Pesquise aqui

Mostrando postagens com marcador arquitetura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador arquitetura. Mostrar todas as postagens

domingo, 27 de dezembro de 2020

CIDADE EM BRANCO

Foto de Frank Busch


O lugar é amplo e bem iluminado. Tudo é pintado de branco: as paredes, o teto e até o piso, tal como nos famosos e muito criticados museus “cubos brancos” surgidos com a arte moderna, ainda bastante comuns. Para esta performance, é importante que seja assim, o que não implica, necessariamente, uma ideia ultrapassada. Veremos.

No centro do recinto há uma mesa grande e redonda, talvez com um buraco no meio, como se olhássemos para o aro de uma roda de bicicleta gigante. É importante que seja circular e branca. Do lado de fora dessa mesa há cadeiras, no mínimo duas dezenas. São brancas. E são belas, quer dizer, não são simples cadeiras plásticas, dessas que usamos em ocasiões quaisquer. Temos ali uma ocasião especial.

A mesa se encontra forrada com papel manteiga, como nos restaurantes que eu frequentava quando criança. Toalhas brancas de tecido por baixo, folhas de papel manteiga em cima. Tocá-las é prazeroso, é como acariciar uma tépida combinação de lisura e veludo, quase uma pele de bebê. De fora, não temos como saber; contudo se trata de mais um detalhe importante.

A mesa está posta também com pratos, garfos, facas, colheres, taças e guardanapos de tecido. Todos eles brancos e em número exato e correspondente à quantidade de cadeiras.

O público não deve se aproximar demais por enquanto, embora não exista nenhuma barreira concreta que o impeça, como um cordão de isolamento, por exemplo. Basta uma iluminação diferente. A mesa e as cadeiras estão dispostas sob fortes holofotes. O público, ao redor, permanece em certa penumbra, como acontece durante um espetáculo convencional de teatro. Ou nos cinemas. Assim, todos saberão para onde direcionar o olhar.

Nenhuma produção sonora é necessária; por ora, ouvimos o burburinho controlado típico dos ambientes museais. Em breve, esse ruído amansará naturalmente, quando os convidados chegarem.

Eles demoram apenas uma brevidade, o suficiente para o público começar a se perguntar se tudo corre conforme o planejado. Não há dúvidas de que existe um roteiro. Mesmo assim, conhecemos a nossa ansiedade. Também ela se faz presente.

Os convidados entram aos poucos, um ou dois por vez, no máximo. São de idades, etnias e gêneros diversos e têm suas marcas físicas pessoais preservadas. Todavia, vestem-se inteiramente de branco. O detalhe é importante: apenas branco em todos os trajes, que exceto por isso podem ser de qualquer modelo. Lembrando apenas que se trata de uma ocasião especial, uma celebração pública e coletiva, em que a vestimenta de um manifesta o valor da presença do outro.

Cada convidado ocupa seu lugar à mesa. Aproxima-se, senta-se e aguarda até o último se acomodar e todas as cadeiras estarem ocupadas. Pega então seus talheres e, junto com os demais, passa a rabiscar o papel manteiga. Quem já frequentou restaurantes com mesas forradas dessa maneira sabe que o papel branco, à menor pressão, produz uma marca branca em tom diferente, portanto é possível, com a ponta de uma faca, por exemplo, desenhar em branco sobre branco. Kazimir Malevich pintou um quadrado assim mais de um século atrás na Rússia revolucionária, porém utilizando tinta a óleo sobre tela. A referência me ocorre agora, mas não sei dizer até que ponto influencia a performance a que assistimos.

É importante dizer que os convidados não desenham qualquer coisa: foram instruídos a registrarem os locais da cidade que frequentam com prazer. Seus espaços públicos favoritos, agora reproduzidos de memória. Daí a importância de que essas pessoas sejam selecionadas entre os habitantes da cidade específica onde a performance é realizada. Exceto por isso, cada um tem liberdade para desenhar o que quiser e da maneira como achar mais conveniente. São pessoas comuns, que se dispuseram a participar de acordo com o roteiro propositivo.

Cinco a dez minutos me parecem suficientes para que alguns croquis ganhem forma. Um dos convidados, que observa o tempo em seu relógio de pulso, é o primeiro a depositar de volta na mesa os talheres utilizados. Atentos, os demais repetem seu gesto, até que ninguém mais desenhe nada. Nesse momento, todos se levantam e caminham ao redor da mesa, fazendo o percurso que preferirem, tomando alguns minutos para apreciarem os desenhos dos companheiros. As impressões da experiência são guardadas para si; o silêncio não é quebrado em momento algum.

Aos poucos, assim como adentraram o recinto, os convidados partem. Cada um em seu ritmo e no máximo dois por vez. A ordem não é combinada previamente e varia. Importante é que não haja pressa. Quando o último se vai, todas as luzes do salão se acendem, sugerindo que o público se aproxime.

Uma conversa com os convidados é organizada no dia seguinte, na qual eles já vestem suas roupas pessoais e falam sobre a experiência para que os interessados, ali presentes, possam ouvir. Quais questões surgem, então? Desde esse dia seguinte, as folhas de papel manteiga com os desenhos ficam expostas no mesmo ambiente onde a performance se realizou, penduradas em varais com pregadores brancos, de modo que possam ser observadas em ambos os lados por quem visitar a mostra.

Enquanto ela durar, mesas e cadeiras também permanecerão no local, com as folhas de papel manteiga sendo repostas toda vez que estiverem suficientemente preenchidas. Os visitantes estarão convidados a desenhar nelas com os palitos de dentes brancos disponíveis. Demais utensílios como pratos, talheres e taças terão sido recolhidos.

As folhas desenhadas pelos visitantes devem ser levadas por eles ou destruídas, caso não haja como reciclá-las. As folhas produzidas na performance podem ser incorporadas ao acervo da instituição promotora ou ao acervo público da cidade; se não houver interesse dessas partes, serão destruídas.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

FUTURO SOTERRADO

Clique nas imagens para ampliá-las.

Fui acordado na manhã de domingo por duas escavadeiras. O relógio no criado-mudo marcava 6h. Punham abaixo o extenso conjunto de casas conhecido como Vila Operária João Migliari, ou apenas vila do Tatuapé, no bairro de mesmo nome em São Paulo. As casinhas estavam ali desde a década de 1950, em estado de conservação impecável, atualmente abrigando comércios e escritórios. Elas mantinham viva certa história do crescimento da cidade, de quando as indústrias se instalavam nas zonas periféricas – como Brás e Mooca, hoje parte do “centro expandido” – e seus operários moravam em conjuntos habitacionais como aquele. História pouco conhecida mesmo entre os moradores do Tatuapé, embora bastasse a simpatia da vila para encantar a todos. Em cerca de três horas, as casinhas cor de rosa se tornaram pilhas de entulho e nuvens de pó. No lugar, possivelmente construirão mais um prédio muito alto e espelhado com varandas, câmeras de vigilância e vários andares de estacionamento.

Demorei a tomar coragem e olhar pela janela. A vila já me atiçava a curiosidade desde antes de eu me mudar para o prédio em frente. De início, entre os dois quarteirões repletos de casinhas geminadas havia uma rua estreita, ainda calçada com paralelepípedos, que oferecia a rara oportunidade de experimentar outra relação com o tempo na cidade neurótica, que se pretende veloz quando na verdade é puro congestionamento.

Um daqueles quarteirões já tinha sido demolido no início do ano pela construtora Porte, que planeja erguer duas torres no local. Um grupo de arquitetos, urbanistas e moradores requisitou o tombamento das casinhas remanescentes, sob o risco de que o lucro de uma incorporadora acarretasse um prejuízo imenso para a já preterida memória da cidade. Uma reunião com a prefeitura tinha sido agendada para a segunda-feira. Daí a demolição realizada às pressas nas primeiras horas da manhã do domingo, 1º de setembro, sem apoio da Companhia de Engenharia de Tráfego e com embargo por irregularidade na obra. Restou apenas um dos conjuntos de sobrados, que aguarda na justiça um acordo sobre a indenização para também vir abaixo. Em resumo, encerrou-se o assunto com autoritarismo, repercutindo o que se faz no restante do país. Quando predomina o descaso geral pela nossa cultura, há quem se sinta na razão de fazer o que bem entender.

Por infeliz coincidência, a demolição da vila operária se deu no mês em que é comemorado o 351º aniversário do bairro. E um ano após o incêndio que destruiu o nosso Museu Nacional, apenas mais um entre os inúmeros exemplos que poderíamos citar, e que me fazem sentir essa espécie de nostalgia por um futuro que já não pode se concretizar, por paradoxal que seja. Quando um resquício de passado desaba, junto se soterra um futuro.

Também como no caso do Museu Nacional, a demolição em São Paulo foi amplamente denunciada depois de ocorrida, mostrando que, quando muito, somos apenas reativos, e essa indignação tampouco vai longe.

Precisamos revisar nosso conceito de valor. Alguns com quem comentei sobre a demolição se referiram de imediato à quantidade de dinheiro envolvida na transação. O financeiro fala mais alto, em detrimento de tantos outros valores a serem considerados, por mesquinho que seja, por insignificante quando comparado à história perdida. Por quê?

Não sou contra a construção de prédios. Essa demanda da cidade é uma discussão complexa que atravessa planejamento urbano, desejos, especulação imobiliária e muito mais. Ao redor da vila demolida há pelo menos meia dúzia de obras em andamento. Minha questão é a construção naquele local e sob tal condição.

A Vila Operária João Migliari permitia ao caminhante sentir-se estrangeiro em sua própria cidade, que a cada dia se parece mais com uma cidade qualquer. Sentir-se estrangeiro significa estranhá-la, deixar que sua singularidade chame a atenção, desfaça a apatia da rotina e desperte sonhos esquecidos ao longo do tempo. Como uma espécie de inconsciente urbano que nos constitui e que só podemos conhecer caminhando por esses lugares, tal como os surrealistas propuseram em Paris quase um século atrás com suas deambulações. Ou mesmo antes, quando João do Rio denunciava com suas crônicas o “bota-abaixo” executado pelo prefeito Pereira Passos nos primeiros anos de 1900, no centro do Rio de Janeiro, com intuito de modernizá-lo, afastando a população pobre para as periferias.

No primeiro domingo de setembro de 2019, vivenciei o oposto do inconsciente urbano surrealista: despertei da vigília dentro de um pesadelo.

Gostaria que nós, enquanto cidadãos, assumíssemos a consciência, a responsabilidade e o poder que nos cabe. E que os usássemos para intimidar quem passa com escavadeiras sobre nossos patrimônios culturais. Por exemplo: conscientes, responsáveis e empoderados, jamais compraríamos os apartamentos ou salas comerciais que serão construídos sobre as ruínas da vila do Tatuapé. Pois cabe a nós não financiar esse tipo de atrocidade.

Também cabe a nós exigir a mudança nas leis ou a rapidez dos processos que protegem o patrimônio histórico caso um prédio de interesse público não se enquadre nos termos em vigor. Nosso interesse pela preservação do que resta deve pesar mais do que a poeira acumulada sobre a regulamentação, que precisa ser avivada com frequência. Isso serve tanto para prédios quanto para museus, florestas, universidades; tudo que vem sendo minado há tempos e que agora tem recebido as derradeiras pás de cal.

domingo, 10 de novembro de 2013

À RUA O QUE É DA RUA!

Uma amiga compartilhou este relato no Facebook. 

O autor comenta as intervenções urbanas que testemunhou no Minhocão, na cidade de São Paulo. Para quem não conhece, trata-se de um viaduto bizarro, que transformou a rua numa espécie de submundo, fez o comércio ao redor falir, transportou os carros para as janelas dos apartamentos, dividiu o bairro entre ricos de um lado e pobres do outro, além de resultar em teto para pessoas em situação de rua.

O texto fala de intervenções urbanas, ocupações artísticas, políticas culturais, do que fazer, das maneiras de fazer, de a quem pertence a cidade, das questões éticas... É bem interessante, forte, atual. Vale uma reflexão. Ou mais.

Copiei e colei tudo na íntegra, exceto por alguns detalhes de formatação. Desconheço o autor, e acredito que a foto também tenha sido feita por ele. Se alguém souber seu nome, ficarei feliz por citá-lo.

Enfim, achei que este é um bom assunto para o momento. Cá está:




À RUA O QUE É DA RUA!!!

Nos últimos dias o espaço do Minhocão, no centro da cidade de de São Paulo, tem sido destaque na grande mídia por causa de intervenções que atualmente ocuparam visualmente as pilastras do lugar. A cobertura é sempre tendenciosa, é bom colocar o outro lado da história. Se inicialmente foi projetado para ser um local de passagem o Minhocão, foi aos poucos, e cada vez com mais intensidade, sendo ocupado por pessoas e formas de intervenção marginalizadas pela sociedade e pelo poder público, como moradores de rua, graffiteiros e pichadores. Muito tempo já passou desde que esse processo de ocupação do minhocão começou a acontecer. Muitos moradores de rua já foram enxotados de lá como bichos e voltaram, muitos graffiteiros e pichadores já foram presos ou esculachados pela polícia por pintar seus pilares e voltaram e também muitos artistas plásticos presentes nas galerias já intervieram neste espaço, mas na maioria das vezes respeitando quem já ocupava o local. Trata-se claramente de uma disputa política, entre a cidade que queremos e a cidade que o poder público tenta impor para nós.

Nas ultimas duas semanas uma boa parte das intervenções presentes nos pilares do Elevado foram substituídas por uma série de fotos gigantes de moradores da região. Para isso TODAS as intervenções presentes nestes pilares foram cobertas com tinta cinza. Coincidência, ou não, também pude reparar que os moradores de rua também não estão mais lá. No fim de semana passado estava passando pela região com a Magê e encontramos um grupo de pessoas colando as fotos e registrando o momento. Decidimos fazer alguns questionamentos para entender o que estava rolando. Estavam presentes a artista, algumas pessoas ligadas ao projeto e algumas pessoas que me pareceram pessoas contratadas para colar as fotos e pintar as pilastras de cinza. Depois de algum tempo pedimos para conversar com a artista e as coisas se esclareceram. Descobrimos que se tratava de um projeto em parceria com o SESC e com a Prefeitura, para ocupar a região, e que ela havia sido convidada para expor suas fotos no local. Perguntamos se ela sabia que aquele espaço já estava ocupado. E que esta ocupação era fruto de diversos anos de disputa entre várias pessoas e a prefeitura, tais como graffiteiros, pichadores e artistas plásticos que desejavam realizar intervenções públicas. Questionamos também se ela sabia que entre as pessoas que realizam suas intervenções nas rua de São Paulo existe uma forma de proceder em que se respeita as intervenções realizadas anteriormente nos muros, não colocando seu trabalho por cima delas, e que este proceder era fundamental para que o espaço visual da rua fosse ocupado de forma democrática, pois só assim seria possível que o trabalho de graffiteiros, pichadores e artistas plásticos mais consagrados e experientes coexistisse com os de pessoas que estão se iniciando neste mundo da intervenção urbana, sem depender de seleção prévia ou curadoria de ninguém, e muito menos dos projetos políticos da prefeitura.

A artista nos respondeu que sabia das formas de proceder da rua mas que, apesar de saber disso, o convite feito pelo SESC para fazer essa intervenção era “A SUA CHANCE”. Disse que não teve escolha, e que por causa disso tinha pedido autorização para pintar os trabalhos de 2 dos graffiteiros que ocupavam o espaço (tinha pelo menos uns 20 ou 30 graffiteiros com trabalhos nos pilares apagados). Ela nos disse também que seu trabalho era político porque questionava o uso daquele espaço e porque dava destaque para a imagem de moradores da região, principalmente moradores de rua.

Algumas reflexões sobre isso:

– Essa intervenção no Minhocão desrespeitou não só os graffiteiros, pichadores e artistas que tinham ocupado o espaço das pilastras do Minhocão, desrespeitou também todos os outros que de alguma forma lutaram por anos para ocupar este espaço. Para além disso atropelou também a história e o registro das formas de interação de uma série de outras pessoas que convivem neste espaço e que também marcam de forma ativa estas pilastras. A Prefeitura e o SESC estão dizendo que a população não tem condições de contar sua própria história, que ela só tem valor quando registrada por um terceiro, no caso a fotógrafa.

– O espaço do Minhocão sempre foi ocupado e teve vida, diferentemente do que a cobertura da mídia tenta demonstrar. Se está vida é marginalizada e incomoda os autoproclamados cidadãos de bem já é outra história. A solução do problema não está em varrer os moradores de rua para longe dos olhares dessas pessoas, muito menos em tentar cobrir de cinza as frases cores e nomes que aparecem nos muros, pois essas são vozes também fazem parte da vida urbana, e não se calarão.

– Vemos mais uma vez aqui a ideia capitalista da oportunidade individual atropelando a ação coletiva. A ideia de que esta é a minha chance e eu não tenho escolha mostra isso. SEMPRE TEMOS ESCOLHA.

– O trabalho da artista é sim político, aliás, nada contra a ideia de colar fotos gigantes de moradores da região na rua, mas tudo contra a forma como isso foi feito. Se tivesse sido feito de forma independente e respeitando as intervenções anteriores seria algo bem interessante. Mas feito de forma institucionalizada e aliada à prefeitura e sua dita política de “revitalização” do espaço a obra muda sim de característica. Para mim deixa de contestar a ordem vigente para reproduzi-la. Não sei se a artista tem dimensão de tudo isso (me pareceu que não), mas espero que ela descubra de que lado ela está sambando.

– Por ultimo, é bem interessante como a intervenção feita sobre uma das fotos teve repercussão e incomodou a grande mídia. Teve jornal que embaçou a foto na parte da frase escrita para que não se pudesse ler, teve outro que colocou uma bola vermelha em cima dela censurando-a explicitamente. E teve outros que disseram que ali não havia nada...só vandalismo e rabiscos feitos por gente sem inteligência com a intenção de estragar a obra da fotógrafa que tinha dado vida no Minhocão. Se alguns fazem jornalismo manipulador e baseado em preconceitos que os impedem de ler imagens e pesquisar a história, pelo menos recente de um lugar, e se acham inteligentes é preciso rever essa ideia de inteligência.

A RUA ESTÁ VIVA SIM! SEMPRE ESTEVE! E SEMPRE ESTARÁ!!! À RUA O QUE É DA RUA!!!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012


Oscar Niemeyer faleceu aos 104 anos de idade, quase 105. Saber de sua morte é muito triste. Não o conheci pessoalmente, o que é uma pena, pois ele parecia ser um grande homem, talvez maior do que a própria obra. Jamais encontrei a “pessoa Niemeyer”, mas tive muito prazer ao descobrir as profundezas ocultas da OCA, a visão privilegiada do MAC de Niterói, as curvas insinuantes do Copan e o maravilhoso auditório do Ibirapuera, que se abre para fora e para dentro com uma tocante consciência social. Portanto, tínhamos alguma intimidade, e eu o admirava. Trata-se da perda lastimável de quem poderia ser herói do Brasil no lugar de muita gente que é sem merecer. De alguém que não apenas contribuiu para nossa formação cultural, mas que a construiu. Que inventou a arquitetura moderna brasileira e a tornou respeitada mundo afora. E, mais importante ainda, ao meu ver, Oscar Niemeyer foi um homem que possibilitou que pessoas comuns como eu, na banalidade do dia a dia, experimentassem uma nova relação com o espaço. O espaço como lugar que habitamos física e intelectualmente, pois sua arquitetura era ao mesmo tempo estrutura de concreto e de pensamento. Gente como eu, que poderia viver uma vida inteira sem perceber seu lugar na realidade compartilhada. Niemeyer abriu nossa percepção às potências do entorno. Por isso, dizem que desenhava o futuro. Mas ele desenhava, apenas, com olhar de menino curioso, sem medo de riscar no papel linhas tortas, livres de régua e de regras.

sábado, 11 de junho de 2011

CIDADE INTERIOR


Desde muito antes do grande imperador Kublai Kahn, as cidades nos fascinam. Elas exercem poder sobre os homens e estão muito além de simples amontoados de pedras; as cidades possuem alma. Elas contêm o espírito de seus fundadores e a força dos que morreram para mantê-las.

Todos estão intimamente ligados às suas cidades de origem. Acontece de ser um sentimento escondido, uma chama congelada num coração frio; mas as amarras não podem ser negadas. Marco Pólo, embora visitasse as maravilhas do mundo, nunca deixou de retornar ao seu imperador, ao seu reino. Ele sofreu tentações, claro; só que tinha orgulho da sua terra e soube vencer o amor à primeira vista que encanta os estrangeiros. Explicou esse sentimento dizendo que os outros lugares são como espelhos em negativo: o viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá.

Enquanto o turista deseja conhecer o todo de uma cidade, o povo percebe que o máximo a lhe ser concedido é uma imagem bela, que reflete aquilo que ele deseja ver. São ilusões. Ninguém além do próprio povo conhece o espírito da sua cidade. Por mais que você se lance ao mundo na tentativa de explorá-lo, só conseguirá encontrar uma versão pessoal dele.

As cidades, como dizia Marco Pólo, não contam o seu passado, elas o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras; cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. Nada do que se viveu pode ser revivido, exceto quando percebemos as cicatrizes e buscamos as recordações. E não há nada mais interior do que as nossas próprias recordações.

19 de janeiro de 2005.
[Inspirado no livro As cidades invisíveis (1972), de Italo Calvino.]

terça-feira, 24 de maio de 2011

ÁGUAS BARRENTAS

Durante as reuniões preparatórias da expedição Rio Pinheiros Vivo, me indicaram o documentário abaixo, que só consegui assistir há pouco. Foi uma pena não ter visto antes, porque ele poderia ter colaborado muito com a oficina literária que propusemos lá.

São vinte e cinco impressionantes minutos, que contam a história da cidade de São Paulo pelo ponto de vista dos rios. O mais surpreendente nisso tudo talvez seja descobrir que as enchentes são coisa antiga, já acontecem há quase um século. E que, apesar de serem produto da urbanização descontrolada, às vezes elas parecem ter sido muito bem planejadas por uma sucessão de administradores incompetentes.

Sugiro que você também assista a esse documentário, de preferência agora, para não correr o risco de deixar para depois e se arrepender, como aconteceu comigo. Vale a pena.



Aproveitando, fica aqui outro trabalho bacana do Coletivo Santa Madeira, que também fala dos rios de São Paulo:



Mais informações: As margens do progresso

terça-feira, 17 de maio de 2011

O ACHADO DO SUMIÇO DO RIO*


Então, um dia, o rio secou. Simples assim, sem explicação. Num dia ele estava, no outro já se tinha ido. Sem explicação, o povo teve que se conformar. "É a vida", disseram. É a morte, sabe-se que um dia ela vem sem aviso ou explicação. Só resta se conformar. Só que, no caso do sumiço do rio, restou algo mais. Ficou no lugar o esqueleto. O esqueleto do rio.

Sabe-se lá quem descobriu. Quando perguntaram, ninguém sabia de nada. Depois, passado o primeiro susto, suspeitas à parte, todos reivindicavam o achado.

Restara o esqueleto, mas ele não se parecia muito com o corpo d'água que costumava sustentar. Eram traços diferentes, faltavam curvas; era uma verdade pouco maleável. O povo ficava olhando e perguntando se aquela coisa seca seria o esqueleto do mesmo rio que já não corria mais.

Pouco se conhecia daquele rio, pouco se prestava atenção. Era parte da paisagem. "Era só mais um rio, diacho. Tava ali e cabou-se". Um rio como qualquer outro. Por isso ficava difícil reconhecer o morto no esqueleto. Podia ser o esqueleto de qualquer outro rio. Só que, se os restos sobraram e o corpo já não restava mais, a lógica imperava. Não havia outra explicação, o rio secou. Só restava se conformar.

O povo se acumulou nas margens, transbordando de curiosidade e aflição. Não demorou muito, alguém mergulhou no rio seco, catou um teco do esqueleto, meteu no bolso e foi-se embora. Serviu de exemplo para a onda de gente que logo veio abaixo roubar o espólio do rio. Foi a maior corredeira. Em minutos, já não restava mais nada; nem morto, nem vestígio, nem suspeita. O rio se fora para nunca mais voltar.

Em casa, as relíquias ganharam lugar de destaque. Tinha quem se ajoelhasse diante delas e fizesse uma oração. "Santo rio, água benta, molhai por nós, pescadores. Que falta que faz. Me ajuda?"

O rio virou mito. O rio que foge sem parar, dia após dia, água após água. O rio fantasma que se ouve quando anoitece, nas noites sem luar. O rio das águas mágicas de imortalidade. O rio que correu para bem longe dali. De onde vem, para onde vai? Sabe-se lá... não tem explicação. "É a vida", dizem uns. É a morte, sabe-se que um dia ela vem assim mesmo, sem aviso ou explicação.

Um rio que, de repente, ganhou consciência e se foi para nunca mais voltar. Um rio do qual só restou a memória, a relíquia como prova de fé, a esperança da ressurreição. Um rio que voltará – um dia, quem sabe – para a nossa salvação.

***

*Esse conto foi escrito durante a oficina literária que tive o prazer de comandar ao lado de Marcelino Freire. Éramos um dos trinta grupos que o evento Rio Pinheiros Vivo reuniu em prol da recuperação do rio, totalizando mais de mil participantes e promovendo as mais diversas atividades, de caminhadas exploratórias a acrobacias aéreas.

A proposta de Marcelino era refletir – e escrever – a partir da seguinte situação: o rio Pinheiros secou. O que encontramos em seu leito? O que sobrou para contar a história?

Cada um dos participantes elegeu três temas e, após votação do grupo, escreveu sobre ele. Eu encontrei no fundo do rio o esqueleto do próprio rio, ideia inspirada no mapa que ilustra o conto. Se você olhar atentamente, verá que ele sobrepõe o traçado original do Pinheiros (azul e sinuoso), tal como era em 1930, e o atual (pontilhado e retilíneo), exatamente como o deixamos após a canalização. [clique no mapa para ampliá-lo]

Essa imagem foi produzida pela Associação Águas Claras do Rio Pinheiros, promotora do evento, e nos ajuda a entender por que as intervenções do homem na natureza às vezes acarretam desastrosas intervenções da natureza no homem. As enchentes deste ano não me deixam mentir.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

TRÊS PALÁCIOS PARA A ELITE BRASILEIRA


Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão

Estive em Campos do Jordão no fim de semana passado e resolvi visitar o Palácio Boa Vista, residência de inverno do governador do Estado de São Paulo. Fazia mais de quinze anos que não passava por ali, nem me lembrava de como era. Imagine minha surpresa ao encontrar, decorando os aposentos, um impressionante acervo de arte moderna brasileira.

A coleção foi adquirida a partir de 1969 e nela figuram artistas como Di Cavalcanti, Guignard, Rebolo, Volpi, Brecheret, Anita Malfatti e Walter Zanini, entre outros. São pinturas e esculturas relevantes, daquelas que todo colecionador disputaria a tapas num leilão, se tivesse cacife para bancá-las. O destaque fica para Tarsila do Amaral, que tem uma sala só para ela, com obras das suas mais diversas fases – inclusive do começo da carreira, que raramente temos oportunidade de ver.

Vale lembrar que, além do Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão, fazem parte do grupo o Palácio dos Bandeirantes (no bairro do Morumbi, em São Paulo) e o Palácio do Horto (no Horto Florestal, também em São Paulo). Pelo que descobri depois, a riqueza do acervo não é exclusividade daquele; os três possuem ótimos exemplares e costumam ainda receber exposições temporárias, montadas a partir de outras coleções.

As visitas são acompanhadas por educadores e, nos palácios de São Paulo, são gratuitas. Em Campos do Jordão, a entrada custou R$ 5,00. Para mim, foi um dinheiro bem gasto. Fiz um passeio diferente e, além de conhecer um prédio histórico do país, levei de brinde uma ótima exposição de arte.

Mais informações: www.acervo.sp.gov.br


Retrato de Mário de Andrade (1922), Autorretrato I (1924) e Operários (1933), de Tarsila do Amaral, são pinturas que constam no acervo do Palácio Boa Vista

sexta-feira, 16 de julho de 2010

ALTA GRACIA



















Alta Gracia é uma antiga cidade da Província de Cordoba e também um patrimônio da humanidade. Localizada a mais ou menos 600 quilômetros a noroeste de Buenos Aires, Argentina, começou sua história em 1643 a partir de uma Estância Jesuítica – espécie de complexo agrário composto por igreja, fazenda, torre e lago artificial –, uma das seis que se desenvolveram e que se preservam até hoje na região.

quarta-feira, 18 de março de 2009

ARQUITETE VOCÊ, ARQUITETO EU

Gosto particularmente desta crônica. Ela busca provocar alguma discussão sobre um assunto que raramente vem à tona: a arquitetura da cidade. Aproveitei o gancho da Lei Cidade Limpa para emendar idéias que o filósofo Alain de Botton colocou em minha cabeça. Aliás, tive uma fase em que devorei a maioria dos livros dele e, sinceramente, recomendo vários. Trata-se de um texto acessível, inteligente e prático. Em outras palavras, ótimo para quem busca uma filosofia típica do dia-a-dia.

Quer coisa mais banal que andar pelas ruas da sua cidade? Só que o importante não é apenas andar, mas aprender a observar, questionar, buscar perguntas e respostas. Tem tanta coisa espalhada por aí que foi feita sem pensar e que afeta drasticamente nossa vida! Proponho um exercício: dê uma volta no bairro e comece a prestar atenção no estilo das casas, nos ornamentos, nos jardins e nas calçadas. Comece a se perguntar por que são assim. Estou certo de que, com um olhar crítico, vai ficar cada vez mais fácil fazer suas próprias escolhas.


Sempre considerei as casas reflexos de seus habitantes. Olhe as pessoas à sua volta. Como é o lugar em que elas moram? É um sobrado, um apartamento ou uma construção térrea? Fica em condomínio fechado, bairro residencial, periferia ou região central? O que o jeito dessas pessoas lhe diz? Vamos, não é difícil imaginar seus móveis, a cor de suas paredes, os bibelôs da sala de estar e a claridade da cozinha. Há jardins nessa casa? Os muros são altos ou baixos? Existem grades nas janelas?

Para mim, pessoas simples e verdadeiras têm casas acolhedoras, enquanto as mal-educadas, mesquinhas e individualistas moram em lugares frios, intimidadores, que parecem vazios mesmo quando cheios de coisas, como os castelos das bruxas nos contos-de-fada.

Nos últimos tempos, venho tentando ampliar um pouco essa visão, de modo a abranger toda uma cidade. Será que existe diferença entre a arquitetura dos povos oprimidos, a dos decadentes, a dos tradicionalistas e a dos economicamente desenvolvidos? Ao analisarmos classes sociais equivalentes, a história mostra que sim, essa diferença existe, basta ver o que diferentes civilizações construíram em igual período de tempo, ainda que separadas por mares ou montanhas.

Há também a influência de fatores externos que não podem ser desconsiderados, como o clima, o material de construção disponível e as técnicas desenvolvidas até então. Tudo isso determinou a arquitetura dos antigos e, em conseqüência, influenciou a atual. Pois eu pergunto: se o passado está contido nas paredes que levantamos, qual é o poder que a arquitetura exerce sobre nós? Prestando atenção em nossa cidade, o que ela nos diz hoje?

O crítico John Ruskin propôs que busquemos duas coisas em nossos prédios: que eles nos abriguem e que falem conosco, ou seja, que ajam como portadores daquilo que queremos dizer.

Alain de Botton, filósofo contemporâneo, retoma esse pensamento no ótimo livro A arquitetura da felicidade. Segundo ele, “A noção de que as construções falam nos ajuda a colocar no centro das nossas charadas arquitetônicas a questão dos valores segundo os quais queremos viver – e não meramente como queremos que as coisas pareçam”.

Isso me leva a crer que estamos numa dialética constante com as paredes ao nosso redor. Somos tanto filhos delas quando elas provêem de nós.

* * *

Como muitos devem saber, na cidade de São Paulo está em vigor a Lei Cidade Limpa, que regulamenta a exploração de espaços publicitários e que até hoje tem gerado bastante polêmica. Não quero discutir aqui o modo como essa lei chegou até os cidadãos, mas, tendo em vista que as eleições estão próximas e que os boatos sobre sua possível descontinuação já estão circulando, gostaria de dizer o que ela tem significado para mim.

Como publicitário, sou até hoje questionado sobre as conseqüências da nova lei. Sempre respondi que a acho ótima e, ao contrário do que muitos pensam, nem um pouco ameaçadora à maioria dos profissionais da área, pois as adversidades permitem à publicidade se renovar. Os anúncios estavam crescendo descontroladamente, quase que envelopando a cidade. São Paulo estava oculta. Feia. Suja. Digo mais: acreditar que, quanto maior a exposição, mais o produto vende, é uma imensurável ingenuidade. Na briga entre a lei e a propaganda, continuo apostando que só a criatividade sobreviverá.

Na época da votação do projeto, quando ninguém sabia ao certo a viabilidade de tamanha mudança, conversei com um colega arquiteto. Ele expressou sua aprovação afirmando que, retirados os outdoors, placas e fachadas exageradas, os paulistanos descobririam como a cidade é linda e, ao mesmo tempo, como está malcuidada.

Vejo que suas palavras se concretizaram. A lei revelou a beleza eclética de um centro obrigado a se desenvolver de um dia para o outro, a ambição dos novos arranha-céus comerciais e a incoerência – para não dizer mal-gosto – do falso “estilo neoclássico”, que teima em dar às caras sempre que se pensa em subir uma construção séria, imponente, refinada.

A cidade de São Paulo talvez seja o reflexo da diversidade de seus habitantes. Imagino que o mesmo deve acontecer com todas as outras cidades do país: elas são um pouco do que suas pessoas são. Assim, é nossa a responsabilidade por esses lares, por seu crescimento e desenvolvimento, e precisamos ter consciência disso. Cada atitude que tomamos de nossa parte afeta o todo; do mesmo modo que o todo nos influencia as vidas com seus cheiros, barulhos, rotinas e, por que não?, fachadas, pontes, praças etc. Quem se sente em casa quando caminha pela cidade a que pertence? Como é essa casa? Fria ou aconchegante? Organizada ou bagunçada? Limpa ou suja? O que queremos para ela? Não é difícil imaginar. Acredito que basta olhar para dentro de nós mesmos. Um pouco do que está à nossa volta vem daí. E alguns cantos da cidade, por menores que sejam, definem perfeitamente quem realmente somos. Talvez estes sejam apenas tópicos a serem considerados na bonita ação de construir. “Apenas”, mas essenciais.