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quarta-feira, 7 de outubro de 2015

INUNDAÇÃO

Jovem triste num trem (1911), Marcel Duchamp
arrastado
o menininho
agarrado pela mão
no último instante, o derradeiro
frágil braço lançado entre
forças e fluxos
a mãe, lutando
contra o turbilhão
de gente

Passa gente de todo lugar. Venham, gentes. Vão, gentes. A casa é de vocês, fiquem à vontade. Indivíduos, sujeitos, gêneros, pessoas de toda cara e idade, de todos jeitos e suspeitos. Só de passagem. Afagam o celular com esse carinho próprio de nossos dias, esse amor maquinal, cheio de jogos e aplicativos. Leem um livro e eu estico olhos curiosos para saber qual é. Muitas vezes me surpreendo. Ulysses, você!, aqui?, no metrô?! Moby Dick? David Copperfield!, que saudade, rapaz, apareça quando quiser. Atenção, senhores passageiros, a companhia alerta para risco de tijolada iminente. São as iminências da poética, a Bienal deu a dica uns anos atrás.

Observo e as pessoas não param, os retratos ficam borrados, desfigurados, futuristas. Um movimento incessante, pêndulo de Foucault, para lá e para cá, para aqui e acolá. Narrativas enviesadas que só acontecem nos cruzamentos, transculturalmente, sem começo, meio e fim. Apenas errância e acertância. Uma estação de baldeação, um desvio no caminho. Um ponto de fuga? Que nada! Não tem por onde, não há escapatória. Há somente saída. Muitas saídas. Todas dão no mesmo lugar. O nível das ruas, a superfície plana da humanidade, mil platôs.

Saia não, fique um tanto mais. Para que essa correria? Vamos operar com velocidade reduzida e maior tempo de parada. Problema? Nenhum. Precisa ter? Precisa não. É uma experiência, vamos provar ritmo diferente, deixar para outro dia o arroz com feijão, e mais outro, e mais outro. Desse prato eu já comi demais, deu moleza. Venha provar do coletivo, essa iguaria popular, cultura local que gringo deseja com água na boca.

Veja lá quem vem na nossa direção. Conhece? Vejo todo dia mas não conheço não. Devemos ter coisas em comum, porém compartilhamos somente o caminho. Caminhamos juntos e separados, lentos e apressados, cada um na sua mas com alguma coisa em comum. Free, distraídos. A distração é por segurança. Tá olhando o quê? Nunca viu? Olha, não se ache demais, especial aqui só o assento mesmo, aqueles de cor diferente em que todo mundo planeja descansar o traseiro, ainda que poucos detenham o privilégio. Lição de democracia. Aprende aí e não reclama. Eu chamo o segurança, tá pensando o quê?

As filas andam, às vezes se trançam, dá a maior confusão. Acelera, freia, acerta o passo, acerta o calo, recolhe o pé, deixa passar quem tá com pressa, eu tô, eu também, sai pra lá, folgado!, tira esse cotovelo daqui, empurra não, bota essa mochila pra frente, diminui a música que eu não gosto dessa pouca vergonha. Tem quem se ache no direito, mas aqui ninguém é mais direito nem mais esquerdo, sem exceção, estamos juntos no mesmo barco. No mesmo trem, se você me entende. Quando um desequilibra, um monte vai pro chão. Que não é chão, se você me entende. É assoalho. Coisa fina.

Não entende, não faz mal. A vida é assim. Claro, você não vê? Essas estações são a síntese da convivência social, bicho. Tem conflito de classes, propaganda, exploração de desabastados, indiferença. Eu disse desabastadados, com A! Abestado tá no Congresso. Aqui tem gente vendendo bala, chiclete, chocolate invalível, doçura de origem duvidosa, papelzinho xerocado. Ajuda, por favor, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, eu podia estar transferindo a sua ligação, mas eu estou é ganhando a vida, com licença, com licença, questão de sobrevivença.

Ai, madame, bobeia com esse celular novinho não, custa o olho da cara, com um desses eu teria até onde morar por seis meses, se não chover. Olha ali, o sujeito lendo em voz alta, pregando como se todo mundo se interessasse. Essa história eu já sei como acaba! O final parece feliz mas não é. Não importa o céu se o inferno ainda existe, isso não é salvação, é só a enganação nossa de todo dia. Nos dai hoje um pouquinho de paz, por favor!, pare de martelar nossas cabeças, anda, deixe cada um com seu próprio livro ou jornal, cada um que acredite na verdade que quiser.

Bom mesmo é encarar as diferenças com indiferenciação, olha que palavrona bonita! Já basta de gente controlando a minha liberdade. Vou pitacar na vida alheia? Tenho mais o que fazer!

Ai, se tem coisa que me incomoda é ficar parado no túnel. Perda de tempo... Algum objeto na linha, só pode ser. Um braço, uma perna, indigente. Passa por cima que eu tô com pressa! Passa por cima do respeito! Digo, do sujeito! Infeliz. Tá com pressa vai de táxi, vai pra Cuba, vai no jatinho do Neymar, vai na Ferrari do Neymar! E para onde vai com essa urgência toda? Vou pagar os meus impostos, sou um cidadão de bem, gente de família! Ah, taí ostentando ignorança, truculença, verborragia!? Só pra chegar primeiro? Gente sem coração...

Aperta não que a malmita abre, não é gurmê. Crise? Conheço não. Dólar? Aquele do 44b? Corrupção eu uso pra pescar robalo. Livre-arbítrio? Claro que sei!, moreninho, apitou a final do Brasileirão, idos de 1990. Tava comprado. Péra aí, tá livre de novo? Esse país não tem solução. É o fim da picada!

Será que o metrô chega lá? Um dia ainda desço na estação final, ahh, vocês vão ver. Só para poder voltar sentado. Que alívio! Passear de barco nesse mar de gente, nessa represa transbordante! Isso é que é vida! Mas hoje não, hoje não dá, tô atrasado. Dá licença que desço aqui, falei demais, dá licença, moço, segura a porta, por favor, obrigado. Desculpa aí por atrasar a viagem de vocês. E de todos os outros trens.



O vídeo acima foi gravado na estação República do metrô de São Paulo.
Conheça mais do trabalho artístico de Adam Magyar.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

PENSAMENTO PERDIDO

já não se sabe
o que atravessa
a cabeça arremata o
pensamento perdido
atirado de longe
sem cara nem coração
sai nos jornais
comentário assassino
sem experiência viva
nem pulso de coragem
tomado de assalto
feito bala de fuzil
vitimando inocentes
pelo prazer algoz
pela justiça falha
insegurança
atravessa a carne se
aloja no cerne
do suspeito
veias abertas da América
marginal de cor, de raça
perseguida, impedida
graças adeus

domingo, 13 de setembro de 2015

ASSOVIO

resistência poética
quase espiritual
ao som maquinal
da cidade
dominante

sábado, 12 de setembro de 2015

O ABSTRATO E O CONCRETO

Amarelo, vermelho, azul (1925), de Wassily Kandinsky

Li qualquer coisa sobre um pintor abstrato. Fiquei a imaginar uma mancha, talvez algumas formas sem nome nem identidade, apanhadas ao acaso, que se apresentariam como pintor, olá, muito prazer, sou artista, percebe meu propósito? Meu significado? Esse pintor abstrato andaria por aí, fazendo arte.

Agora quero ler qualquer coisa sobre um pintor concreto.

(para Wassily Kandinsky)

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

resistir a Darwin
acolher fragilidades, aprender
com elas convidar ao mundo
deixar as portas abertas
a quem quiser participar
fendas, fissuras, intervenções
onde os fracos não têm vez
fazê-los visíveis, olhar por eles
inventar lugares onde tenham
potência corporal
existência, liberdade
involuir para ser sutil
menos super-homem, menos moralismo
menos reis e suas leis
menos direitos enrijecidos
mais gentileza, por favor
mais poesia, ainda que dura
seja poesia

terça-feira, 8 de setembro de 2015

TODOS ÍNDIOS

Foto de Eduardo Viveiros de Castro

Isto aqui trata daquilo que somos e do que pretendemos ser, disse Danilo Santos de Miranda na cerimônia de abertura da exposição. Somos índios. Quer queira, quer não. Todos aqueles que nos chamamos todos, somos todos os índios. Então, por que é tão estranho? Houve uma performance que simulava um ritual de tribo, eu estava ali no meio dos atores, eles cantando e dançando, eu estava ali e achava tudo muito estranho, ao mesmo tempo em que achava estranho esse próprio estranhamento, tinha vergonha dele. Por que a cultura indígena é pouco familiar a nós, que somos índios – desde o berço – sem saber? Por que não identificamos seus meios nem apreendemos seus sentidos? Por que não somos capazes de enxergar nossas raízes, soterradas ainda vivas por toneladas de ordem e progresso, toneladas de preconceitos e desrespeito?

Se a voz não partir de dentro do peito, é melhor que nada fale. Não pode haver voz que fale "sobre" os índios. Que sujeito é esse que se põe de fora, que se põe acima e quer determiná-los? Os índios são isso ou são aquilo. Não. Ou os índios somos, ou é prudente calar a própria voz, calar essa arma que já disparou as ignorâncias mais violentas. Falar a respeito dos índios, mesmo sem conhecê-los, mesmo que o único índio já visto seja aquele da cartilha escolar, da letra "i", já é falar sobre nós, sobre esse sujeito que fala, sobre seu passado, seu presente e seu futuro. Sobre o que somos e o que pretendemos ser.

Entretanto o que o índio deseja é poder permanecer diferente de nós, explica Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo autor das fotos expostas no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Essa igualdade diferente, antes de ser um paradoxo dos tempos atuais, é um dos problemas mais delicados que criamos para nós mesmos ao longo de séculos de massacres velados. É um problema de identificação cultural pautado na invisibilidade das vítimas e, pior, é questão de sobrevivência. Dos índios? Sim, de todos nós.

Chegamos a um ponto em que não parece haver solução. O que existe é somente a oportunidade de pendurar uma rede digna onde o corpo ferido do índio possa repousar. Onde nosso corpo, quem sabe, possa curar as feridas e aprender com as cicatrizes, caso sobreviva. Corpo, quer dizer, "conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus", segundo o antropólogo-fotógrafo. Corpo individual, corpo coletivo, corpo sociocultural. É a partir do corpo – e somente dele – que se dá nossa relação com o mundo. Variações do corpo selvagem, conforme o título da mencionada exposição.

Foto de Eduardo Viveiros de Castro


O que pode ser feito é tocar o nosso sagrado com penas e sementes. Pintar nossa pele de urucum. Dar ritmo de chocalho à correria da metrópole. Incorporar a sensibilidade abandonada, vesti-la com pele de onça. Algo que os curadores Veronica Stigger e Eduardo Sterzi conseguiram propor com ética e sutileza. Pois não cabe idealizar o índio, não cabe idealizar a cultura nem a natureza, isso não faria o menor sentido; mas cabe muito bem provocar estranhamento, um estranhamento que denuncia nosso ponto de vista, que questiona nossas crenças, porque é somente assim que o índio em nosso sangue ouvirá o chamado e emergirá, esse índio que corre pela escuridão do nosso contemporâneo.

Freud dizia que estranho é o quase familiar, quase comum e reconhecível, que de algum modo não se encaixa na normalidade e por isso nos inquieta, por vezes até apavora. Próximo ao mesmo tempo em que longínquo. Esse estranho tem o poder de nos arrancar do conforto apático do dia a dia e nos levar a outro plano de realidade. Uma experiência transformadora, uma potência que, com sorte, vai nos fazer questionar a normalidade da situação. Não podemos continuar a achar "normal" o índio ser massacrado. Não podemos aceitar que suas terras sejam arrancadas à força. Não podemos achar normal que o índio continue sem voz política, invisível, impedido. Nós comemos alimentos indígenas, caminhamos por ruas indígenas, falamos com suas palavras, curamos enfermidades com suas ervas e ritos. Somos todos nativos do Brasil. Não é normal, nem jamais poderá ser, carregar um índio morto no peito, nem deixar que seu sangue morto corra pelos rios do nosso corpo selvagem. Já basta de civilização.

Foto de Eduardo Viveiros de Castro

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

ORELHA QUE TIREI DA MALA



Olha que coisa linda, a amiga Mariana Teixeira está lançando O que tirei da mala, seu segundo livro de poemas (o primeiro se chama Inversos Paralelos). Perguntou se eu escreveria uma breve apresentação para sair na orelha. É lógico que escrevi, com o maior prazer. Ficou assim:  

cenas breves
na rua, no bar, na cama
só ela nota, Mariana
anota!
faz disso aí
a poesia que já é
só não sabia
incessante
num fluxo
pega no ar
no ato
leveza passarinha
conta, recita, sussurra, desabafa
uns versos sobre a vida
chegam muito bem, no mínimo
não fazem mal a ninguém
infindáveis histórias do universo
uma página por vez
na correria o homem fica
em seu tempo
a poesia vai além

Assim este livro se apresenta, uma página por vez, retiradas da bagagem que Mariana Teixeira acumulou pelos percalços da vida. Se o fardo está pesado, ela faz dele poesia, que bate asas e flana mundo afora até encontrar você, leitor de sorte.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

SÓ MAIS DEZ MINUTINHOS

diz a lenda
a voz das ruas
o gigante acordou
retorcendo-se
desejando
que fosse apenas um
pesadelo
de uma ilusão
recobrou-se e não
entendeu
nada sabia,
inocente
o gigante acordou
suando frio bebeu
um copo d’água
aliviou-se, tirou um peso
desrazão
dormiu novamente
um pouquinho mais, por favor
piedade de nós
até despertar
o smartphone

domingo, 16 de agosto de 2015

UM MUSEU INCOMODA MUITA GENTE

No último final de semana prolongado que tivemos, fui com minha esposa visitar familiares em Marília. Pela enésima vez tentei conhecer o museu de paleontologia, que em tese possui fósseis e registros científicos da região. Como sempre, não consegui; ele estava fechado. Não abre aos finais de semana e, descobrimos dessa vez, nem mesmo em dias úteis da "emenda" de feriados.

Estávamos com meu sobrinho de quatro anos, que foi ao zoológico de São Paulo meia dúzia de vezes para ver reproduções gigantes de dinossauros numa exposição que ficou longo tempo em cartaz. Ele é apaixonado pelos bichanos pré-históricos. Até quando, não sabemos dizer, e o museu público de Marília não tem incentivado esse seu interesse. Será que ninguém cogitou abri-lo aos finais de semana, quando chegam pessoas de fora, e compensar esses dias numa segunda e terça, se for necessário?



A revista Piauí nº 105, de junho passado, publicou um texto em que crítico de arte Hal Foster provoca: afinal, museu para quê? Seu incômodo tem fundamento. Embora se refira às imensas instituições que têm surgido na Europa e nos Estados Unidos, acho possível estender a pergunta ao tímido museu de paleontologia de Marília e a quaisquer outros do Brasil: será que eles conseguem dialogar com a sociedade, sustentando esse formato tradicionalista? Será que conseguem oferecer a possibilidade de alguma experiência transformadora ao invés de entretenimento raso e fotos para redes sociais?

Foster não é o único nem o primeiro a pensar nisso – esse problema é constante em instituições culturais do mundo inteiro, e debatido amplamente sem que se obtenha soluções muito interessantes. Trata-se de uma questão-chave para quem administra museus hoje em dia.

A última grande renovação dos museus de arte ocorreu quase um século atrás, quando foram concebidos prédios herméticos, utópicos e supostamente neutros para acolher a produção modernista, com o propósito de isolá-la da vida exterior. Ficaram conhecidos como "cubos brancos" porque, na prática, eram exatamente isso: paredes brancas sem janelas, tudo limpo e silencioso, como templos onde se podia admirar a criação dos "gênios" da arte. Se a ideia já não condiz com o contemporâneo, tampouco encontramos outra que dê conta das novas demandas, embora haja boas experiências, claro.

O consenso até agora afirma que não pode haver consenso. Não existe fórmula de sucesso. Pelo contrário: entende-se que as instituições devem ser diferentes umas das outras e também de si próprias, adequando-se com frequência aos novos desafios.

Não sou profundo conhecedor do assunto, e talvez esse olhar distanciado permita ver as coisas por outro ângulo: em resposta à provocação de Foster, suponho que o museu contemporâneo não deva ser exatamente um museu. Ele deseja ser outra coisa. Em vez de "Instituição Cultural" (com maiúsculas), um espaço de experiências. Um local que possibilite encontros ao invés de forçar interações. Cuja vontade é ativar o sensível em vez de lotar galerias com pessoas, informações e números. Que deixe arte à disposição, porém antes se pergunte: qual é o interesse dos visitantes? De que maneira a arte poderia participar da vida deles? Como criar diálogo em vez de impor conhecimento goela abaixo, por meio de autoridades e autoritarismos? Qual é a melhor forma, aqui, nesta situação específica, para manter vivo e pulsante certo campo ampliado de cultura? E como fazer acolá?

Passeando por Marília, vi uma série de galpões (aparentemente) abandonados às margens da linha do trem. Lindos. Deu vontade de instalar ali centros de convivência que incentivem encontros e experiências estéticas, que envolvam os cidadãos e cultivem o interesse por descobertas. Onde tivesse um palco para bandas da cidade ensaiarem, onde grupos de teatro pudessem se desenvolver. Um salão silencioso para oficinas literárias e círculos de livro. Um ginásio de esportes. Ciclovias. Cozinha coletiva. Biblioteca e brinquedoteca. Pomar, gramado para piquenique, ateliê para pintar e bordar. Espaço expositivo. Café. Enfim, um ponto de encontro de jovens e adultos, ricos e pobres, indivíduos e famílias, verdadeiramente aberto às práticas comunitárias. Tive vontade de implementar algo assim antes que façam shopping center no lugar. Convenhamos, estruturas do tipo são investimento pequeno (para um país que se dá ao luxo de construir estádios de futebol "padrão Fifa") e são capazes de acolher pessoas sempre carentes por atividades que as coloquem em contato com si próprias e com as demais. Vejam o SESC Pompeia e o CCSP, por exemplo, e como eles mobilizam a cidade de São Paulo.

Instituições culturais que permanecem a alimentar preconceitos em relação aos seus frequentadores, acreditando que a sua "função" é "educá-los", que os olha de cima para baixo e os determina, tendem a ir do cubo branco ao elefante branco. Reformulando a questão inicial: quem precisa delas?

O próprio Hal Foster conta, logo na introdução do livro O retorno do real, a ocasião em que visitava uma mostra de arte contemporânea na companhia de um amigo e sua família. Enquanto conversavam, a filhinha do amigo brincava entre vigas de madeira que compunham um dos trabalhos expostos. "Ali estávamos nós, um crítico e um artista bem informados sobre arte contemporânea, tomando aula de uma criança de seis anos de idade, cuja prática deixava nossa teoria muito para trás".

Se não abrirem as portas da mente, os museus jamais testemunharão qualquer brincadeira reveladora sobre o futuro, seja deles próprios ou do público. E restarão esquecidos como os fósseis que guardam. Por sua vez, as instituições culturais que insistem em modelos de consumo de informação e que resumem cultura a mero entretenimento e espetáculo não têm potencial para transformar nada nem ninguém. No fim das contas, não servem para muita coisa.

sábado, 15 de agosto de 2015

Comedores de batatas (1885), de Vincent Van Gogh

"a vida está no lugar
em que você
serve a sopa
sob o círculo de luz."

Fora do tempo, David Grossman

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

“A imprensa é uma vasta boca aberta que tem de ser periodicamente alimentada – um vaso de enorme capacidade que tem de ser preenchido. É como um trem regular que sai numa hora marcada, mas que só pode sair se todos os lugares estiverem ocupados. Os lugares são muitos, o trem é consideravelmente longo, e daí a fabricação de bonecos para as estações em que não há passageiros suficientes. Um manequim é colocado no assento vazio, onde passa por uma figura real até o final da jornada. Parece-se bastante com um passageiro, e você só percebe que ele não o é quando nota que não fala nem se move. O guarda vai até ele quando o trem para, limpa as cinzas de sua face de madeira e muda a posição de seu cotovelo, de modo que sirva para uma nova viagem. (…) O espírito arisco pode se perguntar, sem resposta à mão, qual a função na vida de um homem dessa periodicidade de platitude e irrelevância? Tal espírito vai se perguntar como a idade de um homem sobrevive a isso e, sobretudo, o que é mais importante, como a literatura resiste a isso (…). Os sinais da catástrofe, no caso, suponho que não serão tão sutis que não possam ser apontados – a falência da distinção, a falência do estilo, a falência do conhecimento, a falência da reflexão.”

Henry James, Crítica (mais de um século atrás!)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

DE COR

Escultura que compõe o trabalho Vazio cérebro, de Nelson Felix

se a cor branca é
uma junção de todas
as outras, para ser
branco é preciso ser negro
amarelo, vermelho, pardo
azul-tição
mesmo assim há branco
sem graça, sem cor
sem jeito, que quer
destaque na multidão.
há branco que não se enxerga

sábado, 18 de julho de 2015

TUDO BEM

Tempo branco (1959), de Pablo Palazuelo
toda vez que a toco
que troco de lugar
encho de café,
de baldes de água fria

da boca à mesa
trabalho, repouso depois
de cabeça para baixo
no escorredor

provoco fissuras
mínimas, que sejam
invisíveis, insensíveis
por toda a sua conjetura

da superfície à estrutura
breves rompimentos
na cerâmica do dia
que não cicatriza, nunca
volta atrás

só aumento
a duras penas
sustentando-a
como se nada tivesse
acontecido

um gole a mais,
outro a menos
dia a dia
momentos, momentos

chega o que basta
leve toque de pluma
para romper a casca
desde a fundação

ela se estilhaça
seja o que for
que se faça

como saber, desgraça?
pior viver sem
provar os amores
nem arder dissabores

tudo bem?
tudo bem.

a pergunta terrível,
a resposta impassível,
impossível!

restam fragmentos, cacos
na palma da mão
lapsos da experiência única
vivida repetidas vezes
a dois, a dez, a mil

segunda-feira, 6 de julho de 2015

QUE EXPERIÊNCIA NOS RESTA?

Ler um texto como O narrador, que Walter Benjamin escreveu quase 80 anos atrás, em 1936, e perceber com espanto sua atualidade sugere algo sobre aquilo que poderíamos chamar de contemporâneo, no sentido de que condiz e é pertinente às questões que agora nos atravessam. Em primeiro lugar, sugere que o contemporâneo não se refere ao tempo cronológico, portanto não segue a linha do progresso – em vez de Benjamin poderíamos citar autores de séculos antes que parecem ter escrito especialmente para nós. Em segundo lugar, diríamos que o contemporâneo não é pleno: não conseguiríamos distinguir uma totalidade nem na apreensão sensível do tempo nem no senso comum sobre a experiência da vida; não existe comportamento padrão em nossas sociedades, mas lampejos que sugerem mudanças de atitude em meio ao previsível, lugares que privilegiam o dissenso em meio ao conforto da tradição pré-estabelecida. São pontos que brilham por um instante e logo se apagam; um surge aqui, outro responde acolá, como um grupo de vaga-lumes à noite, que vemos em sua singularidade tanto quanto na efemeridade.

O contemporâneo se constituiria, entre outras coisas, de reminiscências: passados retomados pela memória; resíduos, restos, fragmentos postos em conexão numa nova estrutura; lembranças imprecisas ou indecisas que evocam imagens borradas. Seria como um vulto: que passa sem se revelar por inteiro – restaria do contemporâneo mais uma sensação daquilo que ele manifesta do que um conceito propriamente formulado, aceito e contestável segundo os métodos da crítica conservadora.

Como as narrativas sobrevivem nos tempos atuais? Se na época de Benjamin já se notava certa precariedade dessa forma de compartilhamento de experiências, hoje em dia as perspectivas não são melhores. Conforme o filósofo escreveu, "cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação".

Enquanto a informação só tem relevância quando é fresca, a sabedoria da experiência, tecida na forma de narrativas, compartilhada geração após geração, não tem prazo de validade. Seu valor independe do tempo e por conta desse alargamento não determinado ela é mais contemporânea nossa do que o preço do dólar ou o próximo capítulo da novela.

Jorge Larrosa Bondía certa vez explicou que é preciso separar o saber da experiência e a posse de informações. Porque, ao contrário do que acontece por aí e somente diz respeito aos outros, a experiência é o que nos acontece, o que nos toca. Em suas palavras: "O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação (...), o que consegue é que nada lhe aconteça".

Por que nada nos acontece? Por que nada mais ganha a gravidade da experiência digna de ser narrada, que nos toca e transforma, além de ser passada adiante ao longo dos séculos, tal como nas mitologias que sobreviveram desde os tempos mais remotos? Talvez porque não tenhamos, justamente, tempo: na correria em que vivemos, não encontramos um instante sequer para dispor à possibilidade de irromperem experiências. Ou melhor: não arranjamos tempo para nos colocar à disposição do mundo. E as verdadeiras experiências só acontecem a quem está aberto.

Benjamin acreditava que esse processo "exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro". Para ele, tal distensão se encontraria no tédio.

Almoço na relva (1863), Édouard Manet

Tenho quase certeza de que, se eu perguntar quem se sente entediado, boa parte das pessoas responderá que sim; nos sentimos entediados com a rotina puxada, o cansaço, a falta de perspectivas, descobertas e desafios. Mas não é a esse tédio que o filósofo se refere. Estamos mesmo esgotados, porém continuamos mergulhados no excesso de informação e de tarefas. Esse excesso afasta o tédio proposto por Benjamin, que seria obtido pelo desligamento da máquina produtiva, pelo "dolce far niente" dos italianos, quer dizer, a doçura do não fazer nada, de abrir terreno para que o inusitado germine.

Para Bondía, "a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço".

Houve um tempo em que se buscava nas drogas uma espécie de interrupção, que na realidade era uma dilatação de sentidos contra a dureza da razão moral, com objetivo de experimentar outra relação com o mundo. Até mesmo isso foi desaparecendo durante o século XX, e hoje as drogas acabam usadas no sentido oposto, de anestesia, como meio de escapar das experiências da vida. Uma fuga no lugar da descoberta, embora na prática a coisa não seja tão diferente assim. Acontece que nem mesmo o estímulo dos sentidos consegue se sustentar por muito tempo, talvez por conta da sua artificialidade. Há uma frase no romance Demian, de Hermann Hesse, que sintetiza bem essa ideia: “As pessoas que vivem todo o dia nas tabernas já perderam por completo essa exaltação. Tudo se transforma num hábito”. Pois nos acostumamos até mesmo com o excesso de novidades, e logo ele próprio assume o status de banalidade.

Acredito mais no gesto de interrupção que se revela uma atitude estético-política. Sensível. Profunda, complexa e necessária. Um gesto singelo de resistência crítica à velocidade, à informação em demasia que nos provoca a falsa sensação de pertencimento ao mundo, à tecnologia que afasta a possibilidade de que as coisas nos toquem diretamente, ao trabalho mecânico, produtivista e inconseqüente, ao consumismo exacerbado de produtos, serviços e verdades; resistência a tudo isso que de alguma maneira preenche nosso cotidiano como se o completasse, e que nos configura como máquinas ligadas incessantemente no modo automático. Não precisa ser uma grande força contrária, é preferível até que seja um gesto frágil, que transforma e que também se transforma durante o processo. O que nos resta fazer? Resistir poeticamente, sim. Não porque aquelas coisas não sejam importantes, mas porque não podem ser absolutas.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

É, NEM

“Até gosto de Humanas”, disse um cara atrás de mim, na escada rolante do metrô, “mas não gosto desse negócio de abraçar árvores”. Ele conversava com uma amiga, e pelo jeito ambos planejavam prestar o vestibular. Fiquei tentado a perguntar se ele não confundia Humanas com algum ramo pervertido da Botânica. Fiz bem em me manter calado. Porque logo na sequência ele emendou: “Gosto também de Biologia. Mas eu não quero saber de cuidar dos animais. Quero botá-los na mesa e picá-los todinhos”.