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quarta-feira, 24 de julho de 2024

A ESCRITA, O ESPANTO

 

Texto publicado originalmente em LiteraturaBr


Ontem me comportei mal no universo.
Vivi o dia inteiro sem indagar nada,
sem estranhar nada.
[…]
O mundo podia ter sido percebido como um mundo louco,
e eu o tomei somente para uso habitual.

Trecho do poema Desatenção, de Wisława Szymborska


Ando às voltas com o espanto. Esse sentimento, que é também uma espécie de acontecimento, ganhou sabor especial por conta do meu livro mais recente, Museu de Arte Efêmera (editora Laranja Original). Com tal palavra a me assombrar, e a obra em processo, dei-me conta de que escrevo para provocar espanto. No leitor, sem dúvida, porque acredito nessa literatura que apresenta um desconhecido, evoca a sensação de estranhamento, desnaturaliza o banalizado, em vez de apenas reiterar o que já se sabe. E escrevo para eu também me espantar.

Espanto-me com a narrativa que se vai criando à revelia dos meus planos, como se me usasse para adquirir vida própria. Emociono-me com meus personagens, sofro com os seus conflitos. Rio da piada que não esperava escrever. Surpreendo-me com usos da linguagem que não me diria capaz de desenvolver até o momento em que a vejo no papel, com a tinta ainda por secar. Acredito na arte que surge desse inusitado.

“O escritor é aquele que se espanta com as coisas, desde as mais triviais às mais extraordinária”, afirma Noemi Jaffe no livro Escrita em movimento. E completa: “ele dificilmente permite que as coisas se banalizem, já que quase tudo é matéria de escrita”.

Também fico feliz ao ler Wisława Szymborska falar sobre o espantoso na poesia. “Na qual se pesa cada palavra, nada é comum ou normal. Nenhuma pedra e sobre ela nenhuma nuvem. Nenhum dia e depois dele nenhuma noite. E acima de tudo nenhuma existência do que quer que seja neste mundo”.

Ao receber o Prêmio Nobel em 1996, a poetiza comentou a importância do “não saber” em sua obra. O que faz da escrita não um instrumento da verdade, mas da busca. A escrita como perseguição daquilo que demanda ser escrito, e que todavia é arisco. Escrever como meio de se fazer perguntas e tentar respostas necessariamente insuficientes.

O artista das letras não deve escrever para defender uma ideia, penso eu, mas para se atirar no desconhecido. Tenho sempre comigo a fotografia em que Yves Klein pula do alto de um muro. Salto no vazio, diz o título. Onde cairá? Caso sobreviva, em quais condições se reerguerá? Com sorte, trará desse lugar estranho – o vazio – um punhado de matérias-primas, a princípio desconexas, que desse seu desencontro serão capazes de sugerir algo ainda não dito, ou sequer imaginado. Espantoso?

Para Szymborska, a inspiração nasce de um incessante “não sei”. E isso não é privilégio dos poetas ou dos artistas em geral. Segundo ela, “existem médicos, pedagogos, jardineiros e centenas de outros profissionais assim. Seu trabalho pode ser uma constante aventura desde que consigam ver nele sempre novos desafios. Apesar das dificuldades e fracassos, sua curiosidade não arrefece. A cada problema resolvido segue-se um enxame de novas perguntas. […] Todo conhecimento que não gera em si novas perguntas logo se torna morto”.

A tradutora Regina Przybycien destaca, por exemplo, o interesse de Szymborska por outras áreas do conhecimento além da poesia, entre elas as ciências. Vivia em busca de oportunidades para espantar-se. “Achava que a poesia não nasce de conversas com poetas ou sobre poesia, daí sua amizade com matemáticos, físicos, geólogos, os quais podiam lhe revelar algo interessante e indicar leituras”.

É uma ideia que me atrai de maneira particular, dado o meu interesse pelas artes visuais, que inevitavelmente atravessa meu trabalho de escrita. Já se percebe no título deste mais recente, que remete a um museu, e que na folha de rosto se define como tríptico – formato tradicional de pintura, comum nos retábulos medievais, em que três peças criam um conjunto, associando-se em geral por compartilharem um tema ou um significado.

Você pode encomendar um exemplar na loja da Laranja Original

Os três contos que compõem o acervo do Museu de Arte Efêmera são atravessados pela questão da memória. A memória como forma de elaborar a vida, como marca traumática, como resistência diante do esquecimento. Eles apresentam estrutura fragmentária, inspiração dramática – eram, inicialmente, peças de teatro, que transcrevi para o formato de prosa – e jogos de imagens e sensações. Procuram mostrar como nossas histórias pessoais podem ser ao mesmo tempo frágeis e poderosas.

É meu livro mais ousado, em especial no que diz respeito à linguagem. Os textos tiveram suas primeiras versões em 2018. Quando os reli, passado um período de sedimentação, me espantei, percebendo-me leitor de mim mesmo, e o que melhor conhece minhas habilidades e lacunas de escritor. Espantei-me com o embaralhamento das vozes, que abre a narrativa para outras possibilidades. Com o enredo não premeditado, com o tanto de vivência pessoal alimentando a vitalidade das personagens. E em especial com a busca por respostas que percorre os textos e os conecta.

No conto Luminescências, um sujeito reinventa certo acontecimento de sua infância a cada vez que o relata, buscando entender como aquilo ainda o determina. Após um acidente de carro que vitima sua namorada, o protagonista de Eterno retorno deve se reaver com o destino. Por fim, em Museu de Arte Efêmera de Lethe, o fato de ninguém se lembrar da criança afogada no rio faz outras tragédias virem à tona, assim como a indiferença de suas testemunhas.

Sigo ansioso por descobrir se os leitores sentirão também o espanto que me acometeu durante a redação. Não idêntico, claro. Mas algum ímpeto poético que abra uma fenda nos absurdos corriqueiros já tomados como certos. Um deslocamento na direção do desconhecido. Uma respiração retesada. Um incômodo. Se isso acontecer, o trabalho terá cumprido o seu propósito.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

DEJETO

Trecho do livro “Museu de Arte Efêmera”, recém-lançado pela editora Laranja Original.


– Cutuca logo, vai.
– E se não estiver morta?
– É claro que está.
– Como você sabe?
– Eu sou mais velho. Eu sei.
– É minha varinha da Hermione. Eu não vou encostar nisso aí.
– Não vai estragar.
– Então, empresta a sua.
– A minha é de colecionador, custa cinco vezes o preço da sua. Em dólares!
– Ué, não vai estragar.
– Se não cutucar, como a gente vai saber que a água está envenenada?
– Você acha que isso aí bebeu e morreu?
– Se for veneno, a gente tem que nadar de boca fechada.
– Não vamos nadar!
– Não está verde que nem nos desenhos. Pode ter se afogado.
– Pode ter sido comida por um peixe gigante e depois vomitada aqui.
– Isto aqui não é mar, é uma represa. E não é história de criancinha. Aqui não tem peixe gigante.
– Pode ter sido vomitada no mar e veio boiando até aqui.
– É o rio que desce até o mar, não o mar que sobe o rio. Você não presta atenção nas aulas?
– Não tive essa matéria ainda.
– É só você pensar: o mar é salgado, o rio é doce. Se o mar escorresse no rio, ele também seria salgado.
– Se o rio caísse no mar, o mar seria doce!
– Sal é mais forte que açúcar. É por isso que a gente come a sobremesa depois.
– Hã?
– Cutuca logo, vai. Sem varinha.
– Não vou encostar nisso aí não.
– Medrosa.
– É você!
– A gente precisa resolver isso pra nadar.
– Você prometeu pra mamãe que só ia brincar na beiradinha.
– Eu sei nadar. Vamos procurar um galho.
– A gente devia falar pra mamãe.
– Ela tem coisa mais importante pra fazer.
– Mais do que isso?
– Mais. A gente devia procurar um jornalista.
– Você conhece um?
– Aqui no condomínio deve ter. Aquela ruiva da novela tava assinando autorização na portaria. Foi a mãe que disse.
– Eu não achei nenhum galho ainda.
– Continua procurando. A gente devia filmar com o celular, postar no YouTube, aí o jornalista vinha procurar a gente.
– Pra quê?
– Pra fazer entrevista. Foi a gente que encontrou ela primeiro.
– A gente ia ficar famoso.
– Pena que a mãe não me deixou trazer o celular.
– Você ia derrubar na água de novo.
– Na piscina, foi sem querer. E tem piscina e privada em casa, então lá também não é seguro.
– Nenhum galho. Desisto.
– Cutuca com a mão mesmo.
– De jeito nenhum! Vou pegar doença.
– Você perdeu no par ou ímpar.
– Eu disse que queria ímpar.
– Eu sou mais velho, eu escolho primeiro. Agora, cutuca.
– Quantos anos você acha que ela tem?
– Tava no máximo na segunda série.
– Tudo isso?
– Tem um pouco menos do que o meu tamanho.
– Certeza que não conhece ela?
– Lá na escola não tem ninguém com o cabelo enroladinho assim.
– Parece trombadinha. Será que pulou o muro?
– A mãe já disse mil vezes pra gente não falar essas coisas na frente dos outros.
– Mas ela tá morta.
– Ainda não temos certeza, você não cutucou. Deve ter sido a chuva de ontem.
– Será que veio de muito longe?
– Acho que sim. Tá cheia de lama.
– Como a gente vai descobrir a mamãe dela?
– A gente vai filmar e postar na internet. Alguém vai ver e marcar ela. Vou buscar o celular. Não sai daqui.
– Eu vou junto.
– Não, você corre muito devagar. Espera aqui.
– Você prometeu pra mamãe que ia cuidar de mim!
– É só você não sair daqui.

– Oi, menina. Eu sou a Alice. Qual é o seu nome? Que diferente! Eu também queria ter um nome assim. Tem quatro Alices na minha classe. Desculpa ter chamado você de trombadinha. Minha mãe disse que a gente só pode falar preconceito quando não tem ninguém por perto. Você mora onde? Nossa, verdade? Como você chegou na chácara do vovô? Vim aqui passar uns tempos. Eu queria muito mesmo era morar em Hogwarts e ter aulas de magia. Na minha escola, só tem português, matemática, ciências, geografia, história e ioga e expressão corporal. E inglês. Eu queria mesmo era ter uma capa invisível para estudar ali e ninguém ficar perguntando nada. Logo passa, não é verdade? Meu irmão disse que você se afogou na represa. Ele aprendeu a nadar, eu ainda não sei direito. Achei que era mais fácil. Por que você não fez natação? Não tem piscina no seu clube? Se tivesse feito, podia nadar melhor do que todo mundo da minha escola. Na festinha de formatura deste ano, vou de novo pra Disney. Minha mãe disse que vou aproveitar mais porque vou estar maior. Eu não sei… Nas outras vezes, papai estava junto. Se estudasse em Hogwarts como você, faria tudo num passe de mágica. Traria papai para morar de novo com a gente. Como você perdeu o tênis? Seu pé tá muito sujo! Se eu subir no sofá assim, mamãe dá uma bronca gigante. Outro dia, eu tirei o sapato pra brincar no jardim e mamãe disse que a princesinha dela não podia andar por aí de qualquer jeito. Se a sua mamãe deixa você andar descalça, é uma menina de sorte. Pois é! Seu cabelo parece muito com o da moça que trabalha lá em casa, o nome dela é Jeneci, você conhece? Vou perguntar pra Jeneci se ela conhece você. Ela fala de um jeito engraçado. A mamãe não gosta que eu conte muitas coisas pra ela porque nunca se sabe. Nunca se sabe o quê? Não sei, nunca se sabe! Mamãe também é engraçada, às vezes. Mas de um jeito diferente. E ela é muito brava quase sempre. Ontem, ela falou palavrão no telefone. Eu me escondi debaixo da escada, onde nenhum adulto me encontra. E ouvi. Meu irmão disse que era o advogado do papai que ligou. Ele disse que papai ia buscar a gente, mas não apareceu. Mamãe fez as malas rapidinho, saiu catando tudo das gavetas. E o seu, ainda mora com você? Eu queria perguntar quando o meu vai voltar de verdade, mas a mamãe não deixa porque vou deixar ele triste. Ele também não tem capa de ficar invisível. Até que você é uma menina legal! Quando meu irmão chegar, vamos juntar nossas varinhas e fazer você voltar a andar. Ou nadar. Daí, a gente pode até ser amigas. Qual é a sua feiticeira preferida? Que máximo, vai dar certinho pra gente brincar de Harry Potter, Hermione e Gina! Você sabia que o Harry Potter perdeu a mamãe e o papai quando era criança? A gente vai fazer de tudo para encontrar os seus, tá? Dá pra achar tudo na internet. O que é isso no seu bolso? Tá quase saindo. Aqui, ó, tá vendo? Não, obrigada. É. Tem certeza? Tá bem, dá aqui…

– Que triste! Foi você que escreveu?
– Você encostou nela!
– Não encostei!
– Encostou sim, eu vi! O que é isso?
– Nada. Um papel sujo. Vamos fazer o vídeo?
– A mãe não emprestou o celular. Ela tá a tarde inteira mexendo nele! Disse que alguém pode ligar e ela precisa atender.
– Você contou que é pra encontrar a mamãe da menina?
– Ela mandou a gente deixar isso aí e voltar pra casa logo. O pão de queijo tá quase pronto. A Jeneci fez suco de laranja também.
– Tá bem. Tchau, Gina! A gente volta amanhã pra brincar com você. Vamos ficar um bom tempo na casa do vovô.

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O trecho acima faz parte do conto “Museu de Arte Efêmera de Lethe”, que por sua vez compõe o livro Museu de Arte Efêmera, de Eduardo A. A. Almeida, publicado pela editora Laranja Original.


Sinopse

Um sujeito reinventa certo acontecimento de sua infância a cada vez que o relata, buscando entender como aquilo ainda o determina. Após um acidente de carro que vitima sua namorada, um corretor de seguros deve se reaver com o destino. Quando ninguém se lembra da criança afogada no rio, outras tragédias vêm à tona, e junto a indiferença de suas testemunhas.

Os três contos que compõem o acervo deste museu têm em comum a questão da memória. A memória como forma de elaborar a vida, como marca traumática, como resistência diante do esquecimento.

Com estrutura fragmentada, inspiração dramática e um complexo jogo de imagens e sensações, Museu de Arte Efêmera mostra como nossas histórias podem ser ao mesmo tempo frágeis e poderosas.