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segunda-feira, 29 de março de 2010


Floralis Generica, de Eduardo Catalano. Escultura em metal cujas pétalas se abrem e fecham conforme a hora do dia. (Plaza de las Naciones Unidas, Buenos Aires/Argentina). Foto de Eduardo de Almeida.

"Dizemos de um homem que passa na rua, que ele é mal feito. Sim, segundo nossas pobres regras; mas segundo a natureza, é outra coisa. Dizemos de uma estátua que ela se encontra nas proporções mais belas. Sim, segundo as nossas pobres regras; mas segundo a natureza?"
Denis Diderot, em Ensaios sobre a pintura

sexta-feira, 26 de março de 2010

ARTE POR ACASO


(sem título), de José Bezerra

Há quem diga que a providência divina rege o gênio artístico. Há outros, como eu, que preferem acreditar no acaso. Creio, inclusive, que este não se aplica somente às obras de arte – todo tipo de conhecimento humano é produzido, essencialmente, por acaso, e motivado talvez por alguma necessidade. Foi por acaso que Dante escreveu a Divina Comédia, que Leonardo pintou a Monalisa e que Newton compreendeu a gravidade. Um acaso muito bem premeditado, é preciso admitir, pois inúmeros fatores histórico-culturais tiveram que coincidir para possibilitar tais façanhas. Quer dizer, Dante jamais escreveria seu belo poema se tivesse vivido cinco séculos antes, principalmente porque nele trata de personalidades contemporâneas suas e, formalmente falando, deve inspiração aos antigos modelos gregos, que só então estavam sendo desenterrados da Idade das Trevas. Pois foi um grande acaso Dante nascer no lugar e na hora certos, assim como não ter morrido antes de concluir a tarefa. Talvez o universo conspire a favor, como afirmam os otimistas. Isso validaria a famosa anedota sobre Newton, segundo a qual uma maçã teria caído em sua cabeça e unido pensamentos inconclusos, possibilitando assim a formulação da Lei da Gravitação Universal. Se fôssemos creditar tudo ao destino, teríamos que admitir que ele não prevê apenas acontecimentos bons, mas também outros tão terríveis quanto o holocausto e a bomba atômica. Não, não vale a pena acreditar que todas as maldades do mundo já estejam escritas num livro sagrado – é melhor deixar tudo a cargo do acaso. Como disse o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar no curso que atualmente ministra em São Paulo, enquanto o acaso é a bala perdida, o belo é a providência divina. Ora, criamos esta entidade porque precisamos justificar nossa existência, mas o importante mesmo é que, no final, entre acaso e necessidade, a arte vai se fazendo. Pois, segundo Gullar, "a arte existe porque a vida é pouca".

Essa questão lhe é muito mais relevante do que eu imaginava. Para ele, o acaso já é mesmo a possibilidade de haver arte, que revela todo o seu poder quando a tela em branco se coloca à frente do pintor; uma infinidade de coisas poderá ser criada ali e tudo dependerá unicamente das ideias surgidas no instante. Quando o primeiro traço for feito, as possibilidades do acaso se reduzirão enormemente; por outro lado, será esse mesmo traço que tornará a criação mais possível. Afinal, para o quadro acontecer, o pintor deve começá-lo de uma maneira ou de outra.

Compreendo o raciocínio, porém discordo de alguns pontos. Para mim, o acaso não está na probabilidade da arte acontecer, mas no acontecimento em si. A vida humana é tão complexa, depende de coincidências e realizações tão improváveis que, em certa medida, até parecem impossíveis, mas que se realizam e se apresentam ao espectador em forma de pinturas, esculturas e poesias, entre outras. O acaso é para mim esse fato consumado, que gerou algo novo. As possibilidades, prefiro chamar de caos.

Tudo isso para chegar à seguinte pergunta, que um colega de classe fez ao Gullar: nessa situação em que aparentemente qualquer coisa é válida, como diferenciar o "acaso-arte" do "acaso-não-arte"? Em outras palavras, como identificar uma obra de arte mais digna de valor, já que todas provêm do acaso?

Não me lembro da resposta, até porque já estava perdido em meus próprios devaneios, mas posso dizer que o segredo está na intenção do artista, em seu olhar crítico e inventivo que percebe algo novo naquilo que todos já olharam milhares de vezes. Não pense que é fácil. Para transformar acaso em arte, é preciso empregar-se a si mesmo na tarefa, dedicar tempo e neurônios, viver, sentir e compartilhar. Pois o acaso não produz arte sozinho, e tampouco a natureza o faz, por mais que uma pedra role montanha abaixo e adquira forma de Vênus. Tome como exemplo as esculturas do José Bezerra, que são tiradas da mata e quase não recebem interferência física do artista. À primeira vista, parecem escolhidas ao acaso, só que José faz isso com tanto conceito, tanta criatividade e sensibilidade que só dá para chamar aquilo de arte.

Na verdade, imagino que o acaso seja o único componente da criação que o artista não controla – todo o resto está em suas mãos. Dante, por exemplo, observava atentamente a sociedade de sua época e também conhecia a tradição lírica clássica quando, num belo dia, as ideias se uniram e ele decidiu escrever. Leonardo já se ocupava com milhares de problemas estéticos quando conheceu sua musa e Newton, por sua vez, já procurava uma solução quando esta caiu em sua cabeça – caso contrário, ele jamais saberia reconhecê-la.

Para criar arte a partir do acaso, é necessário estar predisposto, de olhos atentos. A famosa frase "até eu faria" não tem sentido, percebe? Portanto, quando estiver no museu e uma obra lhe parecer ter sido feita por acaso, pode acreditar que em certo sentido ela foi mesmo, porém jamais no sentido pejorativo. Às vezes, você só não está enxergando o processo que levou o artista até ela.

Acredito mesmo que o acaso rege a vida em geral. Fazer arte, porém, é uma escolha. E das mais acertadas.