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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

ENTREVISTA

O escritor Fernando Sousa Andrade me convidou para uma linda entrevista sobre meu romance Diante dos meus olhos (Editora Reformatório, 2019). Ela acaba de ser publicada na revista portuguesa InComunidade. Você também pode ler aqui:


Diante dos meus olhos tem tantas camadas, como pinceladas de tinta sobre um plano branco, e elas parecem que se mexem, sugerindo nuances novas e paletas policromáticas. Você levou três anos para fazer uma primeira versão, é isso? Como era seu trabalho de escrita ou reescrita durante esse tempo? É um romance em que o leitor imerge na história completamente. Como foi lapidá-lo?

Preciso dizer que você fez uma leitura muito especial do meu livro, que transparece na qualidade das perguntas. Fico lisonjeado e agradecido. Diante dos meus olhos foi sendo criado mais ou menos como você descreveu sua sensação de lê-lo: com pinceladas. Começou com um conto de quatro páginas, escrito na madrugada, logo que despertei de um sonho. Ali estavam esboçados o que viria a ser a vila militar onde a trama se passa e um ou dois personagens. Essa história continuou viva, pedindo para ser contada, e aos poucos desenvolvi o enredo. O conto curto passou a ser um conto longo, que depois ganhou corpo de romance. Cresceu demais, sofreu cortes; ao todo foram onze versões do livro realizadas durante uma década. Apesar disso, o enredo não teve mudanças drásticas, foi apenas se adensando no que diz respeito à psicologia dos personagens e aos pormenores da viagem que realizam. Com o processo pude conhecer melhor aquelas pessoas, o que me interessava na história, quais conflitos se apresentavam, qual deveria ser a linguagem e a forma mais adequadas para a narração. Eu queria obter essas nuances que não se deixam enrijecer nem capturar; que fossem complexas, ambíguas, paradoxais como o ser humano é e precisa ser compreendido — para além dos rótulos, das caixinhas, dos maniqueísmos etc. Parece que deu certo, pois outros leitores também me devolveram impressões semelhantes às suas, dizendo que ora sentiam apreço pelo pai e pelo filho, ora tinham raiva. Ainda assim eu não sabia bem o que tinha em mãos, muito menos o que fazer com o texto. Só tive coragem de buscar vias de publicá-lo quando ganhou menções honrosas no Programa Nascente USP 2015 e no Prêmio Sesc de Literatura em 2016, vários anos após o primeiro rascunho. Em 2019, o projeto foi selecionado num edital de publicação de livros promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Só então pôde chegar aos leitores.

2) Seu romance parece conter muitas pulsões que se veem na prática psicanalítica. O próprio enredo lida com projeções, relações entre o real e a fantasia, medos, luto. O narrador é carregado de afeto pelo pai, mas há sentidos ambivalentes no seu “narrar o pai”. A relação dos personagens parece colocar o romance numa espécie de suspensão, pois narrar é lembrar, mesmo que você escreva a partir do branco total (do esquecimento). E seu romance é tão alusivo à memória! Fale um pouco disso.

A memória é o tema principal do livro. E ela vem carregada de contradições entre as histórias de vida dos personagens, em especial a memória do filho, que narra o pai segundo o seu ponto de vista, a sua experiência, as suas angústias em relação a ele. O pai não tem direito de resposta; os papeis se invertem e ele acaba por se tornar uma espécie de criatura do filho. No fim das contas, não é assim que fazemos a história da humanidade, com os filhos narrando os pais, ou melhor, com as pessoas de hoje falando daquelas que já se foram? Mas há um paradoxo aí: fomos criados, educados, influenciados por nossos antepassados, que assim, por meio de nós, também conduzem a narrativa. No fundo, as questões que se colocavam para mim ao longo da escrita diziam respeito a como criamos essa realidade, que parece tão concreta, embora não seja mais do que uma invenção dentro de um contexto cultural. Os personagens tensionam esse fio, uma vez que a história se faz de memórias, e as memórias deles são elaborações de acontecimentos recentes ou muito antigos coexistindo meio misturados, indiscerníveis, que lutam para ter razão. A psicanálise atravessou o processo de criação do livro mais de uma vez. Tive meu primeiro contato com ela enquanto fazia as pesquisas para o mestrado em Estética e História da Arte, que coincidiram com a escrita de uma das versões iniciais do Diante dos meus olhos. Eu me debruçava sobre a Estruturação do self, trabalho derradeiro da artista brasileira Lygia Clark, ao qual ela dedicou seus últimos dez anos de vida e que se propunha como uma espécie de intervenção poético-terapêutica, por assim dizer. É um trabalho complexo, criado numa ambiguidade entre a arte e a clínica. Para me aproximar dele precisei conhecer um pouco da teoria psicanalítica, que é encantadora. Não parei mais. Li um tanto de Freud, Jung, Winnicott. Algo de Melanie Klein também, na medida em que a pesquisa requisitava. Em 2014 dei início ao doutorado, e por mais que relutasse tive que encarar alguns temas de Lacan, que me ajudaram a pensar essa relação entre real e ficção. Embora o livro não tenha um viés psicanalítico proposital, imaginei que essas aproximações logo surgiriam.

3) (Des)importar-se com a figura do pai, sua ação perene na vida, seu apego às imagens de uma infância na vila militar me fazem pensar como somos ainda uma projeção de quando fomos meninos, no caso do pai e filho. E como se no filho houvesse essas libações do corpo guardado e projetado à adultice. Isso é muito difícil de ser trabalhado no personagem-narrador?

O filho quer se diferenciar do pai para encontrar a si mesmo. Essa é uma questão-chave da existência humana, que tentamos explicar das maneiras mais diversas, entre elas a psicanalítica. Mas em um momento importante do romance o filho se dá conta de que, por mais que drene o sangue do pai de suas veias, seu corpo produzirá mais daquele mesmo sangue. Quer dizer, é uma desconexão impossível. Não importa o seu esforço em negá-lo e se afastar, o pai permanecerá seu ponto de referência; eles ainda estarão em relação. Eu queria que esse paradoxo e essa ambiguidade ajudassem a vermos as relações humanas de maneira mais complexa, mutante, impossível de determinar. Ao mesmo tempo acompanho meus amigos de infância envelhecendo e ficando cada vez mais parecidos com seus pais, os quais conheci com a idade que temos hoje. Essas histórias similares às do livro se contam a todo instante ao meu redor. Imagino que o leitor tenha aí um ponto em comum com o que se passa no Diante dos meus olhos.

4) A cena da velha na janela com a panela de pressão me chamou muito a atenção. O filho fica sozinho e há toda uma projeção cinematográfica sem o contato do pai, que se ausenta. Fale um pouco dessa cena.

Essa foi uma das primeiras cenas que imaginei, embora esteja mais perto do final do livro. Para mim, ela é uma espécie de contraponto à aparição anterior da velha — na janela da escola –, como se o público na plateia do teatro atravessasse o palco e chegasse às coxias. Na história da arte, até a irrupção do Modernismo, dizia-se que as pinturas são janelas para o mundo, ou seja, através delas é possível conhecer paisagens, objetos, gestos etc. No livro, a meu ver, essa cena que você mencionou sintetiza todo o embate entre real e ilusão vivenciado pelo personagem. É quando o problema se apresenta de fato, pois até então vinha apenas se sugerindo. E é o problema que ele carregará adiante. A panela de pressão marca essa ideia de tempo, e seus vapores tornam o ambiente nebuloso; mas apesar dessas evidências ela ainda é um mistério também para mim. Gostaria de saber o que está cozinhando, o que vai amolecendo em seu interior, desfazendo-se, talvez.

5) Eu tive certa visualização do seu romance com um filme chamado o Show de Truman. Passou pela sua cabeça esse filme enquanto estava escrevendo?

Esse filme foi bem marcante quando era mais jovem. Ajudou-me a pôr em crise meus afazeres de redator publicitário, que mal tinham se iniciado. Não me lembro de ter pensado nele, especificamente, enquanto escrevia o Diante dos meus olhos, mas sem dúvida a aproximação é plausível. Show de Truman também fala de desconstruir uma ilusão ao dar-se conta de que a realidade é criada como os cenários de um estúdio de cinema, embora naquele caso se trate de um espetáculo. Lembro-me de que, no filme, o personagem habita um reality show levado ao limite: o mundo acompanha cada etapa de sua vida, vivida desde o nascimento numa cidade cenográfica onde todos são atores. No final, quando percebe essa sua condição, ele abandona o espetáculo e se lança “no mundo real”. O que fico me perguntando, e isso sim tem a ver com meu livro, é: que mundo é este? Tem mesmo algo de real? Como se pode confiar?

6) Se fosse dar esse seu romance a alguém próximo e pedir um texto com comentários, quem você escolheria?

Tive o privilégio de receber algumas cartas de amigos que leram o livro e quiseram me escrever, algumas muito bonitas, escritas à mão, repletas de afeto. Uma delas me foi dada pela artista e terapeuta ocupacional Gisele D. Asanuma, que levou o livro para uma viagem e, enquanto lia, escreveu sobre as relações que estabelecia com os arredores, com as situações que encontrava pelo caminho, com reminiscências do passado, como se fosse se perdendo por aí com a ajuda desse mapa que escrevi justamente com esse propósito. Não sei se pediria a alguém para escrever sobre suas impressões de leitura porque um livro pode acessar lugares muito sensíveis, e o pedido talvez se tornasse invasivo. Mas sem dúvida um dos maiores prazeres em escrever é poder ouvir, depois, como cada leitor se deixou afetar pelo que leu. Essa troca é uma experiência incrível, que mexe bastante comigo, porque marca um momento em que o livro deixa de ser meu e ganha vida.

7) Diante dos meus olhos tem uma relação muito imagética com o cinema. A quem você entregaria seu livro para uma filmagem?

Eu tenho acompanhado pouco o cinema, o que é uma pena. Imagino que muitos diretores compartilhem comigo das mesmas questões sobre realidade e ilusão, uma vez que boa parte delas provém da força das imagens. Já tive oportunidade de ouvir Wim Wenders falar sobre o tema, acredito que o livro poderia interessá-lo, mas com certeza há outros cineastas talentosos que saberiam lidar com as indagações apresentadas ali a respeito do olhar, das memórias, das narrativas. Acredito também que, quando o livro muda de linguagem, torna-se uma nova obra, e tenho mais curiosidade para saber em que o transformariam do que desejo de controlar essa transformação. Prefiro que o cineasta trabalhe como preferir em seu campo de criação. O meu continua a ser a literatura.

Ficou com vontade de ler o livro? Clique aqui e peça seu exemplar!

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

ISSO NÃO É LITERATURA: OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA NO SESC!

Estarei junto com amigos do coletivo Discórdia nesta incrível oficina de escrita promovida pelo Sesc-SP!

Durante os quatro encontros faremos exercícios que incentivam a criatividade, ajudam a vencer bloqueios e oferecem ferramentas para o desenvolvimento de escritos literários.

Haverá também leituras e conversas sobre a produção dos participantes, além de breves explanações sobre obras de referência e de outras iniciativas que servem como inspiração.

Queremos que os participantes possam trocar ideias entre si e adquiram recursos técnicos para desenvolverem outros projetos por conta própria.

Confira outros detalhes e faça sua inscrição aqui

Data: de 28 a 31 de janeiro
Horário: das 14h às 16h30 
Local: Centro de Pesquisa e Formação do Sesc (Rua Dr. Plínio Barreto, 285, 4º andar)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

MUSEU DE ARTE EFÊMERA DE LETHE


Tenho um orgulho danado desta peça, que deu um trabalho mais danado ainda para escrever. Orgulho maior é vê-la publicada junto com outras 11 peças do Núcleo de Dramaturgia do Sesi, que integrei em 2018. Isso porque a experiência de acompanhar o processo criativo dos autores foi única, suas peças são incríveis e o livro ficou lindo.

Leia! Você pode baixar a versão e-book dos dois volumes gratuitamente, é só clicar nestes links:

Núcleo de Dramaturgia do SESI - British Council (10ª turma): volume 1 (ePub)
Núcleo de Dramaturgia do SESI - British Council (10ª turma): volume 2 (ePub)

Sinopse: Zakhor está inconformada porque ninguém se lembra da criança que se afogou no rio. Ela é o estopim para que venham à tona histórias de outras personagens, que têm em comum a indiferença diante de uma tragédia. As histórias são compartilhadas no espaço vazio do museu nepalês, em torno de um fogareiro onde ferve o chá. Zakhor faz de tudo para que as tragédias permaneçam lembradas na história da comunidade. Lethe, entretanto, oferece às vítimas o conforto das suas águas do esquecimento.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

TODO SONHO É REAL

Eis que um dia o velho Benedito desperta de sonhos intranquilos sem estar transformado em nada: continua o mesmo velho pacato do dia anterior. Cada vez mais gagá, segundo a esposa, e só. Mas o sonho foi especial, como não acontecia há tempos, disto não restam dúvidas: alguém morreria naquela noite, na festa do padroeiro São Joaquim. O velho voltara a sonhar seus “sonhos de dom”.

“Ele nunca errou unzinho que fosse”, afirmam os vizinhos. Suas antigas previsões ajudaram muita gente naquele povoado do “bom sertão”, que poderia ser qualquer um e, de fato, é. Zé do Gás, pelo jeito, escapou de uma explosão. Não sei quem escapou do agiota. Só que desta vez não haveria escapatória: a morte era certa. Apenas a identidade do morto causava dúvidas, pois no sonho o velho não pôde ver direito.

É assim que Filipe Souza Leão estabelece o conflito do seu livro de estreia. A cidade inteira logo fica sabendo do ocorrido, levado de um canto a outro na garupa da moto do fofoqueiro Isaías, onde também anda amarrado um porco barrão, encomenda da festa que todos aguardam com a ansiedade febril de quem não conhece melhor oportunidade de divertimento. Haveria barracas de jogos e comidas, três quadrilhas juninas, a banda de Severino da Zabumba e até um grupo de pífano vindo de Caruaru. A previsão da morte chegou bem a tempo de se somar às expectativas.

Resenha publicada originalmente na Revista Tinteiro n. 2 (jun. 2019, editora da UFPR).

Os nomes das personagens chamam atenção. Benedito, “bem dito” ou “bem falado”, é quem recebe a visão; Isaías, como o profeta, é quem a espalha aos quatro ventos. O padre Eugênio, que se recusa a cancelar os festejos porque com eles deseja superar a popularidade de seu antecessor, tem muito de eu e pouco de gênio, embora não pareça notar. Não deixará sua trama se abalar por um suposto presságio. Aliás, não bastasse o finado padre Guido ter confirmado os sonhos de Benedito como dom divino, desde a chegada de seu substituto o velho deixara de fazer previsões. Uma coincidência infeliz, como inúmeras outras que afligem a comunidade.

Apesar do diz-que-me-diz, o livro é curto, como se a porção maior da história fosse contada pelos não ditos, pelos silêncios, pelos olhares desconfiados dos personagens. O autor cita como referência o romance Bonsai, do chileno Alejandro Zambra, podado ao ponto de apresentar nada mais que o fundamental. Ainda assim vemos acontecer diversas quase mortes: briga de peixeira, pau de sebo, busca-pé, desmaio de susto ou curtido no álcool. Só não houve a apresentação dos bacamarteiros, cujo cancelamento foi anunciado de improviso no calor da hora com o objetivo de evitar perigos maiores.

“A reclamação foi grande, porque Bacamarte era e talvez ainda seja um dos poucos talentos daquele fim de mundo”. É com essa ironia, humor sem decoro e sotaque marcado que Filipe conta um causo digno de cordel, como tantos outros que ouvia, ainda criança, em sua terrinha natal. As gírias também oferecem uma musicalidade típica, e junto da paisagem nos põem a imaginar uma cidadezinha de ricas fabulações perdida na aridez do sertão.

A alegoria prossegue. As diferenças entre aquela realidade e qualquer outra do Brasil atual também. Existe em ambas uma tensão feita fumaça no ar, um gosto pela tragédia, uma tendência a resolver divergências no grito ou, pior, a criar uma condição caótica em que elas jamais se resolvem.

O livro se divide em quatro capítulos: manhã, tarde, noite e manhã de novo, ilustrados por xilogravuras de Jefferson Campos, que oferecem outra camada de visualidade ao texto. Eles são percorridos por uma espécie de desejo velado para que a morte anunciada de fato se realize, e que seja a morte de um outro, claro.

Quando a fogueira se amansa e o sol desperta da ressaca, o povo arma uma revolta. Uma romaria leva meia cidade à casa do velho Benedito, onde se espera tirar satisfação pela promessa não cumprida. A morte antecipada se revela, quem diria, sonho coletivo. E o fim, por ironia, é quase onírico, não fosse a dura realidade a se impor.

Filipe conta a historieta de um lugar distante no espaço e no tempo, como se lêssemos sobre as nossas próprias raízes. Acontece que esse passado persiste, resiste e reincide. De alguma maneira, apesar dos personagens, cenários e acontecimentos provincianos, o livro fala sobre o Brasil “do futuro” que os brasileiros pretendem ser. Fala de um país que não se considera gagá, mas visionário, tal como o seu Benedito, ainda que muitas vezes se “esqueça de limpar o próprio rabo” após exercer as atividades cotidianas.

O dia em que o velho voltou a sonhar, de Filipe Souza Leão (Lamparina Luminosa, 2018. Xilogravuras de Jefferson Campos).

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

BATE-PAPO SOBRE MEU NOVO LIVRO


Todos estão convidados para um bate-papo sobre literatura e sobre meu livro mais recente, o romance Diante dos meus olhos (editora Reformatório, 2019). Estarei na livraria Zaccara junto com o escritor e jornalista Alex Xavier, do coletivo Discórdia, e o artista e arquiteto Felipe Góes, autor da pintura que ilustra a capa do livro. Venha você também, é só chegar, puxar uma cadeira e participar da conversa!

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

DIANTE DOS MEUS OLHOS


Meu terceiro livro está sendo publicado dez anos após o seu primeiro esboço. Nesse meio-tempo eu aprendi a lê-lo e a formular ideias sobre literatura. A mais recente surgiu durante a conversa com uma colega. Quando mencionei o lançamento do Diante dos meus olhos, ela comentou: deve ter uma mensagem bonita no final. Ora, por que eu deixaria mensagem assim?

Nem é o fato de ser bonita que me intrigou; a beleza não depende apenas do livro, mas também do gosto do leitor. Há romances terríveis e, para mim, belíssimos, como O som e a fúria, do William Faulkner. Outros, que o senso-comum considera lindos porque emotivos, por exemplo, me parecem horríveis, clichês, apelativos. Tudo isso para dizer que aquele comentário me pôs a pensar por causa da palavra “mensagem”.

Imagino que todo escritor empenhado em promover uma experiência estética mais condizente com as questões contemporâneas não espera comunicar uma mensagem com seus livros. Por vários motivos: a mensagem tem um significado determinado, pressuposto, que violenta o leitor, ainda que travestida de beleza. Mensagem é aquilo que um escritor gostaria que o leitor apreendesse do livro a qualquer preço, o que o impede, ou ao menos dificulta, de apreciá-lo como bem entender. A mensagem é fechada, dura, objetiva. Enquanto um livro promissor, na minha concepção, deve ser aberto, poroso, indeterminado; deve ser um convite para o leitor abstrair dele o que quiser, ainda que seja uma mensagem.

Prescrever uma mensagem no livro quase sempre implica também dar à história uma conotação moral. Ou seja, ditar uma regra, um comportamento, um entendimento verdadeiro e compatível com certo padrão hegemônico de ser.

Penso que um livro relevante para a literatura contemporânea faz o oposto: coloca a moral em questão, dá voz a modos de existência oprimidos pela hegemonia, apresenta contradições, opera por uma lógica paradoxal, provoca o entendimento para que tome formas até então desconhecidas.

Sem dúvida, uma história que reproduz nossas crenças traz conforto. Mas a que de fato nos toca a ponto de tensionar e transformar quase sempre é aquela que nos contradiz, que nos apresenta pontos de vista inusitados, que nos fala do que jamais foi dito, talvez por ser, de certo modo, proibido.

Albert Camus escreveu O estrangeiro, um romance que me marcou e que eu quis homenagear, como forma de agradecimento, no Diante dos meus olhos. O início é muito famoso: “Minha mãe morreu hoje, talvez ontem, não sei bem”. Trata-se de um personagem apático, que não se deixa tocar nem mesmo pela morte da mãe. E ele será julgado por isso, inclusive quando enfrentar um tribunal, acusado de matar um árabe numa praia da Argélia. Ele está diante do júri, respondendo por uma acusação de homicídio, e todos já o consideram culpado por antecipação, afinal foi incapaz de chorar a morte da própria mãe.

Daí advém outra ideia sobre literatura: para nos falar desse tipo de conflito mais complexo, o autor não pode se colocar acima de seu enredo ou de seus personagens. Não pode escrever “sobre” eles; não deve julgá-los pelo que deles pressupõe. Deve apenas criar uma condição favorável para que eles ganhem vida da maneira como quiserem; o escritor precisa limpar o terreno, retirando inclusive a si próprio, para que seus personagens possam habitá-lo.

É vital que ele preserve, nesse processo, um lugar para o não sabido. O escritor que pensa dominar tudo atenta contra a própria criação; se pretende ser exato, o torto jamais se apresentará, e com ele se vai o imprevisto, o indomado, o inusitado. Ao tentar estabelecer “o” sentido, como já vimos, ele passa por cima dos personagens, querendo mostrar que sabe mais, querendo ditar o destino deles; torna-se um ditador. E tenta justificar o que escreve. Com isso, menospreza seu leitor. Pressupõe que o leitor não é capaz de entender por si próprio, então retoma o assunto e explica, explicita, esclarece. Traz tudo à superfície da página; ilumina todo cantinho obscuro que poderia dar algum volume à história.

Para mim, a boa história é aquela que preserva o espaço do não narrado, do que é impossível de contar porque não cabe em palavras, do que está sem explicação aparente e assim provoca um estranhamento.

A “poética do estranhamento” é uma das que mais me interessam ao ler e ao escrever. Ela não se refere necessariamente ao que é absurdo por completo. O estranho é sutil. É por vezes um detalhe capaz de transformar uma cena familiar, confortável, banal num transtorno, numa perturbação, num incômodo porque algo ali parece fora de lugar. É um elemento comum que, um pouco deslocado do que dele se espera, inquieta o leitor.

É difícil programar esse efeito, como um artifício colocado de maneira proposital na narrativa. Meus textos bem planejados sempre me pareceram medíocres, jamais me dei bem com esse processo. Penso que, quando escrevo bem, não escrevo para tirar a história da cabeça e colocá-la no papel; escrevo para descobrir a história no próprio papel, perseguindo os rastros deixados pelos personagens, tropeçando nas armadilhas do enredo.

Michel Foucault fala disso numa entrevista sobre seu processo de escrita, publicada no Brasil sob o título de O belo perigo. Ele diz: “A escrita consiste em empreender uma tarefa graças à qual e ao final da qual poderei, para mim mesmo, encontrar alguma coisa que não tinha visto inicialmente”.

A escrita é uma prática da descoberta. Depois é possível se afastar, editar, ser leitor do próprio texto. Mas a princípio é preciso vivenciá-lo.

Isso tudo se apresentou enquanto eu trabalhava no Diante dos meus olhos. Aprendi enquanto escrevia, estudava, analisava meu próprio processo. Tive dez anos à disposição. A história chegou primeiro, é a fonte a partir da qual pude pensar criticamente estas ideias que compartilho agora. Eu disse lá no início que, com o tempo, aprendi a ler o meu próprio livro. Posso dizer que ele também me ensinou a escrevê-lo.

Gostou? O romance Diante dos meus olhos está à venda no site da editora Reformatório e em diversas livrarias físicas ou digitais.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

LANÇAMENTO DO LIVRO "DIANTE DOS MEUS OLHOS"


Meu terceiro livro vem aí! Será lançado em 16 de outubro na biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, pertinho dos metrôs República e Anhangabaú.

O evento terá uma roda de conversa e sessão de autógrafos. A entrada é gratuita, aberta ao público, basta chegar. Quero ver todo mundo lá!

O romance recebeu Menção Honrosa no Programa Nascente USP 2015 e no Prêmio Sesc de Literatura 2016. Foi selecionado no 2º Edital de Publicação de Livros da Cidade de SP e publicado pela Editora Reformatório.

Criei um evento de Facebook para manter você atualizado. Confirme sua presença!

terça-feira, 20 de agosto de 2019

DIANTE DA IMAGEM

Faz um ano que publiquei o livro Testemunho ocular, formado por contos e dois poemas, além de alguns experimentos em páginas pretas que chamo de “ponto cego”. Selecionar os textos não foi difícil; desafio foi criar a capa, o que me fez quebrar a cabeça junto com o editor Christian Piana ao longo de mais ou menos vinte tentativas. Desde o início insisti que fossem urubus, e sem dúvida existem imagens tenebrosas deles, que chocariam o leitor potencial durante seu passeio entre as prateleiras da livraria. Além da referência direta ao conto Rapinagem, existe em todo o livro um sentimento de espreita, portanto a ideia viria a calhar. Enquanto nos convencíamos disso, experimentamos alternativas aos bichos. Nenhuma delas parecia tão pertinente. Por fim, acabamos com duas fotografias possíveis: a que foi escolhida e uma bem mais chamativa, que escancarava o que as aves têm de mais repugnante, mostrando um bando delas empoleirado numa árvore caquética. Esta renderia uma capa impactante, sem dúvida. Ainda assim fiquei com a outra, sugestiva em vez de chamativa, pois só então compreendi sua razão de ser: as histórias do livro compartilham um ponto comum, que é uma espécie de invisibilidade capaz de produzir tipos de perturbação. Pode ser um mistério, uma ocultação, um não dito. Para acompanhá-lo, a imagem da capa não poderia ser evidente, quer dizer, não poderia explicitar os urubus. Por isso escolhi aquela em que as aves aparecem ao longe, parecendo até passarinhos quaisquer ao leitor desatento. Na capa do Testemunho ocular, os urubus voam em círculos, porém não sabemos o que observam. Quem sabe a nós mesmos?


Essa relação da imagem com a literatura rende inúmeros caminhos de discussão, que vão muito além das capas dos livros. Nas histórias em quadrinhos, por exemplo, quase sempre texto e desenhos se complementam ao desenrolarem a narrativa. Não é necessário dizer que a roupa do Super-Homem é azul e vermelha, pois nós a vemos, mas os balões apresentam diálogos porque seria um tanto limitante – ou demasiado complexo – resolvê-los somente com desenhos.

Dia desses, durante uma oficina de escrita criativa, conversávamos sobre o impacto que uma imagem tem sobre o texto, no caso de livros adaptados para o cinema. Não à toa, sempre há leitor que se decepcione: enquanto o livro dá sugestões para que cada pessoa imagine os personagens conforme quiser, o cinema os apresenta de forma definitiva. Um verdadeiro paradoxo: o livro oferece a possibilidade de um imaginário prolífico, já o cinema, que detém o poder da imagem, reduz a imaginação a uma solução específica de ator, figurino, maquiagem etc. Depois de ver o filme, é difícil imaginar o personagem com rosto e trejeitos diferentes daqueles do ator que o interpretou. Em outras palavras, o predomínio da imagem decorre num achatamento do imaginário, ao menos no que diz respeito a esse tipo de caracterização. Não é o caso sempre, e com certeza há cineastas capazes de manter suas imagens abertas a muitos caminhos interpretativos, mas parte considerável dos filmes de grande circulação procura ser o mais explícita possível, sem preocupação com violentarem os olhos do espectador. Com isso, não me refiro a cenas de agressão ou de sexo – não se trata de uma questão moral –; preocupa-me mais a reiteração de clichês, essas violências menores que ferem profundamente a nossa subjetividade, como o soldado norte-americano, seja do exército ou sobre-humano, a salvar a população indefesa contra a ameaça estrangeira, para citar um exemplo banal entre tantos outros possíveis.

É também nesse sentido que a imagem sugestiva oferece um convite à imaginação, enquanto a evidente encerra toda uma potência de significados, avançando contra seu interlocutor, colonizando seu olhar, dominando e determinando suas capacidades sensíveis. São pontos pacíficos a exercerem um autoritarismo sobre o assunto ou o objeto. E, bem sabemos, de todo autoritarismo advém uma pobreza de relação com o outro, ou até mesmo um veto à experiência de alteridade.

Como é próprio das artes visuais subverter sentidos dados de antemão, levantando-se contra a domesticação do olhar, costumo perguntar aos artistas que entrevisto: como produzir imagens poéticas na atualidade, quando há um predomínio do imagético publicitário e dos clichês autobiográficos nas redes sociais, os quais reforçam uma lógica perversa na relação com a sensibilidade e com a subjetividade contemporâneas?

No livro Diante da imagem, o historiador da arte Georges Didi-Huberman explica que “se quisermos abrir a ‘caixa da representação’, devemos praticar nela uma dupla rachadura ao meio: rachar ao meio a simples noção de imagem e rachar ao meio a noção simples de lógica”. Daí ele propor a imagem poética como rasgadura, capaz de abrir uma fenda nos paradigmas visuais.

De volta à literatura de ficção, encontramos diversos casos de escritores que agregaram imagens a seus textos. Uma linha criativa que pode ser traçada desde os surrealistas Louis Aragon e André Breton, em cujos livros O camponês de Paris, de 1926, e Nadja, de 1928, respectivamente, há anúncios de jornal, fotografias, desenhos etc. Tal linha faz diversos desvios ao longo de um século, passando pelos livros de W. G. Sebald, por exemplo, até chegar aos mais recentes, como o romance Opisanie swiata, da nossa conterrânea Veronica Stigger. Diferentemente da ilustração, que pretende iluminar o texto, as imagens mais interessantes apresentadas por esses autores são aquelas que contrastam com ele, produzindo ruídos ou tensionamentos. Pois foi mote dos próprios surrealistas criar condições para estranhar o que se costuma ter como familiar.

Em outubro próximo, publicarei o romance Bem diante dos meus olhos, que retoma algumas questões do Testemunho ocular sob outras perspectivas. A capa ainda é surpresa e vem dando o que pensar. O livro conta a história de uma viagem em que pai e filho se perdem numa antiga vila onde é difícil acreditar até mesmo no que os olhos veem nitidamente. Essa problemática que atravessa os campos das artes visuais e da literatura me interessa de maneira especial. Quem sabe não retomamos o assunto em breve?

domingo, 18 de agosto de 2019

UM ANO DE TESTEMUNHO OCULAR


Hoje faz um ano que publiquei o Testemunho ocular, livro que me trouxe novos amigos, abriu portas no mercado editorial e me encorajou a oferecer oficinas de escrita, dialogar com outros autores por meio de resenhas críticas e escrever mais. De certo modo, foi o livro que me ofereceu um lugar no universo da literatura.

 
O lançamento foi um momento de muita alegria ao lado de amigos e familiares, além dos outros três autores selecionados comigo no concurso da editora Lamparina Luminosa. Algumas fotos do dia podem ser vistas clicando aqui.

Só tenho a agradecer ao carinho de todos que participaram desse processo, em especial a Christian Piana, Michele Navarro, Ana Rosa Carrara e Lolita Campani Beretta, que trabalharam diretamente na edição e fizeram com que meu livro ficasse ainda mais especial.

Os exemplares continuam à venda no site da editora, basta clicar aqui e encomendar o seu: Testemunho ocular 

Em breve, publicarei aqui no blog uma curiosidade sobre o processo de criação da capa do livro. E em outubro, meu primeiro romance, intitulado Bem diante dos meus olhos, será lançado também numa noite especial. Todos estão convidados. Aguarde as novidades!

quarta-feira, 29 de maio de 2019

POTÊNCIAS DO COLETIVO

Tenho o privilégio de compor dois grupos diferentes entre si e com muitas qualidades em comum. A principal delas talvez seja a maneira como se organizam, conforme a disponibilidade de cada pessoa em cada momento e em cada projeto. Refiro-me ao coletivo de criação literária Discórdia e ao GEPPS – Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível.

7.000 carvalhos (1982), de Joseph Beuys

O primeiro se formou ao término do Curso Livre de Preparação do Escritor, oferecido pela Casa das Rosas, em São Paulo. Após quase um ano se encontrando duas vezes por semana, parte da turma decidiu que não bastava; criamos então um grupo de trabalho movido pela amizade, colaboração e desejo comum. Adotamos o nome Discórdia, que diz muito sobre o funcionamento do coletivo: trata-se de um espaço em que o consenso interessa bem menos do que o dissenso, ou seja, somos unidos pelas diferenças. Pois são elas que impulsionam o motor da criatividade e possibilitam realizar ações tão variadas.

O coletivo Discórdia me trouxe a oportunidade de participar de feiras de literatura; organizar saraus e lançamentos de livros; criar publicações conjuntas; explorar o universo das produções independentes; ler, comentar e acompanhar passo a passo os projetos dos colegas; ter meus textos criticados por eles; conhecer pessoas e lugares; ministrar oficinas; divulgar ideias; administrar redes sociais e compartilhar opiniões, sonhos e risadas.

Nossos interesses são vários: zines, cartuns, humor, poesia, ficção científica, ensaios, prosas de diferentes gêneros e formatos, colagens, cartazes, entre outros. Essa aparente incompatibilidade poderia ser um empecilho, como acontece com associações que ainda prezam pela tediosa homogeneidade; no caso do Discórdia, é ela que torna o movimento possível.

Certa vez fomos instados a diferenciar grupo de artistas e coletivo artístico. Percebemos que coletivo, mais do que o mero trabalho em equipe, é uma forma de estar juntos, compartilhar uma comunidade, participar de algo vivo e complexo, que é o encontro com o outro. É generosidade, abertura, interesse. A partir da nossa experiência pudemos afirmar que o coletivo não é um agrupamento de autores, mas um espaço comum em que as individualidades se dissolvem e se confundem para que alguma criação possa acontecer. O coletivo Discórdia é uma oportunidade para discordar e permanecer unidos, tensionar limites estético-políticos e resistir às opressões, produzindo por meio da diversidade que, no fim das contas, é feita das potências de cada integrante dispostas numa relação ética.

O GEPPS, por sua vez, nasceu como um grupo de orientação de pós-graduação que num determinado momento se emancipou. É composto por pesquisadores com formações diversas: artistas, escritores, terapeutas ocupacionais, acompanhantes terapêuticos, produtores culturais e historiadores, teóricos e críticos de arte decididos a elaborar outras formas de relação, atuação e funcionamento. Somos atravessados por inquietudes que apontam para temas como: poéticas e políticas do sensível; experiências na interface entre arte e produção da saúde; aspectos da experiência no contemporâneo; teoria, curadoria e crítica de arte; processos escriturais; ética, estética e política; clínica; produção de subjetividade; linguagens e poéticas artísticas; territórios; memórias, histórias e narrativas; formas de emancipação.

Diante de políticas que avançam sob a racionalidade neoliberal, em que territórios – geográficos, científicos, subjetivos, entre tantos outros – são cada vez mais disputados, prevalecendo a lógica da posse, da acumulação e da concorrência generalizada, propomos inventar espaços para experimentar modos de pesquisa e de produção de conhecimento pautados em outras perspectivas. Criações singulares que emergem de uma lógica transdisciplinar, em que as composições de campos distintos parecem mais urgentes do que os especialismos que pretendem salvaguardar territórios do saber e da ciência. Partilhas tecidas como artifícios de insurgência, convocando modos de pensar e de se posicionar criticamente diante de questões atuais.

No GEPPS também compartilhamos sonhos, e a potência de sonhar coletivamente é tão forte que quase podemos agarrá-los com as mãos. Ao longo dos anos aprendemos a produzir juntos, desfazendo a autoria individualista; abandonamos certezas; criamos textos, cursos e projetos de intervenção; colaboramos com mobilizações políticas em defesa da universidade; organizamos eventos; sustentamos grupos de estudo; encubamos desejos ainda informes; negociamos responsabilidades e apoiamos uns aos outros em nossos projetos pessoais.

Compor grupos assim é um privilégio raro, ainda mais por eles tentarem escapar de uma tendência à institucionalização. Esse desvio não é simples, assim como não é simples sustentar lugares de troca e de criação que não sejam baseados na obrigação, na subordinação ou na falta de opção. Lugares horizontalizados, que não dependam da imposição hierárquica para operarem e onde cada integrante tenha o espaço que deseja e do qual pode cuidar. Onde a força do trabalho coletivo ganhe corpo, pautada no respeito e no propósito de estar junto, fazer junto, aprender com o outro e colaborar com todos sem intenções mesquinhas.

Uma aproximação com tal qualidade entre pessoas é, por si só, uma forma de recusa às opressões que infelizmente modelam grande parte das relações sociais, organizacionais, empresariais etc. É também uma forma de realizar o que, sozinho, seria impossível.

Cada vez mais precisamos abrir os acontecimentos e observá-los sob diferentes escalas e ângulos para combater a naturalização das máquinas de governança que achatam formas e homogeneízam modos de fazer, de pensar, de dizer e de se movimentar, aprisionando a vida.

Com a cultura e a educação brasileiras ameaçadas, a potência desses coletivos constitui um lugar de proteção, uma oportunidade de partilha de certo sensível fragilizado diante da racionalidade dominante e, sem dúvida, uma preciosa forma de sobrevivência.

terça-feira, 23 de abril de 2019

E-BOOK GRATUITO SÓ ATÉ DOMINGO

Para celebrar o Dia Mundial do Livro, a versão digital da minha primeira publicação está disponível para download gratuito na Amazon até domingo (28 de abril). É só clicar e começar a ler no computador, celular ou Kindle: Por que a Lua brilha

Baixe o seu agora mesmo e divulgue para amigos e inimigos. ;)

Veja o que já se disse sobre o meu livro Por que a Lua brilha:

O conto é uma ficção disfarçada de ensaio científico. Em que o autor investiga a relação entre os seres humanos e os fenômenos luminosos da Lua, com intenção de avaliar as implicações culturais do projeto de Lei que visa apagá-la.

Em Por que a Lua brilha, Eduardo A. A. Almeida inventou uma realidade – não tão alternativa assim – em que os homens exploram a vida de outros seres para o próprio bem.

Apesar do caráter fantástico, o livro possui diversas referências à política e a instituições científicas que legitimaram ou ainda legitimam comportamentos autoritários, opressivos e fascistas.

Com o subterfúgio da forma ensaística, o escritor coloca em questão o poder que a própria linguagem tem de produzir verdades, por mais absurdas que possam parecer. Denuncia também o argumento intelectual científico que influencia o comportamento das pessoas com o pretexto de oferecer informações verídicas ou de formar opiniões incontestáveis.

Sua distopia parece cada vez mais factível de se realizar no mundo atual, em que se banalizam os métodos sórdidos do Neoliberalismo, o terrorismo, os levantes militares, a perseguição e a cegueira religiosas, o racismo, o machismo, o ódio pelo diferente, entre outras violências enraizadas, incorporadas, instituídas e legitimadas.

Trata-se de um livro provocante, que nos faz questionar as nossas próprias maneiras de pensar, fazer e dizer a realidade contemporânea.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

PRELIMINARES DEMAIS

Resenha do livro:  Chester Brown. Pagando por sexo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. 

Com forte apelo autobiográfico, o quadrinista canadense Chester Brown narra nesse livro as aventuras sexuais do personagem Chester, que decide conhecer o mundo da prostituição após o término de um namoro e a subsequente desilusão amorosa. São memórias em formato de história em quadrinhos, segundo o autor; registro de todas as vezes em que pagou por sexo até o final de 2003.

De fato, a HQ quase é somente uma listagem das mulheres que o protagonista visitou ao longo dos anos. Não se aprofunda na intimidade e, pior, mantém uma distância própria da relação entre patrão e empregado. Por outro lado ele debate com seus amigos, durante várias páginas, questões morais, legais e curiosidades sobre o tema.

O autor se justifica logo no prefácio, explicando que nos encontros as prostitutas compartilharam detalhes da sua vida pessoal, os quais ele preferiu omitir para preservar a identidade delas. É uma pena, pois fazem falta; com essas histórias, e seus prováveis conflitos, o livro ganharia substância e afetividade para conquistar o leitor.

Sabemos que o nome das mulheres foi duplamente mascarado: Chester Brown inventou novos, diferentes dos reais e dos “profissionais”. Por que não utilizou o mesmo artifício para tratar suas histórias? Poderia manipulá-las, reinventá-las, trocá-las de corpo e de alma ao bel-prazer da ficção, mas ficou atado a certo compromisso com a realidade, o que não deixa de ser uma fantasia, e acabou por prejudicar a potência da obra.

(Observação: o corpo das mulheres foi retratado “com precisão”, afirma o autor. Não fosse uma constatação estranha por si só, vale lembrar que os desenhos não são nada realistas.)

Esse problema adquire outras formas ao longo do livro. É tal compromisso com a realidade que entrevejo na escolha de publicar introdução, prefácio, posfácio, vinte e três apêndices, notas e bibliografia, que somam cinquenta e cinco páginas e fazem da HQ uma espécie de estudo de caso. Os aspectos “técnicos”, por assim dizer, são explicados, argumentados e justificados em minúcias. As pesquisas preparatórias, infelizmente, têm mais espaço do que as empíricas. Os excessos são inúmeros, como, por exemplo, a nota referente ao quadro 5 da página 44, que explica: “Acredite, foi isso mesmo que eu disse”. Outras tentam remendar trechos mal resolvidos pela narrativa, como a nota ao quadro 7 da página 65: “Só para esclarecer – ela estava recusando a gorjeta, não o cachê da meia hora”. Nos apêndices encontramos até mesmo comentários de um amigo quadrinista que leu o manuscrito e quis acrescentar explicações, fazendo uma espécie de réplica.

Isso tudo, deixado de fora, não faria a menor diferença se tomássemos o livro como uma ficção, não como um ensaio a respeito da prostituição no Canadá. Sem dúvida Pagando por sexo ajuda a conhecer e problematizar o tema. E seu ponto forte é a sinceridade com que o autor empresta sua voz, nome e fisionomia a um personagem para lidar com tamanho tabu.

Por sua vez, quem espera um mergulho no submundo da prostituição se decepcionará. Chester contrata apenas os serviços de profissionais com padrão econômico razoável, como se fosse ao shopping center. Prostitutas que às vezes sequer permitem ser chamadas assim; preferem o termo “acompanhantes”, ainda que o serviço prestado dure meia ou uma hora inteira, a depender da remuneração, e sempre acarrete relação sexual.

Esse nível aburguesado resulta na aventura de um personagem homem, branco e classe média num ambiente controlado, portanto não muito aventureiro. Poderia ser radical, politicamente incorreto, comovente, asqueroso, violento, dramático etc. Mas sustenta esse lugar da crônica do sujeito ordinário que se propõe um novo hobby, ainda que não muito bem aceito pelos seus próximos nem completamente repelido por eles.

Por fim, vale a constatação de que temos um homem a refletir sobre a legalidade da prostituição, sua aceitação social, benefícios e malefícios etc. Duas mulheres têm papel de coadjuvantes na trama: a ex-namorada e uma amiga. Ambas pouco opinam; são meros ouvidos que acolhem os argumentos do protagonista e raras vezes o interpelam. As demais mulheres, apesar de numerosas, são figurantes. Esse ponto de vista pode não inviabilizar a obra, mas deve ser considerado por quem se propõe a ler.

No apêndice 23, o amigo quadrinista e personagem Seth diz que, na vida real, apelidou Chester Brown de “robô” dada a sua “ausência de emoções humanas”. Isso nos ajuda a compreender a escassez de sensibilidade do livro. A superficialidade afetiva em momento algum adquire caráter crítico, portanto não é uma estratégia estética do autor em sua abordagem; é mesmo uma limitação que compromete o resultado e mantém Pagando por sexo num lugar-comum. Para compensar a falta de afeto, o autor optou por embasar seus argumentos tanto quanto pôde em seções exaustivas, que acabam por sufocar a narrativa. Costuma-se criticar a falta de preliminares num ato sexual. No caso desta HQ, é o excesso delas, somado à frieza do texto, que prejudica o prazer da leitura.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA: INSPIRAÇÃO NAS ARTES VISUAIS

Mulher escrevendo (1934), de Pablo Picasso

Todos convidados para o curso que oferecerei no Sesc Belenzinho nos meses de março e abril.

A proposta é olhar movimentos artísticos do século XX em busca de inspiração para aperfeiçoar a escrita criativa. Venha compartilhar textos e ideias com a gente!

Mais informações no site do Sesc: Oficina de escrita criativa: inspiração nas artes visuais 

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

DICA DE LIVRO: EM CONFLITO COM A LEI

“O menino sem pai sem mãe sem tio sem tia sem irmão sem irmã com polícia com promotor com juiz” (trecho do livro Em conflito com a lei).

Li esse livro no final de 2017 e o reli em 2018, algo que faço raramente. Trata-se de um projeto literário difícil de definir, embora o leitor desavisado suponha ser apenas um apanhado de contos curtos sobre jovens infratores. Lucas Verzola os criou com base em autos processuais, conversas de oficina e textos de adolescentes em conflito com a lei. “Ainda que verossímeis, as narrativas fazem parte do universo da ficção”, adverte.

Os textos têm quase sempre um parágrafo único e apresentam cenas flagrantes, por assim dizer – um conflito, uma situação derradeira, uma ação breve capaz de marcar para sempre a vida de um personagem. Alguns são violentos, outros são delicados; a maioria é violenta e delicada ao mesmo tempo, o que põe abaixo idealizações sobre a criminalidade, a pobreza e o sistema socioeducativo, além de permitir ao leitor uma aproximação com esse universo. Tudo pela via da humanidade, que não é boa nem má; é apenas complexa demais para ser reduzida a uma classificação, um preconceito ou um clichê do gênero “mocinhos x bandidos”.

O autor usa recursos de apropriação, diálogos, formatos pouco convencionais como listas e documentos, entre outros. Mais do que esse ou aquele conto, é a consistência do projeto que sobressai. A edição cuidadosa da Reformatório contribui.

O livro nos ajuda a compreender as contradições, as linhas de força e os paradoxos do que por vezes simplesmente condenamos como “violência”. Também ajuda a perceber que os conflitos com a lei não são “problema do outro”, a serem resolvidos pelo endurecimento das regras e das punições. Trata-se de uma falta grave de todos nós.

Em conflito com a lei
Lucas Verzola
(Reformatório, 2016, 136 páginas)

Obs.: Este destaque do que li em 2018 foi escrito para compor as dicas de leitura do coletivo Discórdia, que você encontra aqui: Medium do Discórdia

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

"PROTOCOLO" GANHA MENÇÃO HONROSA NO PRÊMIO USP NASCENTE 2018


Protocolo foi a primeira peça que escrevi. Ela já tinha me dado a alegria de ser selecionado para o Núcleo de Dramaturgia do Sesi - British Council. A novidade é que também foi finalista e recebeu Menção Honrosa no prêmio Nascente USP 2018 (categoria Texto).

Pretendo revisá-la para, quem sabe, tentar uma publicação no futuro. Para mim, trata-se ainda de um texto em processo de criação. Mas você pode ler do jeito como está agora, além de conhecer os demais vencedores do prêmio, basta clicar aqui: http://prceu.usp.br/nascente/premiados-2018-texto/

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

É OFICIAL: MEU 1º ROMANCE CHEGARÁ EM 2019


Imagem de fundo: Pintura n. 125, de Felipe Góes

Contrato assinado, agora é oficial: meu romance Bem diante dos meus olhos foi selecionado no Edital de Publicação da Prefeitura de São Paulo. Sabe o que isso significa? Vem livro novo em 2019!

Versões prévias dessa obra já ganharam menções honrosas no Prêmio Nascente USP 2015 (Categoria Ficção) e Prêmio Sesc 2016 (Categoria Romance).

O que já se disse sobre o romance: “Bem Diante dos Meus Olhos é um livro que usa como tema a morte — um rapaz enterra o pai com quem pouco se relacionava e de quem pouco sabia. À medida que a narrativa evolui, cresce também o clima de estranhamento, que vai dar numa revelação encantadora” (Assis Brasil e Cintia Moscovich, jurados do Prêmio Sesc 2016).

Gostou? Mais novidades em breve. ;)

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

ACREDITAR NO LIVRO


Quando estive pela primeira vez em Buenos Aires, o número de livrarias me surpreendeu: era como se houvesse uma a cada quarteirão, mais ou menos como drogarias em São Paulo. Não eram “megastores”, pelo contrário, eram comércios pequenos, alguns com charmosas estantes de madeira pesada, outros apenas empoeirados, a venderem livros novos e usados. A língua espanhola permite o trânsito de títulos editados em países diversos. Xeretar aquelas prateleiras foi uma experiência cultural inesquecível. Diante da situação crítica que nosso mercado livreiro vive nos dias atuais, retomo a viagem de mais de uma década em busca de alguma explicação.

Não tenho dúvidas de que a tendência global às grandes redes comerciais nos levará a um buraco negro. Isso vale para o livro e para todos os demais ramos. Ao valorizarmos padronizações de marca, ficamos reféns de empresas que engolem a concorrência, dominam setores, extinguem singularidades e, em períodos de queda, fazem tudo desabar com elas.

Não tenho condição de analisar tecnicamente os pedidos de recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, ou mesmo o encerramento das atividades da multinacional Fnac. Sei lá que tipo de lambança administrativa levou cada uma delas à beira do precipício. Como ávido consumidor de livros, entretanto, tenho cá meus palpites, válidos em especial para as duas últimas: o maior erro delas foi não acreditarem no livro. E talvez tenham cobiçado mais do que o nosso potencial pode oferecer.

Se o brasileiro em geral lê pouco, isso não significa que nosso mercado editorial é enxuto. Somos mais de duzentos milhões. Se uma parcela discreta dessa população lê, ainda é um público consumidor maior do que países inteiros. O Uruguai não atinge quatro milhões de habitantes, e eu me lembro bem das livrarias de Montevidéu. Eram numerosas e pequenas como as argentinas. Se o Chile tem mais pessoas, proporcionalmente deve ter mais livrarias também.

Trabalhei durante dez anos no bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde havia uma Fnac enorme. O setor de livros tomava metade do prédio. Eu passava meu horário de almoço lá. Encontrei mil maravilhas entre as lombadas à mostra. Com o tempo, porém, os best sellers ocasionais começaram a predominar, até que eles próprios perderam espaço para videogames, camisetas, bonecos, cafeteiras, computadores e assim por diante. Meus desejos de leitor eram cada vez menos contemplados. Quando o mercado editorial encolheu, a Fnac o abandonou sem pestanejar. E eu a abandonei em seguida.

O leitor fiel, que compra livros como arroz e feijão, aos poucos deixou de frequentar as livrarias que perderam a fé nos seus principais produtos. Sempre me pareceu perigoso preferir pilhas de livros do youtuber da vez à obra completa de José Saramago, para citar um exemplo entre inúmeros outros. Porque o famosinho só pagará as contas deste mês. Quem pagará as do mês seguinte? Perto da Fnac havia a Cultura do Shopping Villa Lobos. Uma loja especialíssima, com corredores labirínticos onde adorava me perder. Lembro-me de buscar uma nova tradução de Foucault e o vendedor não apenas saber qual era, mas já a tinha lido e podia comentá-la – enquanto numa Saraiva me fariam careta e digitariam no terminal de busca: fucô. O atendimento da Cultura também era capaz de acolher e incentivar leitores principiantes, indo além de somente efetuar vendas. Frequentar livraria desse tipo era uma experiência estética por si só.

As lojas que apostaram nos leitores e nos livros, e que talvez tenham evitado extravagâncias capitalísticas, mantiveram a saúde em dia. A carioca Travessa, no auge da crise, abre loja em São Paulo e em Lisboa. A Martins Fontes continua encantadora, inclusive com suas programações culturais. Livrarias da Vila idem. Sabe o que elas vendem? Livros. De todos os tipos e a leitores de gosto variado.

Preciso citar também as livrarias pequenas que ganharam espaço com produtos e programação cultural de qualidade, como lançamentos, debates, oficinas, grupos de leitura etc. Tais como Tapera Taperá, Zaccara, Banca Tatuí, LopLop, entre muitas outras.

Sou um autor iniciante, com apenas dois livros publicados por editoras de pequeno porte. Um terceiro título sairá no próximo ano. Dada essa perspectiva, as contradições do mercado não me parecem tão pessimistas. Visitei uma Festa de Livros da USP lotada, cada vez maior e melhor organizada. A Miolo(s), na Biblioteca Mário de Andrade, foi a mesma coisa. As feiras estão com tudo. Diversos amigos tiveram livros publicados em 2018. As editoras independentes, apesar do adjetivo questionável, conquistaram prêmios, espaços nas lojas e interesse dos leitores. Isso porque acreditaram em escritores, no público e nos livros, fazendo corpo para segurar as quedas da economia.

Como bem disse Luiz Schwarcz em seu apelo de amor aos livros, precisamos incentivar o editor pequeno e suas publicações minoritárias, não só em número de exemplares, mas nas causas que defendem. O livro ainda é um ponto de resistência em que a diferença pode se apoiar. Mas para isso precisamos comprá-los, lê-los e valorizá-los.

A queda de 40% na arrecadação desde 2014 mostrou que as editoras não podem se iludir com os incentivos do governo, que ora aquecem o mercado, ora deixam todos à deriva. Se a Amazon espreme as margens de lucro dos fornecedores e recentemente começou a editar por conta própria, não é sem motivo que insiste no consumidor brasileiro. Por outro lado, existe uma experiência de compra em livraria que, ao menos por enquanto, a gigante norte-americana está longe de proporcionar.

De minha parte, suponho que o caminho está esboçado. É preciso acreditar nos livros, investir na qualidade da experiência com eles e na formação de público leitor. É preciso acreditar nos escritores, em suas obras e em seus admiradores. Talvez a crise atual sirva para mostrar que nosso mercado editorial não precisa crescer como as indústrias farmacêuticas; talvez sejam as doses homeopáticas que manterão a saúde livreira por aqui. Ao menos é assim que os pequenos editores vêm remediando a crise, com perseverança, página por página.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

ENTREVISTA: COMO EU ESCREVO

José Nunes tem um projeto incrível chamado Como Eu Escrevo, que apresenta o processo criativo de escritores, acadêmicos e juristas (Juristas? José cursa Doutorado em Direito na UnB. Ah!).

O arquivo está à disposição e já tem centenas de entrevistas. O propósito é oferecer inspiração às pessoas com dificuldade para escrever. Aplausos para José Nunes. Compartilhar ideias é mesmo uma excelente maneira de enfrentar os desafios da escrita.

Tive o prazer de responder às perguntas do projeto. A entrevista abaixo foi publicada em comoeuescrevo.com/eduardo-a-a-almeida


Se você ainda não leu meu livro mais recente, encomende seu exemplar aqui: Testemunho Ocular. Ou entre em contato comigo e receba o livro com dedicatória: edualmeida@artefazparte.com

 
1. Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Quem me desperta é minha filha de 8 meses, quase sempre entre 6h e 6h30. Às vezes mais cedo. A essa hora, minha esposa já saiu para trabalhar. Lavo a louça da noite anterior, troco fralda, dou mamadeira e tomo café com a nenê no colo, tentando fazendo com que ela pare de puxar a toalha da mesa e jogar tudo no chão. Brincamos até às 9h, quando a deixo no berçário. Só então a escrita tem início.

2. Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Sempre escrevi melhor de manhã, quando a mente ainda está fresca. É meu período criativo favorito. Também gosto de ler e estudar nesse horário. Sinto que, depois do almoço, a cabeça vai dormir e deixa o restante corpo a fazer trabalhos mais mecânicos como pagar contas, responder emails, revisar textos. À noite estou exausto, raras vezes consigo botar uma boa frase em pé.

Não tenho um ritual propriamente dito, mas gosto de abrir espaço na mesa de trabalho, que quase sempre está atulhada de livros e anotações, esqueço o celular em algum canto da casa e tento não ligar o computador. Gosto de silêncio e caneta-tinteiro. São poucas as ocasiões em que consigo realizar isso tudo porque sempre existe alguma tarefa banal a convocar minha atenção e a abalar o mundinho ideal. Mesmo longe o telefone toca. Chega um email urgente. Tenho que resolver qualquer coisa na rua. Além disso, estão subindo um prédio atrás do outro em meu bairro, e já são anos que passo as manhãs a ouvir serras elétricas, martelos, bate-estacas, entre outros prenúncios do caos.

3. Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Escrevo quando é possível e quase sempre incentivado pelo prazo que se esgota. São os prazos que ditam as prioridades. Preciso entregar a coluna do jornal, depois tenho que ler o livro para resenhar, não posso esquecer de revisar o artigo acadêmico, e então, ou antes, ou assim que puder, preciso desenvolver os itens deste e daquele projeto, preparar a aula, enxugar a palestra, enviar o orçamento.

A literatura sobrevive em meio a isso tudo porque é mais forte, atravessa as ordenações, me arranca da cadeira ou da cama, nas madrugadas, e me obriga a desenhar palavras no papel. Minha meta diária é terminar alguma coisa, seja o que for, contanto que termine e abra espaço para algo mais. Não é comum eu escrever à toa. Mas quando tenho um projeto na cabeça, ele volta e meia me requer, sugere ideias, atira a agenda longe para ocupar o tempo possível e, com sorte, o impossível também.

4. Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Costumo acumular ideias, interesses, imagens. Então sento e escrevo de uma só vez. Acontece de nascer um texto que escapou de todas as anotações, como se tivesse se contorcido por entre elas. Outras vezes o texto é uma costura de notas que, a princípio, não tinham nada em comum. Às vezes a pesquisa leva anos, outras vezes o texto aparece sem qualquer pesquisa que esteja diretamente relacionada com ele. Mas é claro que toda obra se realiza a partir dos materiais reunidos ao longo da vida, tivessem ou não um propósito específico. Isso varia conforme o tipo de texto. Ensaios costumam exigir muitas notas, leituras, diálogos. Textos ficcionais, por outro lado, saem à revelia do planejamento. Não é difícil escrever; difícil é arranjar as condições para que a escrita se realize.

5. Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

A escrita só destrava quando escrevo. Antes de começar, o texto parece impossível. Entretanto uma palavra solicita outra, um sentido sugere outro, e assim o processo anda. Às vezes desanda e o texto nasce torto, requer muita plástica ou a lixeira, a depender de quão grave é seu estado. Não costumo forçar demais a barra. Se um texto não quer nascer, gesto um pouco mais, escrevo outro para compensar. Quando vier, será saudável.

As expectativas, por sua vez, podem ser minhas ou dos outros. Dou atenção às expectativas em textos de não ficção, cuja ideia a ser transmitida deve ser mais precisa. No caso de textos artísticos, a expectativa é tanto uma ilusão quanto uma violência. Ilusão porque não se pode prever a reação do leitor. Violência porque, quando se acredita em tal previsão, o escritor está determinando um perfil, um público-alvo, um preconceito. O leitor não deve ser reduzido nem menosprezado assim. Textos que preveem seus receptores são publicitários.

Um projeto precisa se manter vivo durante sua realização, tenha uma página ou cinco mil. Sua longevidade não tem a ver com longitude. Se o projeto estiver vivo, consigo trabalhar nele quanto tempo for preciso. Se morreu, escrever uma só linha será doloroso e, no fim das contas, uma falácia. O melhor teste de vitalidade ainda é a gaveta: pego o texto inconcluso e o guardo. Se volta e meia a gaveta se mexer, gritar, liberar algum feromônio, é meu dever retomá-lo.

6. Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Uma coluna de jornal, por exemplo, é reescrita por volta de três vezes antes de ser publicada. Adoro mostrar rascunhos ou ao menos contar a ideia a alguém para saber sua opinião, embora nem sempre consiga, por razões variadas.

Textos acadêmicos são reescritos algumas vezes também, mas nunca estão de fato finalizados porque as ideias vão se transformando, novas associações são tecidas, novas leituras levam a diferentes concepções etc.

Contos, romances, poesias são reescritos muitas vezes, lidos por amigos, compartilhados aos pedaços. Meu livro Testemunho Ocular foi lido por uma dezena de cúmplices antes de ser publicado, em especial os escritores do coletivo Discórdia, do qual faço parte. Eles comentaram os textos, sugeriram mudanças, compartilharam impressões de leitura. Alguns contos do livro vinham sendo reescritos há anos, outros eram recentes.

Meu primeiro romance, que deve ser publicado em 2019, teve sua versão inicial escrita dez anos atrás, e desde então foi reescrito uma porção de vezes. Já foi lido por vários amigos, algumas versões foram inclusive premiadas, mas só agora estou prosseguindo com a publicação.

A vontade de publicar logo e me livrar do texto é imensa. Ainda bem que outras tarefas me ajudam a controlá-la. Enquanto isso o livro fica se rebelando dentro da gaveta.

7. Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Sempre gostei de escrever as primeiras versões à mão e só depois digitá-las. O manuscrito é mais lento, e esse tempo colabora com o pensamento. Sem contar que é muito mais fácil desenhar setas no papel, rabiscar, tracejar etc. É uma artesania que depois ganha outros contornos quando passa ao computador. Essa fase seguinte privilegia o ritmo, a técnica, a revisão.

Neste ano de 2018 estou integrando o Núcleo de Dramaturgia do SESI - British Council. Entrei ali com a proposta de experimentar modos diferentes de fazer. Tenho escrito as peças diretamente no computador. É um processo estranho, com prós e contras que ainda estou avaliando. Tem sido uma boa oportunidade para tentar e errar.

8. De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

As ideias vêm do mundo. Elas ganham forma escrita e recaem no mundo. É ingenuidade pensar que têm origem na “profundidade do ser”, no “interior obscuro”, nesses lugares de teor expressionista. O mundo nos atravessa e, com sorte, conseguimos sustentar uma ideia ou outra, quase como uma peneira a sustentar uma pedra maior, que não poderia atravessá-la sem provocar um rombo.

Os hábitos que cultivo são todos relacionados a manter essa abertura na relação com o outro. Leio sobre assuntos variados, interesso-me pelas demais artes, prefiro caminhar entre as pessoas a dirigir minha bolha espacial. Gosto de ouvir histórias.

9. O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Com muito esforço fui desconstruindo algumas idealizações e apurando o senso crítico em relação às criações. Aprendi técnicas de escrever, revisar e apreciar. Mas principalmente quis conhecer melhor as potências estéticas e políticas das artes, suas relações com as pessoas, as organizações sociais, os regimes de ver, pensar e dizer. Ainda há tanto para aprender!

Se pudesse voltar àqueles escritos antigos, eu diria para não deixarem a satisfação durar tempo demais. É vital que um texto satisfaça seu autor porque ninguém consegue sobreviver em constante frustração. Mas a satisfação precisa ruir para assinalar um movimento. Não se trata de evolução, mas de pulsação; não se trata de fazer melhor numa escala qualitativa trazida de fora, mas de fazer de um jeito que renove o próprio fôlego, os pensamentos, os interesses. Se um texto antigo ainda me satisfaz, alguma coisa em mim não saiu do lugar desde que o escrevi, e isso é perigoso.

10. Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Difícil identificar quais projetos ainda quero fazer, mas de alguma maneira eles já foram iniciados. A pesquisa e a criação precedem o projeto, que vem apenas dar forma a elas.

Nos próximos anos pretendo lançar um estudo sobre a Estruturação do Self, trabalho derradeiro da artista Lygia Clark, que comecei a pesquisar durante o mestrado. É uma proposta instigante que inventou um lugar entre a arte e a clínica, e que infelizmente é pouco conhecida. Passados vários anos das minhas primeiras investigações, sua obra ainda pulsa.

Eu gostaria de ler um livro que provocasse em mim um corte radical, como os cortes que Lucio Fontana fazia em suas telas. Será que ainda não existe? Deve estar por aí, eu é que preciso encontrá-lo.