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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

ENTREVISTA: COMO EU ESCREVO (PARTE 2)

Há pouco mais de um ano, José Nunes me convidou para falar sobre meu processo criativo, entre outros assuntos relacionados ao ofício.

Seu projeto, intitulado Como eu escrevo, tem agora um desdobramento: novas perguntas com o objetivo de compartilhar ideias e contribuir com os desafios de quem se põe a lidar com as palavras.

Deixo abaixo a segunda rodada de perguntas que respondi, publicadas originalmente junto com as anteriores na página do projeto: comoeuescrevo.com/eduardo-a-a-almeida

Ficou com curiosidade de ler os livros que menciono? Clique nos títulos para saber mais: Testemunho ocular (contos) e Diante dos meus olhos (romance).

Foto: Edi Rocha

11. Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?

Normalmente o projeto se forma a partir do que estou escrevendo, não é premeditado. Experimento formatos sem grandes pretensões, anoto ideias, escrevo alguns parágrafos. Um dia olho para aquele amontoado de coisas e percebo uma linha condutora, um interesse em comum, talvez. Foi o caso do Testemunho ocular, livro publicado em 2018 pela Lamparina Luminosa: eu tinha alguns contos e percebi que havia em todos eles uma inquietação de natureza similar. Comecei a retomar textos antigos, engavetados, e aquela inquietação também aparecia neles de uma maneira ou de outra sem que eu tivesse me dado conta disso até então. O conceito do livro surgiu daí. Para dar a forma que pretendia, acabei por editar alguns textos, escrever outros e criar um projeto editorial. Não gosto de pensar em meus livros como meras coletâneas; é preciso haver uma amarração, um conceito, um ponto central que possibilite outras camadas interpretativas.

O caso do Diante dos meus olhos, publicado no fim de 2019 pela Reformatório, não foi muito diferente. Comecei por tomar notas de um sonho, ainda de madrugada, porque eu não podia voltar a dormir e correr o risco de esquecê-lo. Na manhã seguinte, ainda sem saber bem a razão, percebi que a ideia tinha um potencial a ser explorado. Escrevi um pouco mais, o texto foi criando corpo, passou de uma cena curta a um conto longo. E não parava, era incontrolável. Segui nesse ritmo por bastante tempo, até ter em mãos um pequeno romance. Ele foi publicado dez anos depois do primeiro esboço.

Em meio a esses processos mais "espontâneos", por assim dizer, o difícil não escrever a primeira nem a última frase, mas identificá-las para que, entre elas, exista um projeto literário.

12. Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?

Eu não diria que prefiro assim, mas vários projetos acontecem ao mesmo tempo, é uma maluquice. Tenho trabalhado em tempo integral num escritório, escrevendo textos para outras pessoas e empresas. Também atuo como revisor e preparador de textos. Minhas criações pessoais muitas vezes são resolvidas na hora do almoço, no metrô, nos minutos em que minha filha dorme e eu consigo permanecer acordado, nas brechas dos finais de semana, entre os compromissos familiares e os afazeres de casa. Tenho escrito pouca literatura de ficção. Inclusive porque uma série de outras tarefas me convocam a todo instante, requisitando prioridade: as atividades do coletivo Discórdia (encontros, feiras, rodas de leitura e debate, cursos etc.) e do GEPPS - Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível, minha coluna no jornal Correio Popular, aulas, oficinas, pareceres, palestras, compromissos da academia (ainda tenho para resolver várias reminiscências do doutorado, que defendi em 2018). A literatura de ficção vai forçando espaço em meio a esse entulho todo, é uma sobrevivente. Fico muito agradecido por ela não desistir de mim. Mas, para ser mais concreto, organizo minha semana anotando as tarefas e compromissos numa agendinha de bolso, de papel mesmo. A meta é chegar até a página seguinte, de preferência ileso.

13. O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?

Não é que eu tenha de uma hora para outra decidido me dedicar à escrita, quer dizer, isso jamais ocorreu de forma tão dramática. Mas eu me lembro da primeira vez em que me assumi escritor, e nem faz tanto tempo assim. Foi há uns cinco ou seis anos, durante um curso sobre práticas artísticas comunitárias no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo. Eu deveria me apresentar para a turma e disse: meu nome é Eduardo, sou escritor. Uma amiga estava junto e, quando a aula terminou, veio falar comigo. Escritor é? Que vitória! Eu ainda gaguejava um tanto. Escrevia profissionalmente há mais ou menos quinze anos, mas até então me intitulava publicitário, redator, pesquisador. Nessa ocasião, eu tinha deixado a publicidade de lado, precisava assumir um "eu" que de fato me desse orgulho. Ainda assim demorei para dizer "escritor" em bom tom. Houve um dia, eu estava num cartório fazendo sabe-se lá o que, e o atendente preenchia um formulário. Ele perguntou: profissão? E eu disse. Ele tirou os olhos do papel e quis saber: é sério? Balancei a cabeça, afirmando que sim. Esse sujeito virou para os colegas e falou bem alto: gente, tem um escritor aqui! Foi bizarro, ninguém deu a mínima, mas o atendente estava animado. Imagino que tivesse os escritores em boa conta. Talvez seja esse o tipo de coisa que me motiva: produzir algum estranhamento no banal. Como dizia Michel Foucault, os textos são formas de inscrição no mundo. São meios de existência. Escrevo por muitos motivos, alguns ainda indiscerníveis, mas com certeza uma motivação é produzir essa inscrição que inquieta, que abre uma fenda na normalidade e chama atenção para algo que sempre esteve ali, mas nunca foi olhado por aquele ângulo. Escritores me motivam, artistas visuais, o teatro, filósofos, entre vários outros agentes do conhecimento que me provocam a pensar diferente, profanar verdades, manter a curiosidade viva.

14. Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?

Não me sinto muito à vontade com a ideia de ter um estilo próprio. Tenho, sim, interesses que vão se destacando pela recorrência. O maior deles talvez seja a questão da visualidade, já que o mundo que existe para cada um de nós quase sempre se resume naquilo que vemos, que se põe diante dos nossos olhos. E ele é tão ficcional quanto qualquer outro: são convenções, contextos culturais, perspectivas sociopolíticas etc. que produzem entendimentos sobre o mundo, no limite, inventados. A realidade é simplesmente imaginada. Daí eu acreditar que algumas imagens inusitadas, operando num sentido de deseducação do olhar, têm força estética e política capaz de produzir deslocamentos e sugerir outros pontos de vista. São capazes de dar a ver o que sempre esteve ali e até então não podíamos encarar. Isso não é um estilo propriamente dito. Na realidade, isso só acontece por meio de muitos atravessamentos, diferenciações, vertigens. Alguns escritores me ajudaram a trilhar esse caminho, sem dúvida. Mais do eles, foram livros específicos que me marcaram. O som e a fúria, de William Faulkner. O estrangeiro, de Albert Camus. A espuma dos dias, de Boris Vian. Bestiário, As armas secretas e Histórias de cronópios e de famas, do Cortázar. As cidades invisíveis, do Calvino. Na colônia penal, de Franz Kafka. Os contos de Murilo Rubião. Para fugir dos clássicos, cito ainda Pássaros na boca, de Samanta Schweblin. Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas. Li há pouco o Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, recém-Nobel de Literatura, e de fato é incrível, eu gostaria de escrever um pouco como ela, com toda aquela empatia, profundidade psicológica e riqueza de detalhes. E não foram apenas esses autores e livros, claro. Além de outros ficcionistas há todos aqueles da filosofia, das artes, da estética. Eu poderia continuar por muitas linhas.

15. Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?

As cidades invisíveis, de Italo Calvino, é um dos livros mais lindos que já li. Existe nele tanta poesia que transborda em aspectos sociais, políticos, afetivos. É daquelas leituras imprescindíveis. Sempre que o retomo é com um prazer singular, como se lesse um texto sagrado, capaz de falar por meio de simbologias com qualquer pessoa em qualquer lugar e em qualquer época.

O som e a fúria, de William Faulkner, foi um livro que me exigiu um grande esforço, e assim conquistou um lugar muito especial em minha bibliografia. Ele tem inúmeras camadas, preciosidades, lições de literatura. Mas o destaque fica com a capacidade de o autor "outrar-se", como costumo dizer na tentativa de explicar essa maneira como ele escreve numa espécie de devir outro (retardado, pobre, mulher, negro etc.). É sem dúvida uma obra de mestre.

Fiquei tentado a recomendar outro daqueles clássicos que citei na resposta anterior, mas acho importante lermos contemporâneos nossos que apresentam problemáticas urgentes. Nesse quesito, todos precisamos ler os poemas de Um útero é do tamanho de um punho, da Angélica Freitas, que usa um humor perspicaz para criar versos arrebatadores sobre feminilidade, condição da mulher, intolerância, entre vários outras questões. Seu livro é uma lindeza, impossível parar de ler e de, com ele, repensar toda essa realidade que construímos.