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quarta-feira, 7 de março de 2018

O QUE NÃO É INFERNO

Hoje não me parece absurdo afirmar que todo entendimento sobre o mundo se localiza em algum ponto entre o que se vê e o que se diz a respeito do visível. Incluem-se nesse vacúolo de sentidos também os dizeres secundários: discursos repetidos, distorcidos e retorcidos. Como é que vemos e como produzimos narrativas? A questão me interessa há muito, e busco respostas pelas artes visuais, que operam e por vezes desarticulam a educação do olhar. Faz menos tempo que a questão se desdobrou em outra: o que permanece invisível, indizível e impensável? Como é que isso toma forma em nossas configurações de mundo?


Li As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, treze anos atrás. O livro me deixou uma forte marca, embora eu não lembrasse o motivo exato. Retomei-o agora por causa do trabalho. Na época me faltava maturidade para dar voz às questões instigadas pelo autor; nas anotações espalhadas pelas páginas descubro tentativas de diálogo – intuições que, mais tarde, tornaram-se interesses efetivos. Seriam problemas prontos, encubados, ou seriam meu primeiro contato com problemas que se apuraram depois, ganharam corpo e se reinventaram? Talvez um pouco de cada?

Calvino revive o veneziano Marco Polo na corte de Kublai Khan, imperador dos tártaros. Enviado em missões diplomáticas, o viajante retorna com relatos sobre as cidades visitadas, que o Khan somente conhece por meio de seus olhos e suas palavras; a distância é condição daquele governo. Ocorre que Marco Polo é diferente dos demais diplomatas: ele vê nas cidades o que passa despercebido pela maioria, seu olhar é menos panorâmico e mais penetrante. Não bastasse isso, seus relatos são também singulares; Polo evita narrar as formas gerais e os aspectos técnicos; com lirismo e significados abertos, prefere a experiência sensível.

Ele próprio explica a diferença num dos primeiros capítulos, quando afirma que se pode falar de Doroteia pela perspectiva das suas muralhas, torres e pontes levadiças, seus canais, chaminés e casas comerciantes. Ou pode-se contar a história do cameleiro que, muito jovem, chegou a Doroteia e se encantou de imediato com os clarins, as mulheres e as cores do mercado, onde não faltava nenhum dos bens que esperava da vida. Com os anos, porém, esse homem sentiu saudade dos desertos, e percebeu que havia encantos neles, exibidos com tanta clareza que ele não podia distingui-los.

Voltemos aos nossos domínios. Onde o desejo de ver com tal frescor soa ingênuo; aqui os acontecimentos chegam por demais mediados, chegam como palavras de ordem a serem tomadas por verdades. A experiência se dilui na imensa quantia de informações, além de manter uma relação sórdida com o consumismo.

Também seria ingênuo querer fugir dessa apropriação da experiência para narrá-la com palavras próprias. Não existe maneira individual de narrar, assim como é impossível olhar somente com olhos privados. Isso porque o olhar e o dizer já estão impregnados pela cultura geral, ou seja, por maneiras, crenças e formas prontas que predominam. Mais do que nunca inexiste a folha em branco, ela se apresenta repleta de pressuposições das quais é impossível escapar por completo. Mesmo a liberdade de pensamento já é uma ideia construída previamente e assim, por paradoxal que seja, configura um aprisionamento, uma ilusão, uma promessa falsa. Marco Polo conseguiria exercer sua singularidade nos tempos atuais?

Poderíamos concluir que nada resta, senão seguir o traçado do destino. Não é preciso sermos tão dogmáticos. Para mim, restam como alternativas os desvios da arte, que podem ser formas de sobrevivência. Eles são a recusa das palavras de ordem, a profanação do inquestionável, a felicidade clandestina. Restam as cidades invisíveis que não querem mostrar nenhuma verdade; elas nos convocam a imaginar possibilidades. Resta a força insurgente da poesia, que fratura o estabelecido e levanta condições outras, e esse é o ponto em que oferece chance de resistir à morte, como Gilles Deleuze pensava.

O livro de Calvino continua a instigar minhas pesquisas, gestos e criações. Foi um prazer revisitá-lo. Ele denuncia a banalidade, o risco e a violência dos lugares-comuns que aceitamos prontamente e reproduzimos no dia a dia por preguiça, desatenção ou ignorância. Denuncia o perigo de consumir as narrativas parciais que nos são ofertadas como certas, por vezes sedutoras, agradáveis, até mesmo desejáveis.

Ao mesmo tempo, fica sugerida uma esperança, que requer ver como quase ninguém vê, dizer o que poucos têm coragem de dizer, pensar o que a maioria não ousa. Isso porque, quase sempre, somos como o cameleiro no deserto: estamos por demais envolvidos com a aridez à nossa volta para perceber que, mesmo ali, há vida. E que essa vida peculiar, por vezes tão singela, não se encontra entre a abundância encantadora do mercado estrangeiro.

O final do livro é arrebatador. Nas palavras de Marco Polo: “o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

A CADA MANHÃ DE MINHA VIDA

O dia 23 de janeiro era como outro qualquer até este ano de 2018, quando nasceu minha pequena Lis. Agora a data será sempre especial.

Sinto-me privilegiado por ser pai de menina. Durante a gestação, várias vezes percebi olhares desapontados, vindos de homens e mulheres, como se a expectativa fosse um bebê macho. Porque homem quer menino para fazer companhia, porque menino dá menos custo, porque menino carrega o nome da família. Nunca entendi essas crenças. Eu sempre quis uma menina.

Algumas amigas entendiam perfeitamente. Conheciam a origem do meu desejo: as meninas têm um projeto ambicioso pela frente, que é tornar o mundo mais feminino. É uma missão urgente, da qual precisamos muito. Não depende só delas, mas é nelas que vejo a força para realizar o devir feminino da humanidade.

Numa entrevista a Jonathan Cott parcialmente publicada pela revista Rolling Stone em 1979 e depois transformada em livro, Susan Sontag disse acreditar que o mundo seria mais atraente “se os homens fossem mais femininos, e as mulheres mais masculinas”. Isso tem menos a ver com sexualidade e mais com forma-de-vida ou, ainda, com ser no mundo. Feminilidade e masculinidade são como intensidades manifestas tanto nos homens quanto nas mulheres. Infelizmente a masculinidade anda forte demais em ambos.

Eu concordo com Sontag, em especial no que diz respeito ao mundo ser mais feminino. Porque a subjetividade dominante é machista, lógica, belicosa. Ela nos faz acreditar que é melhor ser menino. Faz, inclusive, as meninas acreditarem nessa bobagem. Ao ponto em que, de fato, passa a ser melhor por ser mais fácil.

Movimentos feministas se empenham há pelo menos um século para virar o jogo. Agem de variadas maneiras, as quais aprovamos ou reprovamos, e por aí o debate se estenderia ao longo de muitas páginas. Eu tampouco me sinto o suficiente apropriado do assunto, prefiro deixá-lo a quem sabe dizer melhor. Por ora, posso apenas voltar à minha Lis e fantasiar que desenvolva certa sabedoria feminina, sensível, mágica, intuitiva, que tanta falta nos faz na dureza do hoje.

Por sua vez, nenhum relato meu daria conta do poder da mulher gestante, que tanto me surpreendeu. Pena que a sociedade não se organizou para acolher, respeitar e dar vazão a ele. Talvez o maior mistério da vida esteja se realizando agora mesmo, perto de você, e poucas pessoas se solidarizam, seja para dar lugar no ônibus, seja para lutar por melhores condições trabalhistas, seja para admirar.

A distinção fica evidente no parto, quando a mulher se contrai em fé e dor para o bebê vir à luz, enquanto o homem ao lado não pode fazer nada, exceto estar junto. A sensação de impotência sobressai a toda macheza da cultura. Eu estava ali e nada dependia de mim, não havia nada a fazer. O momento era todo dela.

Penso se não é também por isso que a cesariana ganhou tanto espaço, ao ponto de o Brasil ser uma aberração frente a demais países – porque ela atenua esse poder que é só da mulher, transformando o mito da criação num procedimento cirúrgico automatizado. Claro que a questão é mais complexa. Existe ainda a idealização do “mundinho feliz”, em que é proibido sentir dor, em que o parto requer maquiagem. Existe a conveniência dos obstetras que agendam nascimentos como horários de cabeleireiro. Existem as extorsões que Ministério da Saúde e convênios fingem desconhecer.

Outra coisa que minha filha me ensinou nesses seus primeiros dias de vida é que não devo me sentir estúpido por saber tão pouco a seu respeito, mas privilegiado pela oportunidade de aprender. Lis é um animalzinho cheio de instinto que dominou tempo e espaço. Menospreza meu linguajar rebuscado ao ponto de ele ser inútil. Eu é que preciso aprender seus meios para convivermos.

Numa dessas madrugadas de colo, enquanto me punha a dançar para acalentá-la, Lis botou os olhinhos num quadro que tenho na cozinha, estampado com versos de Neruda que dizem: “assim, a cada manhã de minha vida trago do sonho outro sonho”.

As últimas madrugadas, confusas entre o sono e a vigília, foram como sonhar acordado. Aos poucos a fantasia esmaece perante a luz do sol e revela uma bebê em sua pequenez, respirando paz, indiferente a tudo o que imagino para ela.

Percebo que minha vontade pouco importa. Não deixa de ser uma espécie de egoísmo, talvez até um preconceito disfarçado de boas intenções (o tipo mais perigoso). Aqueles projetos, ambições e expectativas precisam ser depostos. Não devo colocar em suas costas os desejos meus nem os que penso ser da humanidade. Devo é estar ao seu lado, oferecendo a ela toda a condição possível para que encontre os seus próprios desejos. Para que exercite, ao longo da vida, sua potência de ser. Meu papel, daqui em diante, é preparar o solo para a flor de Lis. Eu não poderia estar mais realizado.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

"ESQUENTA" PARA O LANÇAMENTO DO MEU PRÓXIMO LIVRO

Meu conto Justa Medida compõe a 2ª edição especial da revista gueto | direitos humanos e minorias.

Além do orgulho de participar da coletânea ao lado de muita gente talentosa, aproveito para dizer que o conto serve de "esquenta" para o lançamento do meu livro Testemunho Ocular, pela editora Lamparina Luminosa. Mais notícias em breve! ;)

Baixe a revista em PDF, ePub ou Mobi aqui: revista gueto

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

FALAÇÃO

Eat Me - A Gula ou a Luxúria? Versão I (1976), de Lygia Pape
A fala
muda
uma relação ex-
posta.

Quem era
quem?
Como foi?

Sem saber
dizer,
ouço falarem.
E falam, ah!
como falam.

Trans-
bordam a
experiência
em lingua-
gem surda.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

ATOS DE CRIAÇÃO E DE RESISTÊNCIA

Arlequin au violon (1919), de Juan Gris
Os cubistas tinham olhar acurado. Sabiam que tudo pode ser visto por inúmeras perspectivas. Ao mesmo tempo, deixaram-se iludir pela ideia impossível de reunir todos aqueles pontos de vista num mesmo plano. Seus trabalhos de arte resultam num exercício árduo de desconstrução da visualidade. Que nos oferece um método de pensamento e aponta para uma utopia. Após o Cubismo, não podemos ignorar que muitos olhares se voltam para o mesmo mundo e, nele, veem mundos diferentes.

A reunião de pontos de vista não fundamenta verdade absoluta sobre o assunto. Pelo contrário, ela apenas comprova que não pode existir verdade que não seja meio ficcional e meio ilusória. Mas o exercício de construir um comum a partir de tantas perspectivas pode levar a um dissenso, ou seja, a um lugar onde a diversidade convive com dignidade. Um comum onde os direitos são assegurados, onde todos têm voz e onde a ética medeia as relações. Uma utopia, sem dúvida. Que precisa ser sonhada, buscada, experimentada. Tal como os cubistas fizeram.

Toda relação provoca tensões. Por mais semelhantes que sejam em suas complexidades, há sempre pontos de discórdia entre um e outro sujeito. São as tensões que mantêm as relações pulsando. O exercício político deve cuidar para que elas continuem a manter vivo o organismo social. “Verdade absoluta é outro nome que se dá para a morte”, Jean Baudrillard escreveu certa vez.

Há quem pense que a arte está aí para atenuar as tensões. Eu acredito no contrário. O próprio ato de criação já implica embates terríveis do artista com a obra. Embates violentos. O pintor, por exemplo, precisa destruir o seu próprio olhar para produzir uma imagem de arte. Precisa rasgar a tela, rasgar os clichês, rasgar a si mesmo; arrancar de si um ponto de vista que desconhecia. O escultor deve destruir sua própria forma para criar condições ao surgimento de outra. O coreógrafo precisa esvaziar-se de movimentos para que seu corpo produza gestos. O músico deve desaprender a ouvir para ressoar sonoridade outra. O fotógrafo deve deseducar o olhar. E assim por diante. Sempre tensões vitais.

O mesmo vale para outros campos do conhecimento? Não tenho afinidade, mas suponho que sim. O professor deve destituir-se do lugar de enunciador para criar pedagogias e didáticas. O advogado precisa escapar dos manuais de direito. O neurocientista precisa levantar-se contra os procedimentos tradicionais da ciência para criar novos paradigmas. O arquiteto deve pôr abaixo ideais de construção para projetar o edifício jamais habitado. Todos mirando a comunidade que vem.

Posso falar com alguma propriedade do escritor. Ele precisa desativar os mecanismos da própria língua. Não ceder aos significados prontos; desviar das armadilhas do lugar-comum. Refiro-me ao escritor que pretende fazer arte – há diversas atuações para o profissional da escrita, e nem todas têm essa vocação. Mas o artista das letras precisa jogar a própria língua contra a parede, torturá-la, fazê-la confessar o que não sabe. Deve levar cada palavra ao limite da sua realização, àquele ponto de caos em que ela já não se reconhece. Deve, com essas palavras, criar cenas e situações capazes de provocar a realidade. Falhará, inevitavelmente. É impossível sustentar tamanha destruição. Ficará devendo. Quem disse que é fácil?

Há quem pense que a arte está aí para atenuar tensões. Eu acredito no contrário: a arte vem para produzir tensões, ou para explicitar as que se encontram debaixo do tapete, ou simplesmente para potencializá-las. Mesmo quando agrada, a arte deve instigar o pensamento. Por que agrada? Em que o agrado se baseia? Quais perversidades minhas se realizam nesse prazer inexplicável? O encantamento estético oculta perigos traiçoeiros. Convém abrir os olhos.

A arte não informa nada. Ela desinforma, deforma, desenforma. Gilles Deleuze explicou assim durante uma convenção de cinema, em 1987: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando alguém informa, diz a você em que deve crer. A informação é o sistema de controle. A obra de arte não é um instrumento de comunicação, ela não contém estritamente a menor informação. A obra opera como contrainformação e se torna eficaz quando é ato de resistência.

De acordo com o filósofo, apenas o ato de resistência resiste à morte, seja sobre a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens.

Eu tenho dúvidas sobre como proceder com a resistência. Porque me parece que em raras ocasiões ela não é apenas um adversário jogando o mesmo jogo com as mesmas cartas, tentando assumir o poder. Raras vezes o resistente não fará girar as engrenagens tradicionais da máquina de governo.

Por sua vez, se não houver resistência, como será possível pensá-la? Se não houvesse Cubismo, como poderíamos analisá-lo e produzir críticas? É preciso olhar com cuidado e sempre perguntar em que medida a resistência de fato é um ato criador e em que medida apenas reitera os mecanismos do poder. Se este último caso prevalecer, é preciso inventar formas outras de resistir. É preciso que os insurgentes se destruam a si próprios para criar novos meios e métodos de levante.

Se a resistência parece hoje um tanto desvitalizada, ou pior, se ela se confunde cada vez mais com a brutalidade reacionária, os resistentes precisam ter a audácia de destruírem a si próprios. Toda destruição é também ato de criação; uma potência de vida capaz de sobreviver ao extermínio da diversidade, das tensões e das formas de existência no comum.