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sábado, 31 de janeiro de 2015

EU PREFERIRIA NÃO

Faz uns anos que li Bartleby – o escrivão, o escrevente, o escriturário, conforme a tradução. E o que restou do livro foi uma lição de resistência aos mecanismos perversos da vida. Não ao "Sistema", no sentido macropolítico. Mas às engrenagens menores que botamos em funcionamento no dia a dia e que, talvez para valorizar a nossa própria existência/relevância, acreditamos que não podem parar. A micropolítica que nos atravessa o tempo inteiro, desde o bom dia ao boa noite, senão além; na padaria, no ônibus, no banco, na correria do escritório, na conversa com os filhos sobre o que aprenderam na escola, na hora de preparar o jantar. Não é exclusividade de Bartleby – quer dizer, eu raramente lembro das artimanhas da ficção. Os pormenores evaporam, faço uma miscelânea de cenas e personagens, não consigo refazer a história de cabo a rabo. Por fim, resta somente um sentimento, que carrego comigo, em especial quando o livro deixou marca mais profunda. Uma sensação de literatura. Que não guardo propriamente na memória, mas no corpo inteiro. Se me perguntam o destino de tal personagem, por que falou tal coisa, em que momento o segredo se revelou, o que aconteceu depois, admito que não sei. Seguindo a linha do raciocínio, não lembro sequer das tramas que eu mesmo escrevi. Quase nunca sei recontá-las. Porém cada livro deixa uma sensação, uma espécie de aura de significados; um despertar pela literatura.

A Metamorfose, de Kafka, se revelou uma angústia de ser; K., de Kucinski, sintetizou a violência do poder e seus métodos; Bonsai, de Zambra, tratou do imenso potencial das coisas mais singelas. Não é raro eu me lembrar apenas de que esse livro é leve, aquele é azul, o outro, quente, acolhedor.


Bartleby me mostrou um caminho alternativo para a resistência; é o que vejo de mais contemporâneo nele. Para quem não conhece, essa breve história de Herman Melville fala de um sujeito peculiar, estranho, que é contratado por um advogado para fazer cópias de documentos, numa época em que elas eram feitas à mão. Um bom funcionário, no sentido produtivo: quieto, dedicado, que não enrola nem comete erros. Uma engrenagem bem azeitada na máquina do capital. Que em algum momento começa a querer girar num outro sentido. E que responde, às ordens do patrão, "I would prefer not to", eu preferiria não, talvez uma das frases mais emblemáticas do século XX – ainda que o texto seja mais antigo, publicado em 1853.

Sua perspicácia está, justamente, em não "bater de frente" com seu empregador. Ao dizer que preferiria não cumprir a tarefa – ao invés de recusá-la terminantemente –, Bartleby coloca-se sob responsabilidade do outro, que deve decidir seu destino. Ele não enfrenta a autoridade, mas com a sutileza de um toque a enfraquece toda. O patrão daria a Bartleby uma tarefa que ele não recusaria para não desagradá-lo, mas que faria contra a própria vontade. Ele sabe disso. Só não sabe como reagir. É esse jogo de consciência que se estabelece e quase leva todos à loucura, retirando-os da zona de conforto, desestabilizando o que já estava instituído.

Isso me marcou profundamente. E sempre que parece necessário intervir numa situação que incomoda, apelo ao estratagema do escrivão, perguntando a mim mesmo qual seria o caminho alternativo ao confronto direto, uma vez que este certamente levará ambas as partes à violência e, portanto, à derrota. Nem sempre funciona, claro. Mesmo assim esse método de resistência é mais inteligente e menos desgastante.

É também um método menos narcisista. Porque não se pauta numa certeza, mas em suposições, hipóteses, possibilidades diferentes. No lugar de "donos da verdade" disputando o poder, insere-se a inexatidão, a dúvida, o convite à reflexão e à revisão dos princípios.

Existe uma grande quantidade de interpretações do livro de Melville, inclusive que o vê como sintoma de esvaziamento e tendência à depressão, como Joel Birman escreveu em O sujeito na contemporaneidade. E uma interpretação não invalida necessariamente a outra. Seja como for, é surpreendente como uma ficção tão curta permaneça tão relevante.

Para mim, sua força está no próprio uso da linguagem, que rompe a dialética do sim e do não ao criar uma zona de indiferença entre o sim e o não, conforme Gilles Deleuze propõem em Bartleby, ou a fórmula. Ele insere uma fratura na ambivalência do mundo. Expressando um "nada de vontade", põe fim à lógica dos pressupostos, daquilo que procura se sustentar porque "sempre fora assim", baseado numa tradição por vezes importuna aos tempos atuais.

Bartleby rompe a ordem. Depõe a verdade absoluta sem inserir outra no lugar, sem continuar a alimentar o mesmo mecanismo de poder e dominação. É essa resistência mais inteligente e menos violenta que a sociedade contemporânea precisa produzir; é sua voz ambígua, subjuntiva, que precisa ganhar ouvidos diante dos urros da ignorância imperativa, antes que o sistema entre em colapso pelo excesso de ordem, antes que o absurdo do real se imponha pelo excesso de razão.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Lucioles (2008), Renata Siqueira Bueno
 
"Desapareceram mesmo os vaga-lumes? Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (…) Eles desapareceram de sua vista porque o espectador fica no seu lugar para vê-los. (…) Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes."

Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

SÁBIAS PALAVRAS


Toda vez que penso em publicar um comentário no Facebook ou aqui no Arte Faz Parte, lembro do que o escritor Bernardo Carvalho disse em entrevista a Um escritor na biblioteca. Então, alguns dos meus comentários são publicados, outros são revistos e abandonados. Compartilho o método com quem for suficientemente humilde para aceitá-lo.

Eis o trecho: "Tive que reescrevê-lo [o romance Reprodução, na época ainda inédito] muitas vezes, porque queria que os personagens fossem todos do mal e muito burros, mais ou menos o modelo dos comentaristas de internet. Eu queria que os personagens, todos eles, fossem como esses caras que fazem comentários na internet, que querem se expressar, gente que tem ideia sobre tudo, que são super orgulhosos com as próprias opiniões. Queria fazer um livro que só tivesse personagens assim, que todos fossem uns idiotas."

A entrevista completa está aqui, a quem se interessar: Bernardo Carvalho, um escritor na biblioteca

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE A TRISTE EXECUÇÃO DO BRASILEIRO NO ÚLTIMO SÁBADO

Enquanto nós permitirmos a pena de morte, que é a violência máxima que um governo pode decretar, estaremos todos sujeitados às demais violências advindas dos lados mais diversos.

Enquanto a morte for medida oficial, não haverá controle nem segurança. Não haverá limites. Muito menos limites morais.

Enquanto acharmos que isso é problema [ou "solução"] de outros países, que a pena de morte não nos diz respeito, estaremos virando as costas para os atentados contra a humanidade. E a humanidade é muito maior do que leis locais. E muito maior do que atrocidades culturais.

A pena de morte não é diferente do campo de concentração, apenas acontece com menor quantidade. Ela não melhora nada, nem a sociedade nem o executado. É ingenuidade achar que serve como exemplo, pois só é exemplo de mais estupidez.

Enquanto acreditarmos que a violência é a solução para a violência… tristes de nós.

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"Um dos maiores problemas sociopolíticos da atualidade é a violência. Esta se impõe como uma invariante sempre presente nas subjetividades, que se mostram cada vez mais violentas se as compararmos com as de décadas atrás. Com efeito, a violência sem causa aparente e a violência gratuita se banalizaram no nosso mundo de forma inquietante, e já se transformaram em lugar-comum. Mesmo que a violência não seja gratuita e que tenha boas motivações para exisitr, o que se destaca aqui é a disparidade entre o motivo e a violência desencadeada, como se esta fosse a única possibilidade que se impõe no horizonte do sujeito diante de um impasse e de um obstáculo. Tudo se passa como se ele tivesse perdido a crença na possibilidade de resolver e superar os obstáculos que se colocam para si pelo discurso e pela retórica, isto é, pela negociação com os outros.

(…) Uma marca se destaca na criminalidade atual, de forma inconfundível, e se interesse diretamente à problemática da subjetividade. Estou me referindo à crueldade, que colore cada vez mais os crimes na contemporaneidade. O refinamento assumido pela crueldade deve ser devidamente sublinhado, pois ultrapassa os limiares anteriormente estabelecidos no gesto de matar. Atingimos novos níveis, até então impensáveis. A possibilidade de tirar a vida de outro se dissemina, tornando-se natural assim o assassinato e o genocídio, em que a crueldade delineia frequentemente a cena do crime com pinceladas grotecas e anti-humanas."

Joel Birman, O sujeito na contemporaneidade

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

#JeSuisCharlie

Que atitude tem mais chance de fazer um mundo menos ignorante?
a) Cartum
b) Ataque terrorista


"Sobretudo, o problema é evitar o julgamento. Não digo evitar o castigo. Porque o castigo sem julgamento é suportável. Ele tem, aliás, um nome que garante a nossa inocência: a infelicidade. Não, pelo contrário, trata-se de fugir ao julgamento, de evitar ser continuamente julgado, sem que jamais a sentença seja pronunciada. (…) A partir do momento em que temi que houvesse em mim qualquer coisa a ser julgada, compreendi, em suma, que havia neles [meus semelhantes] uma vocação irresistível para julgar. (…) A única defesa está na maldade. As pessoas apressam-se, então, a julgar, para elas próprias não serem julgadas."

A QUEDA, de Albert Camus

sábado, 3 de janeiro de 2015

EXTRADITO

quando digo eu
há quem confunda
com outro eu,
a voz que fala
e aquele que deseja
sumir por trás dela

eu não sou, eu não é
eu não se importa
nem importo a mim,
apenas a voz exporta,
transborda, profana, abomina,
a (mal)criação do autor-deus

candidato fajuto
ao lugar do outro deus
que estava morto

resta a obra
que é toda nossa
antropofagia

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

INDISCRIMINADAMENTEM

– Loucos não mentem?
– O tempo todo.
– Como podem?
– Inventam. Indiscriminadamente. Acredita?
– Se você diz.
– É verdade, pode acreditar.
– Que loucura. Jamais pensei...
– Sim, mas tem uma coisa: é tudo verdade.
– Como assim?
– As mentiras, tudo verdade.
– Fala sério!
– Eles também. Falam sério, de verdade. Não sabem que inventam. Falam sem pesar a consciência.
– Faz sentido.
– Pode crer. Eu sei que faz.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

SOMOS TODOS ARTISTAS

Capa do catálogo da exposição realizada
no SESC Pompeia em 2010
Seria possível moldar a sociedade assim como o barro, dando a ela forma aproximada daquilo que deseja? O artista alemão Joseph Beuys acreditava que sim, e dedicou a vida para nos apresentar modos de fazer. Segundo ele, tudo que está rígido demais precisa ser amolecido, e o que ainda não consegue se sustentar carece de estrutura. Assim a organização social pode, aos poucos, ser transformada de acordo com as demandas mais atuais, adquirindo linhas contemporâneas e abandonando o que tem de retrógrado.

A rigidez da homofobia, do preconceito racial contra negros, dos abusos sobre as culturas e terras indígenas, por exemplo, deve ser trabalhada, tornada maleável, moldada até condizer melhor com a realidade de hoje, com as necessidades de espaço e acolhimento, com direitos sociais respeitados e defendidos por todos.

Seguindo a mesma lógica, os homossexuais, os negros e os índios precisam ganhar peso político, participar em mesmo nível que os demais grupos, usufruir dos mesmos direitos. Isso vale para todas as questões que nos atravessam e para as quais, infelizmente, muitos viram as costas: legalização do aborto, descriminalização das drogas, violência policial, jovens em conflito com a lei, dogmatismo religioso na política, implementação de transportes alternativos como as ciclovias, entre outros devires menores que clamam atenção. Tudo deve ser moldado: apertado, experimentado, errado, feito de novo, tentado de outro jeito... até que finalmente se obtenha forma satisfatória, a qual permanecerá apenas enquanto for conveniente, pois assim que surgir nova demanda o trabalho terá que ser retomado.

Beuys falava de "escultura social". E afirmava que todos somos artistas, uma vez que temos não apenas capacidade mas obrigação de agir na substância da sociedade que constituímos e que à sua maneira nos une, alguns queiram ou não.

Ao propor isso ele expandiu o território da arte para diversos outros, embaçando fronteiras e modificando o mapa inteiro no processo. Atuou em organizações políticas, fundou partidos; deu aulas, criou um conceito próprio de universidade livre; promoveu debates, participou de eventos em museus, galerias, redes de rádio e televisão; escreveu, viajou, transformou a si mesmo numa obra de arte com abrangência mundial e procurou meios alternativos para divulgar suas ideias sobre a atitude/responsabilidade transformadora que todos deveríamos assumir.

As mudanças começam no próprio pensamento. Por isso o aspecto conceitual de sua obra é tão importante. É a partir de uma transformação na maneira de pensar que podemos chegar a uma melhor concepção de mundo. Por meio da escultura social seria possível alcançar a emancipação, ou seja, certa liberdade para viver e compartilhar.

Cartaz de Joseph Beuys apresentado
na 15ª Bienal de São Paulo, em 1979
Quando participou da 15ª Bienal de São Paulo, em 1979, Beuys reproduziu em cartaz um longo texto escrito no ano anterior, intitulado Conclamação à Alternativa. Dele extraí o trecho a seguir, que serve como aperitivo das suas propostas, traz um alerta imprescindível e surpreende por sua atualidade.

Neste ano que se inicia, após uma Copa do Mundo catastrófica (não me refiro ao 7 x 1), manifestações sociais no país inteiro, confrontos políticos violentos e uma 31ª edição da Bienal que, de tão provocadora e relevante, talvez tenha passada despercebida pela grande mídia, vale retomar Beuys e refletir sobre os próximos passos. Quem sabe assim evitamos novos tropeços – e mais graves?

"É preciso alertar contra uma mudança irrefletida. Diante da questão: O QUE PODEMOS FAZER?, temos de nos perguntar COMO DEVEMOS PENSAR?, a fim de evitar que o discurso dos mais altos ideais da humanidade, proclamado atualmente por todos os programas partidários, continue a se reproduzir como expressão do contraste crasso com a vida prática da realidade econômica, política e cultural em todo o mundo.

Comecemos pela REFLEXÃO DE CADA UM SOBRE SI MESMO. Perguntemo-nos sobre as razões que nos dão ensejo de abandonar o que seguimos até agora. Procuremos as ideias que nos indicam a direção a tomar nessa mudança de rumo.

Repassemos a evolução da vida social e política no século 20.

Reexaminemos os conceitos segundo os quais se estabeleceram as condições reais no Oriente e no Ocidente.

Reflitamos sobre o efeito desses conceitos: terão eles incentivado nosso organismo social e seu relacionamento com as bases naturais, propiciando o surgimento de uma existência saudável – ou, pelo contrário, não terão tornado a humanidade doente, não lhe terão aberto feridas, não lhe terão trazido desgraças, colocando em questão sua própria sobrevivência, hoje? Aprofundemos nossa reflexão observando cuidadosamente nossas próprias necessidades: estarão os princípios do capitalismo ocidental e do comunismo oriental abertos para receber o que vai se revelando cada vez mais claramente, a partir da evolução dos últimos tempos, como o impulso central na alma da humanidade, ou seja, a vontade de autorresponsabilidade concreta? Em outros termos, trata-se de um impulso que leva o ser humano a emancipar-se das relações sociais pautadas unicamente por mando e submissão, poder e privilégio."