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quarta-feira, 22 de abril de 2015

OLHOS DE LITERATURA

A literatura possibilita que vozes dissonantes existam – é o lugar próprio da democracia. Inclusive vozes que causam furor ou lágrimas, vozes menores que chocam e provocam desconfortos de todo tipo, que perturbam a ordem, contradizendo certa maneira de pensar do leitor, por vezes violentando sua moral. Vozes que desconstroem a linguagem, invertem preceitos e depõem contra o sagrado/instituído. É um recurso que se tem para expressar ideias e sentimentos sem que eles sejam atribuídos a um sujeito-escritor, quer dizer, sem que este seja responsabilizado pelo que a voz do texto diz ou, enfim, pela maneira como foi compreendida – ao menos seria assim a situação ideal, que vamos considerar aqui.

L'oeil cacodylate (1921), Francis Picabia
Se alguém tem qualquer controle sobre essa voz, por mínimo que seja, é o autor. Entretanto o autor nada mais é que uma conveniência, uma entidade tão inventada quanto a ficção que lhe é atribuída – uma função momentânea, como dizia Michel Foucault. O autor não é o escritor, é no máximo uma faceta dele. Por sua vez, o escritor seria o operário das letras.

O que acontece quando o leitor confunde o escritor com a voz do texto? Uma tragédia, que desfaz o jogo e acaba com a fantasia da literatura, acaba com a potência ficcional da arte de onde advêm emoções e transformações. Se o leitor está menos interessado nas histórias do que na possível relação que elas têm com a “realidade” ou com a vida do escritor, a experiência literária se deturpa: ele deseja que o sujeito determine a obra – quando esta deveria bastar em si mesma. O escritor fica exposto, sua profissão se torna perigosa – o jogo acaba em horror (Charlie Hebdo, Salman Rushdie, Ai Weiwei etc.).

Se a literatura ofende, como o leitor pode se defender? Com o gesto mais singelo, que é também de incrível força política: ele abandona o livro. Porque é do leitor a opção de ouvir a voz do texto; se preferir ignorá-la, ela não incomodará. É bonito porque é respeitoso com a obra e com os demais leitores, além de mais eficaz – se quisermos pensar nestes termos – do que a censura, a perseguição do escritor, o recolhimento e a queima de livros em praça pública etc. Por sua vez, se quiser contra-atacar, o leitor ofendido pode usar as mesmas armas e criar a sua própria literatura (#ficaadica). Isso vale desde as ações destruidoras do Estado Islâmico às críticas moralistas aos 50 Tons de Cinza.

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Correm um risco todos que lêem pouca ou nenhuma literatura: deixar-se levar pelos maniqueísmos, pelas doutrinas/fundamentalismos que cegam, pela burrice da maioria, pela razão exacerbada, pelo ponto de vista que se crê único e absoluto.

Ora, quem lê literatura não necessariamente escreve melhor ou consegue expressar suas ideias de maneira mais clara, conforme prevê o senso comum. Pode acontecer que obtenha certo domínio da técnica, se houver interesse profundo, mas não é regra. Assim como comer não nos faz necessariamente melhores cozinheiros ou ouvir musica não significa que faremos lindas composições. A literatura, quando explora limites da linguagem, pode até mesmo atrapalhar quem busca nela normatização e método.

Porém existe algo que o contato com a literatura pode oferecer, talvez de maneira tão peculiar que no geral não o encontramos em outro tipo de leitura: a experiência sensível que nos arranca do automatismo cotidiano.

Não quero dizer que todos os leitores de literatura desenvolvam o senso estético, mas é quase sempre entre eles que encontraremos quem pondera melhor, quem tem maior facilidade para ouvir e se abrir a novas experiências, quem acolhe o outro e suas perspectivas, quem possui sensibilidade aguçada para capturar certos aspectos obscuros do mundo real. O mesmo vale para as outras artes – sei que é absurdo tratá-las de modo tão genérico, mas é o como posso fazer agora. Elas despertam sentidos e nos convidam a pensar por outros meios além da lógica. Convidam-nos também a cometer menos atrocidades em nome da Verdade.

Se os livros de ficção não lhe interessam, se você não tem tempo para eles, entretanto existe uma vontade sua de enxergar além da superfície do mundo – se você entende que há camadas ocultas sob a simples aparência e quer tentar acessá-las –, sugiro que então leia os jornais, assista aos programas da televisão, ouça as notícias do rádio, envolva-se com a publicidade, com as conversas de boteco e até mesmo com as bulas de remédio como se isso tudo fosse literatura. Se conseguir mudar seu ponto de vista e entrever com desconfiança o que há de ficcional na realidade, se conseguir ler o dia a dia com olhos ávidos por literatura, se não tomar por verdade absoluta tudo o que lhe é oferecido, se não apenas absorver e replicar essas verdades, certa potência literária será ativada. Se a voz da literatura nos ensina algo seria, justamente, não ignorar o aspecto ficcional das coisas, das pessoas e dos ocorridos. Os horrores do dogma se afastarão um passo, o que é uma conquista satisfatória nos tempos atuais.