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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

SÁBIAS PALAVRAS


Toda vez que penso em publicar um comentário no Facebook ou aqui no Arte Faz Parte, lembro do que o escritor Bernardo Carvalho disse em entrevista a Um escritor na biblioteca. Então, alguns dos meus comentários são publicados, outros são revistos e abandonados. Compartilho o método com quem for suficientemente humilde para aceitá-lo.

Eis o trecho: "Tive que reescrevê-lo [o romance Reprodução, na época ainda inédito] muitas vezes, porque queria que os personagens fossem todos do mal e muito burros, mais ou menos o modelo dos comentaristas de internet. Eu queria que os personagens, todos eles, fossem como esses caras que fazem comentários na internet, que querem se expressar, gente que tem ideia sobre tudo, que são super orgulhosos com as próprias opiniões. Queria fazer um livro que só tivesse personagens assim, que todos fossem uns idiotas."

A entrevista completa está aqui, a quem se interessar: Bernardo Carvalho, um escritor na biblioteca

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE A TRISTE EXECUÇÃO DO BRASILEIRO NO ÚLTIMO SÁBADO

Enquanto nós permitirmos a pena de morte, que é a violência máxima que um governo pode decretar, estaremos todos sujeitados às demais violências advindas dos lados mais diversos.

Enquanto a morte for medida oficial, não haverá controle nem segurança. Não haverá limites. Muito menos limites morais.

Enquanto acharmos que isso é problema [ou "solução"] de outros países, que a pena de morte não nos diz respeito, estaremos virando as costas para os atentados contra a humanidade. E a humanidade é muito maior do que leis locais. E muito maior do que atrocidades culturais.

A pena de morte não é diferente do campo de concentração, apenas acontece com menor quantidade. Ela não melhora nada, nem a sociedade nem o executado. É ingenuidade achar que serve como exemplo, pois só é exemplo de mais estupidez.

Enquanto acreditarmos que a violência é a solução para a violência… tristes de nós.

--

"Um dos maiores problemas sociopolíticos da atualidade é a violência. Esta se impõe como uma invariante sempre presente nas subjetividades, que se mostram cada vez mais violentas se as compararmos com as de décadas atrás. Com efeito, a violência sem causa aparente e a violência gratuita se banalizaram no nosso mundo de forma inquietante, e já se transformaram em lugar-comum. Mesmo que a violência não seja gratuita e que tenha boas motivações para exisitr, o que se destaca aqui é a disparidade entre o motivo e a violência desencadeada, como se esta fosse a única possibilidade que se impõe no horizonte do sujeito diante de um impasse e de um obstáculo. Tudo se passa como se ele tivesse perdido a crença na possibilidade de resolver e superar os obstáculos que se colocam para si pelo discurso e pela retórica, isto é, pela negociação com os outros.

(…) Uma marca se destaca na criminalidade atual, de forma inconfundível, e se interesse diretamente à problemática da subjetividade. Estou me referindo à crueldade, que colore cada vez mais os crimes na contemporaneidade. O refinamento assumido pela crueldade deve ser devidamente sublinhado, pois ultrapassa os limiares anteriormente estabelecidos no gesto de matar. Atingimos novos níveis, até então impensáveis. A possibilidade de tirar a vida de outro se dissemina, tornando-se natural assim o assassinato e o genocídio, em que a crueldade delineia frequentemente a cena do crime com pinceladas grotecas e anti-humanas."

Joel Birman, O sujeito na contemporaneidade

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

#JeSuisCharlie

Que atitude tem mais chance de fazer um mundo menos ignorante?
a) Cartum
b) Ataque terrorista


"Sobretudo, o problema é evitar o julgamento. Não digo evitar o castigo. Porque o castigo sem julgamento é suportável. Ele tem, aliás, um nome que garante a nossa inocência: a infelicidade. Não, pelo contrário, trata-se de fugir ao julgamento, de evitar ser continuamente julgado, sem que jamais a sentença seja pronunciada. (…) A partir do momento em que temi que houvesse em mim qualquer coisa a ser julgada, compreendi, em suma, que havia neles [meus semelhantes] uma vocação irresistível para julgar. (…) A única defesa está na maldade. As pessoas apressam-se, então, a julgar, para elas próprias não serem julgadas."

A QUEDA, de Albert Camus

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

SOMOS TODOS ARTISTAS

Capa do catálogo da exposição realizada
no SESC Pompeia em 2010
Seria possível moldar a sociedade assim como o barro, dando a ela forma aproximada daquilo que deseja? O artista alemão Joseph Beuys acreditava que sim, e dedicou a vida para nos apresentar modos de fazer. Segundo ele, tudo que está rígido demais precisa ser amolecido, e o que ainda não consegue se sustentar carece de estrutura. Assim a organização social pode, aos poucos, ser transformada de acordo com as demandas mais atuais, adquirindo linhas contemporâneas e abandonando o que tem de retrógrado.

A rigidez da homofobia, do preconceito racial contra negros, dos abusos sobre as culturas e terras indígenas, por exemplo, deve ser trabalhada, tornada maleável, moldada até condizer melhor com a realidade de hoje, com as necessidades de espaço e acolhimento, com direitos sociais respeitados e defendidos por todos.

Seguindo a mesma lógica, os homossexuais, os negros e os índios precisam ganhar peso político, participar em mesmo nível que os demais grupos, usufruir dos mesmos direitos. Isso vale para todas as questões que nos atravessam e para as quais, infelizmente, muitos viram as costas: legalização do aborto, descriminalização das drogas, violência policial, jovens em conflito com a lei, dogmatismo religioso na política, implementação de transportes alternativos como as ciclovias, entre outros devires menores que clamam atenção. Tudo deve ser moldado: apertado, experimentado, errado, feito de novo, tentado de outro jeito... até que finalmente se obtenha forma satisfatória, a qual permanecerá apenas enquanto for conveniente, pois assim que surgir nova demanda o trabalho terá que ser retomado.

Beuys falava de "escultura social". E afirmava que todos somos artistas, uma vez que temos não apenas capacidade mas obrigação de agir na substância da sociedade que constituímos e que à sua maneira nos une, alguns queiram ou não.

Ao propor isso ele expandiu o território da arte para diversos outros, embaçando fronteiras e modificando o mapa inteiro no processo. Atuou em organizações políticas, fundou partidos; deu aulas, criou um conceito próprio de universidade livre; promoveu debates, participou de eventos em museus, galerias, redes de rádio e televisão; escreveu, viajou, transformou a si mesmo numa obra de arte com abrangência mundial e procurou meios alternativos para divulgar suas ideias sobre a atitude/responsabilidade transformadora que todos deveríamos assumir.

As mudanças começam no próprio pensamento. Por isso o aspecto conceitual de sua obra é tão importante. É a partir de uma transformação na maneira de pensar que podemos chegar a uma melhor concepção de mundo. Por meio da escultura social seria possível alcançar a emancipação, ou seja, certa liberdade para viver e compartilhar.

Cartaz de Joseph Beuys apresentado
na 15ª Bienal de São Paulo, em 1979
Quando participou da 15ª Bienal de São Paulo, em 1979, Beuys reproduziu em cartaz um longo texto escrito no ano anterior, intitulado Conclamação à Alternativa. Dele extraí o trecho a seguir, que serve como aperitivo das suas propostas, traz um alerta imprescindível e surpreende por sua atualidade.

Neste ano que se inicia, após uma Copa do Mundo catastrófica (não me refiro ao 7 x 1), manifestações sociais no país inteiro, confrontos políticos violentos e uma 31ª edição da Bienal que, de tão provocadora e relevante, talvez tenha passada despercebida pela grande mídia, vale retomar Beuys e refletir sobre os próximos passos. Quem sabe assim evitamos novos tropeços – e mais graves?

"É preciso alertar contra uma mudança irrefletida. Diante da questão: O QUE PODEMOS FAZER?, temos de nos perguntar COMO DEVEMOS PENSAR?, a fim de evitar que o discurso dos mais altos ideais da humanidade, proclamado atualmente por todos os programas partidários, continue a se reproduzir como expressão do contraste crasso com a vida prática da realidade econômica, política e cultural em todo o mundo.

Comecemos pela REFLEXÃO DE CADA UM SOBRE SI MESMO. Perguntemo-nos sobre as razões que nos dão ensejo de abandonar o que seguimos até agora. Procuremos as ideias que nos indicam a direção a tomar nessa mudança de rumo.

Repassemos a evolução da vida social e política no século 20.

Reexaminemos os conceitos segundo os quais se estabeleceram as condições reais no Oriente e no Ocidente.

Reflitamos sobre o efeito desses conceitos: terão eles incentivado nosso organismo social e seu relacionamento com as bases naturais, propiciando o surgimento de uma existência saudável – ou, pelo contrário, não terão tornado a humanidade doente, não lhe terão aberto feridas, não lhe terão trazido desgraças, colocando em questão sua própria sobrevivência, hoje? Aprofundemos nossa reflexão observando cuidadosamente nossas próprias necessidades: estarão os princípios do capitalismo ocidental e do comunismo oriental abertos para receber o que vai se revelando cada vez mais claramente, a partir da evolução dos últimos tempos, como o impulso central na alma da humanidade, ou seja, a vontade de autorresponsabilidade concreta? Em outros termos, trata-se de um impulso que leva o ser humano a emancipar-se das relações sociais pautadas unicamente por mando e submissão, poder e privilégio."

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

"Em Kafka, a instituição é um mecanismo que obedece a suas próprias leis que foram programadas não se sabe mais por quem, nem quando, que não têm nada a ver com os interesses humanos e que são portanto ininteligíveis."

[Kafka só não é brasileiro porque é universal.]

"Os mecanismos psicológicos que funcionam no interior dos grandes acontecimentos históricos (aparentemente inacreditáveis e desumanos) são os mesmos que regem as situações íntimas (inteiramente banais e muito humanas)."

Milan Kundera, A arte do romance
sim, fui muito ridículo
poucas vezes
na vida
– fui suficientemente ignorante
quase sempre
motivo de conforto, frustração
às vezes dá raiva
assim

sábado, 6 de dezembro de 2014

O HOMEM PENSA, DEUS RI

"François Rabelais inventou muitos neologismos que em seguida entraram para a língua francesa e para outras línguas, mas uma dessas palavras foi esquecida e podemos lamentá-lo. É a palavra agélaste; ela é tomada do grego e quer dizer: aquele que não ri, que não tem senso de humor. Rabelais detestava os agélastes. Tinha medo deles. Queixava-se de que os agélastes eram tão 'atrozes contra ele' que esteve a ponto de parar de escrever, e para sempre.

Não existe paz possível entre o romancista e o agélaste. Não tendo nunca ouvido o riso de Deus, os agélastes são convencidos de que a verdade é inequívoca, de que todos os homens devem pensar a mesma coisa e que eles mesmos são exatamente aquilo que pensam ser. Mas é precisamente ao perder a certeza da verdade e o consentimento unânime dos outros que o homem torna-se indivíduo. O romance é o paraíso imaginário dos indivíduos. É o território em que ninguém é dono da verdade, nem Anna nem Karenin, mas em que todos têm o direito de ser compreendidos, tanto Anna como Karenin.

(...)

A erudição de Rabelais, por maior que seja, tem portanto um outro sentido que a de Descartes. A sabedoria do romance é diferente daquela da filosofia. O romance nasceu não do espírito teórico mas do espírito do humor. Um dos fracassos da Europa é jamais ter compreendido a mais europeia das artes – o romance; nem seu espírito, nem seus imensos conhecimentos e descobertas, nem a autonomia de sua história. A arte inspirada pelo riso de Deus é, por sua essência, não tributária mas contraditória das certezas ideológicas."

KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 147-148.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

ENQUANTO É TEMPO

o ócio se diz
criativo
porém tardio
tanto
que enquanto
o espero
entedio

nada concreto portanto
quero
inventar somente
do fundo do tédio,
do fruto da mente
a via

que venha insolente
criatura
tão logo puder
– sem ódio
contraproducente –
cria!
antes que eu
me vá

ausente.



O tempo é uma ficção. A gente o inventa como convém e às vezes o sustenta por mais inconveniente que tenha se tornado. Essa estrutura de jornadas de trabalho, de descanso aos finais de semana, trinta dias de férias, idade para aposentadoria, isso tudo foi inventado recentemente, da Modernidade para cá, e aos poucos quer ser reinventado. Talvez porque a estrutura simplesmente não funcione mais, em especial nas grandes cidades, onde a alta carga horária, as longas distâncias e a dificuldade de deslocamento determinam que outras atividades sejam realizadas enquanto se deveria dedicar à produção. Consultas médicas, pagamento de contas, correio, burocracias, estudo, questões pessoais, compras em geral, manutenção da casa, entre outras.

Surgem aqui e ali algumas tentativas de adaptação: home office, horários alternativos, banco de horas, jornadas reduzidas e mais focadas etc. Assim como há demandas oriundas das novas tecnologias que embaçam a fronteira entre folga e prática profissional, provocando o exercício de atividades fora do período determinado: whatsapp, emails, internet em geral, que mantêm todo mundo conectado e põem em questão as velhas relações trabalhistas entre empregadores e proletários. Afinal, em que momento estamos trabalhando? Quando deixamos realmente de trabalhar?

Transforma-se até mesmo o conceito de trabalho: ao invés da produção quantitativa, resquício da Revolução Industrial, há também o qualitativo, que não se mede com facilidade e prova seu valor por outras vias, opera por outros sistemas.

Claro que isso não se aplica nem reflete dilemas de todas as categorias ou de todas as cidades, mas, no geral, há demandas por novas organizações de tempo. Isso não é difícil perceber.

Existe o tempo natural, relativo ao nascer do sol, à movimentação dos planetas, às estações do ano, às luas e marés. Por sua vez, existe também o tempo cultural, do relógio que nem sempre conseguimos acompanhar.

Em São Paulo, por exemplo, levo entre trinta minutos e duas horas para chegar ao escritório, conforme as situações adversas que fazem da rotina algo imprevisível. O tempo cultural, atualmente, é inventado para sobreviver neste mundo de excesso: jornadas em que se troca o dia pela noite, supermercados 24h, bancos 30h, finais de semana utilizados para solucionar pendências remanescentes dos dias úteis e assim por diante. A escola dos filhos é incompatível com o horário dos pais, que precisam se desdobrar. O atraso deixa de ser exceção. O comércio passa cada vez menos tempo fechado.

Às vezes o estresse surge mais por conta da desconexão dos tempos do que pela quantidade de tarefas. Surge também a ansiedade por viver algo antecipadamente, por se adiantar aos problemas. Somos dominados pelo imediatismo: a necessidade de fazer primeiro, de chegar antes da concorrência, de ser inédito sempre.

Exploramos o máximo do tempo. E somos explorados em contrapartida. Panetones começam a ser vendidos cada vez mais cedo, perdem o simbolismo e se tornam um produto de consumo como outro qualquer. Frutas de época agora estão disponíveis durante o ano inteiro. As luzes da granja são usadas para acelerar o crescimento dos frangos, coitados. O homem transforma o tempo conforme convém ao momento, sem muita noção das consequências.

Essa correria traz uma nova ordem. O consenso parece impraticável, e a busca é por espaço para o dissenso. Ao invés de forçar métodos do passado, precisamos reinventar o presente. Pode ser que dê certo. Só não sabemos até quando.

Descobri que em alguns lugares virou moda a prática do nadismo: um tempo que as pessoas reservam para não fazerem nada, ou seja, uma tentativa meio paradoxal de resistirem aos excessos do dia a dia. Paradoxal porque tem hora marcada para acontecer. Imagino uma agenda lotada, na qual um dos compromissos é não fazer nada durante uma ou duas horas por semana. Ou seja, uma agenda ainda mais lotada porque o fazer nada é outro compromisso assumido. Uma tentativa ilusória de liberdade que acrescenta um novo nó à corda da escravidão.

Com ou sem nadismo, os prazos a cumprir continuam implacáveis. A sabedoria popular diz que tudo tem seu próprio tempo. Pode ser que sim. Será que temos paciência para esperar?

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A ESQUERDA DE DELEUZE



– O que é ser de esquerda para você?

 – Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é. Não é que não existam diferenças nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda, ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que essa situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: "Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?" E ser de esquerda é o contrário. É perceber… Dizem que os japoneses percebem assim. Não veem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois o continente europeu, por exemplo, depois a França etc., até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro se percebe o horizonte.

– Mas os japoneses não são um povo de esquerda…

– Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal. Estão à esquerda. Primeiro vê no horizonte e sabe que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode durar mais. Não é possível essa injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com que o terceiro mundo… Ser de esquerda é saber que os problemas do terceiro mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser ou devir minoria. Não deixar devir minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda. Por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe, até quando se vota, não é só a maior quantidade que vota para tal coisa, mas a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar esse padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem nesse padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho etc. As mulheres vão contar e intervir nessa maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a esse padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir animal. As crianças também têm um devir criança. Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários. Só os homens não têm devir homem. Não, pois é um padrão majoritário.

– É vazio.

– O homem macho adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto de processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidas.

[transcrição da entrevista com Gilles Deleuze disponível no vídeo]

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A TRANSDISCIPLINARIDADE E A MODERNIDADE

"Não é dar a receita que fecharia o real numa caixa, é fortalecer-nos na luta contra a doença do intelecto – o idealismo – que crê que o real se pode deixar fechar na ideia, e que acaba por considerar o mapa como o território, e contra a doença degenerativa da racionalidade, que é a racionalização, a qual crê que o real se pode esgotar num sistema coerente de ideias."

ROQUE THEOPHILO
A Transdisciplinaridade e a Modernidade

sábado, 27 de setembro de 2014

VERDADE, UMA ILUSÃO

Jovem triste num trem (1911),
de Marcel Duchamp
Posso entrar? Posso entrar aqui? Posso entrar? Posso? Posso entrar?

Entrou. Continuou falando alto. Palavras soltas, frases desconexas. Difíceis de entender, se fosse o caso. Talvez não quisesse ser entendido. Talvez não fizesse questão da lógica.

Posso sentar? Posso? Posso sentar aqui? Posso sentar, posso?

Sentou. No chão. Bloqueando a porta do metrô.

Conheceu assim a maior parte dos distintos cidadãos que voltavam para casa naquela noite fatídica, e tentavam entrar no vagão sem pisotear o sujeito meio sentado meio deitado bem no meio da passagem. Desviavam dele, escapavam pelas bordas. Afastavam-se.

Os mais distraídos eram surpreendidos por um aperto de mão.

Aqui. Não tenha medo. Não tenha medo de mim. Não. Aqui. Aqui. Não tenha. É. Precisa ter medo não.

Chegou a beijar a mão de alguns. A fazer uma espécie de reverência. Teve quem se abaixou para cumprimentá-lo melhor. Teve quem retribuiu o carinho. Teve gente sem graça. Teve gente que se espremeu para longe, preferindo não se envolver.

Ele ficou a balbuciar daquele jeito esquisito, atropelando a língua, desconstruindo a linguagem em linguajares, falando consigo mesmo. Prestei atenção. Reconheci algumas palavras e fiquei intrigado. Permaneci com os olhos pregados no livro que trazia comigo. Não queria parecer indiscreto. Os ouvidos, entretanto, sondavam aquele homem sentado no chão do trem, que entre uma frase e outra insistia em cumprimentar os demais passageiros, mesmo quem já tinha sido cumprimentado antes.

À minha frente, num assento de uso preferencial, estava outro homem, com cerca de quarenta anos de idade. Sua expressão desaprovava o comportamento extravagante do primeiro sujeito – que, para ser sincero, incomodava mesmo. Ele simplesmente não conseguia ficar quieto.

Tentou cumprimentar o homem no assento preferencial. Ficou com o braço estendido no ar e só obteve uma risada sarcástica como resposta.

Nesse momento, minha discrição já tinha sido deixada de lado junto com o livro, e eu prestava atenção em tudo que acontecia ao redor. As frases estranhas se multiplicavam pelo vagão. Cada vez que eu reconhecia uma palavra, ficava mais e mais surpreso, mais e mais curioso.

Passaram algumas estações. Não sei dizer quantas.

Posso sair? Posso? Posso sair aqui? Sair? Posso? Hã?

Saia de uma vez!, foi a sugestão do homem no assento preferencial, dada com o mesmo tom cruel da risada que a precedeu.

O falador não ouviu. Deixou o trem momentos antes de a porta bater, quando o alarme já perdia o fôlego, só para dramatizar ainda mais a cena. Imediatamente o homem no assento preferencial tomou a palavra.

Cachaça é a pior droga que existe. Está aí, ao alcance de todos. Acaba com as pessoas. Destrói famílias. A cachaça é a pior droga que existe, todo mundo tem acesso, é só ir ali e comprar.

Cheio de razão, falava com a mulher sentada ao seu lado, que decidiu dar ouvidos e repetia suas frases como um papagaio. Também balançava a cabeça afirmativamente, concordando.

O homem queria proibir a cachaça, era evidente. Tão evidente quanto a eficácia da solução. Afinal, ninguém usa outras drogas, uma vez que estão proibidas. Não existe sonegação de impostos, pois é proibidíssima. Abuso de poder idem. Pirataria e corrupção nem se fala, foram extintas assim que oficialmente proibidas. Conclui-se que: proibir é a solução para os nossos problemas.

Ao menos era o que pronunciava o homem do assento preferencial. O que não sabia é que não se tratava de cachaça nem de droga nenhuma; o sujeito falador estava num estado psicótico. Sequer cheirava a álcool. A história da cachaça foi um delírio preconceituoso. Talvez uma crise de abstinência moral.

Outra coisa que o homem não percebeu, talvez porque ignorava as línguas, é que o balbuciar do falador se dava em francês e alemão. Que entre duas frases desconexas havia citações de Os sofrimentos do jovem Werther – não domino a língua, mas reconheci os personagens. E que aquele som gutural repetido infindavelmente se referia a Goethe. Goethe. Goethe.

Não à toa, o acontecido pareceu espetáculo de ficção. Que o homem no assento preferencial ignorou, percebendo nele apenas aquele seu discurso embrutecido, ao qual se acostumou ao longo do tempo e que ganhou o absolutismo da verdade. Discurso que se ouve, aceita e reproduz sem dificuldade. Que nasce da ignorância e gera mais ignorância. Gera violência. Intolerância. E não ajuda ninguém, afinal.

A cena no metrô também reforçou a suspeita de que, mais grave que certas psicoses é a neurose de se achar dono da verdade, como se a posse dela trouxesse algum tipo de riqueza. Como se essa riqueza comprasse um lugar na sociedade.

Conforme Giorgio Agamben nos alerta (em Ideia da prosa), "toda verdade última formulável num discurso objetivante, ainda que em aparência feliz, teria necessariamente um caráter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade".

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

EXCESSO (DE INDIFERENÇA)

"Estamos anestesiados.
Jeanne Marie Gagnebin, em sua conferência no seminário 'Vida Coletiva' da 27ª Bienal de São Paulo, utiliza-se das análises do sociólogo alemão Georg Simmel para dizer que o excesso de estímulos, demandas e exigências leva o homem moderno a desenvolver mecanismos para se proteger da quantidade imensa de informações a que é submetido diariamente e não sucumbir física e intelectualmente. Esses mecanismos de proteção tomam a forma de uma atitude de indiferença e frieza, e dão lugar a uma sociabilidade marcada pela indiferença em relação ao outro. Uma indiferença que muitas vezes torna-se o primeiro grau de um sentimento de hostilidade para com o outro. É preciso nos darmos conta de que a indiferença diante do que acontece em nosso próprio território, com nossos colegas, nossos estudantes, é uma faceta da indiferença mais geral, que nos anestesia e que desenvolvemos para poder continuar."

Elizabeth M. F. Araújo Lima
(Se) Ocupar (d)a Universidade

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O MAPA E O TERRITÓRIO

É bom caminhar pela cidade grande. Lentamente. Deixar o trem passar só para aguardar o seguinte na plataforma, talvez o outro, talvez mudar de ideia e voltar às ruas. Resistir à correria, ao empurra-empurra, ao impulso enérgico que contagia. Ao canto de sereia da metrópole. Sem perceber, estamos agindo da mesma maneira que nos incomoda, sofrendo os mesmos males, alimentando o mesmo estilo de vida. Então, diminuir o passo é uma forma de resistência. Buscar outro ritmo. O descompasso. Deslocar-se por linhas diversas, percursos e percalços. "Caminhando", propôs Lygia Clark. Fazendo escolhas. Transformando os arredores com a beleza do gesto mais singelo; fazendo poesia com a matéria-prima mais abundante no mundo.


Difícil caminhar sem trajeto pré-definido, sem mapa ou GPS. Oferecer-se à experiência, colocar-se à disposição do acaso. Aceitar que a errância é também uma possibilidade. Perambular não por meio do mapa; mas, sim, traçar o mapa enquanto perambula. Linhas de força, linhas de fuga, linhas flexíveis. Cartografando.

Impõe-se a nós a necessidade do projeto, que é maior que tudo e quer dominar, quer ditar as regras do viver. Vale contrapor a esse fazer – obra, sentido, comunicação – o agir. "Sem finalidade, o agir é puro agir, e se se quer atrelar o agir ao ritual, onde ele recupera sentido e querer, já se desprendeu daquilo que o caracteriza, embora muitas vezes ele o lembre", escreve Peter Pál Perbart (em O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento). A atitude criativa, fluida; o ato de criação.

* * *

Quem dera botar todo o ódio do mundo no papel; toda a violência, a intolerância, a brutalidade. A guerra, os usos e abusos do poder, que se justificam por uma causa qualquer, por uma lógica de dominação. Retirar do mundo e trancafiar no papel, fazer disso uma ficção assumida. Só o papel aguenta o fardo, só ele sabe lidar. Porque não sustenta aquela lógica, não passa o ódio adiante, não combate a intolerância com mais intolerância; ele transforma a realidade dura em literatura.


Esta não existe para salvar o mundo – palavras de salvação, sacralizadas, acabam servindo a mil causas próprias. Não se trata de fazer literatura para salvar o mundo, mas para apreendê-lo, registrar quem somos, considerar possibilidades sem medo. Comunicar pontos de vista sem entrar no mérito da verdade ou da mentira, sem autoria ou autoridade; contra o absolutismo, afeito ao absurdo. A literatura em que acredito não oferece dogmas, e sim a chance de se ver livre deles. Um convite à emancipação. Como disse Iberê Camargo (em A gaveta dos guardados), "a necessidade cria a linguagem. O imperativo da regra mata a criação".

* * *

"A resistência é um modo de ser. É uma forma/força de estar imerso no movimento, é perceber-se como acontecimento corporal ativo, é a única possibilidade de tornar-se ação criativa de arte. A resistência é a dobra do ser. E essa dobra é a insistência na diferença, no outro, na produção de singularidades múltiplas", escreve Ericson Pires (em As produções de arte atuais).

Vale lembrar que resistir não significa combater mudanças ou pregar a tradição. Ao contrário, trata-se da atitude viva de provocar deslocamentos, desviar-se do lugar-comum e oferecer poesia ao mundo. Resistir ao automatismo, ao pensamento fácil, à sedução do novo e também ao conforto da tradição. Ampliar as perspectivas críticas. Resistir, com atitude contemporânea, às forças que corrompem as vontades/demandas do agora. Criar suas próprias linhas de força. Resistir pelo ato de ser; existindo.

* * *


É muito bonito o trabalho de Guillermo Kuitca exibido na Pinacoteca do Estado de São Paulo, especialmente seus mapas. Trajetos que levam a lugar algum; plantas baixas de habitações que se transformam em pistas de aeroporto; cidades retiradas de seu lugar para recompor a paisagem; mapas de assentos no teatro que se dissolvem. Territórios resignificados por meio da ferramenta que, em geral, os enrijece e reduz. "Mapas são tanto abstrações como figurações", diz o artista. "Para mim, eram mais um dispositivo para se perder do que para se orientar". São ficções nas quais se acredita – indubitavelmente – porque se fantasiam de realidade. Em geral, acredita-se mais no mapa do que no registro dos próprios sentidos; mais nos mapas do que na experiência vivenciada no território. São ficções assim como uma pintura, que correspondem a algo sem que o espectador necessariamente o alcance. Quem nunca se perdeu ao passar os olhos por um quadro? Quem nunca obedeceu ao GPS à risca, até ele recalcular a rota, enganar-se, mudar de ideia e levar o carro para outro destino? Quem nunca, confiando no destino, foi surpreendido pelo acaso?

Costumo planejar viagens com cuidado, atento a cada detalhe. Porém as recordações que sobrevivem são aquelas de quando o roteiro foi deixado de lado e o improviso pediu licença para atuar.

[IN]DIREITO

“Ela é ignorante comigo, me dá o direito de ser ignorante também”, foi a frase que ouvi de um ignorante assumido ontem à noite, domingo, quase 22h, no caixa do supermercado. O cliente se dirigia à atendente e a quem mais pudesse ouvir. Um homem de camisa social. E maluco, só podia ser. Já o tinha visto gritar com o filho quando o moleque pegou e atirou um produto de volta na prateleira. “Não, caro ignorante, nada disso”, tive vontade de responder. “Se por acaso ela foi ignorante, isso lhe dá o direito de reclamar com o gerente e, no limite, não voltar a comprar aqui. Caso seguíssemos essa sua lógica do olho por olho, o mundo se tornaria uma enorme imbecilidade”. Inclusive, a alta frequência de cenas desse tipo já sugere que o mundo está pequeno demais para a quantidade de ignorância que sustenta. Tive vontade mas não disse, porque nunca se sabe até onde vai a ignorância alheia.

sábado, 19 de julho de 2014

IDEIA PARA PERSONAGEM

Eu o faria assim, obsessivo: alguém que deseja proibir tudo, convicto da ordem e progresso; pior: que os tem como lema e dele não abre mão. Não abre mão de nada, de uma opinião sequer, por mais bruta que pareça [aos outros]. Um sujeito que acredita na rigidez do sistema, na proibição como medida educativa, na punição severa como remédio contra inadequação social, na supressão de direitos por um bem maior; um sujeito como tantos.

Daria a ele o nome de Cristiano, em referência a certo moralismo que, com frequência, se torna um problema e ajuda a esconder faltas de quem o pratica. Não revelaria o sobrenome, bastaria dizer que é oriundo de família tradicional(ista); ou, ainda, que possui no currículo uma sólida base familiar. Prefiro assim porque mais gente pode se identificar, até quem não se afeiçoa ao sentido figurado.

Cristiano é um homem de palavra. Sério, trabalhador. Certo do que é certo e mais certo ainda do que é errado. Divide o mundo em duas metades: o bem e o mal, a direita e a esquerda, o ataque e a defesa, a verdade e a mentira, amigos e inimigos, pretos e brancos; levanta um muro entre elas, um muro alto; defende-o com unhas e dentes e verbos imperativos. Vê facilidade nisso. Não consegue perceber nuances, ambiguidades, perspectivas. Tampouco está interessado. Homem determinado não muda de opinião no meio do caminho.

Acredita que violência gera violência. Ao mesmo tempo em que afirma a necessidade da guerra contra o terror. Tem certeza de que é um problema crônico onde vive – digamos que seja no Brasil, a título de exemplo. Esse problema não se resolve com revisões do sistema policial, judiciário e carcerário; resolve-se com a Rota na rua, o exército nos morros, bombas nas manifestações, trava de bicicleta no pescoço. Resolve-se com diminuição da maioridade penal e, Deus lhe perdoe, com pena de morte também. Pronto, falou. Porque não pode dar moleza pra vagabundo, entende?

Acredita que tudo seria melhor com respeito e educação. Só mantém uma arma de fogo em casa porque nunca se sabe, né? Não dá pra confiar.

Aceita o homossexualismo contanto que fique longe; entre amigos, permite-se dizer isso de um jeito um pouquinho diferente, que mal não faz, imagine! Dá risada. São apenas umas verdades.

Não se envolve com política porque é um ninho de vespas, ninguém ali presta. Não acompanha essas coisas, é responsabilidade daquele sujeito em quem votou nas últimas eleições, o do partido de sempre, reeleito pela quinquagésima vez. Também não entende nada de justiça, mas tem certeza de que houve mamata no veredicto do mensalão. Porque é sempre assim. Acha que só se faz política com partido e colarinho branco.

Reconhece que a educação vai mal, mas não compreende o motivo, pois seus filhos estudam em escola particular. O SUS é uma lástima, mas não sabe quanto, pois paga plano de saúde. Apoia reivindicações de menor custo nos transportes contanto que não atrapalhem o trânsito, que é caótico. Muitos não têm onde viver? Virem-se!; ele já se resolveu comprando – com muito esforço, diga-se de passagem – um apartamento num bairro tranquilo. Sua razão vagueia ali nos finais de semana, é gostoso; só não vai longe para não se cansar. Políticas públicas/sociais são graves sim; graves problemas dos outros. Não tem nada a ver com isso, nadinha. E, mimimis à parte, tudo se resolveria com mais verba e vergonha na cara.

É o que falta para o povo: vergonha na cara. Tem certeza, deu na TV. Mas Cristiano é homem de muita esperança. Tem certeza também que, um dia, Deus sabe quando, o Brasil há de entrar nos eixos. Um dia ele vai acordar no paraíso; o melhor país do mundo, o mais evoluído. Como num passe de mágica. Porque nossa economia é forte. Porque somos abençoados e bonitos por natureza.

O governo ditará o que pode e o que não pode, facilitando nossas vidas; bem paternalista, preocupado, como nos bons tempos de antigamente, quando se trabalhava em prol da nação, quando ninguém ficava inventando moda. O povo vai obedecer porque é consciente e civilizado. Não pode vandalismo, não pode vaiar presidente, não pode greve; não pode perguntar, exigir, criticar. Não pode reclamar quem não tem solução melhor para apresentar. Não pode nada, entendeu bem? Assim é melhor; sem tentação não há pecado.

Meu personagem Cristiano seria absurdo, estereotipado; tão próximo da realidade que duvidaríamos se é realmente ficcional ou se o cotidiano é que parece uma grande invenção. Tipo novela das nove. Já pensou que legal?

terça-feira, 15 de julho de 2014

"O significado originário, a referência etimológica do termo 'personagem' nos ajuda a ver isso: persona, termo latino de onde deriva o vocábulo atual, guarda a memória da palavra grega para máscara – artefato utilizado no teatro para caracterizar, de modo convencional, as expressões e os afetos dos atores. Logo, personagem nem sempre indicou um indivíduo único e irrepetível, mas uma função, um lugar convencional a ser ocupado por sujeitos que representassem, de modo sintético, pessoas de uma determinada classe ou condição social (como ocorre nas comédias da Antiguidade Clássica, por exemplo) ou personagens alegóricos, que figuram a própria condição humana (como o caso do próprio Dante Alighieri, protagonista da Divina Comédia). Se pensarmos historicamente, veremos que a ênfase dada ao indivíduo (e aos personagens marcados como sujeitos únicos e em tudo diferente dos demais) é um fato recente, datando do início da Era Moderna (séculos XV e XVI)."

Gustavo Silveira Ribeiro
Cândido, 35, junho/2014

sábado, 28 de junho de 2014

Iasnaia Poliana, esposa de Leon Tolstói, passava a limpo o que o marido produzia diariamente. Diz a lenda que era a única capaz de decifrar sua caligrafia. Copiou o imenso romance Guerra e Paz sete vezes, já que o escritor tinha compulsão por revisões e retrabalhos. O processo se estendeu por cinco anos. Ao ponto de seu editor escrever: "Só Deus sabe o que o senhor está fazendo. Se continuar assim, vamos recompor e corrigir eternamente. Qualquer um pode lhe dizer que metade das mudanças que o senhor faz são desnecessárias. No entanto, elas causam uma diferença apreciável nos custos da composição tipográfica. Eu pedi ao tipógrafo que lhe mande uma conta separada, só das correções. Pelo amor de Deus, pare de rabiscar".

terça-feira, 17 de junho de 2014

UM PONTO ALÉM DO CONTO

Uma coisa aparentemente chata muito me fascina: a trajetória da Estética no século XX. Trajetória conturbada, que começa com a ingenuidade das vanguardas europeias e sua crença na transformação do mundo por meio da arte, no sentido de "melhorá-lo". Fosse pela negação da beleza clássica, fosse pela pesquisa das formas, das impressões da natureza no homem ou das expressões da natureza humana. Essa ingenuidade acabou dilacerada pelas guerras, quando descobrimos os horrores de que nossa própria natureza é capaz. Tanto que, ao término do primeiro conflito mundial, apareceram as manifestações dadaístas: provocadoras, absurdas, de certo modo até violentas. Estavam em desalinho com os valores clássicos e também com os revolucionários; sem chão, sem esperança, perdidas nas brumas da desilusão. Porque a "missão" do Modernismo falhara – seus esforços foram subjugados. Não havia salvação moral para quem matava sem piedade. Muito menos salvação por meio da arte.

O pouco que restou daquela vontade transformadora sobreviveu menos de duas décadas, sucumbindo de vez nos campos de concentração, nos bombardeios maciços e nas frentes de batalha da segunda grande guerra. "É isto um homem?", pergunta Primo Levi no título do livro em que relata sua passagem por Auschwitz, de onde só era possível sair por um lugar: a chaminé.

Aqueles traumas, entre tantos outros, interromperam o que havia de criativo e jovial na humanidade. Isso nunca pôde ser retomado.

Quando o artista pop Roy Lichtenstein anuncia, na década de 1960, que a arte "não transforma, apenas forma", ele revela outra concepção de Estética, então em voga. Não se acreditava mais no potencial transformador da arte, mas no construtivo, no sentido de que ela poderia erigir numa nova realidade. Estamos falando dos Estados Unidos pós-guerra, da sua chamada Era de Ouro; país vitorioso, pleno de dinheiro e oportunidades, que desde aquela época fabricava cultura em enormes corporações e a exportava para o mundo inteiro. Nós, brasileiros, compramos toneladas do estilo de vida americano. Sonhamos o American Dream. Trouxemos para cá seus automóveis, fizemos estradas para eles transitarem; construímos Brasília inspirados na razão matemática, nas técnicas de engenharia recém-desenvolvidas, na ordem como método de obter progresso. O trabalho estético, por sua vez, afastou-se da natureza do homem e se direcionou à forma plástica; o espiritual na arte perdeu espaço para superfícies modulares, minimalismos e equilíbrio visual pela repetição de padrões.

Alegra-me saber que, no contemporâneo, esse ideal não se sustenta mais. Filósofos e artistas dedicados a compreender nossos modos de existência não acreditam em transformação ou formação pela arte, mas em desformação. Quer dizer, trabalham o esfacelamento dessas estruturas sólidas que foram sedimentando ao longo do século XX, multiplicando-as em singularidades infinitas. Estrutura familiar, social, governamental, militar, religiosa; hierarquias de todo o tipo, cânones, verdades absolutas que, sacralizadas como estão, já não servem mais, ou seja, não condizem com o nosso dia a dia. Pertencem a outro plano. E, dada sua incompatibilidade com a vida contemporânea, precisam ser revistas, reinventadas, desfeitas, profanadas; reorganizadas para voltarem a operar, se ainda forem pertinentes. Destituir as instituições. Deixar a rigidez mais elástica. Manipular o intocável conforme melhor convier.

Há resistência, entretanto. Embrutecimento. Teimosia. Inclusive nas vontades de mudança. Porque muitas vezes essas vontades apenas retomam procedimentos obsoletos e dão outra volta às mesmas reviravoltas. Quando, na realidade, o que se deseja é sair do circuito; linhas de fuga, trajetos de errância em vez do conforto das certezas.

Exemplo dessa resistência está no filme Malévola [se você não viu, talvez seja melhor interromper a leitura para não ter o final revelado]. Quando o vilão morre, o mal é extirpado e os heróis viverão felizes para sempre – conforme protocolo da Disney –; a princesa é coroada e o povo se reclina a seus pés. Povo que não era povo. Reino que não era reino. Quem se lembra do início da história? Quando os seres mágicos viviam felizes e saltitantes, antes da chegada do homem, que os corrompeu e os infligiu os horrores da sua estrutura sociopolítica. Até então, as fadas e seus amigos viviam com harmonia, pois ninguém era mais privilegiado. Depois, conheceram a ambição, a tentadora ascensão social, a possibilidade da dominação do outro.

No dito "final feliz", os produtores optaram por recriar o conflito principal – o jogo de poder – que provocou todo o drama, envelopando-o de "sonho de princesa". Os personagens não precisavam de governantes, porém os aceitaram, mesmo sabendo que renderiam futuras crises. No geral, é o que costumamos fazer em nossas vidas: permanecer atados ao círculo vicioso que se critica, opõe e autoalimenta.

Perguntaram se gostei do filme. Essa revisão inteira passou pela minha cabeça e a resposta foi negativa, claro. Não gostei. Achei uma pena que não reinventaram a fábula de modo que fizesse sentido no contemporâneo: que provocasse deslocamentos, ruídos; que correspondesse às questões mais urgentes.

A Estética segue seu rumo pelos caminhos mais imprecisos. Enquanto o filme encalhou num daqueles pontos retrógrados em que os blockbusters adoram se firmar.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

"A resistência não se dá de forma frontal, unilateral, nem age na negatividade ou na reação tardia. A resistência é um modo de ser. É uma forma/força de estar imerso no movimento, é perceber-se como acontecimento corporal ativo, é a única possibilidade de tornar-se ação criativa de arte. A resistência é a dobra do ser. E essa dobra é a insistência na diferença, no outro, na produção de singularidades múltiplas."

Ericson Pires
As produções de artes atuais
(em Ensaios Fundamentais: Artes Plásticas – editora Beco do Azougue)

segunda-feira, 19 de maio de 2014

ANTES DE ATIRAR UMA OPINIÃO CONVÉM SABER:

Rero [trabalho exposto na Caixa Cultural de SP]

Quem é? De onde veio? O que faz? Como faz? O que deseja? Como gostaria que fosse? Para onde vai? Como se sente? Do que precisa? Do que gosta? O que tem? Como obteve? O que falta? Como se chama? Como é chamado? Como se vê? Como os outros o veem? Como pensa que é visto? Como compartilha? Por que é assim? Como se define sua situação? Quais preconceitos estão implícitos nisso? Essa definição serve para alguma coisa? O que está em volta? Onde vive? Que território habita? Que coisas possui? Que coisas o possuem? Qual é o sentimento? Quem está junto? Quem se afasta? Quem não veio? Quem já se foi? De quem sente saudade? Como pode? O que pode e o que não pode? Por que não pode? O que pode mas não consegue? O que não pode mas se dá um jeitinho? Quem é [você] que olha? Por qual ponto de vista / perspectiva? Qual é a relação que se estabelece? Que ideias já vieram formadas antes do encontro? Quais delas permaneceram? Quais ideias se desfizeram? Quais processos estão em operação? O que está dado? O que está implícito? O que foi soterrado? Que corpo é esse? Que gesto produz? Como se expressa? Escreve, pinta, canta, dança? Como se coloca no mundo? Em que situação se impõe? Que situação é imposta a ele? Quando é ignorado? Qual é a sua cor? Qual é o seu cheiro? Como é tocá-lo, qual é a sensação? Como se sente quando tocado? Que vontade surge quando está por perto? Do que lhe faz lembrar? O que sente quando se distancia? Onde está sua força? Onde está o seu olhar? O que pensa do mundo? Como administra a vida? Em que lugar dorme? Em que lugar acorda? Com quem? O que comeu ontem? O que bebeu? De que alimentos gosta mais? Tem mãe, pai, filhos, irmãos, animais de estimação, família de qualquer gênero, raça, cor, imaginação? Qual é o seu bicho favorito? Com o que sonha? Quais são os seus medos? Como se imagina daqui a dez anos? Já dirigiu um carro? Já andou de moto? Avião? Navio? Já pescou? Pratica esporte? Torce para algum time? Como foi parar ali? Vive do quê? Trabalha? Qual é o seu talento? Para que coisa não leva o menor jeito? Tem apelido? Conta bancária? Sabe cozinhar? Toma conta de alguém? Alguém cuida dele? Como se sustenta? O que aprendeu? Frequenta ou frequentou escola? Quais assuntos mais interessam? O que gostaria de saber? É bom de matemática? Português? Geografia? Filosofia? Para que lado fica o seu norte? Quais são as suas condições? O que pensa quando vê as estrelas? Qual é a sua cor favorita? Gosta mais de calor ou de frio? Conhece o mar? Sabe nadar? Visitou o zoológico? Sabe andar de bicicleta? Patins? Cavalo? Qual é a sobremesa preferida? E prato salgado? Aliás, prefere salgado ou doce? Sorvete de massa ou picolé? Gosta de ler? Qual foi o livro mais marcante? Vai ao cinema? Drama, comédia, ação ou suspense? Documentário? Com que frequência? Qual é o seu melhor amigo? Como se sente em dias nublados? Quando foi ao médico pela última vez? Dentista? Sente-se bem? Alguma queixa? Conhece os parques da cidade? Os museus? Qual é o seu favorito? Gosta de algum artista em particular? Cantor? Frequenta teatro? Já assistiu a uma peça de Shakespeare? Gosta de música? De que tipo? Qual canção arranca suspiros toda vez que se ouve no rádio? Qual banda ainda quer ver ao vivo? Qual foi a última vez que viu uma? Qual foi a mais legal? Dança sozinho ou em par? Em grupo, talvez? Sabe o que é amor? Ama? É amado? Foi amado? Faz amor? Qual foi a última vez? Que tipo de amor? Gosta de flores? Quais? Gostaria de enviar algum recado, tem algo a manifestar? Tem vontade de quê? Como se veste? Já usou gravata borboleta? Tem religião? Acredita em Deus ou coisa similar? Qual? Como? Por quê? Acredita em vida após a morte? Gostaria de ser cremado ou enterrado? Doará órgãos? Já tomou banho em banheira? E banho de rio? Para onde vai quando quer se esconder, pode dizer? Ou quando vai descansar? Para onde gostaria de ir? Onde costuma passear? Que cidades gostaria de visitar? Qual celebridade gostaria de conhecer pessoalmente? Mesmo? Por quê? O que diria na ocasião? Sabe contar piadas? Qual é a sua lembrança mais feliz? Qual é a mais triste – fique à vontade para não responder, se preferir. Está à espera de quê ou de quem? Já infringiu alguma Lei? Acredita em ética? Já arrancou um dente do siso? Qual é a cor dos olhos? Dos cabelos? São lisos ou crespos? Admira alguém? Algum ídolo? Por quê? Gostaria de ser mais feliz? Já morou fora do país? Em outra cidade? Outro bairro? Gostaria de experimentar? Onde? Está apaixonado? Cadê a poesia? Como o seu sensível se manifesta? Qual é o aspecto político? Por sinal, o que pensa da política? Como participa? Como se sente na sociedade? Pertencente? Quais são os encontros e as conexões? Tem algo a propor? Algo de que reclamar? O que produz? O que se perde? O que resta? O que gostaria de dizer, de livre e espontânea vontade? O que prefere deixar subentendido? O que não pode ser dito?

[para ajudar na construção de um pensamento crítico]