Pesquise aqui

Mostrando postagens com marcador filosofia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador filosofia. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 6 de agosto de 2013

IDEIA DA VERDADE

"Verdadeiramente desconsolador seria o conhecimento útimo ter ainda a forma da objetualidade. É precisamente a ausência de um objeto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda verdade última formulável num discurso objetivante, ainda que em aparência feliz, teria necessariamente um caráter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade."

Giorgio Agamben
(no livro Ideia da Prosa)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

PENSAMENTO EM DEVIR

Este texto é complementar à apresentação da mostra DISSOLUÇÃO, de Felipe Góes, no Centro de Educação Municipal Adamastor (Guarulhos/SP). Se você não leu o primeiro texto, está aqui.

Clique no convite para ampliá-lo.
“O limite último que o pensamento pode atingir não é um ser, não é um lugar ou uma coisa, mesmo despojados de qualquer qualidade, mas a própria potência absoluta, a pura potência da própria representação (...). Apenas a matéria, apenas a potência do pensamento”, escreveu o filósofo Giorgio Agamben sobre Damáscio, que no século VI quis encontrar uma espécie de verdade final, única e absoluta. Até que a percebeu, quem diria!, na folha em branco que aguardava seus escritos. Em forma de potência. A única forma que a sustentaria.

O mesmo vale para a pintura de Felipe Góes: o pensamento, sempre por se fazer, encontra sua força máxima na tela virgem, aberta a um enorme campo de possíveis. Deve se sustentar por si mesmo, encontrar seus próprios meios de existência. A potência é tanto criativa quanto destrutiva; seus resultados podem ser bons ou maus. No limite: trata-se de um lugar arriscado, porque também é frágil, pode se desfazer com a mesma intensidade, pode se dissolver até desaparecer por completo.

Por sua vez, a tela pintada conserva algo daquela brancura inicial, especialmente quando o inacabamento é assumido como poética. A brancura que se dispõe à recepção do público, que abre espaço para sua contribuição, para linhas e cores singulares. Onde termina o projeto de Felipe se inicia o do outro.

Nenhuma dessas brancuras de que falamos são puras. Quer dizer, por um lado, toda tela virgem está sempre impregnada de conceitos do artista e da própria história da arte. Uma profusão de pensamentos já a habita antes mesmo de ser dada a primeira pincelada. Por outro lado, de maneira análoga, toda tela pintada é recebida por nova profusão de conceitos e expectativas que já existem antes mesmo de ela ser vista; pensamentos que habitam cada expectador e que independem da vontade do artista.

Todas essas aberturas são potências sensíveis que não se conhece de fato, e que são dadas para serem experimentadas.

Pois Agamben diz ainda que, “conhecendo a incognoscibilidade do outro, conhecemos não alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós”. Assim, ao reconhecermos que há nessas pinturas algo que não pode ser completamente compreendido, ativamos descobertas potenciais a respeito de nós mesmos. O público da arte se coloca no lugar da obra, percebendo a realização do seu próprio ser naquilo que observa sem que esteja dado nas pinceladas, naquilo que ajuda a pintar.

Essa força que instiga o autoconhecimento é uma das características mais marcantes no trabalho de Felipe Góes.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

CONTAMINAÇÃO CULTURAL

Pouco antes de falecer, Jacques Derrida teria dito que entendia sua obra como a de um epidemiólogo, pois foi sempre uma tentativa de inserir o outro no eu. Não sou familiarizado com aquela filosofia; quem me contou isso, durante uma entrevista, foi Ricardo Basbaum. Na ocasião falávamos de certo tipo de contaminação pela cultura, à qual estamos suscetíveis de uma maneira ou de outra.

Pois tudo aquilo que vivenciamos, que experimentamos, que nos inquieta é percebido por nossos corpos, apreendido pelos sentidos, incorporado. Não se trata de consciência apenas, mas de um conhecimento que extravasa as barreiras da razão e habita o corpo inteiro, fica impregnado na carne. Nós reagimos àquela ação cultural produzindo anticorpos. Quer dizer, apreendemos o que nos invade, processamos, produzimos certo tipo de reação. Tudo o que resta dessa experiência cultural permanece registrado naquilo que somos, e o carregaremos pelo resto da vida na memória do corpo.

Fiquei com a ideia a martelar. Foi assim que me dei conta do paradoxo: o corpo produz anticorpos. Trata-se de uma figura de linguagem, claro. Cujo objetivo não é tornar o homem imune à cultura, o que seria um equívoco; ao contrário, o conceito ajuda a compreender que nem todo conhecimento pertence ao território da razão, como acredita certa herança racionalista de séculos atrás que ainda prevalece nas mais banais das situações. Além de termos consciência dos nossos corpos, é também por meio deles que a consciência atua. Ou seja, corpo e consciência não existem isoladamente; eles formam uma só coisa, coincidem no ser. Num corpo-consciência.

Conforme explica José Gil, "não há consciência sem consciência do corpo. Não há consciência sem que os movimentos corporais intervenham nos movimentos da consciência". Na prática, isso significa que todo conhecimento é, de certo modo, um conhecimento sensível. Que é por meio de afetações – aquilo que acontece ao redor e nos sensibiliza – que descobrimos as coisas do mundo. Conhecer pressupõe estabelecer uma relação afetiva com o mundo, do qual nós próprios somos parte – somos feitos da mesma matéria do mundo, diria Maurice Merleau-Ponty.

Se essa forma de conhecer parece estranha num primeiro momento – e, com sorte, plausível num segundo –, imagine como transformaria o nosso dia a dia. Na escola, por exemplo, onde a decoreba, prática ainda tão comum, parece também tão precária. Onde aprender "na marra" não proporciona mais do que desgosto, impedindo qualquer relação sensível com a matéria. Mesma escola em que os trabalhos do corpo – dança, esportes... – ocupam um lugar menor, quase sempre reduzidos a uma questão de preparo físico. Isto para citar apenas uma ocasião em que o conhecimento imposto simplesmente não opera – é necessária uma abertura do ser em direção ao outro. Disposição, acolhimento.

Para José Gil, "a contaminação afetiva seria assim o exemplo mais comum de contágio: nada mais banal do que a transmissão imediata da expressão emotiva de um rosto, lágrimas ou riso que induzem em outrem mais lágrimas e mais riso".

Nossas memórias, por sua vez, são memórias corporais, no sentido de que habitam o corpo e também o constituem. Não estão "guardadas na mente ou na cabeça", como se a consciência fosse uma instância superior ou como se fosse possível fragmentar o corpo em especialidades [médicas?]. Não se separa um pedaço sem afetar o restante, assim como não se separa corpo e mente – quando um deixa de existir, o outro também sucumbe. A memória está no corpo e, dependendo do que evoca, é possível senti-la. Lembranças carinhosas acalentam, um trauma arrepia, uma perda dói, uma paixão amolece as pernas, a ira enrijece o coração, um acanhamento aquece as bochechas e assim por diante. O caminho inverso também é possível: o frio remete às férias no Chile; o abraço, a uma experiência de infância etc.

Existem ainda fantasmas que assombram nossos corpos. Presenças ausentes que deixam marcas e reavivam sensações, que interferem no presente vindas, muitas vezes, de um além-consciência. Fantasmas que nem sempre reconhecemos e com os quais é difícil lidar. Estes sim corrompem, desconfortam, provocam sensação de desmembramento; podem levar ao grave sofrimento psíquico.

Alguns artistas contemporâneos trabalharam essas questões, e desconheço quem se aprofundou tanto quanto a brasileira Lygia Clark, cuja obra desembocou numa espécie de prática terapêutica denominada Estruturação do Self. Dos museus, ela migrou para instituições psiquiátricas, fundando um novo lugar nesse misto ambíguo de arte e clínica, que não é exatamente um nem outro.

"É precisamente do self, segundo Winnicott, que se extrai o sentimento de existir, a capacidade de uma experiência total, a sensação de participar na construção da realidade de si e do mundo que ela gera, propiciando a impressão de que a vida tem sentido", escreveu Suely Rolnik.

Lygia Clark mostrou que não apenas os corpos são contaminados pela cultura: numa dialética própria, também cada pessoa contamina o universo cultural, afetando a ele e às demais. É uma via de duas mãos. Duas entidades que coincidem sem que uma ocupe o lugar da outra e sem que seja possível separá-las. Cada um de nós está conectado a tudo o que se produz e que se entende por cultura, sendo por ela responsável. Com nossos gestos, a cultura ganha corpo; por meio da experiência cultural, o ser ganha consistência.


Obs.: A versão deste texto publicada no Correio Popular foi sutilmente reduzida pelo autor.

terça-feira, 25 de junho de 2013

O PERIGO DA HISTÓRIA ÚNICA

Quando nós conhecemos apenas uma versão da história, corremos o risco de ela se tornar absoluta.
Quando assumimos essa história como verdade, o preconceito passa a nos habitar.
Quando reproduzimos esse discurso, provocamos uma violência contra o outro.
Isso tudo acontece inclusive quando se tem a melhor das intenções.

Autenticidade, mídia, poder, discernimento, coletividade, estereótipos, dignidade, diferenciação.

Na curta e emocionante palestra intitulada O perigo da história única, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie mostra como a questão está mais próxima do que supomos. Ela perambula em nosso cotidiano, em nossas atitudes, em nossas escolhas e palavras. Vale a pena assistir aqui:


"Todas essas histórias me fazem quem sou. Mas insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que me formaram."

"Quando rejeitamos a história única, quando nos damos conta de que não existe apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso."

Chimamanda Adichie

Saiba mais sobre Hibisco Roxo, livro de Chimamanda Ngozi Adichie publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Site oficial (em inglês): chimamanda.com

sexta-feira, 21 de junho de 2013

AS REDES SOCIAIS


Entre 1964 e 1974, os artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark trocaram centenas de cartas, que foram selecionadas e publicadas pela UFRJ em 1998 – um livro de rara importância e dos mais variados interesses, porém esgotadíssimo, para azar de todos. Ler aquelas cartas foi um dos maiores prazeres em minha pesquisa de mestrado. Lygia morava em Paris e dava aulas na Sorbonne. Hélio permaneceu no Rio de Janeiro, exceto por um pulo em Londres e outro em Nova York. Ambos eram pobretões de dar pena, às vezes faltava dinheiro até para selar o envelope. Mesmo assim, falavam de tudo um pouco em textos longos, em que revelavam muitas inquietações experimentadas na criação dos trabalhos. Pensavam não apenas a arte, mas a vida contemporânea. Compartilhavam segredos, angústias, indignações, fofocas, críticas, inseguranças, desejos e apoio. Eram amigos singulares e tinham consciência disso. Apelidavam-se de “a mão e a luva”: feitos um para o outro, calçavam-se bem. Ela era a mão, a interioridade. Ele era a extroversão em pessoa. O mesmo valia para as respectivas obras. Pois Lygia se voltava cada vez mais para a subjetividade, para as questões da psique, para o homem em desacordo com o sentimento de si, em busca de liberdade. Hélio, por sua vez, debruçava-se sobre o contexto social, as políticas que interpelam os sujeitos, os estados de ser e estar no mundo. Em suma, completavam-se, compreendiam-se, solidarizavam-se; ainda que se soubessem muito diferentes um do outro. Ao longo das cartas, vemos a ditadura engrossar, a arte ganhar corpo, o vínculo ganhar força, o pensamento se transformar, o campo se expandir, o mundo girar e o Brasil se livrar do vanguardismo tardio.

Existiu outro movimento consecutivo, envolvendo cartas, que nada tem a ver com a correspondência entre Hélio e Lygia. Refiro-me à Arte Postal, que ganhou diversos adeptos e da qual Paulo Bruscky é um dos representantes mais ativos, pois ele não apenas se comunicou com gente mundo afora como preservou as mensagens num arquivo maravilhoso, mantido em sua casa. O Museu de Arte Contemporânea da USP também teve papel decisivo. Sob direção de Walter Zanini, abriu chamados para manifestações de todo o tipo, que chegavam pelo correio e que hoje compõem um acervo de arte conceitual abrangente o bastante para render décadas de pesquisa. Muitas obras são de artistas que permanecem desconhecidos, enviadas de lugares distantes, por vezes clandestinamente, procurando fugir de regimes opressores ou adentrar o nosso próprio. Porque, entre as forças da Arte Postal destacava-se seu potencial de resistência: estabelecer uma rede social ativa às escondidas dos militares, vencendo sistemas de averiguação e censura, mantendo aberto um canal de comunicação mesmo quando atos públicos eram rechaçados. Trabalhos e pensamentos que fluíam em circuitos ideológicos alternativos, sobrevivendo.

Por fim, um terceiro ponto que nenhuma relação tem com aquelas artes: devido ao meu fascínio por canetas-tinteiro, adquiri o hábito de trocar cartas com aficionados do Brasil e do mundo. Sim, ainda existem cartas tradicionais, escritas à mão (para minha felicidade, nem tudo que o carteiro deixa em casa é cobrança ou propaganda). Elas servem para amostras de tinta, aulas de caligrafia, relatos de experiências com marcas e modelos etc. Também servem para manter amizades. Pois o hobby me incentivou a enviar cartas inclusive a pessoas que não dão a mínima para canetas, e elas foram correspondidas. Uma conversa diferente dos chats, e-mails e SMS. Aprendi com isso tudo que existe outro tempo de comunicação correndo em paralelo com a velocidade da internet. Tempo de reflexão, menos imediatista. Tempo de dedicação. Porque, quando uma carta chega, levo dias ou semanas para devolvê-la. Revejo tudo o que pretendo dizer, acrescento, corto, esmiúço, reescrevo. Essa mensagem levará dias ou semanas para atingir seu destinatário, que também demorará para ler e responder. A espera faz parte e tem seu valor.

Não se trata de melancolia nem de dizer que o sistema de correio é melhor do que a internet. Nem pior. Seria uma bobagem enorme; passo o dia inteiro conectado à rede digital, não vivo sem. São coisas diferentes, e por conta das canetas descobri que o antigo sistema é também interessante, em sua medida.


Falando em demora, já faz cerca de dois meses que pensei em escrever sobre este assunto. Porém ele só ganhou sentido após as manifestações que têm chacoalhado o país, e que se organizaram, como sabemos, via redes sociais. Foi assim que me dei conta das informações que percorrem os diversos canais mantidos por nós, suas camadas de significado e capacidade de penetração. Pensei em como parece ingênuo expor intimidades na internet para quem quiser acessar e também em como seria impossível mobilizar cem mil pessoas para uma passeata com uso de selo, envelope e escrita à mão. Às vezes, o conteúdo correto simplesmente circula no canal inadequado.

Vivemos um tempo em que diferentes camadas de tempo convivem. Embaralham-se, atropelam-se, embolam-se, ficam retidas ou extravasam. É um tempo de comunicação, sem dúvida. De manifestação, compartilhamento e conquista, seja na velocidade da luz ou no devir da reflexão. Tempo lento e rápido do pensamento. De transformação, de conexão entre todas as diferenças do mundo numa gigantesca e pródiga ambiguidade. Tempo de unir os fragmentos, não com intuito de descaracterizá-los, mas para que ganhem ainda mais força na fragmentação que os legitima.

Lygia Clark, de certo modo, antevia isso tudo. Tanto que, em 1971, afirmou ao jornalista que a entrevistava, recusando o título de cientista da arte: “É muito difícil hoje botar um limite nas categorias, mesmo entre coisas diferentes, como Ciência, Psicologia e Arte, que estão tendendo a convergir para um ponto só, que, no fundo, seria a comunicação”.

Pensamento bem contemporâneo. E difícil de combater. Porque, quando a rede está bem trançada e mobilizada, não existe liderança clara nem hierarquia, nenhum nó é mais importante do que o outro, não existe quem perseguir. Ficamos todos juntos no mesmo plano, tensionando aqui e ali. Sem cabeças para cortar ou estátuas para erigir. Na prática, as diferentes camadas de conexão nos mantêm unidos. As correntes de informação derrubam barreiras e aproximam territórios. Deixamos a Era dos Extremos, conforme o historiador Eric Hobsbawn batizou o século XX, para viver a Era da Comunicação. Unidos assim, entre dezenas de boas causas, realmente, tão cedo não seremos vencidos.

*Imagens: Metaesquemas, de Hélio Oiticica (fonte: Itaú Cultural – Programa Hélio Oiticica). Este texto foi publicado no Correio Popular em versão resumida.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

CORPO E SUBJETIVIDADE

"Nossas memórias e planos, nosso passado e possibilidades de futuro, existem na concretude de nossos corpos e de nossas ações. O corpo mais que todo, a se ultrapassar como ação orgânica e histórica, parte de um mundo-ação. Corpo não identitário, impossibilitado de isolar-se em um “si mesmo”. (...) Corpo-no-mundo, memória concreta do passado todo superfície, colapsado no presente, de onde se atualizam novas ações, as quais são o futuro no agora, a concretude do vir-a-ser."

"Erigimos então, com a subjetividade, um campo todo superfície, formado apenas pelas contingências, pelas predicações em constante movimentação verbal, tudo ocorre, acontece. Existimos, então, em um mundoexpressão, no qual vagamos-expressamos, impelidos por nossas forças em arranjo. E, assim, nos vamos implicando com as demais expressões, as quais jamais são as próprias, mas a criação de um encontro."

"Subjetivação, diferenciação da diferença que não está constituída em algo, mas que está sempre se afirmando na força de uma ação, em um processo de agenciamento de práticas, em atravessamentos os quais, no seu encontro fluido, expressam o que denominamos indivíduo. E, aqui, indivíduo não significa mais o que não pode ser dividido em si, por constituir uma unidade fundamental do ser (identidade); mas sim, o que não pode ser dividido do que lhe envolve, do que o envolveu, enfim, de suas implicações."

"O corpo é uma pluralidade de vontades de potência em conexão com os fluxos de forças do mundo em uma alternância de arranjos, sem uma essência por trás das forças, pois, estas mesmas são o ser. Corpo-rizoma, não completamente dividuado do mundo, diferencia-se a si e ao mundo, transformandoos. Corpo que não nega ou aparta sua subjetividade, mas sim, afirma sua singularidade móvel e sua parcialidade perspectivista."

"O corpo é abertura para o mundo – e não fechamento. Ao invés de nos separar do mundo, ele nos permite fazer parte dele: o habitar, o impressionar e impor nossa existência que é uma existência conectada."

"Subjetividade, não no sentido de referente a aquilo que é particular a um “si mesmo”, mas sim, subjetividade enquanto tentativa de apreender aquelas linhas fugidias que transpassam e constituem os fluxos produtores do nosso mundo vivido. Aquilo que é menor e mutável, que se encontra invisibilizado por representações gerais, tampões da diversidade, como as definições de normal e patológico."

Trechos colhidos em DA DIVERSIDADE: UMA DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE SUBJETIVIDADE, de Luis Artur Costa e Tania Mara Galli Fonseca

Leia o artigo completo aqui: Revista Interamericana de Psicologia, vol. 42, n. 3

quinta-feira, 2 de maio de 2013

É QUANDO/ONDE AINDA

Algo cresce na fenda do concreto. Em meio à rigidez árida da certeza brota uma forma de resistência. Forma frágil. Ela discorda do entorno, sente que não se enquadra. Cresce assim, sem saber por quê; sem objetivos definidos, o sentido da sua existência surgirá no/do processo, ao longo dos embates, tanto das boas experiências quanto das ruins. Sempre uma nova hipótese brota entre as milhares que abandonamos pelo caminho.

O que cresce ali, afinal? Não se sabe dizer, não há nada igual ao redor, apenas semelhanças e diferenças. Não há sinônimo. Comparação indefinida/inexata. Invenção. Não é exatamente nada, está deslocado do eixo pressuposto. Mas ainda assim é alguma coisa. Um ser. Não se pode negá-lo, não se consegue ignorá-lo. Ele incomoda/provoca. Mesmo quieto, inquieta. Estranhamente familiar. Por quê?


Uma das sensações mais angustiantes de se colocar entre territórios emparedados, estruturas estabelecidas e rótulos é a falta de chão. Viver na fenda, na heterotopia, quase sem apoio, sempre ameaçado pela altura do penhasco e a gravidade da queda. Estar sem pertencer. Não ser um exímio isso ou aquilo, o especialista mais especializado, a precisão mais precisa, a referência. Beber do múltiplo o seu desejo de completude. Ser um pouco de cada coisa e um monte de nada. Oscilar entre a ilusão e a desilusão por tudo aquilo que poderia ter sido. Assumir a indefinição como possibilidade de vida. O inacabamento. O caminho sem fim. O universo.

Parece fácil. Vão dizer que tudo pode, que é covardia, que o difícil é conviver com as restrições. Mas no lugar da cobrança exterior surge uma enorme exigência própria. É de fato mais difícil, convoca um olhar desautomatizado, atenção redobrada. Procurar a sombra onde a maioria se encanta com a luz, onde o excesso cega e ludibria. Caminhar por um piso que não se reconhece, sempre um novo passo no desconhecido. Deixar-se afetar e criar a partir das afetações. É bem mais sincero assim.


Transitar entre mapas. Transpassá-los. Saltitar aqui e ali, habitar e mudar, procurar sem saber o quê. Manter o compromisso com o projeto, seja ele nítido ou não; permitir que se transforme ao seu bel-prazer. É o que resta. Perceber as fronteiras como ligações, locais de troca e passagem; interlocuções ao invés de limites/barreiras. Vizinhança. Estar no meio é, na realidade, estar conectado a tudo/todos. Almejar a liberdade, buscá-la, mesmo que ela desapareça ao toque mais sutil, mesmo que evapore quando se tenta agarrá-la.

É diferente de ficar em cima do muro. Estar no “entre” é um posicionamento político, o limiar entre a vida e a arte. Não se encaixar, não se enquadrar, não se encaixotar, não se enquadradar. Existir num lugar inexistente. Onde ainda. Posicionar-se na fenda entre os partidos é diferente de não tomar qualquer partido. Livre de dualismos, dogmas, maniqueísmos. Livre da verdade/mentira, certeza/fé, certo/errado, é/não é, realidade/ficção, consciência/inconsciência, corpo/mente, permissão/proibição, meu/seu, individual/público, bem/mal...

Viver o outro como si mesmo. Superar os condicionamentos a que estamos acostumados, recusar a ideia de “normal”, como se o normal existisse absolutamente. Posicionar-se num outro plano é, ainda assim, compreender que existe relação; o pertencimento surge da exclusão, o reconhecimento se dá pela diferença. Tudo condiz, convive, coincide. A questão é aceitar, acolher, positivar.

Reconhecer a ambiguidade. Experimentá-la. Vê-la acontecer por aí. Perceber que tudo tem de assim e assado, um pouco de cada; valorizar isso, aprender a lidar com as emoções sem precisar traduzi-las verbalmente. Nem sempre a palavra dá conta da emoção de lidar.


Viver a multiplicidade dos sentidos, os significados que atravessam as coisas e as resignificam. As transformações constantes, sempre necessárias. As diferentes camadas de significado implicadas na mesma coisa. A poética da obra aberta, a vida como ser vivo, cada dia com um humor. Assumir a imprecisão. Do tempo, das narrativas, dos eixos, das categorias, dos métodos. O esgotamento impossível. Retirar tudo das gavetas e mandar pelos ares. Jogar, brincar. Demolir a pretensão de verdade e não erigir memorial no lugar, não eleger substituto. Ver a roda girar como fizeram Marcel Duchamp e John Lennon, enquanto os loucos tentam provar sua razão, justificar a existência com importâncias. Os loucos com quem convivemos cotidianamente; deixá-los para lá. Inventar com as sombras projetadas nas paredes, divertir-se com a maleabilidade delas.

Quando o sabor da carne ainda não foi estragado pela salmoura do dia a dia; é quando ainda se choca, é quando ainda se revolta, é quando ainda – poetizou Paulo Leminski. É onde ainda. Sim. Sonhar acordado. Viver a fantasia da realidade; o real de estrutura ficcional. Manifestar-se. Narrar a própria história nas entrelinhas. Mas não é exatamente disso que se trata.

Obs.: Este texto jamais seria escrito sem as conversas com a amiga Renata Monteiro Buelau e sem o grupo de pesquisa que se reúne, sob orientação da profa. Dra. Eliane Dias de Castro, no Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional (FM/USP).

terça-feira, 5 de março de 2013

O HOMEM DA CAVERNA


Eu me senti um tanto abandonado quando assisti ao documentário A caverna dos sonhos esquecidos, que o alemão Werner Herzog realizou com maestria num dos lugares mais incríveis do planeta. Descoberta no sul da França em 1994, a Caverna de Chauvet, como foi batizada, estava isolada há milhares de anos devido a um deslizamento de terra. Espaço de tempo amplo demais para ser compreendido por quem raramente vive mais de um século. Havia ali vestígios de homens e animais, antepassados nossos. São ossadas, pegadas, desenhos nas paredes; sonhos que ficaram esquecidos, dos quais praticamente nada sabemos. Quem foram aqueles homens? Por que fizeram os desenhos? Podemos apreender alguma coisa da caverna com o imaginário de hoje, tão diferente? Quais são os significados possíveis? Restam suspeitas, hipóteses, ficções – é com o que devemos nos contentar. Foi dessa lacuna que emergiu a sensação de abandono; da fissura na rocha e no tempo. Uma sensação de vazio, de solidão, de "falta de chão", como se diz, por causa da nossa origem desconhecida. Não sabemos de onde viemos nem para onde vamos; somos o "meio" de algo apenas imaginável.

"Para o ser humano, mais importante que viver é sentir-se real, mais importante que preservar a vida é dotar a existência de sentido", escreveu o médico pesquisador Benilton Bezerra Jr. Revi minha caderneta e deparei com uma série de citações, colhidas ao acaso, com essa temática "existencial". A Caverna de Chauvet ativou certa inquietação em mim. Levantei a antena e comecei a captar sua frequência na tentativa de pertencer a algo tão maior e misterioso que se deixa facilmente confortar nos abraços do sagrado.

Quem eram os homens que passaram por Chauvet há mais de 30 mil anos? E os animais, já extintos? Ursos, mamutes, bichos enormes feitos para habitar um território infinito.

Lembrei do título de uma das obras de Bruno Munari exibidas na última Bienal de São Paulo: Reconstrução teórica de um objeto imaginário. Não é assim a nossa história? Uma construção hipotética que se refaz a cada descoberta. "Porque tudo é movimento, tudo é duração e descontinuidades, sempre haverá algo a mais que se veja. E, insisto, esse ponto novo percebido só agora impactará toda a vida que foi (mas que se mantém na memória do corpo), a que está sendo e a que virá", escreveu Vanessa Carneiro Rodrigues no Jornal Rascunho. 

Herzog mostra as pegadas de um lobo junto das de um menino. E completa: jamais saberemos se a criança foi acuada pelo lobo, se eram amigos, se as pegadas foram deixadas com um dia ou com cinco mil anos de diferença. Todas são histórias possíveis e, a seu modo, existem. Discorrer sobre a verdade e a mentira não cabe; a caverna está além desse maniqueísmo.

"Tentando calcular a probabilidade de dúvida de uma certeza quase absoluta", brincou o escritor Felipe Borges Valério no Facebook. Um trabalho definidamente imprevisível. A ciência exata não basta. Um dos responsáveis pelas pesquisas em Chauvet conta a importância de mergulhar nas profundezes dos seus silêncios inquietos e depois se afastar. Mergulhar na memória que se solidificou a cada gota de água, calcificada na forma de colunas para sustentar um tempo antigo perdido no presente. Colunas que, em muitos casos, ainda estão na forma de devir. Deixar-se pertencer. Depois, afastar-se fisicamente, para a superfície; afastar-se também no tempo e na teoria. Buscar em outras culturas significados ocultos na experiência sensível recém-vivida, buscar pontos de vista menos reticentes, usar outra linguagem. Não para descobrir a verdade, mas justamente para não acreditar em afirmações rígidas, para não se render a elas. Ninguém saberá nada sincero a respeito da caverna se a observar com olhos acostumados com a luz do exterior.


O filósofo Maurice Merleau-Ponty propõe um tempo que não existe por si só, com autonomia, mas que se estabelece por relações: a experiência do tempo. "O passado não é passado nem o futuro é futuro. Eles só existem quando uma subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva".

Em 1994, a caverna se reabriu a relações. A despeito de todas as câmaras e corredores que contém, ali dentro só conseguimos nos aprofundar em nós mesmos. "Mas o que somos nós?", quer saber a psicanalista Melanie Klein. "Tudo de bom e de mau pelo que passamos desde os primeiros dias de vida; tudo o que recebemos do mundo externo e tudo o que sentimos no nosso mundo interno. Se fosse possível apagar algumas das nossas relações do passado, com todas as memórias a que estão associadas, todos os sentimentos que desprendem, como nos sentiríamos empobrecidos e vazios!"


O escritor Mia Couto propõe uma solução para tal angústia que se baseia em aceitação e criação: "Temos sempre que explicar quem somos, e é uma miragem, é sempre uma coisa equivocada. Nunca somos uma coisa, não temos uma identidade, temos várias, e elas vão mudando com o tempo, vão mudando com a idade, vão mudando com a relação que a gente tem. (...) Essa área do não saber, essa ignorância, é extremamente fértil, portanto convivamos bem com isso".

É natural sentir-se pequeno diante da grandiosidade de Chauvet. Mesmo assim, como mostra o deslizamento de terra que a isolou e a preservou até hoje, devemos ter consciência de que tudo tem seu peso e sua medida, e que mesmo um pequeno deslocamento é uma revolução.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

"Não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que percebemos."

Maurice Merleau-Ponty, em Fenomenologia da Percepção

sábado, 8 de dezembro de 2012

O INFINITO EM CADA UM

"Escrevi um livro" é uma afirmação mentirosa. A gente publica livros, pois eles jamais terminam de ser escritos. As publicações são fases do texto. Digo isso porque, até algumas semanas atrás, eu achei que tinha escrito um. Um romance. Fresquinho, ainda sem previsão de lançamento, mas estava "finalizado", por assim dizer. Só que, então, comecei a ler Como viver junto, de Roland Barthes. Ele fala desse meu livro, parece até uma crítica direta. Ou uma devolutiva criativa. Eu não quero ser pretensioso e me comparar ao grande filósofo, não me entenda mal, por favor. É mais como se ele me desse conselhos, como se tivesse escrito especialmente para mim. Rolou uma sintonia: eu compartilho das suas afetações. Por consequência, vou reabrir meu livro "terminado" e recomeçá-lo (pela quarta vez). E assim ele não termina nunca. Pois "escrever é reescrever", disse certo autor um dia desses. Não me lembro quem foi nem onde li, mas não consigo esquecer a frase, tão bem escrita, tão pulsante, tão infinita.

"Na sociedade contemporânea, está em jogo a afirmação da transitoriedade como contingência ética de habitar o mundo. Ao escrever, não se busca edificar nem eternizar nada, pois a força deste gesto está no instante em que ele acontece e em sua eventual capacidade de produzir em seu entorno apenas deslocamentos, nenhuma fundação. Logo depois que se diz, aquilo já não é mais". Recortei este trecho de um lindo artigo chamado A pesquisa como prática estética, da amiga Renata M. Buelau, publicado no livro do VIII Congresso Internacional de Estética e História da Arte promovido pelo MAC/USP.

Espelho de teto criado pelo artista Olafur Eliasson na Pinacoteca de São Paulo

Eu queria saber por que as pessoas escrevem. Não acredito que haja uma resposta suficiente; ainda assim, a indagação em si parece promissora. Eu acho que escrevi o tal romance por dois motivos principais. O primeiro é "para colocar as ideias para fora", disponibilizá-las ao encontro, para que façam conexões e tentem sobreviver por si mesmas. O segundo motivo apresenta certa afinidade com o primeiro: "escrevi para me livrar dele". Nesse sentido, trata-se de uma espécie de psicanálise. Afinal, o método desenvolvido por Sigmund Freud baseia-se na verbalização como processo de investigação, ou seja, fala-se para trazer à tona (palavras de um leigo, meus amigos psicanalistas que não se ofendam). Não é necessário escrever tanto, claro. Pode ser uma página de diário, uma carta nunca enviada, uma nota no guardanapo, qualquer coisa. Por via das dúvidas, acho saudável ter sempre um caderno por perto para acolher pensamentos ou sentimentos que desejem se livrar de você. Porque o texto também precisa se livrar do autor, a rejeição é recíproca. Criador e criatura encontram no silêncio do papel um excelente psicanalista (sem ofensas novamente). É por isso que se publicam diários de grandes artistas. Eles costumam ser intrigantes.

Naquele mesmo artigo já citado, Renata Buelau explica que "os atos de pesquisar e escrever envolvem – ou deveriam envolver – uma disponibilidade para deixar algo de si para trás". Isso acontece quando se produz uma tese, uma obra literária, um e-mail sincero a um amigo, um cartão de Natal ou um parágrafo no diário. Algo de nós se vai com o texto, por isso se diz "criação". E que "nada se cria, tudo se transforma". Porque o texto é uma fração de nós mesmos que ganha vida própria e passa a se locomover por aí. Pelo mesmo motivo, não se deve confundir o texto com o seu autor. Ele já é outro. E a gente se livra dessa fração para conseguir cuidar das remanescentes. Senão, corre-se o risco de transbordar. Ou pior: de afundar devido ao excesso de si mesmo.

É bobagem escrever com intuito de produzir verdades sólidas, inéditas e que subjuguem, assim como acreditar que irá "fundar uma nova escola". Isso é coisa do passado, quando o tempo do mundo era outro, quando os interlocutores eram uns poucos ousados e/ou privilegiados. No contemporâneo, o dinamismo se estabelece como fundamento, e o potencial de uma obra está em produzir deslocamentos no entorno, como apontou Renata. "Transitório" é a palavra da vez. Entre tantas outras.

Os textos têm um caráter de infinitude, seja porque nos levam a um universo de significados, seja porque jamais encontram uma forma final, porque não sabemos por quanto tempo existirão ou porque não conseguimos enxergar além de seu horizonte, mesmo sabendo que existe algo ali. Às vezes, eu tenho a sensação de que passamos a vida a reescrever o mesmo texto, a pintar as mesmas pinturas, a fotografar os mesmos assuntos, a buscar uma nova perspectiva, a pensar e repensar "igual, só que diferente". Porque as inquietações não se esgotam com facilidade – se é que se esgotam.

Este texto que você lê agora surgiu de um post no Facebook, o qual se resumia mais ou menos ao primeiro parágrafo. A ele, o poeta Davi Araújo respondeu, citando Jorge Luis Borges: "publicamos para não passar a vida a corrigir rascunhos". Portanto, o que temos são pontos de virada, passagens que marcam o final de uma fase e o início da outra. Vivemos, em etapas, uma única longa vida. E só concebemos o infinito porque estamos sujeitos àquilo que termina, porém não nos conformamos. O fim não bastará.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O ESTILO ANTI-ÉDIPO DE SER

O filósofo Michel Foucault escreveu um prefácio bastante breve para o livro O Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Tão breve quanto preciso. Digo preciso no sentido de exatidão, uma vez que o texto pontua qualidades reconhecidas do livro. Digo preciso também no sentido de necessário, pois Foucault não apenas introduz o assunto como faz com que o leitor sinta fome de conhecimento e devore todas as páginas subsequentes.

É uma pena que seu prefácio conste apenas em poucas edições. Abaixo, destaquei os tópicos do final, que considero o trecho mais intenso. Fica claro que, como diz o próprio filósofo, o anti-édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensar e de viver. Estou torcendo para que as pessoas adotem ao menos alguns dos seus princípios.

• Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante; 

• Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal; 

• Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade; 

• Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária; 

• Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política; 

• Não exija da ação política que ela restabeleça os "direitos" do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é "desindividualizar" pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de "desindividualização"; 

• Não se apaixone pelo poder. 

FOUCAULT, Michel. Preface. In: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977, pp. XI-XIV. Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento.

terça-feira, 29 de maio de 2012

ALGO A DECLARAR?

 A gente se olha no espelho e, por mais contorcionismo que faça, não consegue enxergar certas partes do próprio corpo. São as partes que somente os outros podem ver. Tem também a questão psicológica: cada pessoa se supõe assim, só que os outros a veem assado. Caso consiga vencer a pretensão, o egoísmo e as verdades individuais, essa pessoa provavelmente se dará conta de que seus semelhantes têm razão. Uns se acham legais, mas são malas sem alça. Outros se acham prestativos, porém os amigos os consideram invasivos. E assim por diante. É a sina que carregamos: ser, no mínimo, duas pessoas diferentes, muitas vezes excludentes. Difícil é reconhecer o lado obscuro. Mais difícil ainda é conseguir mudá-lo.

O desconforto de ser friamente descrito por alguém pode ser também bastante revelador. Vivenciei situação semelhante há poucas semanas, nos seminários que o artista francês Hervé Fischer ofereceu no Museu de Arte Contemporânea da USP. Sua estratégia foi perspicaz: fez uma análise cultural e sociológica do Brasil, colocando a plateia em conflito consigo mesma. Com propriedade, ele apontou aquilo que nosso espelho não revela – ou que preferimos ignorar. Mostrou um país cujo tempo social é orientado para o futuro – o que seria ótimo, caso não fosse sintoma da nossa falta de opção. Porque, segundo Hervé, os mitos fundadores do povo brasileiro são frágeis demais para sustentar sua vontade construtiva.

Faz sentido. A Argentina, por exemplo, tem como herói nacional o general San Martín, o libertador. Não existe uma única cidade por lá que não possua uma praça com esse nome. San Martín é representado com imponência sobre um cavalo alto, com a espada em riste, lembrando a quem passa por ali que os argentinos são herdeiros de imensa bravura e patriotismo. Um sentimento tão vivo que quase podemos tocá-lo.

O brasileiro se apoia em quê? Na corrupta corte portuguesa, no índio preguiçoso, no negro subjugado, na natureza e no Pelé. Uau. Não houve uma grande revolta, uma grande conquista, grandes feitos do povo. Parece que tudo veio fácil demais.

Não me refiro ao que aconteceu de fato, mas à maneira como tudo entrou para a história – ou como nós compreendemos essa história. Já tentaram levantar o moral de Tiradentes, não deu em nada. O recente filme Xingu, de Cao Hamburger, também serve de termômetro: apesar da produção encantadora, obteve bilheteria medíocre. Porque ninguém quer ver história de índio, principalmente quando meia dúzia de super-heróis fantasiados tenta salvar o planeta das forças do mal.

Ao falar de heroísmo brasileiro, lembro da pintura belíssima de Pedro Américo, em que Dom Pedro I proclama nossa independência às margens do riacho Ipiranga. Uma falácia que ninguém comprou. Pois há sempre quem levante a mão para dizer que não foi bem assim, o imperador estava montado numa mula e precisava correr para o mato a cada cinco minutos por causa de uma diarreia comprometedora. Sim, ele rejeitou o trono português almejando outro mais apropriado às suas necessidades imediatas.

Enfim, são mitos, ou seja, histórias que antecedem o presente e nas quais deveríamos nos inspirar. O povo brasileiro não sabe o que é isso – ou não procura saber. Por falta de opção, se coloca como arauto do futuro.

A análise de Hervé Fischer parece uma afronta. Afinal, quem esse francês pensa que é para vir aqui nos esnobar?

Sua proposta foi, aos poucos, ficando evidente: provocar para gerar debate e, com sorte, alguma consciência sobre nossa situação atual. São os princípios da sua "escola interrogativa", nascida do extinto Coletivo de Arte Sociológica. Os seminários de Hervé, mais do que palavrórios, são experimentos artísticos – uma prática com caráter sócio-pedagógico.

 Não é a primeira vez de Hervé no Brasil. Na década de 1970, em meio à ditadura militar, ele já havia realizado um ciclo de conferências no mesmo MAC/USP, além de uma performance na Praça da República, em São Paulo, chamada Farmácia Fischer e Cia. A tal performance já mostrava, quase 40 anos atrás, a natureza da sua arte: vestido de farmacêutico, com uma barraquinha armada num dos locais mais movimentados do país, o artista conversava com os passantes, ouvia seus males e receitava pílulas metafóricas de tomada de consciência. Pílulas para aturar o vizinho, para alimentar esperança, para obter sucesso profissional, para arranjar marido, para o Corinthians vencer a Libertadores etc. A farmácia acabou fechada pela polícia, como toda manifestação dita subversiva.

Nos seminários recentes, pude perceber que aquele propósito continua a guiar seu trabalho. Hervé elabora questões para as pessoas refletirem sobre a própria situação e buscar melhorias.

Num livro de 1981, ele escreveu: "Há cada vez menos sentido em transformar o mundo. O que há de novo é questioná-lo". Certo, tudo nos leva a crer que o Brasil é o país do futuro. Pois a única coisa que Hervé Fischer fez foi perguntar: por quê? O que nos incomoda, talvez, não seja a ousadia da questão, mas a percepção de como a nossa resposta é frágil.

terça-feira, 15 de maio de 2012

"Não existe nenhuma forma de imaginário que não seja uma forma de experiência comum ou coletiva." Jean Duvignaud

Em outras palavras, ninguém é de ninguém. Ao menos no que diz respeito ao pensamento.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

"Escrever a história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime de verdade. Isso não tem nada a ver com nenhuma tese de realidade ou irrealidade das coisas."

"A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem "ficções", isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer."

Jacques Rancière, em A partilha do sensível: estética e política

sexta-feira, 9 de março de 2012

MÉTODO CALCULADO DE PRODUÇÃO DE ACASO

O acaso comparece por si mesmo, mas é necessária uma disposição prévia - pré-disposição - que permita a percepção dele.

Acaso provocado.
Acaso ≠ improvável/imprevisível.

Não é produzido: dedica atenção a tudo o que se concentra fora da expectativa provável.

O acaso proclama a natureza como produtora de sentido quando, na verdade, essa é uma condição humana.

 ---

O texto acima foi escrito num lampejo, publicado aqui sem nenhuma pretensão e, por acaso, acabou possibilitando um ótimo encontro de ideias. Adorei. Adoro quando as coisas simplesmente dão certo. Mesmo sem planejar. Por acaso, é assim que vou levando a vida.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012


"A descoberta do inconsciente não é necessariamente uma boa notícia. Como disse o próprio Freud, ela é uma das três grandes humilhações sofridas pela humanidade, as outras sendo a descoberta de Copérnico de que o mundo não é o centro do universo e a afirmativa de Darwin segundo a qual seres humanos e primatas têm antecedentes em comum."

Ilha Deserta – Livros, de Moacyr Scliar

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A SACOLINHA VERMELHA DO PAPAI NOEL

  
Fico imaginando a reação da criança ao abrir cada um dos pacotes e explorar o conteúdo, sorrindo com os amigos, colocando as roupas sobre o corpinho para ver se servem, procurando o brinquedo que deve estar ali, no meio daquela algazarra. Sempre há um brinquedo, uma caixa de bombons, um conjunto de roupas e um par de sapatos. É o que a instituição responsável pela tutela dessas crianças carentes pede a quem se dispõe a "adotá-las" no Natal.

As tais sacolinhas se popularizaram na agência onde trabalho. Este ano, foram mais de cinquenta, o que significa mais de cinquenta tentativas de proporcionar um Natal minimamente digno a alguém com condições menos – ou nada – favorecidas.

Entre os presentes, eu sempre acrescento dois, que considero imprescindíveis: um livro e uma cartinha. A presença de livros foi determinante em minha vida, e acredito que eles também podem ajudar essas crianças a superar as dificuldades que hoje se colocam para elas, seja por adquirirem o gosto pela leitura (sempre uma experiência positiva), seja pelo conteúdo (aprendizado e visão crítica), seja pelo convívio social que advém dali (emprestando o livro, lendo em conjunto com amigos ou ouvindo um adulto contar a história).


Em uma resenha de 1924, o filósofo alemão Walter Benjamin comenta que as crianças têm um apreço peculiar por todo tipo de detritos, onde quer que eles surjam – na construção de casas, na jardinagem, na carpintaria, na confecção de roupas. Com esses detritos, elas constroem o mundo como lhes aprouver. Os elementos dos livros infantis também seriam exemplos dessa matéria-prima tão rica, que dá sentido à vida e nos impele a estabelecer parcerias com ela, contornando criativamente as reviravoltas, admirando suas ilustrações e inventando finais felizes.

Meus brinquedos mais interessantes foram a folha de papel em branco e as caixas de papelão. Com tinta, tesoura, cola e lápis de cor, tudo era possível, desde orbitar a Lua até desenterrar tesouros do fundo do mar. O papelão se transformava em carro, armadura, cabana ou rio. Lembro-me de como era gostoso brincar sem que outras preocupações interrompessem a fantasia, e suponho que, quanto tiver filhos, conseguirei recuperar um pouco da minha própria infância.

Por enquanto, fico com as crianças carentes. E com Walter Benjamin, que, em outros dois textos, agora de 1928, analisa a história cultural do brinquedo. Ele conta que a casa de bonecas, o cavalinho de pau e os soldadinhos de chumbo – entre muitos outros "papais" dos robôs articulados, sonorizados e iluminados de hoje, do videogame e dos bebês de plástico que mamam, choram e fazem cocô – surgiram em oficinas de entalhadores de madeira ou de fundição de metal e demoraram séculos para se popularizarem, assim como para serem produzidos por indústrias específicas.

O filósofo chama nossa atenção para algo que, em sua época, já era preocupante: os sonhos de consumo que os adultos projetam nas crianças direta ou indiretamente, pela publicidade ou pelas visitas ao shopping, e que as transformam em consumidores mirins cheios de decisão. Para ele, a bola, o bambolê e a pipa são tanto mais verdadeiros quanto menos dizem aos pais, ou seja, quanto mais atraentes, no sentido usual, mais se afastam dos instrumentos de brincar.


O filho de uma amiga adora os tupperwares da mãe, mais do que qualquer um dos brinquedos caros que não lhe faltam. Eu o vejo pular, manobrar os potinhos, fazer sons com a boca e se divertir num incrível mundo interior, e percebo que é disso que Benjamin fala – esses seriam os brinquedos de verdade, que instigam a curiosidade e a criatividade.

Os videogames também pertencem a essa categoria, ainda que os pais tradicionalistas não concordem. Porque, no meu modo de ver, os grandes vilões de hoje são: 1) os brinquedos que brincam sozinhos, deixando a criança apenas a acompanhar com os olhos suas estripulias pré-programadas; e 2) a precocidade, que faz meninos e meninas sentirem vergonha de brincar. Agora, se o futebol eletrônico parece mais interessante do que o pebolim ou o botão, é apenas porque essa é a realidade em que vivemos. Isso não significa que a atividade lúdica na frente da TV é pior do que aquela realizada em torno da mesa, do tabuleiro, na rua... O mundo mudou e, às vezes, a brincadeira só precisa de uma compensação. E de compreensão.

Até porque os próprios adultos estão sempre na frente da tela da televisão, do computador e do celular. Então, como vamos exigir que as crianças ajam diferente? Se algo nessa história permanece intacto é o fato de que continuamos a ser o maior exemplo para elas.

Uma observação bacana de Walter Benjamin é que "a ideia determina o brinquedo", não o contrário. Quer dizer, a imaginação da criança transforma o brinquedo a seu bel-prazer, fazendo um carrinho de plástico correr no deserto ou no autódromo, falar e fazer amigos. Por isso, quando um adulto briga com a criança porque ela está brincando "errado", o errado ali é ele próprio, cortando as asinhas daquela imaginação de um jeito tão mesquinho. Brincadeiras saudáveis devem sempre ser incentivadas, não importa o que diz o manual de instruções.

Com livro e brinquedo, eu tento avivar a magia do Natal em uma criança. Para mim, esse é o verdadeiro significado da data, independentemente de religião – sua origem cristã se diluiu na cultura comum e, hoje, qualquer pessoa pode aproveitar a oportunidade para melhorar o mundo, nem que seja um pouquinho só, presenteando alguém com esperança, carinho e alegria.

Ora, pensando friamente, isso é o mínimo que devemos fazer para devolver à sociedade um pouco do que ela nos permitiu conquistar. Mais do que bondade ou moralismo, contribuir para a felicidade de todos é uma obrigação social. Afinal, estamos nessa juntos.

Sim, eu acredito em Papai Noel. Pois os livros infantis, os brinquedos e a filosofia estão aí para comprovar: basta imaginar – e se dedicar – que toda fantasia se realiza.

*Ilustrações: 1) Ponte de Charing Cross (1906), de André Derain; 2) Ponte de Charing Cross (1906), de André Derain; 3) Catedral de São Paulo vista do Tâmisa (1906), de André Derain.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ÁGUA MOLE, PEDRA DURA

Era para ser uma pintura rápida, um esboço a óleo sobre tela que, nas palavras do retratado, levaria uma ou duas horas para ser concluído. Alberto Giacometti e James Lord eram amigos, e aquilo tinha como propósito apenas a diversão de ambos. Um disse que queria, o outro respondeu que faria e pronto, estavam combinados. Só que a persistência do artista para obter um resultado satisfatório – entre suas tormentas existenciais e ameaças de abandono do projeto – levou o modelo a posar durante catorze dias não-consecutivos. Isso mesmo, catorze sessões de duas a quatro horas cada! Esse processo criativo foi registrado pelo escritor num divertido diário, que, além de revelar detalhes sobre a obra de Giacometti e sobre sua concepção de arte, também nos leva a pensar em nossas próprias vidas, em como reagimos às adversidades, na relevância de nossos planos e no que, afinal, nos faz felizes.

E tem mais: durante esse tempo todo, o artista pintou apenas a cabeça do amigo. Pintou e repintou, pintou e repintou, concentrando-se somente nela. Considerava a tarefa impossível, mas continuava tentando. Ao fim de cada sessão, os dois olhavam a tela e notavam certo avanço, mas no dia seguinte o pintor apagava tudo e recomeçava do zero. “Estou destruindo você”, dizia. James Lord se angustiava. Com o tempo, porém, aprendeu a dar de ombros e assentir: “É você quem manda”. Seu respeito pelas escolhas do mestre beirava à devoção. Em troca, Alberto lhe ensinou que cada passo adiante é sempre uma luta contra as próprias crenças, e que a superação depende também de muita cessão, além da tradicional força de vontade.

Em setembro de 1964, dinheiro e fama já não eram problemas para ele. Suas obras podiam ser vistas mundo afora e agradavam tanto o público quanto a crítica. O artista já tinha até mesmo conquistado o Grande Prêmio de Escultura da Bienal de Veneza, o mais importante de sua carreira. Ainda assim, persistia na empreitada, blasfemava que não entendia nada daquilo, que deveria desistir de uma vez por todas, pois jamais conseguiria fazer alguma coisa bem feita. As glórias do passado não iludiam seus olhos nem transbordavam sua autoconfiança. Todo dia era um novo dia, e isso ficou evidente durante a pintura do retrato. Seu temperamento exagerado pedia toda a paciência de James Lord. No entanto, ao ler o diário, publicado propositadamente sob o ambíguo título de Um retrato de Giacometti, ele chega a ser hilariante.

Pois bem, qual é a relação disso tudo com a nossa busca por felicidade? No livro A arte da vida, o filósofo Zygmunt Bauman afirma que a vida é uma obra de arte e que “devemos, tal como qualquer outro tipo de artista, estabelecer desafios que são difíceis de confrontar diretamente; devemos escolher alvos que estão muito além de nosso alcance, e padrões de excelência que, de modo perturbador, parecem permanecer teimosamente muito acima de nossa capacidade de harmonizar com o que quer que estejamos ou possamos estar fazendo. Precisamos tentar o impossível”.

Alberto Giacometti parece ter sido a encarnação perfeita dessa proposta. Em um momento de desânimo, chegou a prometer os milhões de sua poupança a alguém que pintasse “aquela maldita cabeça” por ele.

“Tenho certeza de que, por essa quantia, muitos o fariam”, comentou o modelo na ocasião, ao que o artista prontamente retrucou: “Não fariam à minha maneira”. Não se tratava apenas de uma saída irônica. Ele realmente assumia a tarefa como um desafio pessoal e precisava cumpri-la a qualquer preço. A razão da sua arte consistia em representar o mundo da maneira como ele se mostrava a seus olhos, e só com muito suor conseguia executá-la – o dinheiro não lhe valia de nada.

No citado livro, Bauman faz uma comparação interessante entre renda e felicidade, mostrando que, após serem atendidas as exigências básicas para se viver com dignidade, o nível de felicidade continua estagnado, mesmo que a renda se multiplique exponencialmente. Em outras palavras, o crescimento econômico só influencia a felicidade das pessoas até certo ponto.

No geral, continuamos acreditando que comprar nos deixa mais felizes. Bauman alerta para o perigo de se cair no conto do publicitário, que sempre apresenta uma nova etapa nessa busca. Prolongando o caminho, nunca atingimos o fim. E, durante a jornada, acabamos nos esquecendo de coisas mais importantes, que o dinheiro não compra.

Uma delas é o desafio que se impõe a cada dia e nos obriga a superar obstáculos para realizarmos um bom trabalho, digno de orgulho próprio, exatamente como fazia Giacometti. Trata-se de uma satisfação cada vez mais rara. Confrontando-se com problemas que pareciam insolúveis, ele reinventava a si e a sua arte. Possivelmente foi essa incessante busca que o fez, além de um talento mundialmente reconhecido, um homem feliz. A persistência, como sugere o ditado, leva à realização. O diário de James Lord é testemunha disso e, por que não?, serve de manual para uma vida melhor, em que tanto a arte quanto a felicidade estão ao alcance de todos.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

“O que oferecerás a Morte, quando
ela bater à tua porta?
Vou oferecer à minha hóspede a taça
cheia de minha vida. Não deixarei que ela
vá embora de mãos vazias.
Colocarei diante dela a suave colheita
de todos os meus dias de outono e de todas
as minhas noites de verão. No fim dos meus
dias, quando ela bater à minha porta, vou
entregar-lhe tudo o que ganhei e tudo o que
recolhi com o árduo trabalho da minha vida.”

Rabindranath Tagore, em Gitanjali

terça-feira, 16 de agosto de 2011

QUEM SOU EU, AFINAL?

Quando Rodrigo de Moraes, editor assistente do Caderno C, perguntou se eu não teria uma foto minha para estampar esta coluna, desencadeou, sem querer, uma série de pensamentos existencialistas que culminaram na batidíssima questão: quem sou eu, afinal?

Exagero? Ora, um pouco de exagero nunca é demais, e a verdade é que eu não sou muito afeito a exibir o rosto por aí, preferindo sempre me ocultar atrás do codinome Edu Almeida. Por quê? Para ser sincero, não sei. "O que sou e o que escrevo são uma coisa só. Todas as minhas ideias e todos os meus esforços, eis o que sou.", disse C. G. Jung certa vez, e eu sempre levei a sério os pensamentos daquele simpático velhinho suíço, tanto que essa sua frase consta em meu blog desde que o criei. Além do mais, acho que nunca confiei no modo como a imagem lida com o conteúdo, principalmente quando ela precisa sustentar o enorme peso de uma identidade. Não basta, percebe? A imagem reduz tudo a um instante, um ponto de vista, uma gama de cores. Não precisa nem se tratar de uma pessoa, pode ser uma paisagem mesmo, daquelas que você fotografou na sua última viagem de férias – a imagem, no máximo, sugere a sensação do lugar; jamais será o lugar propriamente dito, visto e experimentado.

Convenhamos, nosso comportamento está intimamente atrelado à visão, então é natural que a imagem fale mais alto. Veja só o grau de confiança que uma testemunha ocular recebe, no caso de um crime, por exemplo, enquanto uma testemunha olfativa viraria motivo de piada. Só que os olhos também se enganam. O mesmo vale para os nossos preconceitos. De repente, alguém não vai com a minha cara e deixa de ler a coluna só por causa da foto. Uma imagem, mil palavras, sabe como é... Acontece direto comigo. Se não gosto de um sujeito à primeira vista, ele precisará de muita lábia para me convencer do contrário, ainda mais porque acredito cegamente em meu sexto sentido.

No caso do jornal, havia também uma questão prática: que foto usar? Essa é muito antiga, naquela estou despenteado, naquela estou acompanhado, esta outra tem fundo difícil de recortar, tem sorriso torto, olho fechado... que lástima! Sem contar que eu adoro tirar fotografias e, na maioria das vezes munido de câmera, acabo não aparecendo em nenhuma. Enquanto isso, milhões de anônimos entulham seus perfis de redes sociais com todo o tipo de retrato, sem vergonha de serem felizes. É mesmo um desprendimento admirável.

Vão dizer que é frescura, mas sou publicitário, sei que o poder da imagem é comprometedor. Ele resume você a uma falsa realidade: um instante específico, um olhar perdido, um estilo de roupa, uma luz, um peso e uma altura que, como tudo na vida, estão sempre em mutação. Quer dizer, a imagem é necessariamente uma ilusão. Não se pode confiar nela.

Já fui vítima desse poder e tentei ludibriá-lo. Comecei a escrever cedo, jovem o bastante para que não me atribuíssem o devido crédito. Então, eu deixava a barba crescer, para disfarçar, vestia roupas sóbrias, tentava parecer mais velho manipulando a imagem que faziam de mim. Funcionava – ou, pelo menos, eu achava que sim. No escritório, era a mesma coisa: eu tinha subordinados com mais tempo de carreira e, na época, acreditava que hierarquia era determinada pela data de nascimento. Não revelava a idade de jeito nenhum, deixava o povo confabular. Coisas da juventude, não há como ocultá-las.

Não se trata de mania pessoal. Em regra, as pessoas não gostam de aparentar, digamos assim, o "grau de experiência". Tenho amigos e amigas lindos que se acham decrépitos só porque já passaram dos trinta. Ou dos quarenta. Ou dos cinquenta, que seja. Uma pena.

Outro dia, uma dessas amigas fez um ensaio fotográfico para guardar como recordação – ou "para a posteridade", como gosto de pensar. Teve direito a cabelo, maquiagem, figurino e photoshop. Me diverti à beça com os elogios decorrentes: "Nossa, as fotos ficaram lindas. Nem parece você!" Ela estava entusiasmadíssima, preferi não polemizar. Mas achei um paradoxo absurdo alguém ficar linda na foto justamente porque deixou de parecer consigo mesma. É assim que a história da humanidade vai sendo escrita.

Eu ri, na ocasião, e depois sofri do mesmo mal. Na falta de alternativas, resolvi improvisar um retrato novo para esta coluna e, devido ao resultado pouco animador, pedi a um amigo que fizesse leves retoques. Apagar uma espinha, corrigir olheiras, ajeitar uns fios de cabelo que saíram do lugar bem na hora do clique. Coisinhas assim, fugazes. Ele foi lá e, pelo bem da amizade, me recompôs. Portanto, se você quiser saber como sou, de verdade, direi que pareço com o cara aí do alto, só que mais real.

Meu próprio pai, que nunca foi disso, teve que renovar o RG e, quando viu a foto tirada lá, na hora H, ficou desconsolado. Aquele senhor grisalho, de óculos, era velho demais para ele. Calúnia! Cancelou o RG, fez a foto em outro lugar e voltou no dia seguinte rejuvenescido.

Isso me lembrou mais um caso, que conto agora para terminar de vez com o papo furado. Está mais para uma lenda do rock, não sei até que ponto é verdade, mas dizem que Neil Young, depois de gravar um primeiro disco muito bom e assinar contrato para outro, acabou processado pela gravadora porque, no segundo, já não se parecia mais com o Neil Young original. É mole? Sei lá quem ganhou o páreo... Como é que se comprova a própria autenticidade?

Pois bem, eu continuo mesmo acreditando no bom e velho Jung. Sou o que escrevo, muito mais do que aparento, e vou ser um novo eu a cada frase, a cada pensamento, a cada inspiração, mesmo que a foto da coluna permaneça a mesma. Se ela não agradar, peço que coloque o polegar em cima e ignore. Para saber de verdade quem eu sou, continue a me acompanhar aqui, mensalmente. Aos pouquinhos, vou revelando interesses, trocando ideias, puxando papo. Entre o ser e o nada, vamos, juntos, descobrindo nossas verdades mais profundas.