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sábado, 12 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (POSFÁCIO)

Talvez você tenha sido amada também, embora não tenha se encontrado nestes relatos. Talvez eu não me recorde, talvez não deva falar. Talvez tenhamos nos visto apenas uma, duas, muitas vezes. Talvez não o bastante. Talvez a gente ainda não se conheça. Talvez não o suficiente. Talvez pareça que me apaixono fácil, mas não é verdade; a maioria dos casos foi puro platonismo. Talvez eu ainda ame você. Talvez nem mesmo eu saiba. Talvez ainda venha a amá-la. São as incertezas, essas imprecisões e indecisões, que fazem do amor uma aventura viva, pulsante, tão memorável. Tanta gente se dedicou ao amor ao longo da História! Tanta gente se dedicou 'simplesmente' a amar, às suas próprias histórias de amor. Não sou, nem de longe, pessoa apropriada para dar voz aos grandes anseios e mistérios da humanidade. Tenho meras lembranças. Meia dúzia de recordações. Que talvez sejam verdade, talvez não. Seja como for, são obras da minha cabeça. Talvez do coração.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (12)

Enquanto realizava as pesquisas para o mestrado, caí de amores pela artista que permanecia no foco das minhas atenções. É natural que o interesse gere mais interesse. Não seria nada excepcional caso ela não estivesse morta há trinta anos. Mesmo assim eu me sentia próximo, folheando seus escritos, descobrindo suas obras, assistindo aos seus filmes. Era como se pertencesse ao seu mundo, um pouquinho que fosse. O qual, de tão encantador, me fez apaixonar.

Uma certeza que tive, talvez a única certeza que se permita ter, é que o amor não cabe no tempo, no espaço, numa língua ou numa cultura específica. Ele avança fronteiras. E reside aqui e ali consecutivamente, em ambos os territórios, independente da nossa vontade. Numa ambiguidade sedutora.

Lygia tinha temperamento difícil. Discordávamos com frequência. Porém sua obra causava fascínio e admiração, então eu deixava as desavenças de lado para me dedicar inteiramente aos elogios. Conheci o universo pelo seu ponto de vista. Pensei as relações humanas segundo a sua perspectiva. Cada aspecto seu emergia e me transformava. Não tinha outra maneira de agradecer senão agregando pontos positivos às suas memórias.

Foi muito difícil deixá-la. Contudo, era preciso. Voltar as costas, seguir adiante. Trouxe uma parte preciosa comigo. Não suas pinturas e esculturas, que até valem um bom dinheiro. Trouxe experiência de vida. Fé na liberdade. Vontade criativa. Não tem dinheiro que compre essas coisas. Aliás, o dinheiro nem sabe o que significam.

Toda vez que me deparo com uma nova pesquisa sobre arte, sei como Lygia pensaria. Ou pelo menos eu imagino com tamanha convicção que faço realidade da ficção. E vice-versa. De todo modo, é sempre ela que vem. Sempre em primeiro lugar. Como um amor do passado que eu jamais esqueci.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (11)

Não tenho condições de esmiuçar o grande amor da minha vida porque ele não cabe aqui; eu teria que escrever um romance, talvez uma trilogia, como está na moda. Nem mesmo assim... a literatura não daria conta, é muita responsabilidade. Além do mais, o amor é nosso, tem a nossa cara, o nosso jeito; duvido que interesse aos leitores.

Posso compartilhar apenas uma lembrança, que no fim das contas resume bem o casamento. Uma cena. Assim:

Eu quero sanduíche, Juliana quer sopa. Inclusive, ela quer que eu tome sua sopa também. Levo meia hora persuadindo-a de que podemos muito bem jantar juntos com ela tomando a sopa e eu comendo o sanduíche. Gera um atrito mas ela concorda. Preparamos os pratos, sentamos para jantar. E ela come o meu sanduíche.

Rimos. Tomo a sopa, que estava gostosa, até.

Passamos então a planejar o cardápio do dia seguinte.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (10)

Já amei mulher casada. Sim, já. Para melhor ou para pior, acredito que ela me amou também, e ficou esperando um movimento meu para reviver o universo em seu estado de caos. Não seria um ato fugidio, ou ato falho, isso nunca me interessou; seria aposta das grandes, daquelas que põem tudo em risco. Acredite, milhares de possibilidades passam pela cabeça de quem ama nessas condições. Porém as cartadas nem sempre são decididas ali, na cabeça, e algumas daquelas possibilidades por vezes se tornam fato.

Eu estava solteiro na época, sem namorada nem nada. E achava inconcebível não poder amá-la porque um dia, num passado não tão distante, Giovana decidiu se comprometer por toda a vida. Não fazia sentido. Era tão jovem! Tão jovem quanto eu. E, no limite, restava a nós somente uma parcela da vida para sermos felizes.

Sabe, a traição é sempre questão de egoísmo. Não é um moralista que fala, ok? Penso isso friamente. Pode ser que a mudança compense, afinal; não dá para estabelecer uma regra. Mesmo assim, quando a jogada dá certo e os envolvidos ficam bem, ainda me parece egoísmo. Por causa do desejo de romper uma relação somente para iniciar outra. Porque essa outra seria supostamente melhor. Pura tentação. Uma cilada que pode terminar mal. Enfim, é amor. E amor não tem mesmo fundamento, de nada adianta querer justificá-lo.

Fato é que hoje o casado sou eu. Só quando me comprometi é que pude entender o poder do rito. Não foi antes, não foi quando achei que convinha casar. Foi na hora do sim. Compreendi que não se trata de abrir mão de outros amores. Mas, sim, de me dedicar inteiramente ao meu; aquele que provou valer a pena.

Ainda, uma aposta. Que beco sem saída!

Veja bem, sem arrependimentos, continuo a amar mulher casada. A minha.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (9)

Já tentei amar com objetivo de esquecer outro amor. Foi patético; óbvio que não deu certo. Porque não se anula um amor com outro, assim como não se divide o amor em dois. Amor apenas soma. Se o resultado não confere, sinal de que algo na equação está errado – convém rever os elementos.

Insisti durante um tempo. Pouco, na verdade. Para minha sorte, Júlia percebeu e não se deixou enganar. Foi mais esperta, pois eu nem sabia que a enganava. Aliás, enganava a mim, a ela e a meu outro amor, o verdadeiro.

Nossa relação, na qual eu depositava uma quantia incontável de esperança, ingênuo que fui, rompeu de uma hora para a outra, tamanha a sua inconsistência. Desandou. Até nisso eu me enganava.

Investi meu espírito na ciência do amor, por mais incompatíveis que fossem, a princípio. Jamais consegui explicar a razão. De algum modo, acredito que ela compreendeu. Não precisou da lógica, apenas do sentimento. Achei-a forte, decidida. Foi gentil comigo. E desapareceu.

Fiquei livre para me dedicar ao amor primeiro, aquele que eu tentava esquecer sem sucesso, que originou toda a discórdia. Também ele não deu certo, coisa que eu sabia desde o início. Repassei cada uma das suas questões, revisei os dados, adicionei pontos positivos, subtraí pontos negativos, contei demais com conjuntos vazios. Procurava uma resposta esclarecedora. A solução era sempre igual. Tratava-se de um amor impossível.

domingo, 29 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (8)

A primeira vez que chorei por amor foi aos dezoito anos. Foi também a primeira vez que amei de verdade. Porque existem amores e amores; isso eu fui descobrindo com o tempo. Não que os outros sejam falsos – é que o amor verdadeiro tem algo de especial. Difícil defini-lo. Só que a gente sabe quando é.

Esse amor veio misturado com uma vontade de descoberta, uma paixão à primeira vista, uma situação delicada e uma amizade insustentável. Aconteceu logo que ingressei na faculdade. E quatro anos conflituosos se seguiram. Posso afirmar que a disciplina mais complexa de toda a graduação foi amar. Quando finalmente aprendia a lição, era mais uma vez posto à prova, e custava muito a me recuperar. Ainda hoje acho que o tema é uma irregularidade em meu currículo. Jamais irei dominá-lo. Jamais ficarei à vontade com ele.

Como obra do destino, conheci meu amor no primeiro dia de aulas. Não é bonito? Melhor dizendo: eu a vi no primeiro dia; a gente só se conheceria mais tarde. Estava sentada num banco, entre as árvores, solitária. Um fichário aberto sobre o colo, concentrada na leitura. Nunca esqueci a cena. Cheguei a questioná-la numa oportunidade, ela não se lembrava. Deve ter ficado ali por um instante só; instante que tomei para mim.

O destino continuou a me seduzir. Ao perceber que estávamos na mesma turma, tive certeza de que Inês seria o amor de minha vida. Essas certezas que a gente tem... põem todo o resto em questão. Não demoramos a conversar. Nem a descobrir uma ligação muito forte.

Mas eu era lento. Inexperiente. Inseguro. E ela carregava um pretenso caso desde o colégio, que germinou nas brechas que deixei. Nas minhas falhas. Quando me dei conta, éramos amigos muito próximos, de um jeito como nunca tinha experimentado, e ela namorava outro, talvez enquanto aguardava minha tomada de decisão. Pode ser fantasia minha, claro. Mesmo assim, sei que não era amor que a unia ao namorado. Ao menos não naquele início. Era uma aposta às cegas.

Simplifico a relação, falando desse jeito. É muito difícil resumir quatro anos tão intensos, tão cheio de altos e baixos. Tampouco acredito ser necessário. Minha falta de iniciativa era inocente demais, e acabei culpando o bom caráter por não deixar com que abrisse meu coração a uma amiga comprometida. Eu não queria lhe provocar transtornos, então optei por guardar todos para mim. Não achava justo. Por uma questão moral, talvez. Acho que foi essa a desculpa que encontrei para aceitar a situação. Ou para tentar superá-la.

A ligação que tínhamos pendeu para o meu lado. Ela me tratava com frieza para conter meus ânimos acalorados. Sonhei, sofri. Amadureci.

Lembro que aprendi a tocar Beija Flor, do Cazuza, porque era sua música favorita. Passei a gostar da música também. Forcei encontros, deixei-a constrangida, exigia o que ela não podia dar, exagerava na dose de proximidade. A demasia foi um problema. Porque o amor transbordou. Amei-a intensamente sem poder avançar um limite tênue – e opressor. O excesso acabou por desgastar o amor.

Chorei a primeira de diversas vezes, como se chorar esvaziasse a reserva de lágrimas. Descobri que o amor pode ser tão grave quanto delicado; as duas coisas ao mesmo tempo. Ele atravessa tormentas mas falece num sopro de vaidade. Numa atitude não assumida. Numa hesitação. Num ímpeto não correspondido. Basta uma palavra errada e sua solidez se esfacela.

No meu caso, não houve palavra alguma, esse foi o problema. O que restava para ser dito, o que não estava subentendido, já não tinha vitalidade. A angústia, insuportável; ergueu uma barreira entre nós. Nem a amizade podia vencê-la. Carregamos o fardo até a colação de grau. Depois não tivemos como manter contato. Exceto, talvez, em parcas tentativas de fulminar algo tão mal resolvido. Um email, uma lembrança.

Encontrei-a uma vez mais, alguns anos depois. Foi um encontro necessário. Somente para saber se pudemos superar a nós mesmos. Foi um encontro divertido. Que logo esqueci.

Nem todo amor verdadeiro dá frutos. Assim como nem toda certeza sobrevive ao tempo. É preciso aceitar isso. Nada é absoluto. Aliás, o amor não precisa disso para existir. Nós é que impomos tamanha ingratidão a ele. O amor não precisa de condição. Precisa, sim, ser incondicional.

Este deveria ser um dos meus relatos mais comoventes, dado o que significou em minha vida, porém não dou conta dele agora nem consigo descrevê-lo conforme gostaria, sem soar brega. Era para ser o relato mais sincero também. Mas está cheio de linhas duvidosas, caminhos discutíveis, pontos de vista não correspondentes aos fatos. Uma trama maliciosa. Ainda que buscasse somente um final feliz.

Acontece que os finais felizes são os mais manipulados. Os mais distantes da vida comum. Porque nenhum amor acaba bem. Não tem como acabar e continuar bem. Ao contrário, é a felicidade que dura enquanto houver amor.

Quando o fim traz a sensação de bem estar, estou certo de que é porque o amor já não existia. Ao menos não o amor verdadeiro.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (7)

Houve amores – poucos, admito – que dispensei. Amores que não podia corresponder. Aprendi com eles. Inclusive, acredito que aprendi a ser mais amoroso quando não correspondia a alguém que me amava. Aprendi também a lidar melhor com a situação contrária, quando eu propunha o amor e nada obtinha em contrapartida – isso sim aconteceu um punhado de vezes, diga-se de passagem.

O primeiro desses amores veio de uma amiga e me pegou de surpresa. Eu jamais a imaginara naquelas condições, e quando descobri já me amava – ou queria amar – havia tempos. Ela 'gostava' de mim, como costumávamos dizer. E eu meio que gostava também, só que não do mesmo jeito. Aliás, não sei se gostava, fosse do jeito que fosse.

Não foi por maldade, entenda bem. Eu somente não conseguia vê-la assim. Nunca disse nada diretamente, foram os amigos em comum que intermediaram a conversa toda. A amizade se transformou, claro. E não durou muito tempo mais. Amar tem suas dádivas e seus pesares. Sem rancor, entretanto. Hoje, sou grato pelo que Ângela me ensinou. Espero que me tenha do mesmo modo.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (6)

Patrícia foi mais uma admiração do que propriamente um amor; contudo não acho estranho citá-la aqui. Frequentamos os mesmos lugares durante anos. Sei que ela me admirava também, ainda que não tenhamos trocado mais do que meia hora de papo. Era gordinha e divertida, estava sempre sorrindo. Seu bom astral contagiava. Ficou um tempo sumida. Voltou esquelética, indiferente, nem parecia a mesma pessoa. Vieram dizer que estava anoréxica. Mas por quê? Que bobagem é essa?

Deixei de frequentar aqueles lugares. Isso faz anos. Não tive mais notícias dela. Procurei-a diversas vezes depois, nas redes sociais de que participei, sem jamais encontrá-la. Seu sobrenome era bastante incomum, não deveria ser tão difícil. Também não tive coragem de perguntar aos poucos conhecidos que compartilhávamos, e com quem não tinha tanta intimidade assim. Receio que a doença a matou. Seria uma perda lastimável. Fico triste por imaginar isso, e me dou conta de que falo dela com verbos no passado. Pretérito imperfeito.

Eu gostaria que Patrícia estivesse bem. De verdade. É tudo o que me resta.

sábado, 21 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (5)

Ainda no colégio, tive uma paixonite por uma garota que, se muito, foi amiga minha durante um período breve. A história se resumiria a isso caso eu não tivesse descoberto – anos mais tarde e meses após o ocorrido – que ela falecera num acidente de carro. Tinha o quê?, dezoito, dezenove anos? Foi ela que fez da morte algo factível. Quer dizer, que me apresentou a possibilidade de morte para jovens da minha idade e, no limite, para mim mesmo. Até então, morrer era uma verdade distante. Não pertencia à minha realidade.

O namorado dirigia. Pegaram um caminhão de frente na estrada. Disseram que foi ultrapassagem em local proibido. Para ser sincero, nunca quis saber se foi mesmo. Não queria explicação. Pensei em culpar o namorado, já pensei em culpá-la por namorá-lo, só que isso não leva a nada, exceto a mais arrependimento por nunca ter levado a cabo minha vontade e, com sorte, modificado sua trajetória. Bom, talvez não dependesse de mim. Éramos crianças. E essa culpa só vem acompanhada de remorso. Ninguém precisa dela.

Ainda hoje sinto que Ingrid está viva. De vez em quando, com intervalos de tempo sempre mais longos, me percebo lembrando dela, do seu perfil esguio, sua postura ereta de bailarina. Aos poucos, sua imagem vai desaparecendo. Era uma garota bonita, embora sorrisse pouco. Sempre lhe desejei um futuro próspero. Eu queria vê-la dançar, coisa que fazia tão bem. Dançar num palco grandioso. E ver a plateia aplaudi-la de pé.

Sim, penso nela de vez em quando. É como se estivesse dançando por aí, em algum teatro da cidade. Um lugar próximo de mim. Como se a notícia não tivesse passado de um mal entendido. Como se não houvesse nada com que se preocupar. Bastaria isso. Um desencontro. Um desencontro de informações. Um encontro, talvez. Bastaria.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (4)

É curioso falar de sonho porque traz à tona outro amor breve da minha adolescência; amor fugaz e inseguro como eu era na época. Falo de uma amiga num grupo de amigos em que os amores e as desilusões se revezavam. Amávamos e nos desamávamos tanto que o grupo se desfez assim que chegamos à faculdade, e cada um seguiu seu próprio rumo sem remorso ou coisa do tipo.

Mas eu falava de sonho. Foi mais um pesadelo, na verdade, que me acordou com uma sensação esquisita. Eu estava na cobertura de um prédio muito alto; tão alto que só enxergava as luzes da cidade à distância lá embaixo. As ruas eram como rugosidades num tapete. Até o sol estava baixo, deixando tudo numa atmosfera crepuscular. Não havia outros prédios como aquele, talvez sequer houvesse prédios naquela cidade que se esticava além do limite dos meus olhos. O que havia era gente. Muita gente comigo, no topo da torre, e eu não conhecia ninguém, eram tão estranhos quanto o contexto. Estavam todos em pânico e eu não sabia o motivo, mas também ficava em pânico por causa deles. Eu também tinha medo. Do quê? Lembro de olhar para baixo e ver fumaça. O prédio pegava fogo e nós estávamos refugiados no topo sem ter como ir mais para cima. Esperávamos socorro num lugar que o socorro jamais alcançaria. Estávamos no limite entre o céu e a terra.

Reclinado no parapeito, vi outro prédio igualzinho àquele em que eu me encontrava. Tão alto quanto. Não sei se já estava ali ou se apareceu de repente. Então não era apenas um, mas dois prédios maiores do que a humanidade; duas torres isoladas do mundo, da realidade profana das ruas.

O prédio vizinho também tinha fogo, eu podia ver um buraco enorme bem no meio dele, por onde saíam labaredas e uma espessa coluna de fumaça.

No sonho, eu conseguia ver mais um monte de gente na cobertura do prédio vizinho, na mesma situação desoladora. Apesar da distância, eu podia ver Paloma, uma das amigas do grupo do colégio, sozinha no meio daquela gente toda, tal como eu. Tentei gritar, ela não ouviu. Uma, duas vezes. Não deu para fazer mais nada.

Logo em seguida o chão cedeu sob meus pés e eu caí com ele; uma queda interminável. Passavam pessoas, blocos de concreto, estilhaços de vidro, fogo. Tudo voava em torno de mim enquanto caíamos. As pessoas gritavam; eu permanecia impassível, com enorme frio na barriga enquanto o prédio se desmanchava. Uma cena dantesca. Ainda sinto frio na barriga só de pensar.

Lembro também de olhar para o lado e ver o prédio vizinho repetir os movimentos do meu, como um mergulho sincronizado em direção ao inferno. Acho que foi ao vê-lo que compreendi o que acontecia comigo.

Por algum milagre, eu sobrevivia. Caminhava pelos escombros, branco de pó, respirando fuligem em meio a uma escuridão de pedras, ferro retorcido e objetos quebrados. Procurava Paloma. Por algum milagre eu a encontrava. Estava meio inerte, meio soterrada. Completamente atordoada. Eu a resgatava. E o pesadelo terminava.

Acordei com uma sensação esquisita, como disse. Ignorei-a por uns dias, esperando passar. Não aconteceu. Eu sabia que não passaria. Alguma coisa me dava esse pressentimento Chamei então Paloma num canto, expliquei que só contaria o sonho porque ela estava nele e eu não sabia direito o que significava. Fiz isso num tom muito sério. Até demais para um adolescente. Ela ouviu sem dar a menor bola. Me devolveu a mesma mistura de tristeza e receio que se oferece a um lunático. Voltei para casa angustiado. Era tudo o que podia fazer.

Cerca de três meses depois, um ataque terrorista derrubou as Torres Gêmeas de Nova York. Vi os prédios queimarem e desabarem na TV. Fiquei em choque. Nunca mais esqueci a sensação. Nunca deixei de senti-la quando o assunto retornava.

Lembro-me de ir até Paloma e descarregar nela toda a minha aflição. Não disse que aconteceria? Eu sabia. Avisei você. Eu sabia que se realizaria.

Não fui grosso, apenas um pouco afetado. Falei baixo para ninguém ouvir. De qualquer maneira, nenhum colega prestava atenção em outra coisa que não o noticiário.

Paloma também ficou assustada. Não sei o que pensava. Não voltou a falar comigo, embora tenhamos estudado juntos durante o resto do ano. Eu não queria falar tampouco. Sequer na formatura nos cumprimentamos.

Jamais soube se ela contou a história para outra pessoa. Eu a guardei todinha para mim. Até agora.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (3)

Tive muitos amores quando criança, naquele período mágico de descoberta do mundo. A cada nova descoberta um novo amor. É fácil apaixonar-se quando se é inocente. Depois fica tudo mais complexo, mais difícil. Inclusive amar.

O amor de que me lembro agora ficou retido na segunda ou terceira série do primário. Menina branquinha, de olhos levemente puxados e cabelo curto. Linda. Todo amor é lindo enquanto dura.

Não me lembro de ter falado com ela sobre minhas intenções. Claro que não; nem mesmo eu sabia quais eram. Lembro-me apenas de ter relatado um sonho:

Ela, uma espécie meio robótica, com rodinhas nos pés, braços estendidos à frente do corpo, mãos prontas para agarrar e não soltar jamais. Eu, vítima acuada, assustada. Com medo de amar.

Havia uma sirene em sua cabeça, isso foi marcante. Aliás, sirene não, era uma luz giroscópica; uma só, igual nos filmes dos anos 1980, nos carros de detetive à paisana que, de uma hora para outra, entravam em missão e tinham uma luz alaranjada acoplada ao capô.

As rodinhas nos pés davam à Karina ritmo constante, e naquela velocidade baixa, angustiante, ela vinha atrás de mim, chegando cada vez mais perto; não importava o quanto eu corria ela se aproximava mais e mais. A perseguição se dava numa escuridão infinita, sem paredes nem pessoas. Apenas o desconhecido para além de nós dois. Apenas solidão. Eu corria, suava, em pânico. Ela vinha atrás, incansável, impassível. Até que despertei.

Não sei dizer qual foi a reação dela ao sonho. Hoje eu jamais o contaria, por mais que sonhar seja meigo. Ainda que o bizarro seja afeito ao mundo dos sonhos, nem todos o aceitam. Comigo seria diferente? Não sei... seja como for, Karina se foi, e o sonho permaneceu por décadas.

Eu tinha um carrinho de pilhas na época, uma viatura policial futurista. Era azul, e quando batia ficava todo amassado. Pois bastava apertar um botão e a lataria retomava a forma original. Eu adorava. Lembrando dele agora, acho que desvendei a associação feita pelo meu inconsciente enquanto eu dormia. Incrível como nunca tinha me dado conta.

Não saberia dizer se gostava mais do carrinho ou de Karina. Essas coisas não se mediam assim, na época.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (2)

O primeiro amor de que lembro remonta à minha pré-história; a pré-escola, antes mesmo de apreender a ideia de amor. Mocinha sorridente, dividia comigo o balanço do parquinho, na hora do recreio. Nosso caso ia e vinha sem sair do lugar. Ela nunca percebeu. Eu jamais quis que alguém soubesse. Diziam, meus amiguinhos, que o pai dela era dono do açougue, e cortaria fora a graça de quem se engraçasse com Fabiana. Eu tinha pavor de perder a graça, claro. Meus amiguinhos riam. Mais ligeiros, estavam preocupados com proteger outros interesses. Quando entendi a piada, meu primeiro amor estava distante; distante demais para o tamanho da minha precoce liberdade. Talvez no outro período, talvez na escola ao lado, talvez no quarteirão de cima. Enfim, longe de toda possibilidade de germinar; além de qualquer ilusão em meu remoto deserto de experiências.

terça-feira, 3 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (1)

Lembro como se fosse hoje daquela menina magrela do colégio. Tinha se tornado um mulherão, enquanto eu continuava com jeito de adolescente. Dei a ela uma carona, estiquei a viagem querendo saber mais. Fazia o quê?, quatro ou cinco anos que a gente não se via? Talvez nem tanto, não lembro bem. Acho que permaneci no mesmo colégio, e ela foi cursar um técnico. Disse que namorava, trabalhava, essas coisas que só fui descobrir mais tarde. Eu ia pra faculdade e dirigia o carro de minha mão no outro meio período, para cima e para baixo, e só.

Foi assim também nosso papo, cheio de altos e baixos. Estranho. Ela com receio da carona – estava na cara que eu a desviava do caminho; eu curioso, cheio de expectativa – ela ficava muito bem naquele uniforme.

Disse que estava resolvida. O namorado era do interior, filho de gente bem de vida, eu soube depois. Queria transferir para lá seu emprego de professora da prefeitura, pré-escola. Dava aula para criancinhas, adorava. Imaginei a cena repetidas vezes, sem acreditar na veracidade dela. Seu sonho era casar, fazer uns filhos e viver com a família longe da loucura da capital.

Achei um absurdo, mas não disse nada. Como uma garota de vinte anos sonha assim? Eu queria enrolar a faculdade, sem pressa, mochilar seis meses pela Europa, ficar rico e fazer qualquer coisa legal durante o resto da vida, quando desse vontade, caso desse vontade. Ela queria filhos e uma casinha no interior. Só isso. E tinha certeza.

Uns tempos depois, descobri que o tal namorado era gente muito rica. Mais velho, talvez uns dez anos, filho de fazendeiro, devia ser algo assim. Não vi filhos nem casinha, vi fotos do Mediterrâneo. Estados Unidos também. Caribe, acho. Ela postou no Facebook. Eu virava noites num estágio cujo 'salário' não pagava transporte nem alimentação. Morava com meus pais. Tinha vinte e cinco, vinte e seis anos, se me lembro direito. Ela viajava o mundo às custas do maridão. Tirava fotografia com taça de champanhe. Grécia, Itália, Turquia. Tudo de barco. O cara tinha jeito de cafajeste, desses que têm esquema com polícia. Careca, um porre. Ela continuava linda, mais linda ainda sem o uniforme de tactel. Só que, não sei... perdeu o encanto. Acompanhei as fotos durante uns meses. Depois a deletei dos meus amigos.

domingo, 2 de março de 2014

GENTE DE BEM

Casa de Brodowski (1943), de Candido Portinari

A vizinha tinha certeza de que havia uma família naquela casa, porém não sabia o que ruíra primeiro. Que tenha sido a família!, disse com certa compaixão. Mas logo deu de ombros, preocupou-se com a panela no fogo e encostou a porta. Ouvi dois trincos serem acionados e averiguados para evitar novo incômodo.

Outro vizinho mencionou parentes no exterior. Eles poderiam me ajudar. Exterior onde? Não sabia. Deve ser Estados Unidos, muita gente quer ir pra lá. Quem pode vai. Ainda mais nesses tempos de agora, essa confusão toda acontecendo. Perguntei da família que morava ali. Ele não tinha muita informação, e a maior parte era inventada. Diziam que havia brigas, parece que o casal não se entendia direito, descontavam tudo nos moleques, coitados. Parece que o marido não era muito chegado no batente, veja só o estado que a casa ficou, um desleixo só, nem se aguentou de pé! Parece que a mulher era da vida, andou de graça com um sujeito do bar ali debaixo, foi o que disseram. Ficou desmoralizada. Parece também que os moleques nunca iam pra escola, ficavam à toa por aí. Esse negócio de ficar à toa não dá certo não. Não é coisa de gente de bem. Onde já se viu?

Um jornal da época estampava, na primeira página, a casa no chão, do mesmo jeito que estava hoje, como se tivessem acabado de fotografar. Tragédia: casa desaba e moradores permanecem soterrados. O texto dizia que até o fechamento da edição as buscas permaneciam sem sucesso, e que os bombeiros trabalhavam duro com auxílio de cães sem jamais abandonarem a esperança. Dava para ver também um monte de curiosos ao redor dos escombros.

Nos dias seguintes veio uma atriz de novela gravar publicidade no coreto da central, aquilo mexeu demais com a cidade, todos ficaram alvoroçados. Depois começou o Carnaval e não encontrei qualquer outra notícia sobre o ocorrido.

Segundo o registro na delegacia, a casa desabou sem ninguém dentro. Não havia detalhes. Cidade pequena, sem peritos para investigar, ficou por isso mesmo. Ninguém tampouco apareceu para reivindicar seus direitos, coisa que não surpreendia; muita gente larga a vida aqui pra se arranjar na capital. O policial começou a desconfiar do meu interesse no assunto e preferi recuar antes que encontrasse suspeito de um crime que sequer existiu.

A dona do mercadinho chamou o casal de excêntrico. Vinham pouco, compravam rapidinho, não puxavam assunto. Pagavam direitinho, nunca pediram fiado. Deviam ter muito dinheiro. Achava que tinham vindo para tratar alguma doença, essas coisas de cidade grande, sabe? Pra repousar. Tinham ficado maluquinhos com a correria, a violência, o trânsito. Ela via TV, sabia como era. Uma loucura, não tem como aguentar muito tempo. A moça era bonita. Não sorria muito, tadinha. Mas era bonita mesmo assim. Perguntei da casa. Não sabia, nunca tinha ido lá ver. Diziam ser uma casa muito engraçada, não tinha nada. Talvez meu marido possa ajudar, ele deu um pulinho ali e já volta. Se você quiser esperar, à vontade.

Na última vez que voltei à rua, um velho lavava a calçada com sua mangueira molenga. Logo se pôs a papear. Eram boa gente, sabe? Nunca incomodaram, nunca fizeram escândalo, ficavam vivendo a vida deles. Gente discreta, só isso. Gente de bem. Dizem que tinham uns probleminhas aí, mas isso todo mundo tem, certo? Se cada um cuidasse do próprio umbigo, a vida seria mais fácil.

Perguntei se o casal trabalhava, o que faziam na cidade, como era a rotina. Sei não. Nunca falei com eles. Ficavam aí, saíam pouco, acho que trabalhavam em casa mesmo. Tinham dois filhos, dois meninos. Eles brincavam no quintal. Acho que tinham problema de dinheiro, talvez dívida no banco. Ouvi mais de uma vez os dois discutirem, gritaram alto, essas coisas de marido e mulher. Só que com essa distância não dava pra saber do que falavam, e eu também não ia me intrometer. Acho que era dívida porque a casa foi deteriorando e eles não davam jeito. Teve um vendaval aí que arrancou as telhas e eles deixaram assim mesmo, tudo esburacado. Teve o muro que cedeu ali do lado, tá vendo?, e ficou caído lá. O mato cresceu, os meninos deixaram de bagunça. Pelo menos eu não vi mais. A pintura mofou, o portão todo enferrujado. Lâmpada que não acendia mais, parede trincada por todo canto. Até que aquela noite fez um barulho danado e, quando eu cheguei aqui, a casa tava no chão. Vieram os bombeiros, teve gente que chorou, tinha carro de imprensa, foi uma coisa de doido. Uma balbúrdia. Todo mundo muito triste. Pensar que gente tão boa podia morrer desse jeito?

Sim, é verdade, não encontraram nada. Eu disse pra eles, na ocasião, que não tinha mais ninguém morando ali. Ninguém tinha certeza, mas só podia ser. Fazia tempo que não via nem ouvia ninguém. Acho que se mudaram. É difícil fazer mudança sem ninguém ver, né? Mas acho que fizeram sim. Sei lá. Tem gente que diz que a família morreu junto com a casa, que morreu antes, que morreu depois. Tem gente que fala em milagre, outros falam em assombração. Eu não acredito nessas bobagens não. O povo fica inventando coisa. Se as autoridades disseram que tá tudo certo assim é porque tá tudo certo mesmo, isso é fato. Quem sou eu pra duvidar?


Ps.: Não tem nada a ver com o texto, mesmo assim aproveite e visite o site do Projeto Portinari [de onde tirei a imagem acima], que é excelente: www.portinari.org.br

sábado, 21 de dezembro de 2013

DES-PROPOSITADA-MENTE

O olho cacodilato (1921), de Francis Picabia

Penso que deveria escrever um conto de Natal. Este ano haveria tempo hábil. Historinha breve, só para dizer que escrevi. Pelo menos isso. Já faz tanto desde o último! Não é apenas questão de tempo, claro. Foi uma espécie de desencanto. Sem vontade não há ideias. Sem boa vontade não há solução. Fui resolvendo minhas inquietações de outras maneiras. Além do mais, o Natal se tornou um feriado qualquer, do qual só me dou conta uma semana antes, quando decidem as tarefas de cada familiar. Tarefas de ceia: peru, tender, essas coisas. Sempre as mesmas. O que mais me irrita na tradição é também o que mais conforta. Natal é um período melancólico, de baixa produção, de vontade de nada. Vou escrever sobre o quê? Fábulas e sonhos não cabem mais, o mundo cresceu, acordou. Realismo também não cabe. Para que vou escrever sobre a "realidade" se a vida lá fora é mais interessante? Alguém quer ler no Natal? Essa é uma pergunta que cabe. Alguém tem paciência? Tenho impressão de que ninguém mais lê nada, ninguém além do meu círculozinho de amigos. Nada há para dizer a eles que já não tenha dito antes. Não vale escrever sobre isso.
      Deixo, então, a pena deslizar sobre o papel. Deus, como sou retrógrado!, uso caneta-tinteiro em época de wi-fi e smartphone. Mero fetiche. Não tenho espaço, menos ainda teria a droga do meu conto de Natal. Fico sem ideias, desconstruindo um personagem qualquer. Que, no fim das contas sou eu mesmo, disfarçado de ficção. Os pensamentos se esvaem, vou junto deles. Alguém estaria interessado nesse eu mesmo, super sem graça, banal, entediado? Precisa ler muito para entender, sabe?
      Foi o que imaginei.
      Os pensamentos se esvaem, vou junto. Um conceito se desfaz. Um sujeito se fragmenta. Escrevo com pena e observo, sozinho, a tinta ainda líquida na folha de papel. Ela demora a ser absorvida. Fico olhando. Isso sim vale. Parte evapora e se perde no mundo, parte é incorporada. Parte da tinta se vai, a outra fica retida, uma terceira se conecta às demais páginas do caderno numa ambiguidade só. Vejo as sombras do que já escrevi espreitarem do outro lado da folha. Porém não consigo compreendê-las. Não me pertencem mais.
      Derramo água sobre este texto. Despropositadamente. Um copo cheio de otimismo. A tinta se dilui, borra, espalha por toda a superfície do papel, escorre na mesa, mancha a madeira, suja os dedos, tinge a roupa, preenche as falhas, estraga tudo, põe tudo num estado de urgência. Esfrego a tinta no meu corpo inteiro. Pego a água suja de texto e espalho no rosto. Me parece bem melhor assim. Eh... agora sim.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

INVERSOS PARALELOS

Quando Mariana Teixeira me convidou para escrever o release do seu primeiro livro "solo", fiquei tão feliz quanto ensimesmado. Porque, se já é difícil escrever sobre o trabalho de outra pessoa, fica pior ainda quando se trata de uma amiga. Só que o livro é bom, muito bom, a começar pelo título. Repleto de poesia em todos os sentidos. Eu fui escrevendo, escrevendo, até que tinha em mãos um texto mais extenso do que o necessário. Acabei por fazer uma versão resumida, que foi utilizada na divulgação oficial. E resolvi postar aqui a versão completa, assim você pode ter uma ideia da literatura que aquelas páginas têm a oferecer.


Inversos Paralelos. O mundo às avessas. Todos os mundos; os mundos de cada um. Correndo lado a lado, ignorando-se mutuamente num universo particular – um pacto silencioso –, até que se cruzam, impactam, embatem, empatam. Caem na real.

Clique na imagem para ampliá-la.
Sem grandes utopias, o primeiro livro de Mariana Teixeira não romantiza o mundo, apenas o deseja menos estúpido, mais gentil, menos racional, mais acolhedor, menos partilhado, mais compartilhado; mais e/ou menos humano.

São versos cotidianos, feitos de pão na chapa, falta de tempo, (des)encontros, lembranças, sofás, andanças, paisagens urbanas, lágrimas, sinas e signos, resistências, rimas, tv, manchetes de jornal, coisas. Da vida. Quebra-cabeça rejuntado por certo incômodo errante, porém preciso e necessário, de quem observa sem saber direito o que está errado; suspeita de quem percebe, no vai e vem, as pecinhas fora do lugar. De quem não se deixa ludibriar pela amortização permissiva do dia a dia: o "deixa pra lá" que consente. Andar oscilante, insatisfeito, de quem enfrenta a realidade com as armas que tem à mão: uma lata de cerveja, um rinosoro, um celular tijolinho pré-pago, um arrepio de amor – talvez de frio –, cartão de crédito, café com leite para dar coragem. Condições do ser e do não ser. Questão delicada.

Em versos e prosas, a autora evoca cenas entrevistas nas ruas, onde procura a poesia das esquinas, a literatura dos botecos, as rimas sugestivas perdidas na primeira ou na segunda gaveta do criado-mudo, entre calmantes para dormir, estimulantes para trabalhar e um livro do Machado para fazer alguma coisa valer a pena, afinal.

Dores de cabeça de quem não sossega e pega o problema para si. Um tapa na cara, algumas sabedorias populares, afetos e desafetos, apontamentos e desapontamentos; risos e esperanças também, por que não? Todos os – muitos – lados da moeda. Tudo o que se vive num único dia, se tiver sorte, se estiver disposto a botar os pezinhos descalços na realidade dura. Sonhos e jovialidades entremeados pela vontade decidida de colocar os pingos nos is (somente pontos, sem coraçõezinhos). Vontade de consertar "o que não tem conserto; nem com fé nem com jeito; nem com pé nem com peito".

Cutucões, despropósitos, obsessões, politicagens, instantes fotográficos nem sempre fotogênicos, sarcasmos, diferenças, realidades surreais, relativismos. Porque, veja bem... A natureza tenta sobreviver no mundo dos homens, enquanto os homens falecem em sua própria natureza, sozinhos. Os paralelos se invertem.

O que Mariana Teixeira quer contar "vai além do conto. Vai além dos dias, das noites. Do sapato molhado e dos espirros vazios. Dos passeios sozinha pelo centro. Da companhia do gato preto".

Há quem cruze com um gato desses e faça o sinal da cruz. Por sua vez, Mariana Teixeira agarra o gato, abraça, faz dele um filho. Cruzes!

Ela agarra o que há de promissor no cotidiano, intimidado pelos (des)prazeres que correm soltos por aí, sufocado por eles. Assim, desmistifica atitudes e pensamentos mundanos que só têm a prejudicar a vida. Sua e a do gato. Nossa também.

Lançamento:
2 de outubro, das 18h30 às 21h30, na Livraria da Vila.
Rua Fradique Coutinho, 915 – Vila Madalena – São Paulo/SP.

Conheça também o blog da autora: Correndo com os Dedos

quinta-feira, 28 de março de 2013

É TUDO FRUTA PODRE

Cesto de frutas, cerca de 1595, de Caravaggio

É tudo fruta podre. São as coisa que dão pra gente comê. Só fruta podre, escura, colhida antes do tempo. Cheia de veneno, pra gente comê. Não tem gosto de nada. Tem gosto podre. Nasceu de onde isso? Foi a fruta podre que me deu isso aqui, ó. Na barriga, tá veno? Esse ponto verde, essa verruga. Foi a fruta podre. Vô fazê o quê? É o que tem, não tem mais nada, só isso. Na hora de comê, só tem isso, não tem mais nada. A gente vai comprá na xepa e tá caro, tá tudo imbutido no preço, imposto, safadeza dessa gente, essas coisa, tudo imbutido. Essa gente, é. Agora tem essa verruga verde na barriga. Eu, ela cresce, tá sabendo? Tô ligado, tô vendo, ela cresce sim. Tá maior todo dia, a verruga. Não tem o que fazer. Eu queria tirá, mas não tem o que fazer. O médico lá do posto disse pra esperá pra vê. Tô vendo, tô vendo, não tem mais o que fazê, tem que esperá. Eu queria tirá, não quero verruga verde não, não é de mim. Fica esse negócio aqui cresceno. Parece pequeno pra você, não faz essa cara não, você não sabe como é. Mas vai sabê, vai sabê. Você também só come fruta podre, tô ligado, tô sabeno. Paga caro, num paga? Paga sim, não tem opção, tamo tudo numa só, tudo junto. Eu e você. Puta que pariu. Não quero mais isso não, sabe, não quero não, fazê o quê? Todo dia, todo dia a mesma coisa. Cê acha que a gente quer? Acha que eu quero? FALA BOBAGEM NÃO! Não fala bobagem. Já basta as fruta podre, basta disso, não quero engoli mais merda pelo ouvido. E a verruga, que que eu faço? Quero tirar, não quero isso em mim não, quero rancá fora. Olha!, olha!, tá cresceno, viu? Cê viu? Voltei no posto de saúde, não sei se disse, o medico não tava não, ninguém sabia, o moço pediu lá pra esperá. Espera ou volta depois. Ai, moço, tira vai, tira daí. Tem que esperá, tem que esperá pra vê. Vê o quê? Tá podre, tá tudo podre, tô sabeno. Eu quero tirá, não quero mais isso não.

domingo, 15 de abril de 2012

CADERNO DE NOTAS NA ORIGINAIS REPROVADOS #7


Meu texto Caderno de Notas foi publicado na revista Originais Reprovados número 7, com projeto gráfico criado pela Faculdade de Editoração da ECA/USP. Queria agradecer ao pessoal de lá pela oportunidade. E parabenizá-los pelo trabalho, ficou muito bacana.

Como não dá para girar a tela do computador para ler, aqui vai uma reprodução:

Num velho caderno de notas que tinha ao colo, um jovem escritor, sentado num banco de praça, escrevia sobre um jovem escritor que, sentado num banco de praça, tinha ao colo um velho caderno de notas em que escrevia sobre um banco de praça em que, sentado, um jovem escritor escrevia, num velho caderno de notas que tinha ao colo, sobre o quê escrevia um jovem escritor que, sentado num banco de praça, tinha ao colo um velho caderno de notas em que um jovem escritor, sentado num banco de praça, escrevia, ao colo, sobre um velho caderno de notas de um jovem escritor que, sentado num banco de praça, não mais escrevia notas em seu velho caderno.

Quem quiser saber mais sobre a revista ou baixar as edições gratuitamente pode acessar: Originais Reprovados

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

SÃO PAULO

Estive andando pelo centro de São Paulo. Queria aproveitar os últimos instantes das férias, pois só me restavam aquela sexta-feira e o final de semana subsequente. Fui com objetivo de visitar uns pontos turísticos que, confesso, ainda desconhecia, mesmo tendo nascido aqui – e permanecido desde então. Se fosse rápido o bastante, sobraria tempo para uma passada pelo Mercado Municipal e um café antes de recomeçar o rush do metrô. Então almocei cedo e, lá pelas 13h, desembarquei na Estação Sé.
     O tempo estava bom, com céu azul e calor, aquele típico tempo que só me agrada quando estou em férias, livre dos trajes sociais. Porque no trânsito, a pé ou espremido nos trens, prefiro um friozinho nublado, bem comum ao longo do ano. Gosto até das garoas repentinas, que, ultimamente, só dão as caras quando tocam, nos bares, músicas saudosistas a respeito de uma cidade que a maioria não conheceu.
     Visitei a catedral e a praça, o Pátio do Colégio, o calçadão do ouro, o Mosteiro São Bento e uma porção de outros lugares de que nem me lembro mais. Tudo fica bem perto, a quadras de distância. Comprei uma garrafa de água gelada para beber no percurso. Foi uma tarde gostosa, andando livre por entre os prédios históricos, cruzando com ternos e gravatas sem vestir as suas preocupações e sem me contagiar com seu ritmo afobado. Eu tinha poucas horas, mas elas eram imensas.
     As ruas estavam cheias, assim como as lojas. Nunca tinha visto tudo funcionando daquele jeito, uma vez que só vou ao centro aos sábados e domingos, o que é bem diferente. Aquela era uma São Paulo no esplendor, intensa, coração pulsando acelerado e as pernas, desbaratadas, tentando alcançá-lo. Era uma cidade tão ocupada que não tinha consciência de si mesma.
     Parei numa banca de jornais para ler manchetes. Não passou nem um minuto, uma mulher apareceu e perguntou:
     – Oi, por favor, qual é o edifício Martinelli?
     – Esse da esquina –, respondeu o jornaleiro de modo automático, como quem ouvia aquela pergunta dezenas de vezes por dia.
     Pus um pé para fora e olhei para o alto. Tive que cobrir o rosto com a mão por causa do sol. Aquele era o famoso Martinelli?
     Estava rodeado por essas proteções de madeira que se colocam em prédios em construção. Elas ficavam no último andar, bem acima da rua, restaurando a coroa do rei deposto.
     Havia luzes acesas nos pavimentos inferiores, pelo que pude observar, inclusive no térreo, onde diversos estabelecimentos tinham as portas abertas para a rua.
     – Está em reforma? –, perguntei ao jornaleiro. A mulher já tinha mergulhado de volta na multidão.
     – Parece que sim. Mas ainda dá para fazer a visita.
     – Eu achei que estivesse fechado – na verdade, achei que estivesse abandonado ou demolido, mas seria ignorância demais para demonstrar naquele momento; assim, preferi amenizar. Até porque eu já tinha passado anteriormente por ele e nem sabia que se tratava do Martinelli. – Quer dizer que posso subir lá?
     – Sim, até onde eu sei.
     O jornaleiro nunca tinha subido, ainda que sua banca estivesse ali há décadas. Talvez o fato de os turistas virem lhe importunar o tempo todo tivesse gerado algum tipo de ressentimento, ou talvez a proximidade do edifício tivesse banalizado a relação. Fosse o que fosse, não era o meu caso.
     De volta à rua, procurei uma entrada entre as lojas. Poucos metros adiante, me deparei com um balcão e duas recepcionistas. Perguntei da visita, recebi um ticket e um aviso para me apressar, pois o grupo já estava saindo e o próximo ainda demoraria outra meia hora, no mínimo.
     A entrada ficava na rua lateral, número 35. Dobrei a esquina com passos largos e, no local indicado, dei num portão fechado. Forcei a maçaneta e a estrutura inteira rangeu. Era um portão de metal bastante antigo, todo ornamentado, enferrujado aqui e ali. Para minha sorte, o barulho chamou a atenção do segurança. Falei da visita, ele me deixou entrar e passou um rádio para o guia que acompanhava os turistas. Ouvi o rádio responder: “Manda ele aí”.
     Foram vinte e seis andares no elevador expresso, que, de tão rápido, fez meus ouvidos entupirem. Quando parou, um bombeiro me aguardava.
     – O grupo já está adiantado. Vou começar com você e alcançamos eles no caminho.
     Era um senhor barrigudo, de bigodes e jeito nervoso de falar. Bem diferente do que vem à cabeça quando penso em bombeiros.
     Saímos para o terraço por uma porta de madeira. Porta antiga, com janelinhas de vidro. Dava para ver a cidade toda. Quer dizer, essa era a sensação que eu tinha.
     Meu companheiro contou a história do prédio, que foi o primeiro arranha-céu de São Paulo e testemunha de muitos momentos marcantes. Explicou a ambição ousada do empreiteiro, um imigrante italiano que resolveu duplicar o número de andares enquanto o levantava; falou do assombro que a obra causou na população da época e revelou por que existe uma casa de quatro andares lá em cima, que parece ter levantado voo nas proximidades e pousado ali, no topo do Martinelli. Sem nenhum morador propriamente dito, a tal casa abriga hoje uma secretaria da prefeitura.
     Depois, o bombeiro apontou lugares-chave dos arredores e deu informações específicas sobre eles, tais como altura, número de freqüentadores e ano de inauguração. Dados que o turista ouve com espanto e esquece no minuto seguinte. Ele dominava o assunto e falava com peito inflado. Deveria trabalhar ali há um bom tempo, pois fornecer aquelas informações não era tarefa sua.
     Lá do alto, vi o Vale do Anhangabaú, a Estação Júlio Prestes, as serras do Mar e da Cantareira, as antenas da Avenida Paulista e, atrás de um prédio mais alto ainda, ele apontou minha casa. Ficava naquela direção e daria para vê-la, não fosse o gigantesco obstáculo. Comecei a puxar assunto, o bombeiro se entusiasmou e, em consequência, o grupo a que deveríamos nos juntar acabou se afastando ainda mais.
     Contornamos todo o lugar, concluindo um giro de trezentos e sessenta graus sobre a cidade. Deve ter levado uns quinze ou vinte minutos. Eu continuava curioso, principalmente a respeito de um assunto. Quando estávamos terminando, perguntei qual era o papel do Corpo de Bombeiros ali, uma vez que havia um guia turístico para realizar o passeio.
     – É segurança. Segurança dos visitantes. Ninguém pode subir aqui sem estar acompanhado por um de nós. Não podemos deixar que ninguém debruce no beiral, e nem tente outra coisa, você sabe.
     – Imagino – Não falei nada por educação, mas achei bem desnecessário mobilizar um oficial para aquele trabalho aparentemente tão simples. Anos de treinamento para evitar que as pessoas se debrucem no beiral?
     – É, isso virou obrigatório desde que uma turma de faculdade veio aqui e um dos garotos subiu na mureta, se agarrou no pilar e ficou pendurado ali, do lado de fora, para se exibir. Já pensou se o infeliz cai? É por isso que, agora, os bombeiros acompanham todas as visitas, e se o secretário vê alguém sozinho aqui, liga lá embaixo e dá uma bronca na gente.
     Foi assim, ele leu meus pensamentos. Tentei me redimir, embora ainda não tivesse captado a gravidade da mensagem:
     – Só vocês mesmo para proteger esses malucos.
     – Pois é, pois é. Tem pior. Lá no edifício Itália acontece direto. O sujeito janta, fica no bar bebendo, criando coragem, sabe?, e depois se atira lá de cima. No Banespa é a mesma coisa. E, no Viaduto do Chá, eles se jogam para os carros passarem por cima. Acontece direto. A gente fica aqui para evitar.

Voltei ao hall do elevador ainda estupefato com a revelação. Era tão absurdo que jamais passaria pela minha cabeça, por isso demorei a entender o que tinha sido sugerido no início do papo. Fiquei imerso uns instantes, tentando digerir a nova informação. Isso era comum na minha cidade e eu não sabia? Já tinha ouvido falar, mas sempre achei que fosse uma dessas lorotas locais. Vez ou outra, quando o assunto surgiu, eu encarei como bobagem sensacionalista. Então era verdade? Quer dizer, o bombeiro não mentiria. Não ganharia nada mentindo para mim. Bateu uma vertigem repentina.
     A campainha me pôs de volta no chão. As portas do elevador se abriram e meu colega fez um gesto para eu entrar. Pus um pé para dentro e estendi a mão com propósito de cumprimentá-lo.
     – Vou descer com você –, respondeu.
     Fiquei um pouco sem graça. Recolhi a mão e a coloquei no bolso da calça. Talvez tenha sido medida de segurança, ou talvez ele tivesse que buscar o próximo grupo de turistas. O fato é que o bombeiro não me deixou descer sozinho. Fiquei pensando se eu parecia um potencial suicida, se ele suspeitara de mim, com todo aquele interesse pelo local. Voltaria enquanto ele não estivesse olhando e saltaria de lá?
     Descemos em silêncio. Durou um minuto, acho, tão rápido quanto a subida, embora eu não prestasse a mesma atenção. Vinte e seis andares abaixo, com os ouvidos entupidos e um frio na barriga, apertamos as mãos, finalmente. Agora sim, agradeci e perguntei seu nome.
     – Paulo.
     Voltei às ruas e me dirigi imediatamente ao metrô, pois já eram quase 17h e o aglomerado começava a se formar. Um pouco daquilo permaneceu em minha cabeça. O trabalho esquisito daquele bombeiro, esperando o próximo suicida chegar, prestando atenção em cada um para, se for o caso, frustrar seus planos. Não para salvar a vida; quer dizer, acho que essa não era a prioridade, sabe-se lá qual o tipo. Era mais para não sujar a reputação do lugar. Não sei, não sei. Se os bombeiros têm reputação de santos, à toa não é. Talvez aquele fosse um homem bom, salvando suicidas que, se estivessem certos do que desejavam, rumariam para outro edifício tão alto como aquele ou optariam por uma caixa de comprimidos. Ou um revólver, se fosse fácil obtê-lo. Os bombeiros não estão em todos os lugares ao mesmo tempo, como os suicidas, convivendo perto de mim, habitando os mesmo bares, as mesmas ruas, talvez ali mesmo, no metrô, pensando no assunto, considerando o que valia mais a pena. Fiquei ruminando aquilo durante a viagem de volta. Queria contar aos amigos, mas caí na rotina outra vez e acabei esquecendo. Só me dei conta da coincidência do nome muito tempo depois.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

DESFAZER

Seria um costume estranho, que os mais chegados certamente criticariam, caso soubessem. Pois não sabiam e, pela mesma razão, os mais chegados tampouco existiam. Ele não tinha por que contar, tratava-se da sua maneira particular de pertencer ao mundo. Deixando rastros quase imperceptíveis, plantando provas de sua passagem, demarcando territórios anonimamente. Era muito simples, bastava tirar um pedacinho de seu corpo e o deixar para trás. Ficaria ali para sempre, enquanto o resto seguiria seu caminho. Uma ideia linda, pura poesia. Uma lasca de unha no assoalho do táxi que foi buscá-lo no aeroporto. Pelos da perna ou do braço sob o colchão do hotel. Cera de ouvido no tampo da mesa do bar, esfregada por baixo. Cabelo no ralo do banheiro. No ralo da pia, que é mais difícil de limpar. Uma fina camada de pele inserida com cuidado no vão de uma escultura de museu. Saliva no banco da praça.

Viajava sozinho, como sempre. A vida é solitária, por mais que as pessoas se envolvam e disfarcem o fato. A vida solitária é um castigo para o qual os insatisfeitos com a própria existência nos empurram. Fazem força para dar à luz, os desgraçados. Ele sabia disso muito bem, aprendera sozinho, observando. Sabia que tinha sido posto no mundo coletivamente, mas morreria sozinho, porque morrer é uma tarefa que ninguém poderia cumprir por ele. Nenhum dos egoístas do passado, nenhum dos individualistas do presente. Os egocêntricos. Incerto dia, ele morreria num lugar qualquer sem jamais ter tocado o chão, mudado a paisagem, conduzido as rédeas da humanidade. Sem jamais ter protagonizado nada relevante ou ter assumido responsabilidades. O mundo continuaria a existir exatamente da mesma maneira que existia antes dele, e ele morreria sem jamais ter sido alguém.

Tal como as migalhas de pão do conto de fadas, ele espalhava frações de seu corpo por aí. Não para retornar mais tarde, porque ainda havia muito caminho pela frente, um caminho interminável, impossível de vencer. A estrada era maior do que ele. Incomparavelmente maior. A lasca de unha, os fios de cabelo, as células de seu corpo que iam caindo e compunham a poeira do mundo ficavam para trás com objetivo de marcar a passagem, de oficializar sua breve estada, de pontuar um capítulo para que ele pudesse, de alguma maneira, sentir-se presente, sentir-se vivo, tocar e ser tocado. Ele queria estar no maior número de lugares possível. Era um ritual próprio, sua maneira de pertencer. Não ficaria preso a si, ao seu corpo. Estaria, ao mesmo tempo, no mundo inteiro e dentro de sua consciência pessoal.

Tudo bem que ninguém o notasse. Os outros estavam preocupados demais com as próprias trajetórias para acolhê-lo em atenção. Ele preferia existir no anonimato, com total autonomia, a incomodar o cão. Bastava de latidos e perseguições, sua infância tinha experimentado o suficiente, era só fechar os olhos e lembrar, caso necessitasse.

Pois não necessitava. O caminho ia à frente, era impossível enxergar o final, tão impossível alcançá-lo com os olhos quanto com os pés. Mas a próxima curva não ficava tão longe. Era para lá que ele rumava. Sempre na direção da próxima curva.

Deixou os restos da barba recém-feita, ainda misturados à espuma, em cima da porta do banheiro. Puxou uma cadeira, subiu, ficou observando a água penetrar na folha de madeira e grudar os pelinhos ali, onde ninguém iria mexer. Mudou-se, então, para outra casa. Não havia tempo a perder. Nessa, grudou um chiclete no fundo da caixa d’água, arrancando antes um dos dentes e o enfiando na goma. Ele esvaziou a caixa cuidadosamente e só voltou a enchê-la três dias depois, quando o chiclete secara bem o suficiente para ficar firme. O rito se aperfeiçoava. A boca ainda sangrava quando a escova de dente resvalava a ferida, mas deveria estancar dentro de dois ou três dias. Foi o que aconteceu, e ele já tinha partido de lá.

O costume o acompanhou durante todo o tempo, ganhou estatuto de missão, de objetivo de vida. Sempre um sacrifício novo.

Houve uma casa da qual ele gostou mais, sentiu vontade de se estabelecer e isso não podia acontecer, não poderia se deixar seduzir. Era uma casa confortável, com roseiras plantadas junto ao muro da frente e crisântemos no quintal dos fundos. Havia touceiras grandes de crisântemos, eram bonitos e repousantes. Ele estava cansado da caminhada, cansado de mudar e mudar novamente, de carregar todos os seus pertences em duas malas de mão, de aprender novas línguas, de se adequar forçosamente a outros costumes, perdendo sempre. Cansado de tratar com o entorno, de dar tanto de si... em troca de quê, mesmo? Hesitou por um instante, surgiram dúvidas. Isso não podia acontecer. Ainda restava muito caminho pela frente; o cansaço e os vícios não poderiam vencê-lo. Ser derrotado por um motivo tão reles, jamais.

Ele deixou um dedo naquela casa, como forma de gratidão. Achava que o lugar merecia um dedo, talvez mais. Enfim, tinha sido um dedo útil, deveria bastar.

Dali em diante, começou a prestar mais atenção aos imóveis alugados. O dedo que faltava serviria para lembrá-lo de não cometer o mesmo erro duas vezes. As casas ou os apartamentos não podiam ter atrativos que ofuscassem sua missão. Daria preferência a hotéis sempre que possível. Ele também não poderia ser tentado por ruas, praças, campos, praias, estradas ou poltronas – adorava poltronas, em especial aquelas que cedem ao peso do corpo cansado e reclinam para trás. Só que não podia se deixar ludibriar por móveis ou imóveis ou paisagens banais, por mais idílicos que fossem. Precisava continuar indo em frente, sempre em frente, superar os vícios e evitar ao máximo dispêndios irreversíveis.

Anos depois, não lhe restavam muitos dedos para contar. Com o avanço da idade, ficava difícil não se envolver emocionalmente com um lugar e estabelecer raízes. Precisava podá-las, arrancá-las da terra quando começavam a brotar, e isso lhe doía.

Teve que apelar para uma orelha quando encontrou a praia dos seus sonhos, um paraíso bonito e tranquilo, de águas quentes e vastidão deserta. Decepou-a com um velho canivete de bolso e a enterrou com carinho na areia, perto de um amontoado de pedras que ia até o mar. Queria aquela praia para si, estar nela por toda a eternidade. Queria espalhar-se inteiro por ali.

Levantou o rosto com um sorriso triste. O sangue escorria pelo pescoço e pingava no peito, misturando-se ao suor. Fazia tanto calor, o sol estava tão a pino que ele não percebia nem o sangue nem a dor. As gotas caíam na areia como chuva. Ele tinha notado isso antes, porém, o lugar era perfeito demais para que deixasse ali apenas suor e sangue, tal como outros também poderiam fazer.

Levantou o rosto essa última vez, respirou profundamente, deixou que a paisagem o invadisse por todos os cantos, inflando-o com força de vontade. Então, virou as costas e partiu sem olhar para trás.

Um dos pés ficaria numa acolhedora cidade interiorana, dessas em que dá vontade de chegar e não sair mais. A patela ficou no campo, perto dali, numa plantação amarela que, com o vento abafado movimentando a vista, lembrava pinturas de Van Gogh. A omoplata, difícil de tirar, ficou no alto do edifício mais alto, porque ela parecia uma asa e, naquele momento, tudo o que ele queria era saber voar.

Sua vida se sucedeu assim, pé ante pé, até que precisou arrastá-la com os cotovelos, depois com os ombros, depois com o movimento dos músculos do abdômen. Quanto mais avançava, mais feliz ficava, mais satisfeito por conhecer e se espalhar no infinito. A cada metro vencido, ele ficava maior, ficava mais completo; ainda que continuasse incógnito. Apesar de seus feitos, apesar de estar ao mesmo tempo em tantos lugares diferentes, de ter conquistado tudo aquilo, ele continuava ignorado. Pois bem, os outros não importavam. Na vida, tinha sido sempre ele e o mundo, e agora que a morte se aproximava, deveria continuar assim.

Quando nada mais lhe restava, cavou um buraco fundo, tão fundo que não pertencia oficialmente a lugar nenhum, a cultura nenhuma, a governo nenhum, a nenhuma forma de vida ou instituição que pudesse reivindicar o conteúdo. Depositou ali seu coração, tal como uma semente de amor no centro do mundo, de modo que pertencesse ao tudo e ao nada consecutivamente. Queria brotar, crescer e se espalhar o máximo possível com raízes, galhos, frutos e sementes. Queria transformar o ar. Multiplicar-se. Aquele seria seu lugar definitivo, embora um lugar definitivo fosse o que menos desejasse.

Não havia mais o que fazer, acreditava ser a hora derradeira. Jamais saberia quanto da missão tinha cumprido, se tinha andado o suficiente para se afastar do início e se aproximar do fim com dignidade. Jamais saberia se tinha valido a pena, se tinha conseguido escrever suas linhas, colaborar com a história, transformar um pouco o curso das coisas, acrescentar seu toque pessoal ao entorno, sugerir seu gosto, mesmo que fosse imperceptível ao sentimento alheio. Jamais saberia em que locais do mundo se encontrava. Nunca se sabe. Tudo o que ele queria era pertencer, de uma maneira ou de outra. Pois bem, tinha chegado a algum lugar. Se era para ser assim, então, que fosse.

Mal sabia que a história não termina, que não tem começo, meio ou fim. Naquela nova cavidade, construída com tanta fé, seu coração continuou pulsando. Continuou batendo forte, mesmo quando sua alma foi dali para outro lugar qualquer.

*A imagem que ilustra o conto chama-se Mesa Surrealista (1933), de Alberto Giacometti