– Loucos não mentem?
– O tempo todo.
– Como podem?
– Inventam. Indiscriminadamente. Acredita?
– Se você diz.
– É verdade, pode acreditar.
– Que loucura. Jamais pensei...
– Sim, mas tem uma coisa: é tudo verdade.
– Como assim?
– As mentiras, tudo verdade.
– Fala sério!
– Eles também. Falam sério, de verdade. Não sabem que inventam. Falam sem pesar a consciência.
– Faz sentido.
– Pode crer. Eu sei que faz.
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
quinta-feira, 1 de janeiro de 2015
SOMOS TODOS ARTISTAS
Capa do catálogo da exposição realizada no SESC Pompeia em 2010 |
A rigidez da homofobia, do
preconceito racial contra negros, dos abusos sobre as culturas e terras
indígenas, por exemplo, deve ser trabalhada, tornada maleável, moldada até
condizer melhor com a realidade de hoje, com as necessidades de espaço e acolhimento,
com direitos sociais respeitados e defendidos por todos.
Seguindo a mesma lógica, os
homossexuais, os negros e os índios precisam ganhar peso político, participar
em mesmo nível que os demais grupos, usufruir dos mesmos direitos. Isso vale
para todas as questões que nos atravessam e para as quais, infelizmente, muitos
viram as costas: legalização do aborto, descriminalização das drogas, violência
policial, jovens em conflito com a lei, dogmatismo religioso na política,
implementação de transportes alternativos como as ciclovias, entre outros
devires menores que clamam atenção. Tudo deve ser moldado: apertado,
experimentado, errado, feito de novo, tentado de outro jeito... até que
finalmente se obtenha forma satisfatória, a qual permanecerá apenas enquanto
for conveniente, pois assim que surgir nova demanda o trabalho terá que ser
retomado.
Beuys falava de "escultura
social". E afirmava que todos somos artistas, uma vez que temos não apenas
capacidade mas obrigação de agir na substância
da sociedade que constituímos e que à sua maneira nos une, alguns queiram ou
não.
Ao propor isso ele expandiu o
território da arte para diversos outros, embaçando fronteiras e modificando o
mapa inteiro no processo. Atuou em organizações políticas, fundou partidos; deu
aulas, criou um conceito próprio de universidade livre; promoveu debates,
participou de eventos em museus, galerias, redes de rádio e televisão;
escreveu, viajou, transformou a si mesmo numa obra de arte com abrangência
mundial e procurou meios alternativos para divulgar suas ideias sobre a
atitude/responsabilidade transformadora que todos deveríamos assumir.
As mudanças começam no próprio
pensamento. Por isso o aspecto conceitual de sua obra é tão importante. É a
partir de uma transformação na maneira de pensar que podemos chegar a uma
melhor concepção de mundo. Por meio da escultura social seria possível alcançar
a emancipação, ou seja, certa liberdade para viver e compartilhar.
Cartaz de Joseph Beuys apresentado na 15ª Bienal de São Paulo, em 1979 |
Quando participou da 15ª Bienal de
São Paulo, em 1979, Beuys reproduziu em cartaz um longo texto escrito no ano
anterior, intitulado Conclamação à Alternativa.
Dele extraí o trecho a seguir, que serve como aperitivo das suas propostas,
traz um alerta imprescindível e surpreende por sua atualidade.
Neste ano que se inicia, após uma Copa do Mundo
catastrófica (não me refiro ao 7 x 1), manifestações sociais no país inteiro,
confrontos políticos violentos e uma 31ª edição da Bienal que, de tão
provocadora e relevante, talvez tenha passada despercebida pela grande mídia,
vale retomar Beuys e refletir sobre os próximos passos. Quem sabe assim
evitamos novos tropeços – e mais graves?
"É preciso alertar contra
uma mudança irrefletida. Diante da questão: O QUE PODEMOS FAZER?, temos de nos
perguntar COMO DEVEMOS PENSAR?, a fim de evitar que o discurso dos mais altos
ideais da humanidade, proclamado atualmente por todos os programas partidários,
continue a se reproduzir como expressão do contraste crasso com a vida prática
da realidade econômica, política e cultural em todo o mundo.
Comecemos
pela REFLEXÃO DE CADA UM SOBRE SI MESMO. Perguntemo-nos sobre as razões que nos
dão ensejo de abandonar o que seguimos até agora. Procuremos as ideias que nos
indicam a direção a tomar nessa mudança de rumo.
Repassemos
a evolução da vida social e política no século 20.
Reexaminemos
os conceitos segundo os quais se estabeleceram as condições reais no Oriente e
no Ocidente.
Reflitamos
sobre o efeito desses conceitos: terão eles incentivado nosso organismo social
e seu relacionamento com as bases naturais, propiciando o surgimento de uma
existência saudável – ou, pelo contrário, não terão tornado a humanidade
doente, não lhe terão aberto feridas, não lhe terão trazido desgraças,
colocando em questão sua própria sobrevivência, hoje? Aprofundemos nossa
reflexão observando cuidadosamente nossas próprias necessidades: estarão os
princípios do capitalismo ocidental e do comunismo oriental abertos para
receber o que vai se revelando cada vez mais claramente, a partir da evolução
dos últimos tempos, como o impulso central na alma da humanidade, ou seja, a
vontade de autorresponsabilidade concreta? Em outros termos, trata-se de um
impulso que leva o ser humano a emancipar-se das relações sociais pautadas
unicamente por mando e submissão, poder e privilégio."
sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
CONJETURA DA IMPOSSIBILIDADE
muito possivelmente é
seria impossível ainda
que desejável seja,
por mais próximo esteja
ao alcance das mãos
atadas
improvável que pareça
a ciência exata joga a toalha,
cobre de artifícios
sua própria falta
de inventividade
criativa
ato possível sim
a imaginação não nega
tampouco arrega à regra,
permite-se a si mesma
sem medo de errar
aceita
o incerto do impossível
tão real quanto alguma ficção,
fixação que solta a mente
do concreto rés do chão
convém pesar a verdade
na não-escala da abstração
[para o infinito]
seria impossível ainda
que desejável seja,
por mais próximo esteja
ao alcance das mãos
atadas
improvável que pareça
a ciência exata joga a toalha,
cobre de artifícios
sua própria falta
de inventividade
criativa
ato possível sim
a imaginação não nega
tampouco arrega à regra,
permite-se a si mesma
sem medo de errar
aceita
o incerto do impossível
tão real quanto alguma ficção,
fixação que solta a mente
do concreto rés do chão
convém pesar a verdade
na não-escala da abstração
[para o infinito]
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
"Em Kafka, a instituição é um mecanismo que obedece a suas próprias leis que foram programadas não se sabe mais por quem, nem quando, que não têm nada a ver com os interesses humanos e que são portanto ininteligíveis."
[Kafka só não é brasileiro porque é universal.]
"Os mecanismos psicológicos que funcionam no interior dos grandes acontecimentos históricos (aparentemente inacreditáveis e desumanos) são os mesmos que regem as situações íntimas (inteiramente banais e muito humanas)."
Milan Kundera, A arte do romance
[Kafka só não é brasileiro porque é universal.]
"Os mecanismos psicológicos que funcionam no interior dos grandes acontecimentos históricos (aparentemente inacreditáveis e desumanos) são os mesmos que regem as situações íntimas (inteiramente banais e muito humanas)."
Milan Kundera, A arte do romance
sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
SOU BENEDITO
"Se fiz bem, vamos manter silêncio;
Se fiz mal – vamos rir então
E fazer sempre pior,
Fazendo pior, rindo mais alto
Até descermos à cova.
(...)
Creiam, amigos, a minha desrazão
Não foi para mim uma maldição!"
Entre amigos, Nietzsche, 1886
sou benedito
pelo mau compreendido
uma vês que
está
falado mas não se houve
ah mas não se tem
dado que não cessente
visto que não se crê
fidedigno de ser
não fosse feito
– mesmo eu –
safaria-o
amem! e até mais ver!
Se fiz mal – vamos rir então
E fazer sempre pior,
Fazendo pior, rindo mais alto
Até descermos à cova.
(...)
Creiam, amigos, a minha desrazão
Não foi para mim uma maldição!"
Entre amigos, Nietzsche, 1886
sou benedito
pelo mau compreendido
uma vês que
está
falado mas não se houve
ah mas não se tem
dado que não cessente
visto que não se crê
fidedigno de ser
não fosse feito
– mesmo eu –
safaria-o
amem! e até mais ver!
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
ANJO: DESTERRITORIALIZADO
ambíguo.
nem deus nem santo nem diabo
nem bom nem mau nem homem
nem carne nem sopro nem espírito
nem macho nem fêmea nem gênero
nem ser nem estar
sem eira nem beira
nem adulto nem criança
nem eros nem querubim
nem voo nem pé
tanto faz como tanto fez
nem meu nem seu
nem todos, imprecisão
nem guarda nem canta nem cai
nem lá nem cá nem acolá
nem céu nem inferno nem lugar
nenhum
nem deus nem santo nem diabo
nem bom nem mau nem homem
nem carne nem sopro nem espírito
nem macho nem fêmea nem gênero
nem ser nem estar
sem eira nem beira
nem adulto nem criança
nem eros nem querubim
nem voo nem pé
tanto faz como tanto fez
nem meu nem seu
nem todos, imprecisão
nem guarda nem canta nem cai
nem lá nem cá nem acolá
nem céu nem inferno nem lugar
nenhum
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
domingo, 14 de dezembro de 2014
terça-feira, 9 de dezembro de 2014
Rooms by the Sea (1951), de Edward Hopper |
incessante transgressão, ultrapassamentos
daquilo que somos, do humanismo
que nos cola a pele, gruda
como cracas no casco, dificulta
o movimento, atrasa
a navegação.
Como se desprender?
do que impregnou, da tradição
das águas que sustentam o
barco ao mesmo tempo em
que o mantém no lugar?, mesmo
com a sensação de que flutua livre-
mente? com sua carga histórica ativa
– histérica! – ainda
desconhecida? Pesada demasia-
damente pesada.
para Peter Pál Pelbart, pela aula de poesia.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2014
domingo, 7 de dezembro de 2014
SABEDORIA DO ROMANCE
É o que o escritor Milan Kundera defende, uma sabedoria própria do romance, percebida e contada por narrativas, quase sempre em desalinho com os grandes avanços científicos e muitas vezes mais pertinentes do que eles. Tal saber viria da observação do mundo e da perspicácia de captar nele não as luzes mas as trevas – para usar esta expressão do filósofo Giorgio Agamben. Ou seja, a sensibilidade do romancista seria capaz de apreender dilemas contemporâneos que ainda não vieram à tona, porém agem às escondidas e nos afetam sem que nós saibamos, sem que estejamos aptos para distingui-los.
"Descobrir o que somente ele pode descobrir é a única razão de ser de um romance". Essa ideia é desenvolvida nos diversos textos que compõem A arte do romance, primeiro livro de "não-ficção" de Kundera. Estão nele reflexões obtidas a partir da sua experiência como escritor, as quais não se propõem como teoria, mas como "confissões". Entre elas, a tal sabedoria do romance foi a que mais me chamou a atenção. Claro, olhando para minha biblioteca particular, dando-me conta de que dois terços de todos os livros que li são romances, não tenho como discordar, nem mesmo se quisesse.
Posso afirmar que foi com romances que descobri as coisas mais complicadas: a insuficiência das relações humanas; a inexatidão/enganação da História; a força transgressora, profanadora e transformadora do humor; a necessidade urgente da desmilitarização em todos os seus sentidos; o devir minoria; a penetração da política na banalidade da rotina; o fascismo da língua; a estrutura ficcional que sustenta a dita "realidade".
Nada disso é exclusividade da minha experiência como leitor – pelo menos da Modernidade em diante, boa parte dos pensadores se dedicam a analisar e até mesmo a produzir literatura, romances em especial. Filósofos, sociólogos, etnógrafos, educadores, políticos, psicólogos, artistas de outros campos – de alguma maneira eles flertam com a sabedoria possível daquela forma literária tão impregnada na cultura geral.
Uma das sabedorias que Kundera destaca é a da incerteza – a incrível capacidade que o romance oferece de contrariar a lógica e os dogmas, de mostrar que o julgamento e a busca da verdade se esfacelam perante a relatividade do mundo dos homens. É o que nos faz acreditar nas perguntas porém jamais nas respostas; a jamais sermos guiados apenas pela razão, uma vez que ela levará – necessariamente – a uma ilusão absolutista. Relatividade que manterá sempre em dúvida a moral de Anna Karenina, de Tolstói; K., de Kafka; Capitu, de Machado. E que colocará em questão a moral em si. "O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade". Ele dá a ver a ambiguidade de que somos feitos.
O romance oferece aberturas. Linhas de fuga. Desvios. Oferece a possibilidade de inventar lugares para que modos de existência de todo tipo ocupem, encontrem outros, dialoguem. Lugares oriundos de fraturas do mundo, para citar novamente Agamben, que por sua vez chega a essa ideia por um poema de Osip Mandelstam.
A vontade de abertura do pensamento caracteriza o romance como transgressor de uma ordem social pautada na obediência, na servidão e no assujeitamento; desse ideal iluminista que acredita cegamente na democracia da maioria e que pretende assegurá-la pelo terrorismo de Estado. Não à toa foi uma pilha de livros que vimos queimar toda vez que um regime totalitarista assumiu o poder.
A dissidência provém da sua inquietação. "O romance não pode mais viver em paz com o espírito de nosso tempo: se ainda quer continuar a descobrir o que não foi descoberto, se ainda quer 'progredir' como romance, ele só pode fazê-lo contra o progresso do mundo".
Vale ressaltar que o romance não se apresenta como manual, não tem a pretensão de salvar nem de corromper, por mais que algo consiga ser aprendido com ele. A noção de verdade lhe escapa. Sua memória falha. Seu sentido para a existência humana é irônico. Talvez por isso sua sabedoria é menosprezada quando comparada à ciência.
Kundera alerta que "não se pode julgar o espírito de um século exclusivamente segundo suas ideias, seus conceitos teóricos, sem levar em consideração a arte e especialmente o romance. O século XIX inventou a locomotiva, e Hegel estava certo de ter apreendido o próprio espírito da História universal. Flaubert descobriu a tolice. Ouso dizer que essa foi a maior descoberta de um século tão orgulhoso da sua razão científica".
A tolice que Flaubert denunciou permanece em nosso cotidiano. Uma tolice moderna que não significa ignorância ou falta de informação, mas o "não pensamento das ideias recebidas", ou seja, a nossa preguiça concordante, consensual, superficial, agressiva, confortável. Tolice que determina um padrão de comportamento dominante, que aceita esse padrão, independente de idade, gênero ou classe social.
Admiro o romance pelas suas tentativas de retratar um contemporâneo que não fica parado para ser observado em detalhes, portanto impossível de ser descrito com exatidão. Pelo contrário, ele jamais adquire forma verossímil.
Como Kundera explica, "o romance não examina a realidade mas sim a existência. A existência não é o que aconteceu, é o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo de que é capaz. Os romancistas desenham o mapa da existência descobrindo esta ou aquela possibilidade humana. (...) Existir, isso quer dizer: 'ser-no-mundo'. É preciso portanto compreender o personagem e seu mundo como possibilidades".
"Descobrir o que somente ele pode descobrir é a única razão de ser de um romance". Essa ideia é desenvolvida nos diversos textos que compõem A arte do romance, primeiro livro de "não-ficção" de Kundera. Estão nele reflexões obtidas a partir da sua experiência como escritor, as quais não se propõem como teoria, mas como "confissões". Entre elas, a tal sabedoria do romance foi a que mais me chamou a atenção. Claro, olhando para minha biblioteca particular, dando-me conta de que dois terços de todos os livros que li são romances, não tenho como discordar, nem mesmo se quisesse.
Posso afirmar que foi com romances que descobri as coisas mais complicadas: a insuficiência das relações humanas; a inexatidão/enganação da História; a força transgressora, profanadora e transformadora do humor; a necessidade urgente da desmilitarização em todos os seus sentidos; o devir minoria; a penetração da política na banalidade da rotina; o fascismo da língua; a estrutura ficcional que sustenta a dita "realidade".
Nada disso é exclusividade da minha experiência como leitor – pelo menos da Modernidade em diante, boa parte dos pensadores se dedicam a analisar e até mesmo a produzir literatura, romances em especial. Filósofos, sociólogos, etnógrafos, educadores, políticos, psicólogos, artistas de outros campos – de alguma maneira eles flertam com a sabedoria possível daquela forma literária tão impregnada na cultura geral.
Uma das sabedorias que Kundera destaca é a da incerteza – a incrível capacidade que o romance oferece de contrariar a lógica e os dogmas, de mostrar que o julgamento e a busca da verdade se esfacelam perante a relatividade do mundo dos homens. É o que nos faz acreditar nas perguntas porém jamais nas respostas; a jamais sermos guiados apenas pela razão, uma vez que ela levará – necessariamente – a uma ilusão absolutista. Relatividade que manterá sempre em dúvida a moral de Anna Karenina, de Tolstói; K., de Kafka; Capitu, de Machado. E que colocará em questão a moral em si. "O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade". Ele dá a ver a ambiguidade de que somos feitos.
O romance oferece aberturas. Linhas de fuga. Desvios. Oferece a possibilidade de inventar lugares para que modos de existência de todo tipo ocupem, encontrem outros, dialoguem. Lugares oriundos de fraturas do mundo, para citar novamente Agamben, que por sua vez chega a essa ideia por um poema de Osip Mandelstam.
A vontade de abertura do pensamento caracteriza o romance como transgressor de uma ordem social pautada na obediência, na servidão e no assujeitamento; desse ideal iluminista que acredita cegamente na democracia da maioria e que pretende assegurá-la pelo terrorismo de Estado. Não à toa foi uma pilha de livros que vimos queimar toda vez que um regime totalitarista assumiu o poder.
A dissidência provém da sua inquietação. "O romance não pode mais viver em paz com o espírito de nosso tempo: se ainda quer continuar a descobrir o que não foi descoberto, se ainda quer 'progredir' como romance, ele só pode fazê-lo contra o progresso do mundo".
Vale ressaltar que o romance não se apresenta como manual, não tem a pretensão de salvar nem de corromper, por mais que algo consiga ser aprendido com ele. A noção de verdade lhe escapa. Sua memória falha. Seu sentido para a existência humana é irônico. Talvez por isso sua sabedoria é menosprezada quando comparada à ciência.
Kundera alerta que "não se pode julgar o espírito de um século exclusivamente segundo suas ideias, seus conceitos teóricos, sem levar em consideração a arte e especialmente o romance. O século XIX inventou a locomotiva, e Hegel estava certo de ter apreendido o próprio espírito da História universal. Flaubert descobriu a tolice. Ouso dizer que essa foi a maior descoberta de um século tão orgulhoso da sua razão científica".
A tolice que Flaubert denunciou permanece em nosso cotidiano. Uma tolice moderna que não significa ignorância ou falta de informação, mas o "não pensamento das ideias recebidas", ou seja, a nossa preguiça concordante, consensual, superficial, agressiva, confortável. Tolice que determina um padrão de comportamento dominante, que aceita esse padrão, independente de idade, gênero ou classe social.
Admiro o romance pelas suas tentativas de retratar um contemporâneo que não fica parado para ser observado em detalhes, portanto impossível de ser descrito com exatidão. Pelo contrário, ele jamais adquire forma verossímil.
Como Kundera explica, "o romance não examina a realidade mas sim a existência. A existência não é o que aconteceu, é o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo de que é capaz. Os romancistas desenham o mapa da existência descobrindo esta ou aquela possibilidade humana. (...) Existir, isso quer dizer: 'ser-no-mundo'. É preciso portanto compreender o personagem e seu mundo como possibilidades".
sábado, 6 de dezembro de 2014
O HOMEM PENSA, DEUS RI
"François Rabelais inventou muitos neologismos que em seguida entraram para a língua francesa e para outras línguas, mas uma dessas palavras foi esquecida e podemos lamentá-lo. É a palavra agélaste; ela é tomada do grego e quer dizer: aquele que não ri, que não tem senso de humor. Rabelais detestava os agélastes. Tinha medo deles. Queixava-se de que os agélastes eram tão 'atrozes contra ele' que esteve a ponto de parar de escrever, e para sempre.
Não existe paz possível entre o romancista e o agélaste. Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agélastes são convencidos de que a verdade é inequívoca, de que todos os homens devem pensar a mesma coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verdade e o consentimento unânime dos outros que o homem torna-se indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade, nem Anna nem Karenin, mas em que todos têm o direito de ser compreendidos, tanto Anna como Karenin.
(...)
A erudição de Rabelais, por maior que seja, tem portanto um outro sentido que a de Descartes. A sabedoria do romance é diferente daquela da filosofia. O romance nasceu não do espírito teórico mas do espírito do humor. Um dos fracassos da Europa é jamais ter compreendido a mais europeia das artes – o romance; nem seu espírito, nem seus imensos conhecimentos e descobertas, nem a autonomia de sua história. A arte inspirada pelo riso de Deus é, por sua essência, não tributária mas contraditória das certezas ideológicas."
KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 147-148.
Não existe paz possível entre o romancista e o agélaste. Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agélastes são convencidos de que a verdade é inequívoca, de que todos os homens devem pensar a mesma coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verdade e o consentimento unânime dos outros que o homem torna-se indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade, nem Anna nem Karenin, mas em que todos têm o direito de ser compreendidos, tanto Anna como Karenin.
(...)
A erudição de Rabelais, por maior que seja, tem portanto um outro sentido que a de Descartes. A sabedoria do romance é diferente daquela da filosofia. O romance nasceu não do espírito teórico mas do espírito do humor. Um dos fracassos da Europa é jamais ter compreendido a mais europeia das artes – o romance; nem seu espírito, nem seus imensos conhecimentos e descobertas, nem a autonomia de sua história. A arte inspirada pelo riso de Deus é, por sua essência, não tributária mas contraditória das certezas ideológicas."
KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 147-148.
sábado, 29 de novembro de 2014
se existe
a vontade de negar
aquela existência
é
necessário
admitir que está
no mundo
[ignorar, apagar.
de onde vêm
tais vontades?
de que sentimentos
se alimentam?]
a existência de qualquer
algo específico, talvez genérico
incômodo discordante,
por demais concordante
[só vira questão
quando bate a crise]
excessos da existência
não sei por quê
da negação
deveria saber
por que privá-la de tudo?
a decisão espera por nós.
o juízo é nosso, infelizmente
a sentença é nossa
alçada
seja qual for
o motivo de tamanha violência
a existência ainda existe
resiste
continuará existindo
quando nós não mais
[tamanha importância tem
o nosso próprio ser
e estar]
a vontade de negar
aquela existência
é
necessário
admitir que está
no mundo
[ignorar, apagar.
de onde vêm
tais vontades?
de que sentimentos
se alimentam?]
a existência de qualquer
algo específico, talvez genérico
incômodo discordante,
por demais concordante
[só vira questão
quando bate a crise]
excessos da existência
não sei por quê
da negação
deveria saber
por que privá-la de tudo?
a decisão espera por nós.
o juízo é nosso, infelizmente
a sentença é nossa
alçada
seja qual for
o motivo de tamanha violência
a existência ainda existe
resiste
continuará existindo
quando nós não mais
[tamanha importância tem
o nosso próprio ser
e estar]
quinta-feira, 6 de novembro de 2014
A SABEDORIA DA INCERTEZA
“O que quer dizer o grande romance de Cervantes? Existe vasta literatura a esse respeito. Há os que pretendem ver nesse romance a crítica racionalista do idealismo obscuro de Dom Quixote. Outros veem nele a exaltação do mesmo idealismo. Ambas as interpretações são errôneas porque pretendem encontrar na base do romance não uma interrogação, mas um preconceito moral.
O homem deseja um mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, pois existe nele a vontade inata e indomável de julgar antes de compreender. Sobre essa vontade estão fundadas as religiões e as ideologias. Elas não podem se conciliar com o romance a não ser que traduzam sua linguagem de relatividade e de ambiguidade no próprio discurso apodíctico e dogmático. Elas exigem que alguém tenha razão; ou Anna Kariênina é vítima de um déspota obtuso, ou então Karenin é vítima de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou então por trás do tribunal se esconde a justiça divina e K. é culpado.
Nesse ‘ou – ou então’ está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de encarar a ausência do Juiz supremo. Devido a essa incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.”
A arte do romance
Milan Kundera
O homem deseja um mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, pois existe nele a vontade inata e indomável de julgar antes de compreender. Sobre essa vontade estão fundadas as religiões e as ideologias. Elas não podem se conciliar com o romance a não ser que traduzam sua linguagem de relatividade e de ambiguidade no próprio discurso apodíctico e dogmático. Elas exigem que alguém tenha razão; ou Anna Kariênina é vítima de um déspota obtuso, ou então Karenin é vítima de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou então por trás do tribunal se esconde a justiça divina e K. é culpado.
Nesse ‘ou – ou então’ está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de encarar a ausência do Juiz supremo. Devido a essa incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.”
A arte do romance
Milan Kundera
terça-feira, 4 de novembro de 2014
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