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terça-feira, 29 de julho de 2014

"Agamben lembra que a mídia nos oferece fatos desprovidos de sua possibilidade, ela nos dá, portanto, um fato em relação ao qual somos impotentes. A mídia gosta do cidadão indignado, mas impotente, o homem do ressentimento. Em contrapartida, um certo cinema projeta sobre aquilo que foi (o passado, o impossível) a potência e a possibilidade. Repetir uma imagem no cinema teria essa função, restituir a possibilidade daquilo que foi, torná-la novamente possível, a exemplo da memória, que restitui ao passado sua possibilidade. Mas o cinema também exerce a potência da interrupção, e, ao subtrair uma imagem ao fluxo de sentido para exibi-la enquanto tal, como no caso de Godard ou Debord, introduz-se uma hesitação entre a imagem e o sentido, a exemplo do que faz a poesia. O cinema, em todo caso, reintroduz a possibilidade, des-cria a realidade, na contramão da mídia e da publicidade."

Peter Pál Pelbart
O Ato de Criação
[em O Avesso do Niilismo - Cartografias do Esgotamento, p. 296]

segunda-feira, 28 de julho de 2014

JORNAL DE LITERATURA

Entrei no vagão do metrô com o jornal em punho porque a viagem seria curta e o artigo era longo. Uma entrevista, na verdade, depois transformada em artigo pelo editor, que queria mostrar suas asinhas. Duas páginas inteiras de cima a baixo. Um jornal de literatura, claro. Porque somente jornais de literatura são capazes de publicar duas páginas inteiras sobre literatura. Nestes tempos em que apenas a exceção da exceção – no caso eu, personagem profunda – leria tanto a respeito de ler e escrever, ou sobre pessoas que leem e/ou escrevem. Enfim, pessoas dedicadas à nobre arte da literatura, que quase não existe mais. Em extinção por abandono e maus tratos, é essa a minha opinião. Pois bem, eu voltava de uma longa palestra sobre literatura, estava cansada, precisava me concentrar se quisesse acabar logo com aquela perda de tempo.

Os assentos estavam ocupados, todos eles, porque assim acontece no drama. Então me posicionei estrategicamente de lado, com as pernas tão abertas quanto as páginas do jornal – sem perder a compostura, obviamente –, com objetivo de evitar sobressaltos. Não suporto perder a linha e ter que retomar do princípio.

Ainda na primeira frase do primeiro parágrafo, logo após o título, ouvi um homem se introduzir na história. Penetramente.

Cê vem de onde memo?

Falava com voz afetada, meio gutural. Achei que estava bêbado, seria típico, mas depois notei certo problema de saúde, talvez deficiência nas cordas vocais. Tirei os olhos do jornal. A pergunta se direcionava a uma mulher de jeito bastante humilde, tadinha, que viajava perto da porta. Respondeu baixinho. Vim do Jardim Paulista, vou pro Brás.

Não se conheciam, era evidente. Ele solto; ela encolhida, constrangida. Ele estava exatamente no centro do vagão, dependurado como um babuíno, os dois braços agarrados ao tubo de metal preso no teto, mal se apoiando nos pés, balançando de um lado para o outro conforme o trem o conduzia. Balançando de modo irritante. Sem modos, para ser sincera.

Recomecei a leitura do artigo. Cê vem de oooonde memo?, quis saber o sujeito pela segunda vez, e me deixou inclinada a perguntar se era surdo ou bobo. Não poderia responder, fosse o que fosse; além do mais, achei prudente manter distância. Talvez estivesse provocando a coitada. Tenho medo de confusão. Já vi um pouco de tudo acontecer nos últimos anos, o nível desceu demais. Inclusive no metrô, que já não é como costumava ser. É bom ficar atenta. Sempre atenta.

Incomodada com a situação, a mulherzinha olhou ao redor e falou mais alto, um alto ainda acanhado: vim do Jardim Paulista. Vou pro Brás. E se recolheu novamente, abraçando a bolsa com a força que dispunha, e que não era muita. Escondeu-se atrás do nó.

Desviei os olhos para não parecer enxerida. Brááááss..., repetiu o sujeito, com calma, lentamente, ruminando as vogais, em especial as vogais abertas. Como se sonhasse com ninfas bailando no paraíso. E o paraíso fosse o Brás. E aquela mulher fosse uma ninfa, talvez. Que visão doida. Sua voz soava ainda mais grave.

Nesse ponto, minha única certeza era que não conseguiria concluir a leitura a tempo, uma vez que sequer havia começado, e compreender isso me fez sentir uma impertinência. Tentei apressar os olhos.

Linha um...

Cê vai pro Brás, é?

Sim, Brás.

Cê mora lá?

Linha um.

Moro.

Do Jardim até o Brás...

É.

Jornal de Literatura, linha um.

Que tem no Brás?

Moro lá. Não tem nada.

Nada?

Literatura!

Nada especial.

Bráááás. Não conheço o Bráááás.

É... Eu sim.

Jesus! Literatura!

Cê faz isso todo dia?

...

O caminho...?

É, faço.

Jardim Paulista. Até o Brááás.

Concentração, concentração, concentração.

U-hum.

É.

Vamos lá, você consegue. Linha um.

Eu não. Eu não conheço o Brááás.

Deixei a cabeça cair, derrotada. Espiei. A mulher disfarçava o olhar do homem, que atravessava sua pele até as entranhas. Atravessava a bolsa, o constrangimento, os bons costumes, a vontade de chegar logo em casa. Ele ria. Eu quase podia ver sua saliva escorrer pelos cantos da boca, fazendo espuminha. Ainda tinha receio de que fosse um psicopata, desses da TV. Que seguisse a pobre mulher pela estação e sabe-se lá que tipo de atrocidade cometeria.

Literatura!

Tenho visto muitos casos assim, de lunáticos agressivos. É essa sociedade de hoje, essa correria, solidão, essa virtualização das relações sociais. Eles agem sem razão aparente. Estão todos soltos por aí.

O sistema de som do trem anunciou a chegada à estação Brás. Achei que saltitaria de alegria; a mulher, entretanto, não esboçou qualquer reação, fingiu não prestar atenção no homem que a encarava. Sabia lidar com esse tipo de gente; a infeliz devia passar por isso todo santo dia, supus. Todavia, desceu do trem, caminhou sem pressa pela plataforma, sem olhar para trás. Sem pressa mas com firmeza. Decidida.

O esquisitão continuou dependurado. Tive a impressão de que lhe escapuliu um tchau indeciso, ou talvez fosse imaginação minha. Pensei que agora se voltaria para mim. Não aconteceu. Dei graças a Deus por ter bastante gente no metrô, mesmo àquela hora. A mulher sumiu de vista sem averiguar se aquele sujeito a seguia. Achei corajosa, num primeiro momento. Achei-a irresponsável depois, sem consciência do perigo. Por fim, pensei que talvez estivesse sendo paranoica.

Tentei reiniciar a literatura. Quer dizer, a leitura. Tentei reiniciar a leitura do Jornal de Literatura. Artigo longo, linha um, aqui.

Ora, o homem estava apenas puxando assunto, certo? Eu que fiquei assustada. O que me assustou? Sua deficiência de fala? O descontrole do tom da voz? Ou ele puxar assunto com uma moça qualquer no metrô, na frente de todo mundo, com tamanha indiscrição. Esse seu descabimento.

Tirei os olhos do jornal, botei-os no homem, sujeitinho curioso, que continuava a balançar para lá e para cá, para lá e para cá, para lá...

Despertei com um solavanco. Não tinha como saber. Não é uma atitude comum, ainda mais nos dias de hoje. Não estou acostumada a essas coisas! O mundo está perdido, même.

Não era problema meu, na verdade. Só me dizia respeito o que o escritor, do qual eu não gostava nem um pouco, pensava da literatura; isso sim me interessava, só para poder criticá-lo depois, com fundamento. O homem deficiente que procurasse sua turma.

Jornal de Literatura, linha um.

Queria me concentrar. Só que fiquei repassando, de cabeça, aquela história toda. Que se fazia ali mesmo, numa composição do metrô.

Maldita literatura contemporânea.

Chegou minha estação. Só iria até aquele ponto.

Dobrei o jornal com delicadeza, coloquei-o na bolsa, tomando cuidado para que a tinta preta não sujasse o forro. Saltei na plataforma. O trem levou meu personagem para longe, eu acho. Aquele ser infinitamente superficial.

domingo, 20 de julho de 2014

"Se esta não lhe agrada, não lhe convém, pegue outra, coloque outra no seu lugar. (...) Há apenas palavras inexatas para designar alguma coisa exatamente."

Gilles Deleuze
Diálogos, p. 13

sábado, 19 de julho de 2014

IDEIA PARA PERSONAGEM

Eu o faria assim, obsessivo: alguém que deseja proibir tudo, convicto da ordem e progresso; pior: que os tem como lema e dele não abre mão. Não abre mão de nada, de uma opinião sequer, por mais bruta que pareça [aos outros]. Um sujeito que acredita na rigidez do sistema, na proibição como medida educativa, na punição severa como remédio contra inadequação social, na supressão de direitos por um bem maior; um sujeito como tantos.

Daria a ele o nome de Cristiano, em referência a certo moralismo que, com frequência, se torna um problema e ajuda a esconder faltas de quem o pratica. Não revelaria o sobrenome, bastaria dizer que é oriundo de família tradicional(ista); ou, ainda, que possui no currículo uma sólida base familiar. Prefiro assim porque mais gente pode se identificar, até quem não se afeiçoa ao sentido figurado.

Cristiano é um homem de palavra. Sério, trabalhador. Certo do que é certo e mais certo ainda do que é errado. Divide o mundo em duas metades: o bem e o mal, a direita e a esquerda, o ataque e a defesa, a verdade e a mentira, amigos e inimigos, pretos e brancos; levanta um muro entre elas, um muro alto; defende-o com unhas e dentes e verbos imperativos. Vê facilidade nisso. Não consegue perceber nuances, ambiguidades, perspectivas. Tampouco está interessado. Homem determinado não muda de opinião no meio do caminho.

Acredita que violência gera violência. Ao mesmo tempo em que afirma a necessidade da guerra contra o terror. Tem certeza de que é um problema crônico onde vive – digamos que seja no Brasil, a título de exemplo. Esse problema não se resolve com revisões do sistema policial, judiciário e carcerário; resolve-se com a Rota na rua, o exército nos morros, bombas nas manifestações, trava de bicicleta no pescoço. Resolve-se com diminuição da maioridade penal e, Deus lhe perdoe, com pena de morte também. Pronto, falou. Porque não pode dar moleza pra vagabundo, entende?

Acredita que tudo seria melhor com respeito e educação. Só mantém uma arma de fogo em casa porque nunca se sabe, né? Não dá pra confiar.

Aceita o homossexualismo contanto que fique longe; entre amigos, permite-se dizer isso de um jeito um pouquinho diferente, que mal não faz, imagine! Dá risada. São apenas umas verdades.

Não se envolve com política porque é um ninho de vespas, ninguém ali presta. Não acompanha essas coisas, é responsabilidade daquele sujeito em quem votou nas últimas eleições, o do partido de sempre, reeleito pela quinquagésima vez. Também não entende nada de justiça, mas tem certeza de que houve mamata no veredicto do mensalão. Porque é sempre assim. Acha que só se faz política com partido e colarinho branco.

Reconhece que a educação vai mal, mas não compreende o motivo, pois seus filhos estudam em escola particular. O SUS é uma lástima, mas não sabe quanto, pois paga plano de saúde. Apoia reivindicações de menor custo nos transportes contanto que não atrapalhem o trânsito, que é caótico. Muitos não têm onde viver? Virem-se!; ele já se resolveu comprando – com muito esforço, diga-se de passagem – um apartamento num bairro tranquilo. Sua razão vagueia ali nos finais de semana, é gostoso; só não vai longe para não se cansar. Políticas públicas/sociais são graves sim; graves problemas dos outros. Não tem nada a ver com isso, nadinha. E, mimimis à parte, tudo se resolveria com mais verba e vergonha na cara.

É o que falta para o povo: vergonha na cara. Tem certeza, deu na TV. Mas Cristiano é homem de muita esperança. Tem certeza também que, um dia, Deus sabe quando, o Brasil há de entrar nos eixos. Um dia ele vai acordar no paraíso; o melhor país do mundo, o mais evoluído. Como num passe de mágica. Porque nossa economia é forte. Porque somos abençoados e bonitos por natureza.

O governo ditará o que pode e o que não pode, facilitando nossas vidas; bem paternalista, preocupado, como nos bons tempos de antigamente, quando se trabalhava em prol da nação, quando ninguém ficava inventando moda. O povo vai obedecer porque é consciente e civilizado. Não pode vandalismo, não pode vaiar presidente, não pode greve; não pode perguntar, exigir, criticar. Não pode reclamar quem não tem solução melhor para apresentar. Não pode nada, entendeu bem? Assim é melhor; sem tentação não há pecado.

Meu personagem Cristiano seria absurdo, estereotipado; tão próximo da realidade que duvidaríamos se é realmente ficcional ou se o cotidiano é que parece uma grande invenção. Tipo novela das nove. Já pensou que legal?

terça-feira, 15 de julho de 2014

"O significado originário, a referência etimológica do termo 'personagem' nos ajuda a ver isso: persona, termo latino de onde deriva o vocábulo atual, guarda a memória da palavra grega para máscara – artefato utilizado no teatro para caracterizar, de modo convencional, as expressões e os afetos dos atores. Logo, personagem nem sempre indicou um indivíduo único e irrepetível, mas uma função, um lugar convencional a ser ocupado por sujeitos que representassem, de modo sintético, pessoas de uma determinada classe ou condição social (como ocorre nas comédias da Antiguidade Clássica, por exemplo) ou personagens alegóricos, que figuram a própria condição humana (como o caso do próprio Dante Alighieri, protagonista da Divina Comédia). Se pensarmos historicamente, veremos que a ênfase dada ao indivíduo (e aos personagens marcados como sujeitos únicos e em tudo diferente dos demais) é um fato recente, datando do início da Era Moderna (séculos XV e XVI)."

Gustavo Silveira Ribeiro
Cândido, 35, junho/2014

sábado, 12 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (POSFÁCIO)

Talvez você tenha sido amada também, embora não tenha se encontrado nestes relatos. Talvez eu não me recorde, talvez não deva falar. Talvez tenhamos nos visto apenas uma, duas, muitas vezes. Talvez não o bastante. Talvez a gente ainda não se conheça. Talvez não o suficiente. Talvez pareça que me apaixono fácil, mas não é verdade; a maioria dos casos foi puro platonismo. Talvez eu ainda ame você. Talvez nem mesmo eu saiba. Talvez ainda venha a amá-la. São as incertezas, essas imprecisões e indecisões, que fazem do amor uma aventura viva, pulsante, tão memorável. Tanta gente se dedicou ao amor ao longo da História! Tanta gente se dedicou 'simplesmente' a amar, às suas próprias histórias de amor. Não sou, nem de longe, pessoa apropriada para dar voz aos grandes anseios e mistérios da humanidade. Tenho meras lembranças. Meia dúzia de recordações. Que talvez sejam verdade, talvez não. Seja como for, são obras da minha cabeça. Talvez do coração.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (12)

Enquanto realizava as pesquisas para o mestrado, caí de amores pela artista que permanecia no foco das minhas atenções. É natural que o interesse gere mais interesse. Não seria nada excepcional caso ela não estivesse morta há trinta anos. Mesmo assim eu me sentia próximo, folheando seus escritos, descobrindo suas obras, assistindo aos seus filmes. Era como se pertencesse ao seu mundo, um pouquinho que fosse. O qual, de tão encantador, me fez apaixonar.

Uma certeza que tive, talvez a única certeza que se permita ter, é que o amor não cabe no tempo, no espaço, numa língua ou numa cultura específica. Ele avança fronteiras. E reside aqui e ali consecutivamente, em ambos os territórios, independente da nossa vontade. Numa ambiguidade sedutora.

Lygia tinha temperamento difícil. Discordávamos com frequência. Porém sua obra causava fascínio e admiração, então eu deixava as desavenças de lado para me dedicar inteiramente aos elogios. Conheci o universo pelo seu ponto de vista. Pensei as relações humanas segundo a sua perspectiva. Cada aspecto seu emergia e me transformava. Não tinha outra maneira de agradecer senão agregando pontos positivos às suas memórias.

Foi muito difícil deixá-la. Contudo, era preciso. Voltar as costas, seguir adiante. Trouxe uma parte preciosa comigo. Não suas pinturas e esculturas, que até valem um bom dinheiro. Trouxe experiência de vida. Fé na liberdade. Vontade criativa. Não tem dinheiro que compre essas coisas. Aliás, o dinheiro nem sabe o que significam.

Toda vez que me deparo com uma nova pesquisa sobre arte, sei como Lygia pensaria. Ou pelo menos eu imagino com tamanha convicção que faço realidade da ficção. E vice-versa. De todo modo, é sempre ela que vem. Sempre em primeiro lugar. Como um amor do passado que eu jamais esqueci.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (11)

Não tenho condições de esmiuçar o grande amor da minha vida porque ele não cabe aqui; eu teria que escrever um romance, talvez uma trilogia, como está na moda. Nem mesmo assim... a literatura não daria conta, é muita responsabilidade. Além do mais, o amor é nosso, tem a nossa cara, o nosso jeito; duvido que interesse aos leitores.

Posso compartilhar apenas uma lembrança, que no fim das contas resume bem o casamento. Uma cena. Assim:

Eu quero sanduíche, Juliana quer sopa. Inclusive, ela quer que eu tome sua sopa também. Levo meia hora persuadindo-a de que podemos muito bem jantar juntos com ela tomando a sopa e eu comendo o sanduíche. Gera um atrito mas ela concorda. Preparamos os pratos, sentamos para jantar. E ela come o meu sanduíche.

Rimos. Tomo a sopa, que estava gostosa, até.

Passamos então a planejar o cardápio do dia seguinte.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (10)

Já amei mulher casada. Sim, já. Para melhor ou para pior, acredito que ela me amou também, e ficou esperando um movimento meu para reviver o universo em seu estado de caos. Não seria um ato fugidio, ou ato falho, isso nunca me interessou; seria aposta das grandes, daquelas que põem tudo em risco. Acredite, milhares de possibilidades passam pela cabeça de quem ama nessas condições. Porém as cartadas nem sempre são decididas ali, na cabeça, e algumas daquelas possibilidades por vezes se tornam fato.

Eu estava solteiro na época, sem namorada nem nada. E achava inconcebível não poder amá-la porque um dia, num passado não tão distante, Giovana decidiu se comprometer por toda a vida. Não fazia sentido. Era tão jovem! Tão jovem quanto eu. E, no limite, restava a nós somente uma parcela da vida para sermos felizes.

Sabe, a traição é sempre questão de egoísmo. Não é um moralista que fala, ok? Penso isso friamente. Pode ser que a mudança compense, afinal; não dá para estabelecer uma regra. Mesmo assim, quando a jogada dá certo e os envolvidos ficam bem, ainda me parece egoísmo. Por causa do desejo de romper uma relação somente para iniciar outra. Porque essa outra seria supostamente melhor. Pura tentação. Uma cilada que pode terminar mal. Enfim, é amor. E amor não tem mesmo fundamento, de nada adianta querer justificá-lo.

Fato é que hoje o casado sou eu. Só quando me comprometi é que pude entender o poder do rito. Não foi antes, não foi quando achei que convinha casar. Foi na hora do sim. Compreendi que não se trata de abrir mão de outros amores. Mas, sim, de me dedicar inteiramente ao meu; aquele que provou valer a pena.

Ainda, uma aposta. Que beco sem saída!

Veja bem, sem arrependimentos, continuo a amar mulher casada. A minha.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (9)

Já tentei amar com objetivo de esquecer outro amor. Foi patético; óbvio que não deu certo. Porque não se anula um amor com outro, assim como não se divide o amor em dois. Amor apenas soma. Se o resultado não confere, sinal de que algo na equação está errado – convém rever os elementos.

Insisti durante um tempo. Pouco, na verdade. Para minha sorte, Júlia percebeu e não se deixou enganar. Foi mais esperta, pois eu nem sabia que a enganava. Aliás, enganava a mim, a ela e a meu outro amor, o verdadeiro.

Nossa relação, na qual eu depositava uma quantia incontável de esperança, ingênuo que fui, rompeu de uma hora para a outra, tamanha a sua inconsistência. Desandou. Até nisso eu me enganava.

Investi meu espírito na ciência do amor, por mais incompatíveis que fossem, a princípio. Jamais consegui explicar a razão. De algum modo, acredito que ela compreendeu. Não precisou da lógica, apenas do sentimento. Achei-a forte, decidida. Foi gentil comigo. E desapareceu.

Fiquei livre para me dedicar ao amor primeiro, aquele que eu tentava esquecer sem sucesso, que originou toda a discórdia. Também ele não deu certo, coisa que eu sabia desde o início. Repassei cada uma das suas questões, revisei os dados, adicionei pontos positivos, subtraí pontos negativos, contei demais com conjuntos vazios. Procurava uma resposta esclarecedora. A solução era sempre igual. Tratava-se de um amor impossível.