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segunda-feira, 2 de abril de 2018

O GESTO MÍNIMO

Monotipias de Mira Schendel (1964-5)


A exposição Sinais, no MAM-SP, apresenta uma seleção de trabalhos de Mira Schendel produzidos entre as décadas de 1960 e 1980, na maioria monotipias e objetos gráficos. São composições de tamanho convencional, com poucas figuras e cores, como gestos mínimos marcados no papel. Obra delicada e, por causa disso, muito potente. A artista usa canetas de variados tipos, datilografia, decalques, nanquim, letraset, entre outras técnicas artesanais. Mas o que chama atenção é a sua “não técnica”, como Paulo Venancio Filho, que assina a curadoria da mostra, escreveu em 1997: se a técnica é o modo de o homem se impor ao mundo, a arte de Mira Schendel se recusa a privilegiar o sujeito; ela induz, suscita, provoca, sensibilizando a matéria e ativando sua estrutura molecular. Parece mesmo uma técnica desinteressada, como o crítico a definiu, ou seja, uma técnica sem outro interesse que não o próprio gesto criador, e que portanto não busca uma eficiência positiva.

Saí do museu com uma inquietação: qual é o lugar do gesto mínimo em tempos que demandam graves transformações? Tal gesto é capaz de convocar ou provocar mobilizações amplas? Uma poética como a de Mira Schendel estaria de acordo com nossas tormentas sociopolíticas atuais?

Penso que, mais do que nunca, é o gesto mínimo que tem a capacidade de produzir efeito real. As grandes comoções sociais, infelizmente, têm obtido resultados pífios, que acabam por desestimulá-las ou as transformam em espetáculos, no pior sentido do termo.

Do mesmo modo, pensar que a arte deve corresponder tal e qual às demandas do presente é reduzi-la a uma simples reação, ou a uma espécie de panfleto. Não devemos lutar sob a bandeira da arte; a arte só deve levantar bandeira contra as próprias bandeiras, talvez nem isso. Para condizer com seu presente ela deve desdizê-lo, desacreditando-o, tensionando-o com um outro, deslocando-se à distância para criticá-lo com linguagem menos viciada.

Se a arte se apresenta como sintoma do contemporâneo, não é porque aponta o que ele é, mas porque sugere o que pode vir a ser. Nas palavras de Gilles Deleuze, não há obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.

Vista da exposição Sinais, no MAM-SP. Foto: studioladecor.com.br


Espera-se que a arte performe um ato político, seja contra ou a favor. É uma expectativa enganosa. O artista, enquanto sujeito social, pode de fato agir e atentar; sua arte, em compensação, deve apenas ativar situações, de maneira que não dilua a poética em militâncias objetivistas nem se converta em instrumento ideológico. Espera-se dela um ato, porém a arte oferece um gesto, que mesmo mínimo já é muito: é a força máxima da criação. Enquanto o ato é automatizado e se resume em seus efeitos, o gesto é “a poesia do ato”, como Jean Galard afirmou certa vez. Só ele é capaz de fazer emergir novos sentidos, ao invés de impô-los.

Com sua potente delicadeza, o trabalho de Mira Schendel consegue colocar a gravidade contemporânea em suspensão. Suas menores intervenções na superfície do papel já a transforma substancialmente. Suas manchas e borrões são de alguma maneira incontroláveis, e essa natureza inexata é incorporada à obra. A transparência do papel arroz apresenta ao espectador uma ambiguidade que expande o espaço e põe abaixo a distinção entre frente e verso, esquerda e direita, certo e errado. Sua manipulação mínima da matéria convoca à contemplação todo o tempo e a disposição de quem chega. Uma fenda, um risco, um ponto de cor, uma letra desarticulada da própria língua, um símbolo ressignificado; singelezas que, acaso não existissem, tampouco existiria a potência da obra de arte.

Não devemos confundir tal singeleza com falta de rigor, e muito menos confundir delicadeza com fragilidade. O trabalho de Mira Schendel transborda consistência na escolha dos materiais, no enfrentamento do desconhecido, na afirmação do sutil como força poética. Recusa o lugar-comum, previsível e explícito. Seu gesto é mínimo não porque denota pouco esforço, mas porque é denso ao ponto de se infiltrar, afetar e desestruturar as maiores instituições. Não as enfrenta com as mesmas armas nem com a mesma lógica; em vez disso cria desvios, reinventa sentidos, desarma mecanismos por demais azeitados.

A que sinais o título da exposição alude? Elementos gráficos, sugestões de forma, indicações interpretativas? Ou sinais de um porvir, agora apenas entrevisto na insurgência silenciosa de sua obra? A exposição alude a isso tudo. Se com os primeiros aprendemos sobre estética, com estes últimos conhecemos o singular componente político da arte, que nada tem a ver com mensagem, moral ou adequação.

quinta-feira, 29 de março de 2018

PAISAGENS DE MEMÓRIA: ENTRE VISÍVEIS E INVISÍVEIS, VISIBILIDADES E INVISIBILIDADES

Pintura 264 (2015), de Felipe Góes
 
Estão publicados os anais do III Seminário de Estética e Crítica de Arte: as Artes Entre Urgência e Inoperância, realizado em 2017 pela FFLCH/USP. Tenho ali um artigo escrito em parceria com Gisele D. Asanuma e Felipe Góes que analisa aspectos da pintura contemporânea a partir do processo criativo do próprio Felipe.

O título é: Paisagens de memória: entre visíveis e invisíveis, visibilidades e invisibilidades. O texto completo pode ser acessado aqui, à página 172: Anais do III Seminário de Estética e Crítica de Arte: as Artes Entre Urgência e Inoperância

Pintura 291 (2016), de Felipe Góes

Resumo: O artigo pretende discutir visibilidades e invisibilidades de imagens artísticas contemporâneas por meio da análise crítica do processo criativo de Felipe Góes, que pinta paisagens a partir de referenciais da sua memória e não busca necessariamente representar lugares específicos da realidade. Entre as principais questões que mobilizam esta investigação, citamos: o que ocorre, no sentido de reprodução de realidade, quando a referência da pintura não é mais a paisagem posta diante do artista, mas um registro subjetivo que habita a sua memória? Qual é a natureza dessa realidade que o artista se põe a retratar? O que as suas imagens dão a ver e o que permanece oculto? Que regimes de visibilidade e/ou invisibilidade são operados no processo? O que resta à inoperância? Qual é a relação com o real, tal como alguns pensadores contemporâneos o têm definido? De que maneira o visível se embate com o legível no processo de construção da história da arte? Esta análise se faz em diálogo com o artista, num passeio por suas paisagens pictóricas. Ela é acompanhada de breves incursões críticas que apontam caminhos investigativos, conforme sugerido por autores que compartilham inquietações semelhantes, em especial George Didi-Huberman, Giorgio Agamben e Hal Foster.

Palavras-chave: 1) Fundamentos e crítica da arte; 2) Criação artística; 3) Memória; 4) Imagem, visibilidade e invisibilidade; 5) Pintura contemporânea

segunda-feira, 26 de março de 2018

para Victor Heringer, que não conheci 

Morre um jovem
morrem milhares todos os dias
dizem: o país não se importa
exceto por este sujeito,
ele se importa
e aquela moça mais aquele senhor e
assim por diante
morre um suposto país.

É preciso matar muitos países supostos
para fazer viver um
fresco rebelde ingênuo ousado delicado
desse tal jeito jovem
que outros tantos sujeitos sem jeito
teimam em envelhecer
ao ponto em que a morte eterna
confunde-se com salvação.

quarta-feira, 7 de março de 2018

O QUE NÃO É INFERNO

Hoje não me parece absurdo afirmar que todo entendimento sobre o mundo se localiza em algum ponto entre o que se vê e o que se diz a respeito do visível. Incluem-se nesse vacúolo de sentidos também os dizeres secundários: discursos repetidos, distorcidos e retorcidos. Como é que vemos e como produzimos narrativas? A questão me interessa há muito, e busco respostas pelas artes visuais, que operam e por vezes desarticulam a educação do olhar. Faz menos tempo que a questão se desdobrou em outra: o que permanece invisível, indizível e impensável? Como é que isso toma forma em nossas configurações de mundo?


Li As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, treze anos atrás. O livro me deixou uma forte marca, embora eu não lembrasse o motivo exato. Retomei-o agora por causa do trabalho. Na época me faltava maturidade para dar voz às questões instigadas pelo autor; nas anotações espalhadas pelas páginas descubro tentativas de diálogo – intuições que, mais tarde, tornaram-se interesses efetivos. Seriam problemas prontos, encubados, ou seriam meu primeiro contato com problemas que se apuraram depois, ganharam corpo e se reinventaram? Talvez um pouco de cada?

Calvino revive o veneziano Marco Polo na corte de Kublai Khan, imperador dos tártaros. Enviado em missões diplomáticas, o viajante retorna com relatos sobre as cidades visitadas, que o Khan somente conhece por meio de seus olhos e suas palavras; a distância é condição daquele governo. Ocorre que Marco Polo é diferente dos demais diplomatas: ele vê nas cidades o que passa despercebido pela maioria, seu olhar é menos panorâmico e mais penetrante. Não bastasse isso, seus relatos são também singulares; Polo evita narrar as formas gerais e os aspectos técnicos; com lirismo e significados abertos, prefere a experiência sensível.

Ele próprio explica a diferença num dos primeiros capítulos, quando afirma que se pode falar de Doroteia pela perspectiva das suas muralhas, torres e pontes levadiças, seus canais, chaminés e casas comerciantes. Ou pode-se contar a história do cameleiro que, muito jovem, chegou a Doroteia e se encantou de imediato com os clarins, as mulheres e as cores do mercado, onde não faltava nenhum dos bens que esperava da vida. Com os anos, porém, esse homem sentiu saudade dos desertos, e percebeu que havia encantos neles, exibidos com tanta clareza que ele não podia distingui-los.

Voltemos aos nossos domínios. Onde o desejo de ver com tal frescor soa ingênuo; aqui os acontecimentos chegam por demais mediados, chegam como palavras de ordem a serem tomadas por verdades. A experiência se dilui na imensa quantia de informações, além de manter uma relação sórdida com o consumismo.

Também seria ingênuo querer fugir dessa apropriação da experiência para narrá-la com palavras próprias. Não existe maneira individual de narrar, assim como é impossível olhar somente com olhos privados. Isso porque o olhar e o dizer já estão impregnados pela cultura geral, ou seja, por maneiras, crenças e formas prontas que predominam. Mais do que nunca inexiste a folha em branco, ela se apresenta repleta de pressuposições das quais é impossível escapar por completo. Mesmo a liberdade de pensamento já é uma ideia construída previamente e assim, por paradoxal que seja, configura um aprisionamento, uma ilusão, uma promessa falsa. Marco Polo conseguiria exercer sua singularidade nos tempos atuais?

Poderíamos concluir que nada resta, senão seguir o traçado do destino. Não é preciso sermos tão dogmáticos. Para mim, restam como alternativas os desvios da arte, que podem ser formas de sobrevivência. Eles são a recusa das palavras de ordem, a profanação do inquestionável, a felicidade clandestina. Restam as cidades invisíveis que não querem mostrar nenhuma verdade; elas nos convocam a imaginar possibilidades. Resta a força insurgente da poesia, que fratura o estabelecido e levanta condições outras, e esse é o ponto em que oferece chance de resistir à morte, como Gilles Deleuze pensava.

O livro de Calvino continua a instigar minhas pesquisas, gestos e criações. Foi um prazer revisitá-lo. Ele denuncia a banalidade, o risco e a violência dos lugares-comuns que aceitamos prontamente e reproduzimos no dia a dia por preguiça, desatenção ou ignorância. Denuncia o perigo de consumir as narrativas parciais que nos são ofertadas como certas, por vezes sedutoras, agradáveis, até mesmo desejáveis.

Ao mesmo tempo, fica sugerida uma esperança, que requer ver como quase ninguém vê, dizer o que poucos têm coragem de dizer, pensar o que a maioria não ousa. Isso porque, quase sempre, somos como o cameleiro no deserto: estamos por demais envolvidos com a aridez à nossa volta para perceber que, mesmo ali, há vida. E que essa vida peculiar, por vezes tão singela, não se encontra entre a abundância encantadora do mercado estrangeiro.

O final do livro é arrebatador. Nas palavras de Marco Polo: “o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.