmo tempo banal e místico, uma poesia transformada em traços e cor. Se você deixar, o trabalho de Sandra Cinto vai lhe carregar para um novo mundo.


IMITAÇÃO DA ÁGUA, de Sandra Cinto
Instituto Tomie Ohtake
De 6 de julho a 1 de agosto
Curadoria de Jacopo Crivelli Visconti