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terça-feira, 9 de setembro de 2025

ANGÚSTIA EM TESTAMENTO: LUCAS VERZOLA FALA SOBRE O LIVRO "INFELIZES À SUA MANEIRA"

“Todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Esta frase de abertura do romance Anna Karenina, de Tolstói, inspira o título de Infelizes à sua maneira, livro mais recente do brasileiro Lucas Verzola, publicado pela editora Incompleta em 2024. Encadernado com espiral em projeto gráfico que sugere um velho álbum de fotografias, o projeto apresenta imagens retiradas do acervo familiar do autor junto a textos em prosa com extensão de até quatro páginas cada.
  

Os textos são também instantes narrativos. Fizeram eu me lembrar de uma ideia do cineasta alemão Wim Wenders, para quem a verdadeira natureza do enquadramento reside no que é deixado de fora da imagem, não no que é revelado. As breves histórias escritas por Lucas Verzola têm também esse potencial de serem fragmentos de algo maior ao mesmo tempo que atuam como recortes pelos quais conhecemos mais a intenção do autor do que sobre uma dada realidade.

Tal intenção é ousada: profanar as sacrossantas histórias familiares (as suas próprias, no caso). E nesse sentido Lucas Verzola traduz aquela inspiração russa para um contexto brasileiro que resvala em Nelson Rodrigues, explicitando hipocrisias, descaracterizando moralismos disfarçados de tradição, escarafunchando violências recatadas e do lar, fuxicando escândalos íntimos. 

Qualquer semelhança com as histórias reais dos leitores não é mera coincidência. O que nos faz pensar que talvez as infelicidades não sejam assim tão singulares quanto lemos naquele antigo romance de Tolstói — também elas se parecem.  

 

“Então, essa é a graça da humanidade. A gente está sempre andando e sempre no mesmo lugar.”
Infelizes à sua maneira, Lucas Verzola
  

A seguir, o autor responde a algumas questões sobre o livro. 

Assim como os personagens mudam de foto para foto, também os narradores são outros a cada história. A voz por vezes é feminina ou masculina em primeira pessoa, de variadas idades, tempos e classes sociais, outras vezes narra de fora, como observadora. Isso resulta em um livro de contos que se conectam e poderiam ser fragmentos de uma história maior. Projetos coerentes assim se destacam num universo em que as coletâneas, de modo geral, não apresentam grande entrosamento entre as partes. Você já tinha feito isso antes, no Em conflito com a Lei (Reformatório, 2016), em que as narrativas compartilham o contexto do acolhimento de menores na Fundação Casa. Nesse sentido, como foi planejar e executar esse projeto novo? 

Fico feliz que você tenha feito a associação com Em conflito com a lei. Na minha concepção, os dois livros são de alguma forma parentes, com o perdão de permanecer no léxico familiar. Ambos partem de uma premissa temática explícita, mas o que mais os aproxima é minha compreensão de que a obra final só vai dar conta de oferecer uma pluralidade de vozes e de perspectivas — e assim criar o efeito de mosaico que busquei nos dois projetos — se entregar igualmente uma variedade de experiências estéticas. Assim, ainda que haja um metanarrador que copila todas as histórias e reúne em um álbum, cada conto em particular tem sua própria voz, que o autor só descobre quando mergulha na fotografia-espelho para fuçar no que será explorado. Essa compreensão só aconteceu depois que eu já havia escrito alguns dos contos.

Eu sabia que queria explorar histórias familiares e as fotografias sempre me pareceram pontos de partida interessantíssimos. Vários autores contemporâneos trabalharam assim, basta citar o livro de poemas Álbum, da Ana Elisa Ribeiro, e o romance Saia da frente do meu sol, do Felipe Charbel. Mas o Bruno Zeni tem um conto, publicado no jornal Cândido, que foi a minha principal influência. Ele descreve em detalhes uma foto do pai com os avós e especula muita coisa — enfim, bons contos não são passíveis de resumo –, o que tinha a ver com as investigações que eu desejava desenvolver. Eu até tentei imitar, como exercício, o que o Zeni fez com fotos minhas, mas não gostei do resultado e deixei meio de lado. Quando o editor Cassiano Viana, um grande amigo, me convidou para escrever um texto que se relacionasse de alguma forma com o universo das fotografias, eu retomei o projeto, mas precisei entender aonde queria chegar. A partir dessa compreensão, tive uma fase criativa muito boa e não demorei para reunir uma quantidade de contos que podiam compor um livro, que desde sempre foi imaginado enquanto um objeto artístico. Eu jamais cogitei levar as duplas de texto e imagem para um livro tradicional.

Embora o livro traga duplas formadas quase sempre por uma foto e um texto, este não é descrição, legenda ou comentário daquela, chegando mesmo a ser uma imagem outra, distorcida, até uma contradição. Como você lidou com essa relação entre a imagem e a narrativa em prosa, de modo que pudessem aparecer lado a lado nas páginas do Infelizes à sua maneira?

Escrever sobre imagens, a partir de fotos ou até mesmo ter uma imagem ilustrando um texto são agires estéticos diferentes. E eu decidi outro caminho: escrever contra fotografias. Claro que informalmente eu sigo dizendo que os textos partem das fotos, o que é mais fácil de explicar, mas a verdade é que o que me moveu foi a criação ficcional e que os elementos fotográficos compõem — e não ilustram — a criação literária. Personagens são inventados tanto no texto como na foto, e ao mesmo tempo em que minha ação procurava enquadrar os contos como se fotografias fossem, eu também desejava transformar as fotografias em ficção. Falamos muito em borrar as fronteiras dos gêneros literários para explorar novas formas e entender como cada história pode ser contada — e eu fiz bastante isso em Em conflito com a lei –, mas o passo que eu tentei dar aqui foi além, foi tentar borrar as fronteiras entre dois domínios artísticos: a fotografia e a literatura. O que uma pode emprestar para a outra? Essa pergunta foi uma das que me orientaram durante a execução do projeto.


As imagens foram selecionadas do seu acervo familiar. Você conhece e de fato se inspirou nas pessoas retratadas? Em que medida tomou liberdades para criar ficções ou se manteve fiel a uma narrativa já estabelecida sobre este ou aquele familiar? Também me interessa saber como você pensa essa transferência de um material íntimo para a esfera pública.

Vou começar pelo final, porque é algo em que penso muito desde que mergulhei no projeto. Hoje em dia, as manifestações artísticas que mais me interessam são justamente as que constroem, de alguma forma, pontes entre o material íntimo e a esfera pública, para ficar nos termos que você usou. Nos últimos tempos, o debate sobre a autoficção voltou à tona, sobretudo com o Nobel da Annie Ernaux e o fenômeno pop do Édouard Louis. Apesar de gostar bastante dos dois autores, o exemplo mais cortante de autoficção com que me deparei nos últimos anos foi Triste tigre, da também francesa Neige Sinno, que saiu há uns dois meses pela Record. Não vou dizer que a recepção tenha sido absolutamente pequena — até porque ela foi publicada por uma editora grande, esteve na programação principal da Flip e vem sendo resenhada em veículos relevantes –, mas não bombou tanto quanto os compatriotas. Enfim, para não me alongar, quero dizer que ela parte de uma experiência pessoal extremamente traumatizante — o estupro seriado praticado pelo padrasto — para criar uma literatura reflexiva e dialogar não só com experiências de outras pessoas, como também com violências estruturais.

Fazer arte é construir diálogos e, como um escritor do meu tempo, eu tento entender quais são os pontos de reflexão que fazem sentido e que também jogam com os meus interesses. No Brasil, existe uma tradição de livros e filmes que tratam da ditadura civil-militar e, se você olhar bem, os mais interessantes são os que entendem quais são as feridas que permanecem abertas, gerando traumas transgeracionais. Eu nasci sob o signo da dita democracia, mas sofro as consequências da não responsabilização dos comandantes e torturadores do período ditatorial.

O artista em geral e o escritor em específico é um intelectual público por definição — a não ser que você escreva diários confessionais e não deseje ser lido. E eu não deixo de ser artista quando fecho o computador e paro de escrever a cota do dia. Estou sempre observando, pensando, explorando, me posicionando de uma forma em que o agir-artístico sempre me guia. Claro que existem e sempre existirão camadas invioláveis de intimidade, mas essa transferência de assuntos familiares, que acontecem por excelência entre quatro paredes, para o domínio público é uma performance que me interessa, porque coloca em xeque diversos alicerces da família. Assim, a crítica à estrutura familiar, sobretudo a clássica, ocorre não só na esfera do discurso e seu conteúdo, mas também na sua forma quando eu decido abrir as caixas de sapato em que estavam as fotografias da minha família e convidar o leitor para folhear os álbuns.

Sobre conhecer as pessoas retratadas, hoje eu sei quem são praticamente todos. Mesmo aqueles de cujo nome não me lembro, sei mais ou menos quem são, de que lado da família vêm etc. E, não, não houve nenhuma inspiração direta nas pessoas reais além do que consta na foto. Claro, dependendo da fisionomia e do semblante, da expressão corporal, enfim, de como a pessoa se posiciona ao posar para um retrato ou ser flagrada pelo fotógrafo, já é possível deduzir muito sobre ela, mas não quis me basear fielmente nas histórias dos meus parentes.

Além das fotografias, você usou documentos, tais como carteira de saúde, nota de falecimento, uma nota fiscal. Qual é a diferença entre eles e as fotografias, em especial quanto ao potencial narrativo?

Aí eu preciso te confessar que esses outros elementos gráficos não estavam originalmente nos contos, antes da reunião no livro-álbum. O grosso da criação ficcional se deu à revelia da existência desses documentos, que foram incorporados ao livro já na etapa de edição.

Mas, claro, eles só foram incluídos porque de alguma forma dialogavam com o universo que construí em conjunto dos editores (Laura Del Rey e Victor Pedrosa Paixão) e da artista responsável pela parte gráfica (Letícia Lampert), que considero coautores do projeto.

Existe uma sutil separação do livro em duas partes bastante desiguais. Tudo o que falei até agora é verdade, menos em relação aos quatro últimos contos — esses sim com elementos biográficos dos meus quatro avós. Para fazer essa divisão, escolhemos a nota fiscal à qual você fez menção porque ela em si já conta uma história — de um final de semana que meus avós passaram em um hotel — e tem um erro no nome do meu avô (em vez de Poty, está Pery). Achamos que ela tinha tudo a ver com a transição da ficção mais dura para os textos finais, que se baseiam em fatos ditos reais.

E, sim, vejo toda a potencialidade nesses documentos familiares e, diante deles, me sinto como um historiador torto disposto a contar uma história inventada, que reflete, de alguma forma, a história do país. Não explorei tanto assim esses elementos em Infelizes à sua maneira, mas essa nota fiscal reaparecerá em um livro futuro.

Ainda que as breves cenas retratadas na escrita tenham foco nos personagens, há todo um contexto histórico que os acompanha. Você buscou outras fontes de pesquisa para situar as narrativas? Como lidou com esse processo?

Não houve exatamente uma pesquisa histórica direcionada para a criação das histórias, mas eu atribuí os contextos que já conhecia previamente. Quando escrevi a partir — vocês já sabem que não foi exatamente a partir — de uma foto colorida do começo dos anos 70, resolvi localizá-la temporalmente no período da Copa do Mundo do México, porque coincide com as primeiras transmissões em cores do torneio. Então criei um personagem que está fascinado pela possibilidade de assistir a uma transmissão colorida — o segredo aqui é que, no Brasil, a TV em cores só chegaria dois anos depois, mas já disse que o que me orienta é a ficção. De qualquer forma, a gente sabe que a participação da Seleção Brasileira nessa Copa foi sequestrada pelos militares, que a usaram como propaganda do regime. Paralelamente a isso, rolava a Guerrilha do Araguaia. Uma coisa vai puxando a outra e tudo isso está condensado no mesmo conto.

Seus escritos, conforme a nota ao fim do livro, são “assombrados” pelas fotografias de sua família. Pensando agora como artista que se dispõe a essa tarefa de remexer o passado, qual foi o esforço emocional que o projeto demandou?

Quanto mais eu me aproximava dos quatro textos com elementos biográficos — que desde e o início do projeto eu já sabia que escreveria e que encerrariam o livro –, mais envolvido emocionalmente eu ficava, o que não significa que não tenha sido impactado pelas fotos que geraram construções amplamente ficcionais.

Mesmo sem conhecer pessoalmente boa parte das pessoas retratadas, a gente não mexe no passado e fica impune. Então, ainda que eu construísse histórias completamente diferentes da vida real, aqueles personagens me acompanhavam por certo período e nem sempre foi fácil me despedir deles.

Mas mais do que minha relação pessoal com os familiares retratados — afinal, boa parte eu sequer conheci –, o que pegava mesmo era quando eu tentava entender como as questões essenciais que eu investigava poderia tê-los afetado. As feridas abertas, os traumas transgeracionais, as chagas que se repetem, ainda que por um capricho atávico tenham se escondido por um tempo. Pensar no homem que sou hoje como herdeiro das angústias dos que vieram antes. Aquilo que de mais nefasto eu reproduzo, aquilo que consegui interromper. Tentar entender do que dá e do que não dá pra escapar. Bom, basicamente toda a minha literatura se funda nesse questionamento. Mas isso é assunto pra outro papo.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

DIANTE DA IMAGEM

Faz um ano que publiquei o livro Testemunho ocular, formado por contos e dois poemas, além de alguns experimentos em páginas pretas que chamo de “ponto cego”. Selecionar os textos não foi difícil; desafio foi criar a capa, o que me fez quebrar a cabeça junto com o editor Christian Piana ao longo de mais ou menos vinte tentativas. Desde o início insisti que fossem urubus, e sem dúvida existem imagens tenebrosas deles, que chocariam o leitor potencial durante seu passeio entre as prateleiras da livraria. Além da referência direta ao conto Rapinagem, existe em todo o livro um sentimento de espreita, portanto a ideia viria a calhar. Enquanto nos convencíamos disso, experimentamos alternativas aos bichos. Nenhuma delas parecia tão pertinente. Por fim, acabamos com duas fotografias possíveis: a que foi escolhida e uma bem mais chamativa, que escancarava o que as aves têm de mais repugnante, mostrando um bando delas empoleirado numa árvore caquética. Esta renderia uma capa impactante, sem dúvida. Ainda assim fiquei com a outra, sugestiva em vez de chamativa, pois só então compreendi sua razão de ser: as histórias do livro compartilham um ponto comum, que é uma espécie de invisibilidade capaz de produzir tipos de perturbação. Pode ser um mistério, uma ocultação, um não dito. Para acompanhá-lo, a imagem da capa não poderia ser evidente, quer dizer, não poderia explicitar os urubus. Por isso escolhi aquela em que as aves aparecem ao longe, parecendo até passarinhos quaisquer ao leitor desatento. Na capa do Testemunho ocular, os urubus voam em círculos, porém não sabemos o que observam. Quem sabe a nós mesmos?


Essa relação da imagem com a literatura rende inúmeros caminhos de discussão, que vão muito além das capas dos livros. Nas histórias em quadrinhos, por exemplo, quase sempre texto e desenhos se complementam ao desenrolarem a narrativa. Não é necessário dizer que a roupa do Super-Homem é azul e vermelha, pois nós a vemos, mas os balões apresentam diálogos porque seria um tanto limitante – ou demasiado complexo – resolvê-los somente com desenhos.

Dia desses, durante uma oficina de escrita criativa, conversávamos sobre o impacto que uma imagem tem sobre o texto, no caso de livros adaptados para o cinema. Não à toa, sempre há leitor que se decepcione: enquanto o livro dá sugestões para que cada pessoa imagine os personagens conforme quiser, o cinema os apresenta de forma definitiva. Um verdadeiro paradoxo: o livro oferece a possibilidade de um imaginário prolífico, já o cinema, que detém o poder da imagem, reduz a imaginação a uma solução específica de ator, figurino, maquiagem etc. Depois de ver o filme, é difícil imaginar o personagem com rosto e trejeitos diferentes daqueles do ator que o interpretou. Em outras palavras, o predomínio da imagem decorre num achatamento do imaginário, ao menos no que diz respeito a esse tipo de caracterização. Não é o caso sempre, e com certeza há cineastas capazes de manter suas imagens abertas a muitos caminhos interpretativos, mas parte considerável dos filmes de grande circulação procura ser o mais explícita possível, sem preocupação com violentarem os olhos do espectador. Com isso, não me refiro a cenas de agressão ou de sexo – não se trata de uma questão moral –; preocupa-me mais a reiteração de clichês, essas violências menores que ferem profundamente a nossa subjetividade, como o soldado norte-americano, seja do exército ou sobre-humano, a salvar a população indefesa contra a ameaça estrangeira, para citar um exemplo banal entre tantos outros possíveis.

É também nesse sentido que a imagem sugestiva oferece um convite à imaginação, enquanto a evidente encerra toda uma potência de significados, avançando contra seu interlocutor, colonizando seu olhar, dominando e determinando suas capacidades sensíveis. São pontos pacíficos a exercerem um autoritarismo sobre o assunto ou o objeto. E, bem sabemos, de todo autoritarismo advém uma pobreza de relação com o outro, ou até mesmo um veto à experiência de alteridade.

Como é próprio das artes visuais subverter sentidos dados de antemão, levantando-se contra a domesticação do olhar, costumo perguntar aos artistas que entrevisto: como produzir imagens poéticas na atualidade, quando há um predomínio do imagético publicitário e dos clichês autobiográficos nas redes sociais, os quais reforçam uma lógica perversa na relação com a sensibilidade e com a subjetividade contemporâneas?

No livro Diante da imagem, o historiador da arte Georges Didi-Huberman explica que “se quisermos abrir a ‘caixa da representação’, devemos praticar nela uma dupla rachadura ao meio: rachar ao meio a simples noção de imagem e rachar ao meio a noção simples de lógica”. Daí ele propor a imagem poética como rasgadura, capaz de abrir uma fenda nos paradigmas visuais.

De volta à literatura de ficção, encontramos diversos casos de escritores que agregaram imagens a seus textos. Uma linha criativa que pode ser traçada desde os surrealistas Louis Aragon e André Breton, em cujos livros O camponês de Paris, de 1926, e Nadja, de 1928, respectivamente, há anúncios de jornal, fotografias, desenhos etc. Tal linha faz diversos desvios ao longo de um século, passando pelos livros de W. G. Sebald, por exemplo, até chegar aos mais recentes, como o romance Opisanie swiata, da nossa conterrânea Veronica Stigger. Diferentemente da ilustração, que pretende iluminar o texto, as imagens mais interessantes apresentadas por esses autores são aquelas que contrastam com ele, produzindo ruídos ou tensionamentos. Pois foi mote dos próprios surrealistas criar condições para estranhar o que se costuma ter como familiar.

Em outubro próximo, publicarei o romance Bem diante dos meus olhos, que retoma algumas questões do Testemunho ocular sob outras perspectivas. A capa ainda é surpresa e vem dando o que pensar. O livro conta a história de uma viagem em que pai e filho se perdem numa antiga vila onde é difícil acreditar até mesmo no que os olhos veem nitidamente. Essa problemática que atravessa os campos das artes visuais e da literatura me interessa de maneira especial. Quem sabe não retomamos o assunto em breve?

sábado, 1 de outubro de 2016

O NÃO DITO

O que está fora de quadro é quase mais importante do que aquilo que a tela exibe, diz o cineasta alemão Wim Wenders no documentário Janela da Alma. O ato de enquadrar uma cena consiste em excluir elementos visuais. A cada enquadramento o diretor decide o que faz parte da história e o que não deve fazer. Algo similar ocorre além do cinema. Nestes tempos de superexposição de imagens é importante abrir os olhos para o que é omitido das histórias que nos contam. Nos veículos de comunicação, nas redes sociais, nos discursos oficiais e nas fofocas do dia a dia, o que é propositalmente não dito? Quem faz essa seleção e com quais critérios? Quem dirige a nossa vida?

A perspectiva pela qual olhamos um acontecimento costuma vir pré-determinada. Pois quase sempre ocorre que não estivemos lá, não vimos com nossos próprios olhos. O instante decisivo é oferecido depois, junto de uma legenda sobre o que pensar a respeito. Nossas opiniões, em geral, se formam e se apoiam nesse terreno movediço. Porém com raras exceções assumimos a sua fragilidade, parcialidade e inconsistência. Nós as levamos a sério e as defendemos com unhas e dentes.

Enquadramento original feito pela fotógrafa Nilüfer Demir

A fotografia do menino curdo afogado numa praia turca após o naufrágio do bote em que se refugiara com outros imigrantes foi manipulada pela imprensa. Em primeiro lugar porque havia diversos registros da tragédia, feitos por uma repórter que passava pelo local, porém somente uma imagem foi amplamente divulgada. Ela foi editada para publicação: além da criança deitada de barriga para baixo na areia e do policial que a resgatou, o enquadramento original mostra outro policial ao lado, com câmera fotográfica na mão. Ao fundo há dois pescadores, possivelmente turistas. Vemos ainda um furgão passando na estrada. Tudo isso foi deixado fora da cena para enfatizar o drama dos refugiados, que acabou simbolizado no mundo inteiro por aquele garotinho.

O cotidiano da praia foi excluído do quadro em prol do que Roland Barthes chamaria de punctum: o detalhe que, quando percebido, sobressai ao plano geral, salta aos olhos e nos afeta. Ele se expande por toda a foto e para além dela, transforma o entorno, a vida do espectador, o passado, o presente e o futuro. No livro A Câmara Clara, o autor fala ainda de outra natureza desse pungir, que não está necessariamente atrelada à forma, mas à intensidade manifesta no tempo que nos faz estremecer por uma catástrofe já ocorrida.

Edição reproduzida pelo NY Times (e pela imprensa em geral)

Não existe foto sem edição. Desde o enquadramento até a publicação e o seu compartilhamento, escolhas são feitas. A imagem original não é mais verdadeira do que a editada, são apenas narrativas diferentes. O que os veículos de comunicação quiseram, no caso daquela fotografia, foi enfatizar o horror do acontecimento eliminando tudo o que havia de banal ao redor. O resultado é praticamente todo um punctum, que jamais passaria despercebido. As consequências da manipulação foram positivas sob muitos aspectos: houve sensibilização dos discursos sobre a questão dos refugiados, ações sociais de auxílio e mobilização política na Europa. Além de que ficou impossível para o resto do mundo ignorar a situação calamitosa da região.

A manipulação que se faz no sentido inverso é mais perigosa: quando o comunicador enfatiza o banal com objetivo de ignorar o que o acontecimento tem de grave. Somos ludibriados o tempo inteiro por esse perverso modo de produzir discurso nas mais variadas instâncias da vida. Precisamos desviar do evidente e nos perguntar: que parte da história foi deixada de fora? Por qual motivo, com qual interesse? Em nome de quê? Talvez o que não foi mostrado tenha mais a dizer do que a informação explicitada que mantém nossos olhos ocupados.

Barthes alerta também para o perigo da fotografia tida como lembrança. Para ele, trata-se de uma contralembrança, uma vez que apaga o antes e o depois, reduzindo o vivido a uma imagem estática. “A fotografia é violenta”, ele diz. “Não porque mostra violências, mas porque a cada vez enche de força a vista e porque nela nada pode se recusar nem se transformar”.

Barthes sugere que existe um grau de veracidade nas fotografias, o qual cristaliza os fluxos de significação do assunto e as pulsações próprias da vida que o contempla. As imagens estão quase sempre tentando nos dar uma prova factual. Mas elas são ilusões, artifícios, ficções. Podem corresponder a um referente na realidade. Mas na prática oferecem uma narrativa que compõe nossa subjetividade sem que a percebamos.

O artista chinês Ai Weiwei reproduz a cena trágica

Para Wim Wenders, uma vez olhada, a imagem permanecerá viva em nós. Concordo. E acrescentaria que, do mesmo modo, o que não foi mostrado ou o que recusamos a ver permanecerá a nos assombrar.

A demasia de imagens na atualidade modifica a todo instante a imagem que produzimos de nós mesmos. Por isso é necessário ter cuidado e querer saber: em que elas estão nos transformando?

Todos nós temos uma câmera no bolso, somos potenciais fotógrafos em tempo integral. Também estamos sendo filmados e temos que sorrir, atuar, obedecer às regras da vigilância. Alimentamos com fartura a alta profusão de imagens que circulam no contemporâneo. Enquanto as artes da fotografia e do cinema tentam produzir alguma resistência. Em vez de mais imagens, deveriam criar não imagens? Contrafotografias? Antiexposições? Como raspar o clichê e dar a ver outras possibilidades visuais? Como perceber o que foi suprimido daquela verdade em que baseamos as nossas opiniões mais rígidas?

terça-feira, 8 de setembro de 2015

TODOS ÍNDIOS

Foto de Eduardo Viveiros de Castro

Isto aqui trata daquilo que somos e do que pretendemos ser, disse Danilo Santos de Miranda na cerimônia de abertura da exposição. Somos índios. Quer queira, quer não. Todos aqueles que nos chamamos todos, somos todos os índios. Então, por que é tão estranho? Houve uma performance que simulava um ritual de tribo, eu estava ali no meio dos atores, eles cantando e dançando, eu estava ali e achava tudo muito estranho, ao mesmo tempo em que achava estranho esse próprio estranhamento, tinha vergonha dele. Por que a cultura indígena é pouco familiar a nós, que somos índios – desde o berço – sem saber? Por que não identificamos seus meios nem apreendemos seus sentidos? Por que não somos capazes de enxergar nossas raízes, soterradas ainda vivas por toneladas de ordem e progresso, toneladas de preconceitos e desrespeito?

Se a voz não partir de dentro do peito, é melhor que nada fale. Não pode haver voz que fale "sobre" os índios. Que sujeito é esse que se põe de fora, que se põe acima e quer determiná-los? Os índios são isso ou são aquilo. Não. Ou os índios somos, ou é prudente calar a própria voz, calar essa arma que já disparou as ignorâncias mais violentas. Falar a respeito dos índios, mesmo sem conhecê-los, mesmo que o único índio já visto seja aquele da cartilha escolar, da letra "i", já é falar sobre nós, sobre esse sujeito que fala, sobre seu passado, seu presente e seu futuro. Sobre o que somos e o que pretendemos ser.

Entretanto o que o índio deseja é poder permanecer diferente de nós, explica Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo autor das fotos expostas no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Essa igualdade diferente, antes de ser um paradoxo dos tempos atuais, é um dos problemas mais delicados que criamos para nós mesmos ao longo de séculos de massacres velados. É um problema de identificação cultural pautado na invisibilidade das vítimas e, pior, é questão de sobrevivência. Dos índios? Sim, de todos nós.

Chegamos a um ponto em que não parece haver solução. O que existe é somente a oportunidade de pendurar uma rede digna onde o corpo ferido do índio possa repousar. Onde nosso corpo, quem sabe, possa curar as feridas e aprender com as cicatrizes, caso sobreviva. Corpo, quer dizer, "conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus", segundo o antropólogo-fotógrafo. Corpo individual, corpo coletivo, corpo sociocultural. É a partir do corpo – e somente dele – que se dá nossa relação com o mundo. Variações do corpo selvagem, conforme o título da mencionada exposição.

Foto de Eduardo Viveiros de Castro


O que pode ser feito é tocar o nosso sagrado com penas e sementes. Pintar nossa pele de urucum. Dar ritmo de chocalho à correria da metrópole. Incorporar a sensibilidade abandonada, vesti-la com pele de onça. Algo que os curadores Veronica Stigger e Eduardo Sterzi conseguiram propor com ética e sutileza. Pois não cabe idealizar o índio, não cabe idealizar a cultura nem a natureza, isso não faria o menor sentido; mas cabe muito bem provocar estranhamento, um estranhamento que denuncia nosso ponto de vista, que questiona nossas crenças, porque é somente assim que o índio em nosso sangue ouvirá o chamado e emergirá, esse índio que corre pela escuridão do nosso contemporâneo.

Freud dizia que estranho é o quase familiar, quase comum e reconhecível, que de algum modo não se encaixa na normalidade e por isso nos inquieta, por vezes até apavora. Próximo ao mesmo tempo em que longínquo. Esse estranho tem o poder de nos arrancar do conforto apático do dia a dia e nos levar a outro plano de realidade. Uma experiência transformadora, uma potência que, com sorte, vai nos fazer questionar a normalidade da situação. Não podemos continuar a achar "normal" o índio ser massacrado. Não podemos aceitar que suas terras sejam arrancadas à força. Não podemos achar normal que o índio continue sem voz política, invisível, impedido. Nós comemos alimentos indígenas, caminhamos por ruas indígenas, falamos com suas palavras, curamos enfermidades com suas ervas e ritos. Somos todos nativos do Brasil. Não é normal, nem jamais poderá ser, carregar um índio morto no peito, nem deixar que seu sangue morto corra pelos rios do nosso corpo selvagem. Já basta de civilização.

Foto de Eduardo Viveiros de Castro

sexta-feira, 23 de maio de 2014

SP PRETO E BRANCO

Fotografia de Carlos Moreira, publicada pelas Edições Sesc em livro que leva o nome do autor
e reproduzida na revista do Sesc de maio de 2014

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O fotógrafo Georges Pacheco preparou o estúdio e deixou o disparador da câmera na mão de modelos cegos, que podiam escolher o momento em que a foto seria feita. Mesmo sem enxergarem, nota-se que alguns se preocuparam com a maneira como seriam vistos. Curioso, não?

Veja as fotos aqui: Le regard des aveugles

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

PESSOAS PEQUENAS NA CIDADE GRANDE



A arte de Slinkachu é tão divertida de se conhecer quanto interessante de se analisar. Em suma: ele cria cenas peculiares pela cidade, utilizando bonecos minúsculos, e as fotografa de perto e de longe. Depois, abandona as pecinhas ali mesmo, e a própria cidade fica responsável pelo destino delas.

Faz a gente pensar na peculiaridade da vida urbana, na efemeridade da existência e em nossa pequenez perante o entorno. Também põe em questão o próprio objeto de arte, já que os bonequinhos são abandonados e o único registro que resta daquelas interferências são as fotografias feitas pelo próprio artista. Essas fotografias assumem o papel de obra, transformam-se em livro, são comercializadas, participam de exibições etc.

Escolhi algumas imagens no site do artista para ilustrar este post (clique para ampliá-las). Você pode conferir outras aqui: Slinkachu_Little People









sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

É NATAL NA FLORESTA!


Deixe o Natal acender sua luz interior. Boas emoções e muitas felicidades!

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

ARTE E PUBLICIDADE: UMA RELAÇÃO


Não acho que publicidade é arte – para mim, são duas coisas quase excludentes. Vivo dizendo que diretor de arte [profissional responsável pela criação de imagens publicitárias] que se considera artista precisa estudar mais história da arte para entender a diferença. Redator que se considera escritor precisa estudar mais literatura. Digo isso sem desmerecer nenhuma das profissões, só não gosto de ver ninguém confundindo as coisas.

É verdade que, em fins do século XIX, quando a publicidade se profissionalizou e começou a ficar mais parecida com o que é hoje, muitos pintores ganhavam a vida fazendo pôsteres de perfume e de canetas tinteiro, assim como muitos escritores faziam frases de impacto a respeito de saponáceos, dentifrícios e fortificantes vitamínicos. Dava para ver tudo isso exposto nos bondes, e hoje essas propagandas se encontram em galerias de arte.

Mas, como disse antes, isso foi no passado, nos primórdios, e deve ter durado até a Pop Art, quando a crítica ao consumo se instaurou de vez e a arte se apropriou da linguagem publicitária para comunicar conceitos. Ali, já dava para ver que uma coisa era uma coisa e outra coisa era outra coisa, como explica o ditado.

Nada impede que um diretor de arte faça artes plásticas, que um redator escreva bons romances e que um fotógrafo publicitário revele propósitos artísticos. Ainda assim, uma coisa continua separada da outra, do mesmo modo como um psiquiatra é diferente de um psicólogo. Mas – e sempre tem um "mas" –, às vezes, essa distância se encurta, e a gente vê fotografias bem conceituais, anúncios lindos como pinturas e títulos ou comerciais de TV cheios de poesia.

Escrevi tudo isso motivado por uma campanha publicitária, vista numa notícia publicada hoje mesmo no Correio Popular de Campinas. Sugiro que você clique na imagem acima e veja também. É uma ideia tão marcante e tão crítica que, se tirássemos o logotipo da Benetton, poderíamos expôr em qualquer bienal de arte contemporânea.

É bem legal, para um consumidor, publicitário e pesquisador de arte, ver campanhas assim.









sexta-feira, 14 de outubro de 2011

terça-feira, 6 de setembro de 2011

ARTE NO LIXO



Lixo Extraordinário, documentário que concorreu ao Oscar deste ano, mostra como a arte pode envolver e transformar pessoas. É emocionante, mesmo para quem não se liga muito no assunto.

Trata-se de uma espécie de making of de um projeto artístico de Vik Muniz, em que fica evidente a complexidade da sua criação. Por trás das fotos exibidas em museus e galerias de todo o mundo existe uma vontade muito grande de fazê-las acontecer, uma equipe de especialistas e um longo tempo de execução.

Vi o filme no sábado passado, durante evento da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Na sequência, houve duas leituras críticas, acompanhadas de um debate aberto com a plateia. Os convidados para a mesa foram o jornalista Manuel da Costa Pinto e o psicanalista Plinio Montagna.

A conversa foi ótima, mas o filme foi melhor ainda, principalmente pelas questões que nos propõe. Por essas e por muitas outras, acho que você também precisa assistir.

Site oficial: LixoExtraordinário.net