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domingo, 19 de agosto de 2018

ESCREVER COMO QUEM DEPÕE AS ARMAS

Desembarque das tropas norte-americanas no Dia D (1944), de Robert Capa

Eu me aproprio de uma ideia de Jacques Lacan com intuito de transtorná-la. No Livro 11 dos seus seminários, em que trata dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, há um trecho sobre pintura. Para ser mais específico, refiro-me à afirmação de que o pintor convida o espectador a depor o olhar no quadro “como quem depõe as armas”. Lacan chama atenção para certo efeito pacificador da pintura, que se oferece como “pastagem para o olho”. Essa ideia não me interessa tanto quanto a oportunidade reversa sugerida pela própria frase que a concebe; penso que não se trataria de olhar passivamente, no sentido pejorativo da apatia, mas de abandonar as armas do combate previsível.

Quer dizer, é possível vivenciar a experiência estética diante de um quadro depondo todas as armas que temos para subjugá-lo, combatê-lo, ameaçá-lo? Ou, ainda, é possível abandonar os instrumentos que armam o olhar e que exigem do quadro uma correspondência às nossas expectativas? Tal desafio ao espectador deve ser também método de todo pintor: fazer imagens a partir de um desfazimento daquilo que entende por pintura. Criar a partir de uma desconstrução.

Dou essa volta toda para chegar à escrita, que pode ter aqui um ponto de interesse, e perguntar se o mesmo se aplicaria aos leitores e aos escritores: é possível depor as armas durante o embate com o texto? Negar as expectativas de como se gosta de ler ou de como já se acostumou a escrever? Depor os clichês, as formas convencionais, os meios e métodos pressupostos da “boa” escrita?

Nossa condição atual não cansa de mostrar que o bom e o bem são enrascadas, sempre prontos a oprimir o outro em função daquilo em que o eu – ou talvez alguns nós – acredita. Em suma, bondade tem endereço. Se o texto se apresenta adjetivado assim, nossas primeiras questões a ele deveriam ser: bom para quem? Por qual motivo, segundo quais parâmetros, conforme quais interesses?

Isso vale para a literatura de caráter experimental e, em certa medida, precisa valer também para tudo o que escrevemos no dia a dia, da mensagem de Whatsapp à tese de doutorado. Até que ponto estamos presos à norma? Quais potências do escrito são prejudicadas por ela? Por qual motivo não as depomos?

Existe um universo a ser combatido. Com as armas de sempre, porém, o resultado será conhecido, e a vitória será meramente ilusória; permaneceremos subjugados pelo senso comum.

Nesse sentido, Jacques Lacan liderou um ataque inesperado pelos flancos: escrevia sem o propósito de ser entendido. Alertava assim os demais psicanalistas para o cuidado de jamais compreenderem seus pacientes. Pois, uma vez compreendidos, o mistério da vida se desfaria num rótulo, numa fórmula, num diagnóstico, numa pressuposição ou num preconceito qualquer, reduzindo toda a potência daqueles ao cadáver ponto para o sepultamento.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

É OFICIAL: VEM AÍ MEU NOVO LIVRO

Testemunho Ocular, meu novo livro de contos, será lançado daqui duas semanas. \o/
Já deixo aqui o recado para você se programar. Data e local estão no pôster abaixo.
A gente se encontra lá!

ATUALIZAÇÃO: você já pode comprar seu exemplar no site da editora: www.lamparinaluminosa.com


quinta-feira, 12 de julho de 2018

MEU NOVO LIVRO ESTÁ CHEGANDO


Está confirmado o lançamento do meu novo livro de contos em São Paulo!
Será 18 de agosto na Tapera Taperá, a partir das 14h.
A livraria fica na avenida São Luís, 187, loja 29, pertinho do metrô República.

Junto comigo estarão outros três vencedores do concurso da editora Lamparina Luminosa (categorias poesia, HQ e autor regional). Os livros estão lindos. Então venham, aguardamos vocês!

segunda-feira, 26 de março de 2018

para Victor Heringer, que não conheci 

Morre um jovem
morrem milhares todos os dias
dizem: o país não se importa
exceto por este sujeito,
ele se importa
e aquela moça mais aquele senhor e
assim por diante
morre um suposto país.

É preciso matar muitos países supostos
para fazer viver um
fresco rebelde ingênuo ousado delicado
desse tal jeito jovem
que outros tantos sujeitos sem jeito
teimam em envelhecer
ao ponto em que a morte eterna
confunde-se com salvação.

quarta-feira, 7 de março de 2018

O QUE NÃO É INFERNO

Hoje não me parece absurdo afirmar que todo entendimento sobre o mundo se localiza em algum ponto entre o que se vê e o que se diz a respeito do visível. Incluem-se nesse vacúolo de sentidos também os dizeres secundários: discursos repetidos, distorcidos e retorcidos. Como é que vemos e como produzimos narrativas? A questão me interessa há muito, e busco respostas pelas artes visuais, que operam e por vezes desarticulam a educação do olhar. Faz menos tempo que a questão se desdobrou em outra: o que permanece invisível, indizível e impensável? Como é que isso toma forma em nossas configurações de mundo?


Li As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, treze anos atrás. O livro me deixou uma forte marca, embora eu não lembrasse o motivo exato. Retomei-o agora por causa do trabalho. Na época me faltava maturidade para dar voz às questões instigadas pelo autor; nas anotações espalhadas pelas páginas descubro tentativas de diálogo – intuições que, mais tarde, tornaram-se interesses efetivos. Seriam problemas prontos, encubados, ou seriam meu primeiro contato com problemas que se apuraram depois, ganharam corpo e se reinventaram? Talvez um pouco de cada?

Calvino revive o veneziano Marco Polo na corte de Kublai Khan, imperador dos tártaros. Enviado em missões diplomáticas, o viajante retorna com relatos sobre as cidades visitadas, que o Khan somente conhece por meio de seus olhos e suas palavras; a distância é condição daquele governo. Ocorre que Marco Polo é diferente dos demais diplomatas: ele vê nas cidades o que passa despercebido pela maioria, seu olhar é menos panorâmico e mais penetrante. Não bastasse isso, seus relatos são também singulares; Polo evita narrar as formas gerais e os aspectos técnicos; com lirismo e significados abertos, prefere a experiência sensível.

Ele próprio explica a diferença num dos primeiros capítulos, quando afirma que se pode falar de Doroteia pela perspectiva das suas muralhas, torres e pontes levadiças, seus canais, chaminés e casas comerciantes. Ou pode-se contar a história do cameleiro que, muito jovem, chegou a Doroteia e se encantou de imediato com os clarins, as mulheres e as cores do mercado, onde não faltava nenhum dos bens que esperava da vida. Com os anos, porém, esse homem sentiu saudade dos desertos, e percebeu que havia encantos neles, exibidos com tanta clareza que ele não podia distingui-los.

Voltemos aos nossos domínios. Onde o desejo de ver com tal frescor soa ingênuo; aqui os acontecimentos chegam por demais mediados, chegam como palavras de ordem a serem tomadas por verdades. A experiência se dilui na imensa quantia de informações, além de manter uma relação sórdida com o consumismo.

Também seria ingênuo querer fugir dessa apropriação da experiência para narrá-la com palavras próprias. Não existe maneira individual de narrar, assim como é impossível olhar somente com olhos privados. Isso porque o olhar e o dizer já estão impregnados pela cultura geral, ou seja, por maneiras, crenças e formas prontas que predominam. Mais do que nunca inexiste a folha em branco, ela se apresenta repleta de pressuposições das quais é impossível escapar por completo. Mesmo a liberdade de pensamento já é uma ideia construída previamente e assim, por paradoxal que seja, configura um aprisionamento, uma ilusão, uma promessa falsa. Marco Polo conseguiria exercer sua singularidade nos tempos atuais?

Poderíamos concluir que nada resta, senão seguir o traçado do destino. Não é preciso sermos tão dogmáticos. Para mim, restam como alternativas os desvios da arte, que podem ser formas de sobrevivência. Eles são a recusa das palavras de ordem, a profanação do inquestionável, a felicidade clandestina. Restam as cidades invisíveis que não querem mostrar nenhuma verdade; elas nos convocam a imaginar possibilidades. Resta a força insurgente da poesia, que fratura o estabelecido e levanta condições outras, e esse é o ponto em que oferece chance de resistir à morte, como Gilles Deleuze pensava.

O livro de Calvino continua a instigar minhas pesquisas, gestos e criações. Foi um prazer revisitá-lo. Ele denuncia a banalidade, o risco e a violência dos lugares-comuns que aceitamos prontamente e reproduzimos no dia a dia por preguiça, desatenção ou ignorância. Denuncia o perigo de consumir as narrativas parciais que nos são ofertadas como certas, por vezes sedutoras, agradáveis, até mesmo desejáveis.

Ao mesmo tempo, fica sugerida uma esperança, que requer ver como quase ninguém vê, dizer o que poucos têm coragem de dizer, pensar o que a maioria não ousa. Isso porque, quase sempre, somos como o cameleiro no deserto: estamos por demais envolvidos com a aridez à nossa volta para perceber que, mesmo ali, há vida. E que essa vida peculiar, por vezes tão singela, não se encontra entre a abundância encantadora do mercado estrangeiro.

O final do livro é arrebatador. Nas palavras de Marco Polo: “o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

"ESQUENTA" PARA O LANÇAMENTO DO MEU PRÓXIMO LIVRO

Meu conto Justa Medida compõe a 2ª edição especial da revista gueto | direitos humanos e minorias.

Além do orgulho de participar da coletânea ao lado de muita gente talentosa, aproveito para dizer que o conto serve de "esquenta" para o lançamento do meu livro Testemunho Ocular, pela editora Lamparina Luminosa. Mais notícias em breve! ;)

Baixe a revista em PDF, ePub ou Mobi aqui: revista gueto

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

FALAÇÃO

Eat Me - A Gula ou a Luxúria? Versão I (1976), de Lygia Pape
A fala
muda
uma relação ex-
posta.

Quem era
quem?
Como foi?

Sem saber
dizer,
ouço falarem.
E falam, ah!
como falam.

Trans-
bordam a
experiência
em lingua-
gem surda.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

EVANESCÊNCIAS


Eu costumava sonhar que lutava com um sujeito sem rosto, nunca soube quem era. Para mim, no sonho, não fazia diferença. Eu sequer tentava descobrir. Nós lutávamos, isso era tudo. Podia ser boxe ou uma briga desregrada. Era sempre uma luta de mãos. Eu me lembro bem porque sonhei muitas vezes. E também porque era lenta, eu diria que era uma luta excessivamente lenta, como se assistisse a um filme frame a frame. Às vezes, com a câmera em primeira pessoa, pelos meus próprios olhos. Outras vezes eu me assistia de fora, consciente de que um dos lutadores ali adiante continuava a ser eu mesmo. Fosse como fosse, a luta seguia em ritmo vagaroso. Com um esforço imenso, eu tentava atirar o punho na direção do adversário. Era pesado demais. Eu acompanhava cada milímetro do movimento. A pele do cotovelo enrugava, a musculatura do antebraço ganhava forma alongada. O suor escorria da testa, contornava as curvas da face até pingar no chão. Ssssppllaaasssssssshhh. A gota mergulhava em si mesma, explodia em gotículas. Eu via acontecer em detalhes. Meu punho errava o alvo, passava perto, mas errava e abria a guarda. O golpe contrário também era lento, porém nem tanto. Ele se projetava na minha direção um pouco mais rápido do que o necessário para eu desviar. Antes da certeza de ser atingido, o sonho acabava. Eu costumava acordar nessa hora com os ombros rijos, tentava me virar na cama para dormir de novo. Fechava os olhos e a luta recomeçava.

* * *

Eu costumava sonhar que voava. Na verdade, eu corria uns metros para pegar impulso, saltava no ar e planava para cima, como se fosse possível. No sonho era. E não havia voo sem a decolagem. Era preciso correr, saltar e manter o corpo reto, horizontal em relação ao solo, os braços estendidos para frente como faz o Super-Homem. Eu nada tinha de super. O voo, no sonho, era sempre a iminência da queda. Eu despencaria a qualquer instante, bastaria um vacilo para me estatelar, talvez bastasse duvidar da minha própria capacidade. Eu não duvidava. Planava perto do chão, a mais ou menos um metro de altura, e o máximo que consegui alçar foi a copa de uma árvore calva. Apesar do movimento nem um pouco vigoroso, a sensação era boa demais. Meu corpo desengonçado mantinha-se suspenso no nada. De fato, sequer o ar me sustentava. Eu só voava por causa da frágil disposição do corpo. Era tudo perfeitamente crível, podia saltar e funcionaria. Eu não me lembro de como despertava desse sonho. Não queria despertar jamais.

* * *

Eu costumava sonhar que um carro me perseguia na rua. Não um motorista, por favor, não me entenda mal. Era somente o carro. Certeza que desejava me matar, não pergunte por quê. Eu corria e ele vinha atrás, eu tentava enganá-lo e ele logo percebia. Não havia tempo para discussão. Eu subia com toda a velocidade por uma escada caracol e ainda assim o carro insistia, ele fazia a curva devorando os degraus, espremendo-se entre corrimãos, e atirava-se no meu encalço. A perseguição se estendia por quarteirões, esquinas, elevadores, túneis, desertos, rios. Não parecia haver escapatória, ainda assim eu continuava a fugir. Hoje penso que, se o carro quisesse de fato me matar, não demoraria tanto. Não precisaria demorar.

* * *

Eu costumava sonhar que caía. Jamais chegava ao chão, eu apenas caía e caía e caía, cada vez mais para dentro desse fosso ininterrupto. Eu voltava a cabeça para trás e não enxergava nada, não havia luz de onde eu vinha. Tampouco havia luz adiante, eu caía direto no escuro sem de fato atingi-lo, sem saber do que me afastava e do que me aproximava. Se tudo ao meu redor era cego, como ter certeza de que caía? Não havia referência exterior. Eu não passava por objetos estáticos ou em queda menos brusca, tampouco havia qualquer parede no fosso; aliás, eu não deveria chamá-lo assim, era apenas um completo breu. Nada havia para ver, mesmo com os olhos bem abertos. Evidente, eu sabia que despencava por causa da sensação; o frio na barriga, a falta de ar provocada pelo excesso de velocidade, o vento ruidoso que agitava meus cabelos e esticava as bochechas para trás. Eu podia despencar no meu próprio vazio? A queda era somente a sensação da queda, isso é tudo o que posso afirmar. A certeza ia até aí. Eu despertava em minha cama. Aquele era o fim.

* * *

Eu costumava sonhar. Agora não mais. A neurologia diz que a atividade cerebral não para. A psicanálise sugere que eu já não me recordo dos sonhos porque desenvolvi algum mecanismo de defesa contra eles. Eu gostaria de chamá-los de pesadelos, tamanha a inquietação que provocavam, tamanha a estranheza deles e a impotência minha, mas ao mesmo tempo não acho justo. Aposto que há sonhos piores. Seja como for, se não me lembro mais, meus sonhos ainda existem? Que existência é essa? Não sei. Eu apenas durmo e horas depois desperto como se nada tivesse se passado entre um momento e outro. Na maioria das vezes durmo bastante, de acordo com o relógio. Em outras noites pareço dormir muito, só que na realidade acordo apenas uma hora após ter me deitado. Como saber se não me engano? Como saber se desperto para fora do sono ou para dentro do pesadelo?

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A palavra maiúscula
soa tão minúscula
diante de tamanha pretensão
sua.
Maior é a pequenez
do gesto menor.
Despercebido, invisível, singelo
a transformar não a ordem do dia,
poderoso escalão primeiro.
Mas a oferecer um imensurável
mísero
segundo de desordem.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

POR QUE A LUA BRILHA: IMPRESSÕES DE LEITURA

Quando escritores que admiro fazem comentários elogiosos sobre meu livro, deixo a modéstia de lado e compartilho a alegria com vocês. Obrigado pelas palavras, pessoal.

Terminei aqui a leitura deste "mimo" de livro "Por que a lua brilha" , do Eduardo A. A. Almeida. Belíssima edição artesanal (numerada - costurada à mão), que traz, numa linguagem apurada, metáforas análogas à nossa vida, mostrando imposições subjetivas que nos influenciam como verdades sociais, em referencias à política, aos comportamentos autoritários e opressivos impostos sem que percebamos. Indico a leitura. É belo, original e reflexivo, portanto, relevante.

Marcelo Nocelli (editora Reformatório)


"Por que a lua brilha" é um ensaio ficcional excelente. Me diverti muito lendo essa deliciosa reflexão sobre as estrelas. É um texto irônico e sensível, até comovente, em certas passagens (amei a menina das lágrimas de cristal).
Este ensaio ficcional aproxima você de outros autores interessantes, que curtem o gênero. Por exemplo, o Italo Calvino de "As cidade invisíveis".
E o projeto gráfico também ficou muito gracioso. O livrinho é um mimo.
Você acertou na mosca, ao recusar o formato do conto e abraçar o da reflexão criativa. Quem nos dera as teses e dissertações da Academia fossem assim: inventivas.

Nelson de Oliveira (escritor, ilustrador e professor)



Gostou? A versão impressa do livro está esgotada, mas você pode clicar aqui e adquirir o ebook na Amazon

domingo, 23 de julho de 2017

A VIOLÊNCIA DO BANAL

Um sobrevivente de Auschwitz retorna, já velhinho, ao campo de extermínio onde perdeu quase toda a família. Chega acompanhado de sua filha e três netos adultos. Eu os vejo e espero o momento da comoção. A música triste, as frases de efeito sobre violência, opressão e fragilidade da vida. Nada disso acontece. O que ouço são as notas iniciais da animada I Will Survive, trilha sonora de qualquer festa de formatura ou casamento. O velhinho judeu não chora, ele dança; a família acompanha seus passos desengonçados. É bizarro. Difícil segurar o riso. Por que eu deveria segurar? Que sentimento é esse que me proíbe rir de Auschwitz?



O vídeo está disponível no Youtube sob o título de I Will Survive Auschwitz. Eu o assisti durante a palestra de Gonçalo M. Tavares na Unibes Cultural, centro de iniciativa judaica em São Paulo. O escritor é um dos meus contemporâneos favoritos, em especial pelo que pensa da literatura. Naquela ocasião, defendeu que uma das piores violências contra a realidade é o banal. Eu concordo. E acredito que a literatura, o cinema, as artes em geral têm o seu mérito quando conseguem romper essa banalização.

Veja bem, não se trata de chamar atenção para a banalização da violência, o que em si já é interessante. Trata-se de questionar uma violência de outra ordem, tão sutil e próxima que é difícil notá-la: uma espécie de corrupção da potência do vivo pelo banal.

Quem a combate é a arte que subverte o já visto, que já é conhecido e esperado, e que eventualmente emociona, tal como seriam as belas palavras embaladas pela música triste em Auschwitz, a acompanharem o retorno de um velho sobrevivente. Tal apresentação seria de fato tocante, como tantas outras que nos puseram a pensar e chorar. Esse pressuposto nos violenta. Porque conduz o olhar, as expectativas, as compreensões de mundo. Ele reitera o senso comum sobre como as coisas devem ser. Enquanto eu quero acreditar que a arte é capaz de questionar esse banal e sugerir a invenção de como as coisas podem ser.

O pressuposto mantém a todos num mesmo conjunto de referências, sentimentos e lógicas. Uma circularidade que não escapa da ordem estabelecida e não deixa conhecer possibilidades outras. Sufoca a chama da vida, que não quer amansar, não quer ser morna; ela quer arder, queimar, transformar. Um ímpeto criativo que sobrevive em algum canto do ser. A violência não está em perturbar a solenidade dos mortos. Está na solenidade que impede dançar.



Descobri depois, no breve documentário Dancing Auschwitz, que aquele velhinho se chama Adolek Kohn. Ele decidira casar com uma moça em questão de horas para que ela pudesse fugir da guerra. A viagem os levou ao campo de extermínio. Ambos sobreviveram. Mudaram-se para a Austrália em 1949. Na ocasião em que se produzia o documentário, em 2012, eles continuavam casados. Adolek completava 90 anos. Ainda tinha coragem, e é preciso muita coragem, para falar em destino. Tinha coragem para voltar ao inferno e dançar. Ele explica que, “se você dança pela criação da vida, pode dançar em qualquer lugar, mesmo em Auschwitz”.

Minha primeira reação à dança foi de repúdio. Um absurdo! Segundos depois, eu percebi que havia naquilo algo de interessante. Na metade do vídeo, eu sorria e chorava ao mesmo tempo. Isso tudo me causou um grande incômodo. Sinceramente, gosto da arte que não oferece conforto, embora não seja prudente generalizar. Para mim, a poesia está no que desloca o senso comum, inquieta o corpo, “sabota a realidade”, como disse Tavares.

Não existe fórmula. Um trabalho poético pode provocar reações diversas em uma pessoa e absolutamente nenhuma reação em outra. É por isso que não existe arte melhor ou pior em si mesma; a crítica se faz sempre numa relação com o outro, com o contexto, com quaisquer que sejam os parâmetros.

A violência implícita na arte que conforta é similar a das notícias prontas, do corpo esculpido na capa da revista, da propaganda que afirma como ser e do que gostar, do manual de política, da indústria cultural que subestima o espectador, que pensa conhecer seu gosto e para se identificar com ele reproduz o que já viu inúmeras vezes antes. As mesmas situações com os mesmos personagens, o mesmo ângulo, as mesmas risadas gravadas, a mesma música eletrizante nas perseguições de carro. As mesmas capotagens e explosões, os mesmos diálogos, os mesmos conflitos, o herói a salvar o mesmo mundo, a mocinha apaixonada pelos mesmos motivos. Assim os preconceitos, os pressupostos e os estereótipos persistem. Assim a violência se impregna, passa despercebida, convida para um pouquinho mais. Violência do prazer vendido como produto ou que requer um produto para acontecer. Violência contra a potência criativa da vida, mantendo-a estática, aborrecida, neurótica.

O entretenimento é quase sempre a domesticação do olhar, do pensar e do dizer. Não creio que deva ser banido, afinal é impossível viver o tempo inteiro no caos da criação. Mas é preciso cuidado com a maneira como o banal educa: pela via do clichê, do hegemônico, da verdade fabricada e pronta para o consumo.

Estamos cansados de viver a banalização da violência. Que são os abusos de autoridade, a corrupção na política, a seca no Nordeste, a apropriação das terras pelos latifundiários, a redução dos direitos do cidadão, a precarização da pesquisa e do ensino, enfim, as misérias todas do pão. Já a violência do banal é da ordem do circo. É aceitar o conforto e reprimir o próprio ímpeto. Ignorar toda espécie de diferença que a vida produz. Desnutrir a potência de si e do outro.

Se não é possível escapar de vez, vale experimentar desvios ocasionais. Afastar-se, produzir e sustentar distanciamentos, habitar o ambíguo, permitir que o outro permeie e transforme o eu. Fazer algo verdadeiramente inútil e inexplicável. Criar tensão quando todos sorriem. Dançar quando todos choram.

Ps.: A poesia implica também uma espécie de violência, que é própria da criação, do nascimento e do aprendizado, mas essa discussão fica para outro dia.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

A POESIA COMO SINTOMA DO CONTEMPORÂNEO

No final do ano passado, tive o prazer de ouvir Carlito Azevedo recitar todo o Livro do Cão durante um debate sobre literatura e política. Trata-se de um longo poema do seu Livro das Postagens, lançado à época. Esbaforido, ele insistia:

O autor deveria estar aqui
mas é como se não fosse urgente
como se nada tivesse que ser dito
como se não estivessem batendo à porta
como se não estivesse batendo na nossa cara
como se não fosse urgente

O autor deveria estar ali, mas não compareceu. Irresponsável, enviou no seu lugar Carlito Azevedo, leitor. Um cão na iminência de ser devorado pela crise e sem consciência do perigo. A se justificar, inocentemente:

Eu vim porque me trouxeram
eu disse: estou vendo a lenha
eu disse: estou vendo o altar
eu disse: estou vendo a faca
mas onde está o cordeiro?

O real que se abate sobre nós, os cordeiros, é o invisível e o impossível que por acaso se realizam. Que, não por acaso, já eram sugeridos pela poesia. É por isso que alguns filósofos, ao investigarem o contemporâneo, vasculham poemas atrás de indícios. Giorgio Agamben recorre a A era, de Óssip Mandelstam. Alain Badiou recita As cinzas de Gramsci, de Pier Paolo Pasolini. E defende que a poesia e a matemática são as duas únicas atividades humanas realmente proféticas. Pois “todo grande poema é o lugar linguageiro de uma confrontação radical com o real”.

Em sua palestra no 1º Seminário Online de Escrita Criativa, intitulada A poesia das coisas minúsculas, Tarso de Melo expôs a tese de que os grandes poetas são, de alguma maneira, desajustados em relação ao seu tempo. Cita, como exemplo, o mal estar de Drummond, “poeta da anotação”, a registrar em versos aqueles acontecimentos tão minúsculos que em geral passavam despercebidos aos demais. Acontecimentos não evidentes, que só ganhariam lugar no discurso tempos depois.

Outro exemplo de Tarso de Melo é Leonardo Fróes, cuja obra reaparece meio século depois e ganha atenção dos jovens. Por quê? Segundo o pesquisador, existe mesmo um deslocamento temporal do poeta com o seu leitor. Caberia aos interessados procurar nesse deslocamento – nessa falha ou lacuna – a intuição do poeta, que é um saber anterior à constatação da crítica. Intuir, nas palavras de Melo, é ver por meio do olhar minúsculo.

O que o poeta veria por meio desse seu olhar? Não as grandes obviedades, mas a potência invisível das virtualidades. Veria o sacrifício realizado onde, aparentemente, há apenas lenha, altar e faca, além das vítimas – ele próprio e todos nós.

A poesia seria, assim, uma espécie de sintoma do contemporâneo. Indício sensível do desconhecido ainda em vias de tomar forma. É justamente essa sensibilidade para o menor, no sentido deleuze-guattariano, que me interessa nas artes, sejam elas plásticas, visuais, literárias, musicais, dramáticas etc.

Eu completaria aquela ideia com outra, que vem se realizando sorrateiramente nas sombras da minha pesquisa de doutorado, e à qual devo atentar adiante: a ideia de que o termo “contemporâneo” não condiz com a maior parcela da arte que se realizou nas últimas décadas ou que se realiza hoje. Estas são produções atuais, num sentido cronológico e até estilístico, que talvez recebam rótulo apropriado em breve. Mas o contemporâneo não pode ser um estilo, não pode ser o que presentifica, muito menos o que evidencia as questões da atualidade, mas o que se desloca em relação ao próprio tempo e torna as questões obscuras, ambíguas, paradoxais.

Nesse sentido, eu simpatizo com Agamben, e aposto que contemporâneo é o que vem, ou seja, o que aponta para a condição futura, por ora apenas intuída, talvez um dia a ser constatada. Com uma ressalva: apesar da sua força profética, o contemporâneo não é o que induz – é o que dá condições para o acontecimento ser conforme o seu próprio desejo. É o que torna possível o virtualmente impossível. É o que realiza o real.

A forma virtual, intuitiva, é necessariamente poética. Seu sentido não está dado de antemão, mas em potência. E tal forma poética não se encontra somente no poema. Esse é o nosso desafio, enquanto espectadores e coautores do que vem: esmiuçar a vida em seus variados aspectos para quem sabe encontrar, na urgência do presente, as virtualidades que estão por vir. Não para constatá-las, evidenciá-las ou esclarecê-las; não para extirpar a sua poesia, transformando-as em discurso, mas para acolhê-las e para inventar condições de, por acaso, elas virem a ser.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

E A LUA BRILHOU


Apesar da chuva, do frio e do Temer, houve lançamento do meu livro, houve sarau do coletivo literário Discórdia e houve a publicação do zine "Isso não é literatura". Foi uma deliciosa tarde de domingo no Creuza Cultural, em São Paulo. E teve comida boa, música e companhia de muita gente querida.


 
Compartilho agora algumas fotos e também alguns recados.
 
A tiragem do meu livro Por que a Lua brilha está praticamente esgotada. Se você ainda não comprou, encomende já no site da editora Cultura e Barbárie (atualização: desculpe, a tiragem se esgotou em agosto). Se preferir, adquira a versão para Kindle e leia no computador, eReader ou smartphone.

Conheça e acompanhe o trabalho do coletivo Discórdia, do que faço parte, curtindo a página do Facebook e lendo as nossas publicações no Medium.

Agradeço todos que estiveram presente e também quem gostaria de ter estado, mas não pôde, e mesmo assim mandou energias positivas.

Ainda este ano teremos a publicação do meu Testemunho Ocular, ou seja, mais um livro para a gente celebrar juntos!

 




Zine "Isso não é literatura", do coletivo Discórdia, também lançado na ocasião
  



O coletivo Discórdia



domingo, 7 de maio de 2017

LANÇAMENTO DO LIVRO "POR QUE A LUA BRILHA"

Eu e os amigos do coletivo Discórdia preparamos um evento para celebrar meu primeiro livro publicado. Além dos autógrafos, teremos também o lançamento de um Zine com tiragem exclusiva para a ocasião e um sarau com microfone aberto para quem quiser compartilhar a sua literatura. Bônus: bar e música da Creuza Cultural!

Tudo isso no dia 21 de maio, domingo, das 15h às 18h.
Onde? Na Creuza Cultural: Rua Raul Pompéia, 547 (perto do Sesc Pompéia).

A entrada é gratuita, estão todos convidados. Você paga apenas o que consumir no bar e as publicações que quiser adquirir. Ao módico preço de...

Livro (Por que a Lua brilha): R$ 25
Zine (Isso não é literatura): R$ 5

Se você não pode ir, mas quer comprar o livro, encomende direto da editora: Cultura e Barbárie. (atualização: a tiragem impressa se esgotou, mas o livro continua disponível na versão ebook, clique e leia agora mesmo).

Espalhe a notícia e venha curtir esta tarde de domingo com literatura, cerveja e amigos.


terça-feira, 2 de maio de 2017

A METADE DE TUDO

Sua vida seguia muito bem, podia continuar daquele jeitinho sem nunca receber notícia tão desagradável; sem um linguarudo como eu deixar escapar que sim, você é anão, todo mundo sabia menos você, rá rá. Nasceu pronto, nunca cresceu, rá rá. Desculpe. Eu mesmo não superaria, é provável que até encolhesse de desgosto. Acho que me sentiria menosprezado. Rá rá, entendeu? Desculpe, desculpe. Se me permite, você reagiu mais ou menos bem. Sempre é possível piorar. Poderia ter corrido para casa com as perninhas recém-descobertas, tomado impulso e saltado na cama para dela nunca mais sair.

Divided states: supplicate I (Antony Gormley, 2006)
Eu preferiria que você jamais soubesse, evidente! E que pudesse continuar entre nós como sempre foi. Há verdades que não precisam ser ditas. Preciso medir minhas palavras, eu sei. Mas eu me contenho bastante, você não faz ideia! A maioria dos clientes deste bar bebe uma ou duas e já vem me vomitar suas desgraças. Eu sirvo outra dose, finjo que escuto, faço pinta de consolador. Mas o que desejo mesmo é rir na cara dura, dizer que problema não é exclusividade de ninguém e mandar se danar.

Você é um sujeitinho decente, um dos poucos que vêm aqui. Divertido, generoso, não merece ouvir minhas baixarias. Você costumava aguentar firme, já o vi entornar canecos da sua altura! Sei que está alegre o suficiente quando perde a noção do perigo, escala os engradados, trepa num dos bancos fixos do balcão e fica aí dando espetáculo sem se desequilibrar. Já trabalhou em circo? Pergunto só porque qualquer outro desabaria de tão mamado. Mas você parece experiente, sabe o que está fazendo. Sempre teve o domínio da situação. Até que, bem, até eu lhe dizer que você é anão.

Anão sim, e daí? Anão ou não, sempre foi superior a essa gentinha normal que se diz gente grande, pais de família, filhos de Deus.

Ok, ok, eu entendo. De que adianta falar agora, não é? Sinto muito, estou sendo sincero. Na mesma hora saquei o tamanho da minha indiscrição. Saquei também que as consequências não seriam boas. Passadas as minhas gargalhadas solitárias, naquele silêncio que se fez quando a sua ficha caiu, restou aí meio homem. Todo mundo olhando para mim, todo mundo vendo em você apenas metade do camarada de sempre, metade do bom caráter, metade da alegria. A metade de tudo. E sorriso nenhum. Não havia sequer meio sorriso nessa sua cabeça avantajada, rá rá.

Não deveria ser um problema grande assim! Você precisava ser tão dramático? Depois que falei da sua condição, passou a ver tudo por outro ponto de vista. Nossa cidadezinha ficou maior, os objetivos ficaram mais difíceis de alcançar. Já não dirigia porque os pedais do carro ficaram distantes, e a visão do para-brisa comprometida. O computador parecia ter um teclado de piano, você acabou preferindo um tablet. Não apertava as mãos dos bacanas, não fechava mais negócios. As oportunidades passavam, você tentava correr atrás delas, mas seus passos eram curtos demais; você saltava, mas seus dedos eram curtos demais para agarrá-las. Que coisa triste, olha só, dá até uma vontadezinha de chorar. Tá vendo a lágrima? Aqui, ó, deixa eu abaixar para você ver melhor.

Você nunca me culpou, e por isso sou muito agradecido. Os companheiros agiram diferente, disseram que minha verdade bateu forte demais, que acabou botando para baixo toda a sua vontade de viver. Depois eles perceberam que eu estava mal e que o bar podia fechar. Quiseram reverter a situação. Disseram que era melhor assim, que era melhor você viver consciente da sua condição a se enganar para sempre, que uma hora ou outra você teria mesmo que descobrir. Acho que queriam me consolar. Ou queriam uma dose por conta da casa.

O que dizer a um anão que descobre, à meia idade, sua condição? Como consolar o coitadinho? Nascido de pais normais, veja bem. Nem podia ser acusado de filho do padeiro, não existe outro anão neste canto do mundo. Quiseram chamar você de filho do capeta, mas isso é baixo demais até mesmo para nós. Além do que, sabemos muito bem, não é só a estatura que faz um anão.

Me deixa triste é o jeito como aconteceu. Um dia você estava aí, empoleirado nesse banco alto, no dia seguinte já não estava mais. Disseram que você botou suas coisinhas numa mochila, montou uma totoca e pedalou na direção da cidade grande, onde alguém haveria de esticá-lo. Como puderam? Os bocós deram a dica na maldade, disseram que a medicina estava avançada, até corno se remediava, rá rá. O nanismo não seria um desafio tão considerável.

Outros contaram história diferente, disseram que você encolheu mais ainda de tanta vergonha e desceu pelo ralo do chuveiro, desceu pela privada, foi levado pela enxurrada. Tudo piada de mau gosto.

Prefiro acreditar em outra coisa, que ao menos tem jeito de meia verdade: você foi para a cidade grande, não foi? Me diga, o que aconteceu depois? Tantos anos se passaram! Quero ouvir as suas histórias sobre tudo o que viveu! Não ficou na outra cidade porque o esticaram, claro que não, mas porque no meio daqueles prédios gigantes todo mundo é anão. Não foi? Aquela cidade não tem a medida dos homens, ela é trocentas vezes maior. E depois, o que mais? Ninguém ali notaria qualquer diferença em você, não é?

Aliás, você percebeu como ninguém reparou na sua presença hoje? Só eu o notei. Senti sua falta. De verdade. Espero que tenha aproveitado bem e bastante. Tinha certeza de que você jamais voltaria para esta cidade enquanto vivesse, depois de tudo que passou. Mas quem diria que voltaria para cá depois de morto! Isso nem eu imaginaria, meu querido anão.

Por que você está me olhando desse jeito? Você sabe que morreu, não sabe?

*Este texto faz parte do meu próximo livro de contos, chamado Testemunho Ocular, a ser lançado ainda este ano.

domingo, 23 de abril de 2017

LEIA UM TECHO DE "POR QUE A LUA BRILHA"


Até onde vai o mito e onde começam os fatos? Costuma-se dizer que tudo teve início quando uma chama despencou do céu, abrindo imensa cratera com o impacto. Os homens primitivos chegaram ao lugar e depararam com uma menina feita de luz, que chorava lágrimas de cristal. Ela emanava pureza e inocência, envolvidas por uma aura branca que incomodava os olhos dos presentes. Todos estavam apavorados. Então a criatura ofereceu sua amizade e pediu apenas que levassem a solidão para longe, pois tinha muito medo dela. Assim, a primeira estrela a visitar a Terra foi imediatamente capturada.
      Encontramos uma estrela, depois encontramos mais. Havia aquelas que se pareciam com homens; outras tinham formas femininas e até alguns dos seus trejeitos. Sabemos hoje que existem também estrelas infantes e velhas, uma vez que elas crescem, desenvolvem-se e morrem como outro animal qualquer.
      Quando a tendência crônica das estrelas à derrota foi enfim revelada – ainda não se sabe exatamente como isso aconteceu, e mesmo as hipóteses fantasiosas são raras –, os homens da época compreenderam que aquela frágil criatura vinda do céu poderia significar uma grande evolução para a espécie. E eles estavam corretos. Existem teóricos que, inclusive, datam o início da História Humana como o Dia da Queda da Primeira Estrela, em afinidade com certas congregações ortodoxas.
      Teorias e mitologias à parte, resta o fato de que, num determinado momento, uma estrela jogou, perdeu e morreu. A comprovação científica foi saudada com seis prêmios Nobel, com destaque para o da Paz. Mas essa paz demorou a ser conquistada, exigindo dedicadas guerras ao terror. Porque a partir daquela descoberta fenomenal, diversos países se mobilizaram para capturar outras estrelas, aliando-se ao eixo Vermelho ou ao Azul, conforme as forças políticas predominantes. Cada risco no céu significava uma nova guerra no solo. Foram tempos sombrios, repletos de atrocidades, muitas das quais ainda tentamos superar.
      Poucas vozes se levantaram contra a condição de colonizados imposta àqueles seres; poucas vozes dispostas a sustentar qualquer tipo de aconselhamento astrológico depois que a realidade desceu à Terra e provocou de imediato uma verdadeira dialética do esclarecimento.

***

Por que a Lua brilha é meu primeiro livro publicado. Trata-se de um conto distópico, disfarçado de ensaio científico, que analisa pontos fundamentais da história entre os seres humanos e os fenômenos luminosos da Lua.

A tiragem é limitada a 100 exemplares, todos numerados e costurados à mão.

Encomende o seu no site da editora Cultura e Barbárie (tiragem esgotada) ou adquira a versão ebook para Kindle lançada no site da Amazon.

sábado, 15 de abril de 2017

MAMA


E daí? Não vejo problema algum nisso. Eles gostam. Nunca houve unzinho que não gostasse na hora. Depois é que botam caraminholas nas suas cabeças, crescem e vão fazer análise sem nem mesmo ter certeza do que aconteceu. Ou como aconteceu. Não precisava ser assim. Porque eles gostam de verdade, meninos e meninas. Óbvio que gosto também. E você gostaria se largasse a hipocrisia de lado e experimentasse. Um pouquinho só que fosse. É muito doce. Inocente. Delicado. Não tem essa brutalidade toda dos adultos. Faço com carinho, afago a pele, penteio os cabelos. Faço sem pressa. Aqueles olhinhos curiosos me encarando. Tremulo toda vez como se fosse a primeira. Peço que me chamem por um apelido meigo, embora a maioria prefira ficar calada. Sem voz também é bom. Você sabe que não há idade para essas coisas. Minha mãe se casou com catorze anos. Cadê a lógica? Não tem. Lógico é gostar do cheiro da inocência, do jeito inseguro, da carne macia ainda intocada pelas neuroses todas da vida. Não tem como não amar. Tiro primeiro os sapatos, depois as meias, uma a uma, curtindo o momento. Não deixa de ser brincadeira. Adoro aqueles pezinhos rechonchudos, tenho vontade de morder. Toco cada um dos dedos e invento uma história engraçadinha para descontrair. Elas riem. A maioria ri. Digo que vamos brincar de outra coisa, puxo primeiro uma perna da calça e imitamos um saci, tiro depois uma manga da blusa e fingimos ser piratas manetas. Como o capitão Gancho. Vamos, assim, criando aventuras encantadoras, a imaginação delas é linda demais. Vai tão longe! A gente perde esse brilho quando cresce. Isso é cultural também. É o convívio social que bota maldade nas coisas. Que poda as asinhas. As coisas, em si mesmas, são puras. É a hipocrisia que destrói toda a beleza natural do ser humano, os gestos… É por isso que digo: não há problema algum nesse meu amor incondicional. Amor maior que eu. A princípio não há mesmo. Tanto que elas gostam da intimidade e da descoberta. Às vezes ficam um pouco assustadas, mas eu quase nunca as machuco, a não ser que elas mereçam. Há diabinhos, sem dúvida. Mas as angelicais são maioria. Passo minhas mãos calejadas por seus corpinhos inteiros, suas dobrinhas, meninos e meninas, tão iguais! Ficam paradinhos, imaginando o que vai acontecer, imaginando o que já está acontecendo, mas eles jamais chegam à verdade porque são inocentes demais para saber. Sinto a carícia profundamente. Pensar nisso me excita. Mesmo agora, só de falar, algo se movimenta dentro de mim. O sangue esquenta. O ventre se enche de vontade. A pele tensiona e arrepia. É uma delícia. Puxo-as para o meu colo, sinto os nossos corpos como se fossem um. Levanto minha blusa com delicadeza, convido-as a mamar. A brincar de mamãe e filhotinho. As boquinhas sem jeito me chupam os mamilos e gozam. Fecho os olhos e sou apenas mamilos. Então eu choro. Invariavelmente. Não houve uma vez sequer que não chorasse. Porque aquela sensação a traz de volta, reaviva a saudade enterrada tão fundo. Me faz lembrar demais do passado que nunca se foi de verdade. Eu choro. E peço. Eu rezo o tempo inteiro. Você vai dizer que não, todo mundo diz. Mas eu rezo o tempo inteiro. Eu peço com todo o coração. Que Deus a tenha, minha querida, minha vida. Que Deus a tenha.

*Publicado originalmente na Revista Ninhada nº 3.

domingo, 9 de abril de 2017

MEU PRIMEIRO LIVRO PUBLICADO: POR QUE A LUA BRILHA


Se você aguentou firme, cá está a segunda notícia literária que tem feito meu coração de escritor palpitar de alegria: meu primeiro livro acaba de ser publicado pela editora Cultura e Barbárie.

É um conto, disfarçado de ensaio científico, que retoma pontos fundamentais da história dos seres humanos e os fenômenos luminosos da Lua. Com intenção de avaliar as implicações culturais do projeto de Lei que visa apagá-la.

Você pode encomendar seu exemplar aqui: www.armazem.org. (Atualização: a tiragem se esgotou, mas você pode adquirir a versão ebook no site da Amazon, basta clicar aqui e começar a ler agora mesmo.)

O livro ganhou uma linda edição artesanal de Marina Moros, foi impresso com sistema de cera sólida e costurado à mão. São apenas 100 exemplares e numerados. Verdadeira exclusividade! Então garanta o seu enquanto é tempo que eu prometo autografar quando a gente se encontrar.

Confira só as fotos que eu mesmo tirei. Dá para ter uma ideia de como o projeto gráfico ficou incrível! Logo mais eu publicarei um trecho do livro para dar água na boca.





sexta-feira, 7 de abril de 2017

TESTEMUNHO OCULAR GANHA PRÊMIO LITERÁRIO


Esta semana me trouxe duas excelentes notícias literárias. A primeira delas é que o meu projeto mais recente, que eu já tinha mencionado num post anterior, ganhou o 3º Concurso Lamparina Pública na categoria Prosa.

Testemunho Ocular foi escolhido entre mais de 400 inscritos e deve ser publicado ainda este ano pela editora Lamparina Luminosa.

 
É um livro pelo qual eu tenho o maior carinho. E espero que logo ele chegue até você. Pode deixar que avisarei assim que tiver novidades.

E a segunda grande notícia da semana? Essa eu conto nos próximos dias. Aguarde! ;)

quarta-feira, 5 de abril de 2017

DESESCREVER

Planejar minuciosamente meus textos serve apenas para eu me certificar do que não escreverei, que será exatamente o conteúdo do planejamento. Porque, quando inicio a execução do projeto, uma frase descamba noutra qualquer, a terceira surge do nada para me surpreender, a quarta se improvisa, a quinta já nem sei qual é. Na medida em que vou desescrevendo o texto, ele me inscreve e circunscreve. Ao final resta um autor reconhecido por suas linhas tortas. Por seus escritos irreconhecíveis. Um autor meramente ilustrativo.

Texto vivo (2013/2014), de Ana Hupe