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sexta-feira, 21 de junho de 2013

AS REDES SOCIAIS


Entre 1964 e 1974, os artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark trocaram centenas de cartas, que foram selecionadas e publicadas pela UFRJ em 1998 – um livro de rara importância e dos mais variados interesses, porém esgotadíssimo, para azar de todos. Ler aquelas cartas foi um dos maiores prazeres em minha pesquisa de mestrado. Lygia morava em Paris e dava aulas na Sorbonne. Hélio permaneceu no Rio de Janeiro, exceto por um pulo em Londres e outro em Nova York. Ambos eram pobretões de dar pena, às vezes faltava dinheiro até para selar o envelope. Mesmo assim, falavam de tudo um pouco em textos longos, em que revelavam muitas inquietações experimentadas na criação dos trabalhos. Pensavam não apenas a arte, mas a vida contemporânea. Compartilhavam segredos, angústias, indignações, fofocas, críticas, inseguranças, desejos e apoio. Eram amigos singulares e tinham consciência disso. Apelidavam-se de “a mão e a luva”: feitos um para o outro, calçavam-se bem. Ela era a mão, a interioridade. Ele era a extroversão em pessoa. O mesmo valia para as respectivas obras. Pois Lygia se voltava cada vez mais para a subjetividade, para as questões da psique, para o homem em desacordo com o sentimento de si, em busca de liberdade. Hélio, por sua vez, debruçava-se sobre o contexto social, as políticas que interpelam os sujeitos, os estados de ser e estar no mundo. Em suma, completavam-se, compreendiam-se, solidarizavam-se; ainda que se soubessem muito diferentes um do outro. Ao longo das cartas, vemos a ditadura engrossar, a arte ganhar corpo, o vínculo ganhar força, o pensamento se transformar, o campo se expandir, o mundo girar e o Brasil se livrar do vanguardismo tardio.

Existiu outro movimento consecutivo, envolvendo cartas, que nada tem a ver com a correspondência entre Hélio e Lygia. Refiro-me à Arte Postal, que ganhou diversos adeptos e da qual Paulo Bruscky é um dos representantes mais ativos, pois ele não apenas se comunicou com gente mundo afora como preservou as mensagens num arquivo maravilhoso, mantido em sua casa. O Museu de Arte Contemporânea da USP também teve papel decisivo. Sob direção de Walter Zanini, abriu chamados para manifestações de todo o tipo, que chegavam pelo correio e que hoje compõem um acervo de arte conceitual abrangente o bastante para render décadas de pesquisa. Muitas obras são de artistas que permanecem desconhecidos, enviadas de lugares distantes, por vezes clandestinamente, procurando fugir de regimes opressores ou adentrar o nosso próprio. Porque, entre as forças da Arte Postal destacava-se seu potencial de resistência: estabelecer uma rede social ativa às escondidas dos militares, vencendo sistemas de averiguação e censura, mantendo aberto um canal de comunicação mesmo quando atos públicos eram rechaçados. Trabalhos e pensamentos que fluíam em circuitos ideológicos alternativos, sobrevivendo.

Por fim, um terceiro ponto que nenhuma relação tem com aquelas artes: devido ao meu fascínio por canetas-tinteiro, adquiri o hábito de trocar cartas com aficionados do Brasil e do mundo. Sim, ainda existem cartas tradicionais, escritas à mão (para minha felicidade, nem tudo que o carteiro deixa em casa é cobrança ou propaganda). Elas servem para amostras de tinta, aulas de caligrafia, relatos de experiências com marcas e modelos etc. Também servem para manter amizades. Pois o hobby me incentivou a enviar cartas inclusive a pessoas que não dão a mínima para canetas, e elas foram correspondidas. Uma conversa diferente dos chats, e-mails e SMS. Aprendi com isso tudo que existe outro tempo de comunicação correndo em paralelo com a velocidade da internet. Tempo de reflexão, menos imediatista. Tempo de dedicação. Porque, quando uma carta chega, levo dias ou semanas para devolvê-la. Revejo tudo o que pretendo dizer, acrescento, corto, esmiúço, reescrevo. Essa mensagem levará dias ou semanas para atingir seu destinatário, que também demorará para ler e responder. A espera faz parte e tem seu valor.

Não se trata de melancolia nem de dizer que o sistema de correio é melhor do que a internet. Nem pior. Seria uma bobagem enorme; passo o dia inteiro conectado à rede digital, não vivo sem. São coisas diferentes, e por conta das canetas descobri que o antigo sistema é também interessante, em sua medida.


Falando em demora, já faz cerca de dois meses que pensei em escrever sobre este assunto. Porém ele só ganhou sentido após as manifestações que têm chacoalhado o país, e que se organizaram, como sabemos, via redes sociais. Foi assim que me dei conta das informações que percorrem os diversos canais mantidos por nós, suas camadas de significado e capacidade de penetração. Pensei em como parece ingênuo expor intimidades na internet para quem quiser acessar e também em como seria impossível mobilizar cem mil pessoas para uma passeata com uso de selo, envelope e escrita à mão. Às vezes, o conteúdo correto simplesmente circula no canal inadequado.

Vivemos um tempo em que diferentes camadas de tempo convivem. Embaralham-se, atropelam-se, embolam-se, ficam retidas ou extravasam. É um tempo de comunicação, sem dúvida. De manifestação, compartilhamento e conquista, seja na velocidade da luz ou no devir da reflexão. Tempo lento e rápido do pensamento. De transformação, de conexão entre todas as diferenças do mundo numa gigantesca e pródiga ambiguidade. Tempo de unir os fragmentos, não com intuito de descaracterizá-los, mas para que ganhem ainda mais força na fragmentação que os legitima.

Lygia Clark, de certo modo, antevia isso tudo. Tanto que, em 1971, afirmou ao jornalista que a entrevistava, recusando o título de cientista da arte: “É muito difícil hoje botar um limite nas categorias, mesmo entre coisas diferentes, como Ciência, Psicologia e Arte, que estão tendendo a convergir para um ponto só, que, no fundo, seria a comunicação”.

Pensamento bem contemporâneo. E difícil de combater. Porque, quando a rede está bem trançada e mobilizada, não existe liderança clara nem hierarquia, nenhum nó é mais importante do que o outro, não existe quem perseguir. Ficamos todos juntos no mesmo plano, tensionando aqui e ali. Sem cabeças para cortar ou estátuas para erigir. Na prática, as diferentes camadas de conexão nos mantêm unidos. As correntes de informação derrubam barreiras e aproximam territórios. Deixamos a Era dos Extremos, conforme o historiador Eric Hobsbawn batizou o século XX, para viver a Era da Comunicação. Unidos assim, entre dezenas de boas causas, realmente, tão cedo não seremos vencidos.

*Imagens: Metaesquemas, de Hélio Oiticica (fonte: Itaú Cultural – Programa Hélio Oiticica). Este texto foi publicado no Correio Popular em versão resumida.