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terça-feira, 27 de outubro de 2015

AGRADEÇO SUA CARTA E A NOTA DE 50 FRANCOS

Quase sempre a história acaba por determinar um ponto de vista hegemônico sobre um assunto, e quase sempre essa "verdade" revela outras facetas quando começamos a escavá-la, removendo o acúmulo de significações que soterrou sua essência. Nunca sabemos com exatidão como as coisas aconteceram, como tal sujeito pensava, por que a humanidade seguiu por este e não por aquele caminho. Temos teses e suposições. Temos realidades ficcionadas. E não devemos desejar mais. Em certo sentido, a história é apenas uma coleção de causos que sobreviveram ao tempo agarrados a uma grande narrativa, escrita conforme certo método científico, interesses particulares e uma dose de imprevisto. O que de maneira alguma invalida o lindo trabalho dos historiadores. Cada vez é mais evidente nossa necessidade de cultivar raízes, pois um povo sem história é um povo sem sabedoria.

O que não podemos é nos deixar enganar pela aparência de verdade da história. Não existe um passado completamente revelado, apenas uma série de ideias de passado, algumas bem complexas, outras fragmentadas, em forma de vestígios. Para Walter Benjamin, "articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo".

Destacar certas cenas do passado é um modo de construir história. Encadear essas cenas numa narrativa plausível é outro. Isso implica, como disse antes, determinar um ponto de vista hegemônico sobre o que pode ter acontecido e sobre como aconteceu. Por conta disso, um número incontável de outras histórias é varrido para debaixo do tapete. Histórias menores, às vezes menos relevantes; porém muitas vezes são histórias incômodas, que alguns querem esquecidas, fazendo triunfar o ponto de vista dos colonizadores. Como Benjamin alerta, a história nunca é contada pelos colonizados. Daí sua célebre conclusão de que "nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie". Daí também a sua proposta de escovar a história a contrapelo, buscando dar luz àqueles pontos de vista abandonados na escuridão do tempo. Revisitar, desconfiar, pesquisar e reescrever a história é estabelecer uma relação sincera com nós mesmos. É também assim que nos tornamos contemporâneos de nossos ancestrais, dos antigos feitos da humanidade e de tudo aquilo que nos constitui.

* * *


Foi com objetivo de exercitar um pouco esse pensamento crítico que, junto com alunos de pós-graduação em filosofia da USP, li as cartas enviadas por Vincent Van Gogh a seu irmão Théo; reunidas, selecionadas e publicadas pela esposa deste após a morte dos dois. Para nossa surpresa, o Van Gogh das cartas é diferente, em muitos aspectos, daquele conhecido pelo senso comum – o pintor louco, transbordante de emoções, que gostava de girassóis e que decepou a própria orelha.

Ao término da leitura, da comparação entre pelo menos quatro traduções e dos ricos debates que tivemos, ainda acredito que o sujeito do texto teve seus momentos de loucura, era um grande apaixonado pela vida simples na natureza, pintou uma série de girassóis e usou uma navalha para cortar a própria orelha. Os escritos que restaram nos autorizam supor isso tudo, com certa margem de erro interpretativo.

Porém não devemos confundir o autor das cartas com o homem Van Gogh, o qual viveu, pintou e morreu mais de um século atrás. Enquanto o primeiro é acessível e concreto (sujeito feito de texto), o segundo não passa de uma abstração, da qual podemos somente apreciar pinturas e fantasiar a respeito da sua existência.

Com isso em mente, passamos às cartas, que são reveladoras. Elas apresentam, por exemplo, um homem culto, nascido numa família com boas condições, que o possibilitou visitar museus importante da Europa e formar um profundo senso crítico em relação à história da arte. Um homem que demorou quase trinta anos para decidir pela carreira artística. Que, ao invés de grande revolucionário, preocupava-se com a tradição da pintura. Ao invés de apaixonado irracional, foi um pesquisador intenso e convicto, que não abandonou seus princípios e, por conta disso, permaneceu miserável durante toda a vida, sustentado pelos 50 francos que o irmão eventualmente anexava às cartas. Um sujeito cuja doença parece oriunda dos graves problemas de estômago causados pela fome, pela vida rústica e solitária; não uma maluquice estereotipada.

Além disso, impressiona sua consciência político-social, que o impelia a compartilhar seus parcos bens e a imprimir nas telas a força dos trabalhadores anônimos – mineiros, tecelões e lavradores –, cujo valor fora ignorado durante séculos de produção artística. Van Gogh não se considerava um pintor de girassóis, mas um pintor de camponeses. Lutou para dar lugar na arte a essas existências menores e menosprezadas, que permaneceram debaixo do tapete dos nobres e clérigos retratados com frequência entediante ao longo da história ocidental.

Não cabe comentar aqui as 652 cartas, assim fica minha sugestão de leitura a quem se interessar. No lugar de produzir uma imagem "eterna" do passado, Benjamin propõe que façamos dele uma experiência singular. Mais do que reproduzir a história de maneira boçal, temos que narrá-la novamente, pois é apenas assim que produzimos e compartilhamos sabedoria. Antes de falar, convém ouvir. Antes de aceitar, temos obrigação de desconfiar. Antes de exercer juízo é prudente pesquisar e nos implicar na questão.

Não bastassem todas as pinturas maravilhosas do artista, o outro Van Gogh, escritor de cartas, deixou esta linda imagem sobre o passar do tempo: "O moinho não existe mais, o vento continua". Assim segue a história, sussurrando notas em nossos ouvidos, sugerindo leituras e interpretações sem entretanto revelar o livro inteiro, que sustentará certo teor de mistério para nos instigar a imaginá-la.

*Pesquisadores disponibilizaram todas as cartas conhecidas de Vincent Van Gogh neste site, confira só (em inglês): vangoghletters.org As imagens que ilustram o texto foram retiradas daí.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

O MÉTODO DESVIANTE

Algumas teses impertinentes sobre o que não fazer num curso de filosofia

Texto de Jeanne Marie Gagnebin, professora de filosofia na PUC/SP e de teoria literária na Unicamp.

Como uma boa e velha professora de filosofia, prefiro cercear o assunto, amplo demais, por caminhos negativos, desvios e atalhos que não parecem levar a lugar algum. Digo “professora de filosofia”, porque meu território de atuação é, primeiramente, a sala de aula e a dinâmica com os estudantes, com todas as vantagens e todas as restrições que o ensino universitário no Brasil traz consigo. E digo também uma “velha” professora de filosofia porque posso me permitir, hoje, nesse momento de minha carreira acadêmica, algumas provocações que não vão (pelo menos, assim o espero!) colocar em questão nem meu contrato nem meu emprego. Imagino que os jovens colegas, com ou sem vaga ainda, não ousariam pensar de tal maneira, pelo menos explicitamente, porque têm que assegurar primeiro seu lugar no sol. Ofereço a eles um pequeno descanso na sombra.

Primeira regra para o reto ensino, em particular, o reto ensino da filosofia: não temer os desvios, não temer a errância. Os programas e “cronogramas” somente servem de esboços utópicos do percurso de uma problemática. Não esquecer que o tempo é múltiplo: não é somente “chronos” (uma concepção linear que induz falsamente a uma aparência de causalidade), mas é também “aiôn” (esse tempo ligado ao eterno, que, confesso, ainda não consegui entender...) e, sobretudo, “kairos”, tempo oportuno, da ocasião que se pega ou se deixa, do não previsto e do decisivo. Quando algo acontece na aula, quando algo pode ser, subitamente, uma verdadeira questão (para todos: estudantes e professor, não só para este último), aí vale a pena demorar, parar, dar um tempo, descrever o impasse e, talvez, perceber que algo está começando a ser vislumbrado, algo que ainda não tinha sido pensado (não por ninguém na tradição filosófica inteira, isso é abstrato, mas por ninguém dos participantes concretos agora e aqui na aula), algo novo e, portanto, que não sabemos ainda como nomear.

Segunda regra para o reto ensino, já cheio de desvios: não ter medo de “perder tempo”, não querer ganhar tempo, mas reaprender a paciência. Essa atitude é naturalmente muito diferente, imagino, num ensino dito técnico, no qual os estudantes devem aprender várias técnicas, justamente, vários “conteúdos”, ensino essencial para o bom funcionamento de várias profissões. Mas, no ensino da filosofia (e talvez de mais disciplinas se ousarmos pensar melhor), paciência e lentidão são virtudes do pensar e, igualmente, táticas modestas, mas efetivas, de resistência à pressa produtivista do sistema capitalista-mercantil-concorrencial etc. etc. (esqueci de dizer que a velha professora tinha 20 anos em 1968). Lyotard disse isso lindamente: “Si l’un des principaux critères de la réalité et du réalisme est de gagner du temps, ce qui est, me semble-t-il, le cas aujourd’hui, alors le cours de philosophie n’est pas conforme à la réalité d’aujourd’hui. Nos difficultés de professeurs de philosophie tiennent essentiellement à l’exigence de la patience. Qu’on doive supporter de ne pas progresser (de façon calculable, apparente), de ne faire que commencer toujours, cela est contraire aux valeurs ambiantes de prospective, de développement, de ciblage, de performance, de vitesse, de contrat, d’exécution, de jouissance”(1) (« Le Postmoderne Expliqué aux Enfants », Galilée, 1986, Paris, pp. 158/159).

Terceira regra desviante: não querer ser “atual”, estar na moda, up to date, mas assumir o anacronismo produtivo, uma não-conformidade ao tempo (Unzeitgemässheit, dizia Nietzsche), não correr atrás das novidades (mercadorias intelectuais ou não), mas perceber o surgimento do devir no passado antigo ou no presente balbuciante, hesitante, ainda indefinido e indefinível. Deixar que essa hesitação possa desabrochar. Não procurar por normas e imperativos, mesmo na desorientação angustiante, mas conseguir dizer, de maneira diferenciada, as dúvidas. (Caro leitor, você já percebeu a quantos imperativos somos submetidos, somente andando 10 km na cidade ou lendo uma revista? O tempo do imperativo é o da propaganda).

Resistir, portanto à tentação do professor e do “intelectual” em geral de ter de encontrar uma saída, uma solução, uma lei, uma verdade, um programa de partido ou não. Agüentar a angústia. Adorno dizia que essa dimensão era uma dimensão de resistência não só ao sistema dominante do mundo administrado, mas também aos sonhos de dominação do pensamento. Não querer colocar uma ordem necessária onde há primeiro, desordem, não confundir “taxinomia”, arranjo em várias gavetas com pensamento -pois pensar é, antes de mais nada, duvidar, criar caminhos, perder-se na floresta e procurar por outro caminho, talvez inventar um atalho.

Quarta regra de método desviante (“Método é desvio”, dizia um velho mestre quase chinês, Walter Benjamin): não se levar tão a sério assim, só porque estudou latim e grego ou fez doutorado na Alemanha ou consegue entender Heidegger. Mais radicalmente: não levar demais a sério as “opiniões” pessoais, em particular as suas. São, no melhor dos casos, somente a ocasião de ir além delas, do reino dito encantado das “idéias” e “crenças” subjetivas. Não cair na ilusão liberal de que a liberdade se esconde nas escolhas individuais, arbitrárias e/ou manipuladas. Se há algo que a reflexão filosófica pode realmente ajudar a pensar é a necessidade de ultrapassar, de ir além -isto é de “transcender”- os pequenos narcisismos individuais para vislumbrar “o vasto oceano da Beleza” (dizia o velho Platão), o Reino do Espírito, dizia outro velho senhor idealista, hoje talvez digamos o “enigma do Real” ou, então, as linhas de fuga e os acontecimentos.

Essa dimensão “objetiva” (não em oposição ao “sujeito”, mas levando em questão a materialidade e a historicidade das “coisas” que nos resistem e nos atraem) do pensamento justifica a exigência, imprescindível, da diferenciação conceitual, isto é, do esforço e da ascese (askesis, ou exercício, em grego) conceituais: não se trata de malabarismos intelectuais complicados, mas de tentativas sempre reiteradas de compreender o “real” sem violentá-lo. Esse esforço, essa “paciência do conceito”, vai, de novo, contra a pressa reinante, e também contra os “achismos” tão prezados na imprensa e na televisão, nos meios ditos de “comunicação”. Também resiste à ilusão de que o debate de idéias, como se diz, seja um enfrentamento de dois ou mais oradores brilhantes (ou não) que tentam, cada um, fazer prevalecer sua opinião sobre a opinião do outro.

A ascese conceitual também implica o aprendizado de um certo despojamento da vontade individual e concorrencial de auto-produção perpétua em detrimento dos outros. Não se trata de ser melhor que os outros, mas de estar atento às possibilidades de transformação da realidade, portanto, de não passar ao lado dela, de compreendê-la melhor, na sua possível mutabilidade. Isso implica, aliás, que, muitas vezes, não sei, não posso dizer nada que ajude, portanto também ouso calar-me, não cedo à tentação de falar sobre tudo e qualquer coisa.

Conclusão: não se dobrar aos imperativos mercantis-intelectuais da “produção” de “papers” e da contagem de pontos nos inúmeros “curricula” e relatórios administrativos-acadêmicos: se tiver que contar “pontos”, conte para que lhe deixem em paz, mas não confunda isso com trabalho intelectual ou mesmo espiritual. Já que temos o privilégio de lecionar filosofia, isto é, uma coisa de cuja utilidade sempre se duvidou, vamos aproveitar esse grande privilégio (de classe, de profissão, de tempo livre) e solapar alguns imperativos ditos categóricos e racionais: contra a pressa, a produtividade, a concorrência, a previsibilidade, a especialização custe o que custar, as certezas e as imposições. Podemos exercer, treinar, mesmo numa sala de aula, sim, pequenas táticas de solapamento, exercícios de invenção séria e alegre, exercícios de paciência, de lentidão, de gratuidade, de atenção, de angústia assumida, de dúvida, enfim, exercícios de solidariedade e de resistência.

Publicado originalmente na revista Trópico em 3 de dezembro de 2006.

(1) “Se um dos principais critérios da realidade e do realismo é ganhar tempo, o que é, me parece, o caso hoje em dia, então o curso de filosofia não se ajusta à realidade de hoje. Nossa dificuldade de professores de filosofia concerne essencialmente à exigência de ser paciente. Que se deva suportar não progredir (de maneira calculável, aparente), ter que começar sempre, isso é contrário aos valores dominantes de prospectiva, de desenvolvimento, de alvo, de performance, de velocidade, de contrato, de execução, de gozo.” (tradução da Redação)

segunda-feira, 6 de julho de 2015

QUE EXPERIÊNCIA NOS RESTA?

Ler um texto como O narrador, que Walter Benjamin escreveu quase 80 anos atrás, em 1936, e perceber com espanto sua atualidade sugere algo sobre aquilo que poderíamos chamar de contemporâneo, no sentido de que condiz e é pertinente às questões que agora nos atravessam. Em primeiro lugar, sugere que o contemporâneo não se refere ao tempo cronológico, portanto não segue a linha do progresso – em vez de Benjamin poderíamos citar autores de séculos antes que parecem ter escrito especialmente para nós. Em segundo lugar, diríamos que o contemporâneo não é pleno: não conseguiríamos distinguir uma totalidade nem na apreensão sensível do tempo nem no senso comum sobre a experiência da vida; não existe comportamento padrão em nossas sociedades, mas lampejos que sugerem mudanças de atitude em meio ao previsível, lugares que privilegiam o dissenso em meio ao conforto da tradição pré-estabelecida. São pontos que brilham por um instante e logo se apagam; um surge aqui, outro responde acolá, como um grupo de vaga-lumes à noite, que vemos em sua singularidade tanto quanto na efemeridade.

O contemporâneo se constituiria, entre outras coisas, de reminiscências: passados retomados pela memória; resíduos, restos, fragmentos postos em conexão numa nova estrutura; lembranças imprecisas ou indecisas que evocam imagens borradas. Seria como um vulto: que passa sem se revelar por inteiro – restaria do contemporâneo mais uma sensação daquilo que ele manifesta do que um conceito propriamente formulado, aceito e contestável segundo os métodos da crítica conservadora.

Como as narrativas sobrevivem nos tempos atuais? Se na época de Benjamin já se notava certa precariedade dessa forma de compartilhamento de experiências, hoje em dia as perspectivas não são melhores. Conforme o filósofo escreveu, "cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação".

Enquanto a informação só tem relevância quando é fresca, a sabedoria da experiência, tecida na forma de narrativas, compartilhada geração após geração, não tem prazo de validade. Seu valor independe do tempo e por conta desse alargamento não determinado ela é mais contemporânea nossa do que o preço do dólar ou o próximo capítulo da novela.

Jorge Larrosa Bondía certa vez explicou que é preciso separar o saber da experiência e a posse de informações. Porque, ao contrário do que acontece por aí e somente diz respeito aos outros, a experiência é o que nos acontece, o que nos toca. Em suas palavras: "O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação (...), o que consegue é que nada lhe aconteça".

Por que nada nos acontece? Por que nada mais ganha a gravidade da experiência digna de ser narrada, que nos toca e transforma, além de ser passada adiante ao longo dos séculos, tal como nas mitologias que sobreviveram desde os tempos mais remotos? Talvez porque não tenhamos, justamente, tempo: na correria em que vivemos, não encontramos um instante sequer para dispor à possibilidade de irromperem experiências. Ou melhor: não arranjamos tempo para nos colocar à disposição do mundo. E as verdadeiras experiências só acontecem a quem está aberto.

Benjamin acreditava que esse processo "exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro". Para ele, tal distensão se encontraria no tédio.

Almoço na relva (1863), Édouard Manet

Tenho quase certeza de que, se eu perguntar quem se sente entediado, boa parte das pessoas responderá que sim; nos sentimos entediados com a rotina puxada, o cansaço, a falta de perspectivas, descobertas e desafios. Mas não é a esse tédio que o filósofo se refere. Estamos mesmo esgotados, porém continuamos mergulhados no excesso de informação e de tarefas. Esse excesso afasta o tédio proposto por Benjamin, que seria obtido pelo desligamento da máquina produtiva, pelo "dolce far niente" dos italianos, quer dizer, a doçura do não fazer nada, de abrir terreno para que o inusitado germine.

Para Bondía, "a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço".

Houve um tempo em que se buscava nas drogas uma espécie de interrupção, que na realidade era uma dilatação de sentidos contra a dureza da razão moral, com objetivo de experimentar outra relação com o mundo. Até mesmo isso foi desaparecendo durante o século XX, e hoje as drogas acabam usadas no sentido oposto, de anestesia, como meio de escapar das experiências da vida. Uma fuga no lugar da descoberta, embora na prática a coisa não seja tão diferente assim. Acontece que nem mesmo o estímulo dos sentidos consegue se sustentar por muito tempo, talvez por conta da sua artificialidade. Há uma frase no romance Demian, de Hermann Hesse, que sintetiza bem essa ideia: “As pessoas que vivem todo o dia nas tabernas já perderam por completo essa exaltação. Tudo se transforma num hábito”. Pois nos acostumamos até mesmo com o excesso de novidades, e logo ele próprio assume o status de banalidade.

Acredito mais no gesto de interrupção que se revela uma atitude estético-política. Sensível. Profunda, complexa e necessária. Um gesto singelo de resistência crítica à velocidade, à informação em demasia que nos provoca a falsa sensação de pertencimento ao mundo, à tecnologia que afasta a possibilidade de que as coisas nos toquem diretamente, ao trabalho mecânico, produtivista e inconseqüente, ao consumismo exacerbado de produtos, serviços e verdades; resistência a tudo isso que de alguma maneira preenche nosso cotidiano como se o completasse, e que nos configura como máquinas ligadas incessantemente no modo automático. Não precisa ser uma grande força contrária, é preferível até que seja um gesto frágil, que transforma e que também se transforma durante o processo. O que nos resta fazer? Resistir poeticamente, sim. Não porque aquelas coisas não sejam importantes, mas porque não podem ser absolutas.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

CÁTEDRA MICHEL FOUCAULT E A FILOSOFIA DO PRESENTE

A igreja católica, por intermédio do cardeal Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo e grão-chanceler da PUC, está conduzindo o veto à formação de um grupo de pesquisa inédito no Brasil: a Cátedra Michel Foucault. A PUC seria a única instituição fora da França a ter acesso a arquivos do filósofo, cuja obra é rica e relevante para muitas áreas de pensamento. O material seria doado numa parceria que começou em 2011, com intermediação do Consulado Geral da França em São Paulo e outras nove universidades estrangeiras.

A justificativa, embora feita com meias palavras, é preconceituosa e homofóbica: a Igreja Católica tem um conflito de interesses porque Foucault era homossexual. Pois é. Além do preconceito, o veto fere um dos fundamentos da universidade, que é a liberdade de pensamento.

Se quiser se juntar às diversas universidades do mundo que defendem a formação da Cátedra, assine a petição aqui (é também uma maneira de se posicionar a favor da educação e da pesquisa no Brasil, ao contrário do que os recentes cortes de verbas públicas para universidades e cacetadas em professores têm sugerido): http://foucault.lrdsign.com/

Mais informações aqui: PUC entra com recurso contra veto da igreja à cátedra Foucault

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A ESQUERDA DE DELEUZE



– O que é ser de esquerda para você?

 – Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é. Não é que não existam diferenças nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda, ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que essa situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: "Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?" E ser de esquerda é o contrário. É perceber… Dizem que os japoneses percebem assim. Não veem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois o continente europeu, por exemplo, depois a França etc., até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro se percebe o horizonte.

– Mas os japoneses não são um povo de esquerda…

– Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal. Estão à esquerda. Primeiro vê no horizonte e sabe que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode durar mais. Não é possível essa injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com que o terceiro mundo… Ser de esquerda é saber que os problemas do terceiro mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser ou devir minoria. Não deixar devir minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda. Por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe, até quando se vota, não é só a maior quantidade que vota para tal coisa, mas a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar esse padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem nesse padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho etc. As mulheres vão contar e intervir nessa maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a esse padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir animal. As crianças também têm um devir criança. Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários. Só os homens não têm devir homem. Não, pois é um padrão majoritário.

– É vazio.

– O homem macho adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto de processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidas.

[transcrição da entrevista com Gilles Deleuze disponível no vídeo]

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

"O esgotamento do possível é o esgotamento de um certo possível, aquele 'dado de antemão', o repertório de possíveis que nos é ofertado em forma de múltipla escolha a cada dia. (...) Para Deleuze, tal esgotamento nada tem de negativo, é apenas condição para alcançar outra modalidade de possível, o possível como o 'ainda não dado', o possível 'a ser inventado', e a ser inventado numa situação de 'impossibilidade', portanto, de 'necessidade."

Peter Pál Pelbart
O Ato de Criação
[em O Avesso do Niilismo - Cartografias do Esgotamento, p. 297]

terça-feira, 17 de junho de 2014

UM PONTO ALÉM DO CONTO

Uma coisa aparentemente chata muito me fascina: a trajetória da Estética no século XX. Trajetória conturbada, que começa com a ingenuidade das vanguardas europeias e sua crença na transformação do mundo por meio da arte, no sentido de "melhorá-lo". Fosse pela negação da beleza clássica, fosse pela pesquisa das formas, das impressões da natureza no homem ou das expressões da natureza humana. Essa ingenuidade acabou dilacerada pelas guerras, quando descobrimos os horrores de que nossa própria natureza é capaz. Tanto que, ao término do primeiro conflito mundial, apareceram as manifestações dadaístas: provocadoras, absurdas, de certo modo até violentas. Estavam em desalinho com os valores clássicos e também com os revolucionários; sem chão, sem esperança, perdidas nas brumas da desilusão. Porque a "missão" do Modernismo falhara – seus esforços foram subjugados. Não havia salvação moral para quem matava sem piedade. Muito menos salvação por meio da arte.

O pouco que restou daquela vontade transformadora sobreviveu menos de duas décadas, sucumbindo de vez nos campos de concentração, nos bombardeios maciços e nas frentes de batalha da segunda grande guerra. "É isto um homem?", pergunta Primo Levi no título do livro em que relata sua passagem por Auschwitz, de onde só era possível sair por um lugar: a chaminé.

Aqueles traumas, entre tantos outros, interromperam o que havia de criativo e jovial na humanidade. Isso nunca pôde ser retomado.

Quando o artista pop Roy Lichtenstein anuncia, na década de 1960, que a arte "não transforma, apenas forma", ele revela outra concepção de Estética, então em voga. Não se acreditava mais no potencial transformador da arte, mas no construtivo, no sentido de que ela poderia erigir numa nova realidade. Estamos falando dos Estados Unidos pós-guerra, da sua chamada Era de Ouro; país vitorioso, pleno de dinheiro e oportunidades, que desde aquela época fabricava cultura em enormes corporações e a exportava para o mundo inteiro. Nós, brasileiros, compramos toneladas do estilo de vida americano. Sonhamos o American Dream. Trouxemos para cá seus automóveis, fizemos estradas para eles transitarem; construímos Brasília inspirados na razão matemática, nas técnicas de engenharia recém-desenvolvidas, na ordem como método de obter progresso. O trabalho estético, por sua vez, afastou-se da natureza do homem e se direcionou à forma plástica; o espiritual na arte perdeu espaço para superfícies modulares, minimalismos e equilíbrio visual pela repetição de padrões.

Alegra-me saber que, no contemporâneo, esse ideal não se sustenta mais. Filósofos e artistas dedicados a compreender nossos modos de existência não acreditam em transformação ou formação pela arte, mas em desformação. Quer dizer, trabalham o esfacelamento dessas estruturas sólidas que foram sedimentando ao longo do século XX, multiplicando-as em singularidades infinitas. Estrutura familiar, social, governamental, militar, religiosa; hierarquias de todo o tipo, cânones, verdades absolutas que, sacralizadas como estão, já não servem mais, ou seja, não condizem com o nosso dia a dia. Pertencem a outro plano. E, dada sua incompatibilidade com a vida contemporânea, precisam ser revistas, reinventadas, desfeitas, profanadas; reorganizadas para voltarem a operar, se ainda forem pertinentes. Destituir as instituições. Deixar a rigidez mais elástica. Manipular o intocável conforme melhor convier.

Há resistência, entretanto. Embrutecimento. Teimosia. Inclusive nas vontades de mudança. Porque muitas vezes essas vontades apenas retomam procedimentos obsoletos e dão outra volta às mesmas reviravoltas. Quando, na realidade, o que se deseja é sair do circuito; linhas de fuga, trajetos de errância em vez do conforto das certezas.

Exemplo dessa resistência está no filme Malévola [se você não viu, talvez seja melhor interromper a leitura para não ter o final revelado]. Quando o vilão morre, o mal é extirpado e os heróis viverão felizes para sempre – conforme protocolo da Disney –; a princesa é coroada e o povo se reclina a seus pés. Povo que não era povo. Reino que não era reino. Quem se lembra do início da história? Quando os seres mágicos viviam felizes e saltitantes, antes da chegada do homem, que os corrompeu e os infligiu os horrores da sua estrutura sociopolítica. Até então, as fadas e seus amigos viviam com harmonia, pois ninguém era mais privilegiado. Depois, conheceram a ambição, a tentadora ascensão social, a possibilidade da dominação do outro.

No dito "final feliz", os produtores optaram por recriar o conflito principal – o jogo de poder – que provocou todo o drama, envelopando-o de "sonho de princesa". Os personagens não precisavam de governantes, porém os aceitaram, mesmo sabendo que renderiam futuras crises. No geral, é o que costumamos fazer em nossas vidas: permanecer atados ao círculo vicioso que se critica, opõe e autoalimenta.

Perguntaram se gostei do filme. Essa revisão inteira passou pela minha cabeça e a resposta foi negativa, claro. Não gostei. Achei uma pena que não reinventaram a fábula de modo que fizesse sentido no contemporâneo: que provocasse deslocamentos, ruídos; que correspondesse às questões mais urgentes.

A Estética segue seu rumo pelos caminhos mais imprecisos. Enquanto o filme encalhou num daqueles pontos retrógrados em que os blockbusters adoram se firmar.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

ANTES DE ATIRAR UMA OPINIÃO CONVÉM SABER:

Rero [trabalho exposto na Caixa Cultural de SP]

Quem é? De onde veio? O que faz? Como faz? O que deseja? Como gostaria que fosse? Para onde vai? Como se sente? Do que precisa? Do que gosta? O que tem? Como obteve? O que falta? Como se chama? Como é chamado? Como se vê? Como os outros o veem? Como pensa que é visto? Como compartilha? Por que é assim? Como se define sua situação? Quais preconceitos estão implícitos nisso? Essa definição serve para alguma coisa? O que está em volta? Onde vive? Que território habita? Que coisas possui? Que coisas o possuem? Qual é o sentimento? Quem está junto? Quem se afasta? Quem não veio? Quem já se foi? De quem sente saudade? Como pode? O que pode e o que não pode? Por que não pode? O que pode mas não consegue? O que não pode mas se dá um jeitinho? Quem é [você] que olha? Por qual ponto de vista / perspectiva? Qual é a relação que se estabelece? Que ideias já vieram formadas antes do encontro? Quais delas permaneceram? Quais ideias se desfizeram? Quais processos estão em operação? O que está dado? O que está implícito? O que foi soterrado? Que corpo é esse? Que gesto produz? Como se expressa? Escreve, pinta, canta, dança? Como se coloca no mundo? Em que situação se impõe? Que situação é imposta a ele? Quando é ignorado? Qual é a sua cor? Qual é o seu cheiro? Como é tocá-lo, qual é a sensação? Como se sente quando tocado? Que vontade surge quando está por perto? Do que lhe faz lembrar? O que sente quando se distancia? Onde está sua força? Onde está o seu olhar? O que pensa do mundo? Como administra a vida? Em que lugar dorme? Em que lugar acorda? Com quem? O que comeu ontem? O que bebeu? De que alimentos gosta mais? Tem mãe, pai, filhos, irmãos, animais de estimação, família de qualquer gênero, raça, cor, imaginação? Qual é o seu bicho favorito? Com o que sonha? Quais são os seus medos? Como se imagina daqui a dez anos? Já dirigiu um carro? Já andou de moto? Avião? Navio? Já pescou? Pratica esporte? Torce para algum time? Como foi parar ali? Vive do quê? Trabalha? Qual é o seu talento? Para que coisa não leva o menor jeito? Tem apelido? Conta bancária? Sabe cozinhar? Toma conta de alguém? Alguém cuida dele? Como se sustenta? O que aprendeu? Frequenta ou frequentou escola? Quais assuntos mais interessam? O que gostaria de saber? É bom de matemática? Português? Geografia? Filosofia? Para que lado fica o seu norte? Quais são as suas condições? O que pensa quando vê as estrelas? Qual é a sua cor favorita? Gosta mais de calor ou de frio? Conhece o mar? Sabe nadar? Visitou o zoológico? Sabe andar de bicicleta? Patins? Cavalo? Qual é a sobremesa preferida? E prato salgado? Aliás, prefere salgado ou doce? Sorvete de massa ou picolé? Gosta de ler? Qual foi o livro mais marcante? Vai ao cinema? Drama, comédia, ação ou suspense? Documentário? Com que frequência? Qual é o seu melhor amigo? Como se sente em dias nublados? Quando foi ao médico pela última vez? Dentista? Sente-se bem? Alguma queixa? Conhece os parques da cidade? Os museus? Qual é o seu favorito? Gosta de algum artista em particular? Cantor? Frequenta teatro? Já assistiu a uma peça de Shakespeare? Gosta de música? De que tipo? Qual canção arranca suspiros toda vez que se ouve no rádio? Qual banda ainda quer ver ao vivo? Qual foi a última vez que viu uma? Qual foi a mais legal? Dança sozinho ou em par? Em grupo, talvez? Sabe o que é amor? Ama? É amado? Foi amado? Faz amor? Qual foi a última vez? Que tipo de amor? Gosta de flores? Quais? Gostaria de enviar algum recado, tem algo a manifestar? Tem vontade de quê? Como se veste? Já usou gravata borboleta? Tem religião? Acredita em Deus ou coisa similar? Qual? Como? Por quê? Acredita em vida após a morte? Gostaria de ser cremado ou enterrado? Doará órgãos? Já tomou banho em banheira? E banho de rio? Para onde vai quando quer se esconder, pode dizer? Ou quando vai descansar? Para onde gostaria de ir? Onde costuma passear? Que cidades gostaria de visitar? Qual celebridade gostaria de conhecer pessoalmente? Mesmo? Por quê? O que diria na ocasião? Sabe contar piadas? Qual é a sua lembrança mais feliz? Qual é a mais triste – fique à vontade para não responder, se preferir. Está à espera de quê ou de quem? Já infringiu alguma Lei? Acredita em ética? Já arrancou um dente do siso? Qual é a cor dos olhos? Dos cabelos? São lisos ou crespos? Admira alguém? Algum ídolo? Por quê? Gostaria de ser mais feliz? Já morou fora do país? Em outra cidade? Outro bairro? Gostaria de experimentar? Onde? Está apaixonado? Cadê a poesia? Como o seu sensível se manifesta? Qual é o aspecto político? Por sinal, o que pensa da política? Como participa? Como se sente na sociedade? Pertencente? Quais são os encontros e as conexões? Tem algo a propor? Algo de que reclamar? O que produz? O que se perde? O que resta? O que gostaria de dizer, de livre e espontânea vontade? O que prefere deixar subentendido? O que não pode ser dito?

[para ajudar na construção de um pensamento crítico]

segunda-feira, 31 de março de 2014

ETC.


Vira e mexe ouvimos falar de mundo plural, sociedade conectada, diminuição de distâncias, reformulação do tempo e das relações interpessoais. As gerações recentes estão mais interessadas numa oportunidade de futuro imediato, tecnológico em especial, do que em sustentar tradições. São ávidas pelo novo. Nem certa nem errada, essa característica tem pontos positivos e negativos, e aos poucos uma espécie de equilíbrio oscilante se põe em operação. O desafio consiste em fluir/fruir com eles sem efetuar uma "divisão policial do sensível" (Jacques Rancière).

Um daqueles pontos, que acredito ser positivo, é a desformação do "especialismo", levado a extremos tão afunilados que resultou em pessoas aptas a exercer uma tarefa específica, excludente e limitada. Em outras palavras, forma-se profissionais embrutecidos por uma lógica de dominação do assunto, desejando se tornarem singulares. Com efeitos colaterais: o médico especialista em ortopedia que não reconhece um problema de pele; o técnico especialista que se torna desnecessário quando um software passa a executar seu trabalho, abandonando-o sem possibilidade de adaptação. Um foco tão acurado, tão aproximado, que impede a visão do redor – quem dirá do universo!


No contemporâneo, essa lógica se esfacela. E para pensar a respeito gosto de me apoiar no que Ricardo Basbaum chama de "artista-etc." A proposta pode ser ampliada a toda atividade profissional, campo do saber ou prática cotidiana; não deve ficar restrita à arte. As "pessoas-etc." são aquelas que não se moldam facilmente em categorias, e por isso não devem ser rotuladas, com risco de diminuí-las, de não fazer jus às suas qualidades. É da multiplicidade – e na multiplicidade – que sobrevivem, conectam-se, produzem. Em vez de fadadas a uma especialidade, elas estão abertas a experiências diversas, que atravessam territórios nem sempre bem relacionados. Irrompem não-lugares, expressam-se a partir da fronteira, das tensões e das ambiguidades da interface.

Um exemplo prático ajuda a esclarecer a ideia: neste semestre, trabalhamos o "etc." com uma turma de graduação em Terapia Ocupacional da USP. Além de aprender o que o terapeuta sabe e fazer o que o terapeuta faz, propomos que eles se permitam agregar outras funções, não necessariamente úteis. Que se expandam na direção da vida comum em vez de entalarem num gargalo da carreira.

Que se façam terapeutas-enfermeiros, terapeutas-artesãos, terapeutas-esportistas, terapeutas-amigos, terapeutas-gestores, terapeutas-cozinheiros, terapeutas-etc. Tudo ao mesmo tempo, tudo misturado. Por quê? Para lidarem com situações da prática terapêutica com desenvoltura, criatividade e atitude transformadora. Para que o conhecimento não fique restrito àquele da própria área, sustentando a mesma lógica, resistindo às demandas inéditas sem qualquer argumento senão o do tradicionalismo per si. E também para que se permitam experimentar, simplesmente, sem a sombra do sentido, da explicação racional, da justificativa exigida, da neurose de ter, na ponta da língua, o "para quê serve", o "para quê sirvo".

Terapeuta-inventor, engenheiro-filósofo, fotógrafo-arquiteto, advogado-músico, químico-místico, jornalista-cavaleiro, matemático-escritor, médico-mecânico, publicitário-cineasta. E assim por diante. Esses profissionais ampliam suas redes, adaptam-se com maior facilidade às situações impostas, desmancham fronteiras, deparam-se frequentemente com o novo, provocam, surpreendem, reinventam modos de ser, de agir e de pensar.


Como formar esse tipo de pessoa? É uma questão importante. Porque elas não se formam – no sentido iluminista de "dar forma", que adota como fundamento a perfectibilidade do espírito, a unidade do gênero humano, a universalidade dos valores e o aprimoramento infinito do homem e do mundo (Celso Favaretto), numa espécie de escala/escola evolutiva. Não se pressupõe uma forma final, um acabamento, como se a educação pudesse ter uma finalidade esclarecida e pré-determinada.

Não se ensina ninguém a ser "etc.", muito menos se especifica que múltiplo o constituirá. O desafio está, justamente, em não impor um sistema, mas desformá-lo, desenformá-lo, destituí-lo. Ao invés de ensinar o pré-formulado – a doutrina –, a proposta é oferecer condições para que cada pessoa encontre sua aptidão, desenvolva suas conexões, alargue seus limites na direção que achar conveniente, sem receio de errar. Trata-se de provocar a construção de um pensamento crítico. "Um modo de problematização que não procede por efeitos de ultrapassamento, de superação e nem de progresso, mas antes, de reativação da atitude crítica do permanente da atualidade" (Favaretto).

Fazemos isso multiplicando linguagens. Porque o terapeuta sabe que a razão não dá conta do humano. Existem muitas camadas embaixo dela que operam num regime de sensibilidade. Pois é incentivando esse sensível, apreendendo linguagens e criticando o redor que se pode desenvolver uma atitude condizente com o contemporâneo.

Tal desenvolvimento exige dedicação, acolhida e nutrição – precisa ser cuidado com carinho para que seu potencial esteja livre. Um tipo de curadoria – no lugar da disciplina, que é um termo importuno, principalmente quando associado à educação. É preferível o descaminho, a destituição, o desfazimento. O dissenso no lugar do ensino moralista, pautado na transmissão de valores.

Aquilo que está soterrado pela lógica embrutecedora aos poucos emerge na busca por emancipação (Rancière). E é como lugar de agenciamento que a arte pode contribuir.

Não sei dizer até que ponto os especialistas continuarão operando. Posso afirmar apenas que, no contemporâneo, é para os "etc." que devemos olhar. Tudo o que de mais interessante está por vir tende a brotar dali.

*Diagramas de Ricardo Basbaum ilustram este texto.

quinta-feira, 27 de março de 2014

OS SISTEMAS IDEOLÓGICOS SÃO FICÇÕES

“Os sistemas ideológicos são ficções (fantasmas de teatro, diria Bacon), romances – mas romances clássicos, bem providos de intrigas, crises, personagens boas e más (o romanesco é coisa totalmente diversa: um simples corte instruturado, uma disseminação de formas: o maya). Cada ficção é sustentada por um falar social, um socioleto, ao qual ela se identifica: a ficção é esse grau de consistente que uma linguagem atinge quando pegou excepcionalmente e encontra uma classe sacerdotal (padres, intelectuais, artistas) para a falar comumente e a difundir.

‘[...] Cada povo tem acima de si um tal céu de conceitos matematicamente repartidos, e, sob a exigência da verdade, entende doravante que todo deus conceitual não seja buscado em outra parte a não ser em sua esfera’ (Nietzsche): estamos todos presos na verdade das linguagens, quer dizer, em sua regionalidade, arrastados pela formidável rivalidade que regula sua vizinhança. Pois cada falar (cada ficção) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estende-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, torna-se doxa, natureza: é o falar pretensamente apolítico dos homens políticos, dos agentes do Estado, é o da imprensa, do rádio, da televisão; é o da conversação; mas mesmo fora do poder, contra ele, a rivalidade renasce, os falares se fracionam, lutam entre si. Uma impiedosa tópica, regula a vida da linguagem; a linguagem vem sempre de algum lugar, é topos guerreiro.”

Roland Barthes
O prazer do texto

quarta-feira, 12 de março de 2014

"Se até mesmo de um artista se cobram 'mensagens' e 'posicionamentos', quanto mais de um professor! (E o que parece não passar pela cabeça dos que cobram 'posicionamentos' é o quanto essa cobrança tem de imobilizante, de ordenadora, de controladora – portanto, de antiprogressista.)

(…) O discurso de Barthes, não sendo uma fala magistral mas uma escritura, nunca é uma ameaça de opressão, mas um convite ao jogo."

Leyla Perrone-Moisés
(a respeito da Aula, de Roland Barthes)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

“A ‘inocência’ moderna fala do poder como se ele fosse um: de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o têm; acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político; acreditamos agora que é também um objeto ideológico (...). E, no entanto, se o poder fosse plural (...)? Adivinhamos então que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente nos Estados, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos libertadores que tentam contestá-lo: chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe.”

AULA
Roland Barthes

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A IMAGEM INTOLERÁVEL


"É preciso pôr em causa a opinião corrente segundo a qual esse sistema nos submerge numa vaga de imagens em geral - e imagens de horror em particular -, tornando-nos assim insensíveis à realidade banalizada desses horrores. Essa opinião é amplamente aceita porque confirma a tese tradicional de que o mal das imagens está em seu número, na profusão que invade sem possibilidade de defesa o olhar fascinado e o cérebro amolecido da multidão de consumidores democráticos de mercadorias e imagens. Essa visão pretende ser crítica, mas está perfeitamente de acordo com o funcionamento do sistema. Pois os meios de comunicação dominantes não nos afogam de modo algum sob a torrente de imagens que dão testemunho de massacres, fugas em massa e outros horrores que constituem o presente de nosso planeta. Bem ao contrário, eles reduzem o seu número, tomam bastante cuidado para selecioná-las e ordená-las. Eliminam tudo o que possa exceder a simples ilustração redundante de sua significação. O que vemos, sobretudo nas telas de informação de televisão, é o rosto de governantes, especialistas e jornalistas a comentarem as imagens, a dizerem o que elas mostram e o o que devemos pensar a respeito. Se o horror está banalizado, não é porque vemos imagens demais. Não vemos corpos demais a sofrerem na tela. Mas vemos corpos demais sem nome, corpos demais incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra. O sistema de Informação não funciona pelo excesso de imagens, funciona selecionando seres que falam e raciocinam, que são capazes de 'descriptar' a vaga de informações referentes às multidões anônimas. A política dessas imagens consiste em nos ensinar que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. E essa lição é confirmada de maneira prosaica pelos que pretendem criticar a inundação das imagens pela televisão."

Jacques Rancière
O ESPECTADOR EMANCIPADO
[A imagem intolerável]


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

DISSENSO

"Longe de buscar um consenso cretinizante e infantilizante, a questão será, no futuro, a de cultivar o dissenso e a produção singular de existência."

Félix Gattari, em AS TRÊS ECOLOGIAS


"Dissenso quer dizer uma organização do sensível na qual não há realidade oculta sob as aparências, nem regime único de apresentação e interpretação do dado que imponha a todos a sua evidência. É que toda situação é passível de ser fendida no interior, reconfigurada sob outro regime de percepção e significação. Reconfigurar a paisagem do perceptível e do pensável é modificar o território do possível e a distribuição das capacidades e incapacidades. O dissenso põe em jogo, ao mesmo tempo, a evidência do que é percebido, pensável e factível e a divisão daqueles que são capazes de perceber, pensar e modificar as coordenadas do mundo comum. É nisso que consiste o processo de subjetivação política: na ação de capacidades não contatadas que vêm fender a unidade do dado e a evidência do visível para desenhar uma nova topografia do possível. A inteligência coletiva da emancipação não é a compreensão de um processo global de sujeição. É a coletivização das capacidades investidas nessas cenas de dissenso. É a aplicação da capacidade de qualquer um, da qualidade dos homens sem qualidade."

Jacques Rancière, em O ESPECTADOR EMANCIPADO

domingo, 2 de fevereiro de 2014

TODOS POR UM

Você sai às ruas para exigir um país mais digno. Vem um policial militar e passa por cima de toda dignidade. Refiro-me ao caso brutal do soldado da ROCAM que, após espancar uma garota completamente desarmada de más intenções, subiu com sua moto na calçada e passou por cima da vítima, colocando abaixo qualquer protocolo, bom senso ou moralidade. Em entrevista posterior, ela confessou que nem se lembrava do atropelamento, tão atordoada que estava pelos socos e pontapés. Uma estudante do ensino médio que saiu às ruas para pedir dignidade. Pois bem. Esse PM volta para sua casa, na periferia, com a farda na mochila para não chamar atenção. Ele tem medo. Ele gostaria de viver num país mais digno, em que as pessoas, inclusive policiais, fossem respeitadas. Em que todos estivessem seguros de verdade.


Quando escrevo este texto, alguns dias antes da publicação, as notícias dizem que a Corregedoria da Polícia Militar recolheu outros vídeos além daquele que originou a denúncia, gravado a partir de uma janela alta. O investigador explicou que as câmeras de segurança dos prédios vizinhos mostram a vítima sozinha, indo embora da manifestação, quando é alcançada por uma tropa e espancada covardemente, sem esboçar qualquer reação. Foram oito ou mais policiais fardados e armados contra uma garota de 18 anos. Depois de a atropelarem com a moto, os agressores continuaram a chutá-la no chão, e a abandonaram sem prestar qualquer socorro. As testemunhas que filmaram o crime resgataram a vítima com vida, e por sorte ela agora está se recuperando.

O atropelador é um criminoso, sem dúvida. Ele agiu com cúmplices. O mínimo que se espera é que sejam identificados e punidos conforme a Lei. A PM não precisa desse tipo de gente. A sociedade tampouco.

Existe outra questão aí: eles se aproveitaram da situação suscetível da moça para aplicar as "medidas corretivas" a que gostariam de submeter todos os manifestantes. Do mesmo modo, ao praticaram seu crime, colocaram em xeque a corporação inteira, suas falhas e inaptidões. Um por todos.

"O desafio consiste em não ser polícia", Eduardo Sterzi publicou no Facebook. Claro que ele não se refere à profissão somente, mas às atitudes de todos nós, em geral, que tendemos a reprimir, julgar, querer justiça com as próprias mãos, fazer mau uso do poder, violentar pessoas física e moralmente. O desafio consiste em resistir a isso tudo. Porque fomos, de alguma maneira, doutrinados a acreditar que a ordem deve ser mantida a qualquer custo. A preservar "os bons costumes" (quais mesmo?). A acreditar que o castigo resolve problemas, que a vingança deve ser buscada, que a PM deve atacar ao invés de proteger o povo manifestante. Somos doutrinados a emitir opiniões condenatórias sem conhecer o caso, sem compartilhar dele – porque, na prática, todos são culpados, exceto nós mesmos, não é assim? Nós somos santos, o inferno são os outros.

"Ao invés de acionar incansavelmente procedimentos de censura e de contenção, em nome de grandes princípios morais, melhor conviria promover uma verdadeira ecologia do fantasma, que tivesse como objeto transferências, translações, reconversões de suas matérias de expressão", propõe Félix Guattari. Ao invés de sustentar esse sistema violento e presunçoso, é sempre a hora de revê-lo, reinventá-lo, adequá-lo às novas realidades. A tradição da PM, caso seja o empecilho, deve ser revistada e transformada, provavelmente abandonada, se é de interesse da corporação não cair em desuso. Sua pertinência no contemporâneo depende disso.

O medo da farda não opera mais conforme a princípio. Porque o povo tem medo da farda que deveria protegê-lo, porém oprime. Os soldados têm medo da farda porque denuncia sua profissão, expondo-o ao crime, e também porque é mais forte do que suas próprias convicções, obrigando-o a agir contra a vontade, quando esta existe, em prol de uma corporação falida. Por outro lado, os criminosos, fardados ou não, não têm qualquer medo, ao menos são o suficiente para impedir suas ações.


A polícia precisa morrer. Não no sentido literal, mas no trágico. Conforme escreve Sterzi em Aleijão: "Foram tantos / que me mataram / Não tenho bocas / para agradecer". Morrer como ideal ultrapassado, rever princípios e protocolos, proteger o povo durante as reivindicações, que é uma das mais importantes provas de democracia. Entender que elas buscam um bem maior, do qual todos, policiais inclusive, poderão usufruir.

"A noção de interesse coletivo deveria ser ampliada a empreendimentos que a curto prazo não trazem 'proveito' a ninguém, mas a longo prazo são portadores de enriquecimento processual para o conjunto da humanidade", escreve Guattari.

Por sua vez, os manifestantes não podem agir como fazem as forças opressoras, sustentando o sistema que criticam. A estratégia deve ser outra. Nesse sentido, os rolezinhos foram eficazes: usaram do banal, da facilidade de mobilização e da legalidade para denunciar preconceitos, truculências e falta de estrutura em diversos níveis. Expuseram questões graves, antes reprimidas, e nos puseram a pensar nelas. Expuseram a insuficiência das instituições e a incapacidade dos gestores.

Concordo com Jacques Rancière, para quem "política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. (...) É a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem 'natural' que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-se sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. (...) A política é a prática que rompe a ordem da polícia".

Gostaríamos de contar com o apoio da PM, não com o ódio. Nós, povo brasileiro, policiais inclusive, temos coisas mais urgentes para odiar e melhorar.


Obs.: Vale a pena ouvir a entrevista com o pai da menina atropelada à rádio Band News. Fica mais fácil entender o que aconteceu e o que está acontecendo: entrevista com Boechat

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

CHARLES BAUDELAIRE: CONTEMPORÂNEO DO PASSADO, DO PRESENTE E DO FUTURO



Texto meu na POIÉSIS (v. 1, n. 20). É relativamente antigo, mas só agora foi publicado e... não custa nada dar uma olhada!

Aqui: Poiésis 20
Para download, clique aqui.

RESUMO: Este artigo procura discutir, a partir de uma afirmação de Charles Baudelaire escrita em 1863, o conceito de contemporâneo que permeia as criações artísticas recentes. Isso é possível por meio de um diálogo com autores – filósofos, críticos, artistas, entre outros – que se dedicam ao tema, procurando identificar semelhanças e desacordos, em especial no que diz respeito ao regime de pensamento e sua relação com o passado. O contemporâneo, no caso, não se reduz a uma apreensão cronológica do espaço-tempo, mas ao conjunto de questões que permanecem relevantes para o melhor entendimento das pessoas e do contexto sócio-estético-político em que atuam, criam, pensam e transformam. Questões que têm origem na modernidade de Charles Baudelaire e que ainda hoje produzem ressonâncias.

Palavras-chave: contemporaneidade, modernidade, estética e política, arte, literatura

Confira também os números anteriores da revista: http://www.poiesis.uff.br/

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

ESTÉTICA & POLÍTICA

Torso Belvedere, nos Museus Vaticanos

“A ruptura estética instalou, assim, uma singular forma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma ruptura da relação entre as produções das habilidades artísticas e dos fins sociais definidos, entre formas sensíveis, significações que podem nelas ser lidas e efeitos que elas podem produzir. Pode-se dizer de outro modo: a eficácia de um dissenso. O que entendo por dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos. É o conflito de vários regimes de sensorialidade. É por isso que a arte, no regime da separação estética, acaba por tocar na política. Pois o dissenso está no cerne de política. Política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. Seu âmbito não é definido, em primeiro lugar, pelas leis e instituições. A primeira questão política é saber que objetos e que sujeitos são visados por essas instituições e essas leis, que formas de relação definem propriamente uma comunidade política, que objetos essas relações visam, que sujeitos são aptos a designar esses objetos e a discuti-los. A política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem ‘natural’ que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. Essa lógica dos corpos tem seu lugar numa distribuição do comum e do privado, que é também uma distribuição do visível e do invisível, da palavra e do ruído, é o que propus designar com o termo polícia. A política é a prática que rompe a ordem da polícia que antevê as relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis. Ela o faz por meio da invenção de uma instância de enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns. Tal como Platão nos ensina a contrario, a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das competências – ou incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era ouvido apenas como ruído dos corpos.” (p. 59-60)

Jacques Rancière
O Espectador Emancipado

sábado, 12 de outubro de 2013

SER DE ESQUERDA

Sempre achei inconveniente a classificação de governo esquerdista ou direitista, sendo um voltado para o social e outro para o capital, conforme aprendi na escola. Comunistas e capitalistas de verdade existem apenas em filmes hollywoodianos ou livros de geopolítica. Talvez ainda em cartilhas, que ninguém segue à risca. Porque, na prática, não é bem assim; dogmas não se aplicam, maniqueísmos idem... Existem nuances. Ambas as utopias, com suas propostas extremistas, estão em desalinho com a realidade contemporânea, tampouco dão conta da sua complexidade. Ideais estáticos, rígidos, não operam em sociedades moventes, ambíguas, em transformação constante e veloz. No mundo inteiro, de modo geral, estabelecem-se governos de centro: centrados em si mesmos, nos interesses imediatos, seja o reconhecimento econômico internacional para atrair investimentos, seja uma tentativa de se livrar das ameaças para assim permanecerem no poder. Centros que em raras ocasiões se distanciam na direção da periferia social ou intelectual, e quando isso ocorre o percurso já é, desde o princípio, digno de suspeita.

 


Isso é evidente no Brasil, com nossa imensa variedade de partidos políticos que, na prática, são igualmente previsíveis: doutrinários, conservadores, patriarcais. Quer dizer, é possível diferenciar ideologias bem estruturadas, questionadoras e incompatíveis que justifiquem tantas chapas? É possível discerni-las? Veja bem, a questão não é o número, mas os motivos que levam a ele. Os partidos têm quais objetivos, quais planos de governo, quais propostas de trabalho? Ninguém sabe. Porém, existe uma infinidade de interesses pessoais postos em jogo, além de uma dança de cadeiras mais ou menos ensaiada que sustenta a mediocridade do sistema.

Por sua vez, um significado possível para o termo "esquerda" ganha força em consequência desse território esgotado estabelecido pela tal democracia como a temos hoje. Um certo tipo de pensamento e de posicionamento político em formação, que se manifesta por sua inexatidão e assim deve prosseguir. Foi ao assistir a um fragmento de entrevista com Gilles Deleuze que pude compreender melhor esse "esquerdismo", que nada tem a ver com aquele "direcionamento ao social" arrastado pela tradição. "Ser de esquerda", explica o filósofo, "é começar pela ponta e perceber que esses problemas devem ser resolvidos, pois estão mais próximos do que nossos problemas pessoais. Ser de esquerda é ser ou devir minoria".

A que ponta ele se refere? Àquela mais distante, que parece não nos dizer respeito. À fome na África, às ditaduras islâmicas, às imposições norte-americanas, às calotas polares – de lá para cá, da ponta em direção a nós; esse seria o trajeto, a estratégia de atuação. A lógica se inverte; de longe deveríamos caminhar até o nosso redor imediato e, enfim, o conhecido centro de onde costumam partir os interesses públicos.

Para Deleuze, ser de esquerda é um fenômeno da percepção. Trata-se de uma maneira de apreender o mundo, as relações sociais, as vontades políticas, as atitudes. "Ser", afinal, é um verbo de ação, não uma determinação. As pessoas só "são" sendo. Em outras palavras, o que as constitui é a sua postura diante da vida, os atos que protagonizam; não uma programação precedente.

A esquerda está condenada à oposição. O que não significa ser o tempo inteiro contra a situação vigente, porque atacar por atacar é um egocentrismo inconsequente e ingênuo. Ser oposição está relacionado com fazer prevalecer o direito à crítica, ainda que nem sempre a alternativa seja mais indicada. Revisar as instituições e, se for o caso, propor melhorias. Experimentar outros pontos de vista, procurar novos caminhos, explorar possibilidades não consideradas até então. Dar voz às minorias. Aproximar-se delas. Deixar-se afetar.

Não tem nada a ver com o governo. Nem pode. Jamais existirá governo de esquerda. Quando a esquerda toma o poder, seu oposicionismo se esfacela. Ilude-se o povo que pretende vê-la dominar, de modo que seus desejos sejam atendidos. Isso é impossível. O governo estará centrado em si, independentemente da sua origem, pois é assim que o sistema global funciona.

É um paradoxo. Porque, se o povo se une, o esquerdismo se transfere para outra causa. Trata-se de uma instância fluida. A esquerda é a minoria, a resistência, a oposição por excelência. Não pode jamais ser estática ou instituída: é uma situação momentânea, relativa, que abrange um sujeito para logo o abandonar e se dedicar a uma nova questão. Um papel social. Não deve desejar o poder, mas derrubar as maiorias que se impõem. Jamais se torna padrão, pelo contrário: posiciona-se fora dele, combate-o, provoca-o até que se desfaça. Inconformada com qualquer que seja a situação, deslocada em relação a ela, querendo sempre repensá-la, querendo sempre renová-la.

Se a situação se dedica a algo, a esquerda exigirá que se volte a outro, irá procurar esse outro onde quer que esteja, por menor que seja, porque ele existe e necessita de espaço para se expressar; ele depende da esquerda para ser ouvido. Quando se estabelece, a esquerda o mantém sob vigilância e passa a procurar outro outro, o além outro, o novo outro, a exceção. Assim, pelo movimento contrário, promove um equilíbrio imprescindível.

Quando a maioria ganhar força, a esquerda estará distante, junto da minoria. Porque "a maioria nunca é ninguém", diz Deleuze, "mas um padrão vazio em que muitas pessoas se reconhecem. (...) A minoria é todo mundo". Nelson Rodrigues completaria com sua célebre afirmação: "Toda unanimidade é burra".

Ser de esquerda é tornar-se crítico, olhar com desconfiança, resistir às forças primárias. Não com objetivo de destruir, movido por puro preciosismo. Mas para refletir, provocar rupturas, abrir fendas, incentivar melhorias e não deixar que um ser sucumba por pressões impostas, por maiorias sufocantes, pelas normas gerais confortadas no poder. Ser de esquerda é uma possibilidade de existência condizente com o agora. É estar deslocado em relação à ordem. Tanto da política partidária, administrativa, quanto das políticas que nos afetam no dia a dia, que constituímos e sustentamos. A política própria da vida em sociedade.

[transcrevi aqui a entrevista com Deleuze disponibilizada no vídeo acima: A esquerda de Deleuze]

domingo, 15 de setembro de 2013

A CONDENAÇÃO LÓGICA

"Aquilo que o condenado, em silêncio, compreende finalmente, na sua última hora, é o sentido da linguagem. Os homens, poder-se-ia dizer, vivem a sua existência de seres falantes sem entenderem o sentido da linguagem; mas para cada um deles trata-se de uma sexta hora na qual até o mais estúpido vê a razão abrir-se. Naturalmente, não se trata da compreensão de um sentido lógico, que também poderia ser lido com os olhos; trata-se de um sentido mais profundo, que não pode ser decifrado a não ser através das feridas, e que só é atribuível à linguagem enquanto punição (é por isso que o domínio da lógica é o do juízo: de fato, o juízo lógico é uma sentença, uma condenação). Compreender esse sentido e medir a culpa própria é um trabalho difícil; e só depois de concluído esse trabalho se pode dizer que foi feita justiça."

Giorgio Agamben
Ideia da Prosa

sábado, 7 de setembro de 2013

CORPOS CONTEMPORÂNEOS: ANOTAÇÕES DE AULA


Quem estava ali era um corpo cansado. Tinha acordado mais cedo do que o costume, engolira qualquer coisa no café por receio de se atrasar. Enfrentara uma hora e quinze minutos de trânsito. Respondera e-mails no escritório e preparara a tarefa dos assistentes. Dirigira mais uma vez, agora até a universidade. Combinara rapidamente o programa do dia com a docente responsável. Às 10h30, a aula se iniciava, e foi assim que me apresentei à turma de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP, com a qual tenho colaborado neste semestre. Um corpo cansado, agitado, ansioso com o trabalho que iniciava, curioso para conhecer os alunos, cheio de atribuições mas com vontade de assumir outras, de participar de tudo, do possível e do impossível, por mais insano que seja.

Um a um, fomos descrevendo nosso "estado de alma", fazendo-nos conhecer e aproveitando para pensar sobre a carga depositada naquele misto indissociável de corpo e mente. Sentimentos, razões, dores musculares, sono, tensão, frio, curiosidade, timidez, empolgação, estresse, apreensão, expectativas, preguiça, cansaço. Sempre o cansaço, presente na fala de todos.

Não é de surpreender. Somos demandados e superativados no contemporâneo por um sistema de produção que remonta a Revolução Industrial, no século XVIII, e que hoje em dia opera de maneira peculiar. Estamos sempre apressados, buscando o além dos limites, exauridos por excesso de informação, horas extras, trajetos longínquos, atuação nos mundos reais e virtuais, conexões várias que transformam as noções de privacidade e põem a nu as experiências mais íntimas, expondo-as, quase sempre as banalizando. Homens de execução, não de reflexão.

Isso desemboca na ansiedade, que cada um vive à sua maneira e em seu grau, e que se resume no ato de colocar-se à frente de onde deveria estar – ou seja, de antecipar questões futuras para vivê-las no presente, quando nada pode ser feito para resolvê-las.

Estávamos todos cansados antes mesmo de iniciar os estudos. O contemporâneo já se manifestava em nossos corpos sem que nós o percebêssemos. Uma das propostas da disciplina de Práticas Corporais é, por isso mesmo, tomar consciência desses sentimentos e preparar os terapeutas para acolher, cuidar e transformar outros sujeitos afetados pelas pressões da vida.


Ora, onde está a sensibilidade nos dias de hoje? Para Giorgio Agamben, "uma estranha pobreza de descrições fenomenológicas contrasta com a abundância de análises conceptuais do nosso tempo. É um fato curioso que seja ainda um punhado de obras filosóficas e literárias escritas entre 1915 e 1930 a constituir a chave da sensibilidade da época; que a última descrição convincente do nosso estado de alma e dos nossos sentimentos remonte, em suma, a mais de 50 anos".

Este trecho foi publicado originalmente em 1985 e permanece atual. O contemporâneo, vivido como um sistema em processo, portanto sem forma definitiva, acaba por impossibilitar a apreensão exata dos novos tempos.

Nas pesquisas de Terapia Ocupacional, percebo alguns caminhos para esse estado de alma, que pela sensibilização do corpo levam a camadas profundas da existência. Por isso, escreve Flávia Liberman, "faz-se necessário um olhar que investigue o visível e o invisível, o perceptível e aquilo que ainda não despontou como expressão, ou seja, o corpo como um atravessamento de histórias, intensidades, afetos, formas que se desmancham e se configuram permanentemente, sempre no devir".

Sensibilizar é uma estratégia de descoberta e conscientização sobre nossas atitudes, sobre os papéis que exercemos no dia a dia e que, de certo modo, confluem para as realidades compartilhadas. "Pensar, viver e refletir sobre como as pessoas se relacionam e expressam, através de seus corpos, os encontros com outros corpos, com outros mundos", diz a terapeuta.

Nesse sentido, arte e clínica estão mais próximos do que se imagina, e ambos se agenciam no âmbito da vida comum. Porque se trata de criar corpos para o enfrentamento, para os embates cotidianos, para superar ou contornar os excessos, a ansiedade, o cansaço, o esgotamento etc. Um trabalho da Estética, localizado na fronteira entre o sentimento e o pensamento. Corpos atuando numa realidade de estrutura ficcional, inventados para certos desafios e reinventados a cada nova demanda. Que se apresentam como dispositivos – quer dizer, dispostos em relação com o outro, abertos ao entorno, à disposição das implicações contemporâneas. Postos no mundo ao mesmo tempo em que constituem o próprio mundo.


*As imagens acima foram emprestadas da tese de doutorado de Flávia Liberman, à qual você tem acesso aqui: Delicadas Coreografias: Instantâneos de uma Terapia Ocupacional