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terça-feira, 16 de agosto de 2016

EU, TU, NÓS

A desvantagem de amar é também a sua vantagem
desgostar e gostar o tempo inteiro, atar
nós de tempos em tempos, sem tempo
ao infinito

Ficar a sentir e a dessentir
sem temer, sem ter
certeza alguma senão a momentânea
absoluta até não ser mais
nada

O que é sólido desmancha
no ar a totalidade se fragmenta, esvai
a tradição não vai além
das nossas reminiscências

O que resta? O que vem?
Quem caminha lá adiante? Alto!
Identifique-se! Seja lá quem for
ignora o aviso e é
alvejado e cai e sangra e morre
como qualquer ser
indigente, eu, tu, nós

Não se deve falar de amor em termos de
vantagem, não tem significado algum
traz apenas sentimento
nada em troca
afoga

Outra coisa, o amor
ainda desconhecida por ora
apenas gostamos e desgostamos
em nossa inocência matamos
quando convém
desatamos nós, tu, eu

sexta-feira, 10 de junho de 2016

fora tudo
do lado de fora
enquanto dentro nada
afunda atrás
de desatar um nós
que nunca existiu
na real
é posta de lado
incipiente
mulher da vida
sem eira
nem beijo

sábado, 4 de junho de 2016

PRÊMIO SESC DE LITERATURA: MENÇÃO HONROSA

Pintura nº. 125, de Felipe Góes
Este é um post para expressar a imensa felicidade que a notícia me trouxe: meu romance Bem diante dos meus olhos foi um dos três premiados no Prêmio Sesc de Literatura deste ano, entre os 794 inscritos em todo o Brasil. Um reconhecimento muito importante, eu nem imaginava! Estou tremendo desde que recebi o telefonema com a informação.

O mesmo livro já tinha recebido outra menção honrosa, no Projeto USP Nascente de 2015. E continua inédito! Quem sabe alguma editora não se anima a publicá-lo?

Tem mais informações sobre a premiação aqui: Resultado do Prêmio Sesc de Literatura 2016


Se você ficou curioso, cá está o trecho inicial:

BEM DIANTE DOS MEUS OLHOS

Papai morreu hoje. Talvez ontem, não sei dizer. O velório acontece ao redor. Estou sozinho num canto há... Sei lá quanto tempo. A bateria do celular morreu também, não sei que horas são. Também não importa, faz muito tempo. Muito tempo que estou aqui. Não conheço ninguém, me sinto um estrangeiro, perdido e ignorado. Bastante gente compareceu, por incrível que pareça. Bem mais do que eu imaginava. Papai fez vários amigos nos últimos anos, não tive como conhecer todos.
      Ora, quem eu quero enganar? Não conheço nenhum desses velhinhos que entram de cabeça baixa e vão em silêncio até o caixão dar uma olhada no que o futuro lhes reserva. Futuro breve, pessoal.

      Encaram-me com um misto de pena e indagação, escolhem uma cadeira e ficam parados ali, alguns sustentando as mãos na bengala, bem velhinhos mesmo, de olhos fechados, rezando, talvez cochilando em silêncio. Um silêncio fúnebre, se me permite o trocadilho.

O silêncio é o problema. Ao contrário do que eu esperava, saber que jamais ouvirei a voz de papai novamente é triste e um pouco angustiante. Pelo jeito, hoje é um dia de surpresas. Estou decepcionado.

Os amigos de papai me observam, porém não me reconhecem. Talvez a maioria nem saiba que eu existo. Ou que estou vivo. Talvez sequer ouviram falar de mim. Devem estar surpresos também – não esperavam alguém tão jovem? Sim, eles têm dúvidas se sou quem imaginam, está na cara.

      Isso é tudo suposição, claro. Ninguém veio me perguntar nada. Ninguém veio dar os pêsames – é assim que se diz? Dar os pêsames? É a terna indiferença do mundo. Ainda bem. Não sou mais o homem das respostas. Não quero ser, ao menos por enquanto. Estou feliz assim. No fim das contas, é melhor o silêncio.

Bebo café com leite morno, quase frio. É horrível, a pior temperatura. É quando eu sinto mais o gosto. Detesto café com leite. Nunca gostei, desde criança. Papai dizia que era bom tomar café com leite antes da escola e molhava meu pão com manteiga na xícara. Fazia para me provocar. Queria ver minha cara de indignação. Aquilo era o fim. Não bastava ter que beber o café, ainda estragava o pão, tudo ficava com gosto ruim de café com leite. Morno, quase frio. Papai sabia ser desagradável. Não estou dizendo que sabia ser desagradável quando queria. Ele era assim o tempo todo. Fazia questão. Este café, agora, só bebo porque foi trazido por uma senhora do asilo a quem papai contava tudo, segundo o que ela me disse. É para enganar o estômago, você deve estar com fome. Ajuda a aliviar a cabeça. Faço o esforço. Enquanto penso, o café esfria. Sempre um dilema.

É como se eu conhecesse você desde sempre – ela me abraça meio sem jeito por causa do bule e dos copinhos de plástico, evitando derramar tudo em cima de mim, e prossegue na tarefa, dedicada. Quase acredito em suas palavras.
      Sei tudo sobre você, a senhora me disse. Seu pai contou. Observo. Talvez tenha sido a última namorada de papai. Tem seu charme, admito. Gosto das feições entristecidas, elas me atraem, são sinais de gente vivida, de experiência verdadeira. É visível que se mantém ocupada para disfarçar a dor da perda, servindo café com leite aos presentes. Para pensar em outra coisa. Ajuda a aliviar a cabeça, ela me disse. Ou porque sente que é sua obrigação, já que foi a última companheira do morto. Um tipo de obrigação conjugal implícita, uma obrigação moral. Parece uma senhora simpática, dessas que se divertem com qualquer bobeira, qualquer bate-papo, um carteado à toa no meio da tarde. Dessas que se contentam com novela, biscoitos, tricô e café com leite. Talvez um pedaço de bolo recém-tirado do forno, sim, uns minutinhos atrás, ainda quente. A manteiga escorre pelo bolo, libera aquele perfume sedutor de colesterol. Papai tinha dom para encontrar mulheres decentes, considerando o exemplo que era minha mãe. Os opostos se atraem? Talvez sim, infelizmente. É difícil demais livrar-se do seu oposto, a imantação é forte demais. Conheço bem o caso. Ao menos uma coisa ele fazia direito, sem motivo para reprimendas. Encontrar alguém que o aturasse.

      Ela diz que me reconheceu pela maneira como papai me descrevia. Não seria difícil: neste lugar sou o único não senil. Ainda. Sem foto, só descrição mesmo. Percebo isso nas entrelinhas. Eu sou bom, um menino de bom coração, que encara a vida com seriedade e sabe resolver as coisas com a rigidez necessária, usando a cabeça. Um bom menino? Papai deve ter me descrito como um crápula, essa é que é a verdade. A senhorinha mal consegue disfarçar. Ou com indiferença, talvez papai tenha falado de mim en passant, seria bem típico, apenas duas ou três frases quaisquer, meio desconexas. Sim, a velhinha só está exercendo sua simpatia nata, é muito boa nisso. Tanto que nem me dá muita bola. Deve me achar um bastardo sem coração. Vou superar, ela diz. Vou superar isso tudo. É muito boa mesmo. Concedo a ela aplausos imaginários.

A verdade – ou o verdadeiro? – não pode ser verossímil, diz uma máxima clássica, se não me engano. A verdade ou o verdadeiro? Não me lembro ao certo. Papai vivia dizendo esse tipo de bobagem, a que eu só fingia prestar atenção. Ok, não dá para saber até onde vai a verdade. É bom todo mundo saber disso, embora quase ninguém se importe. As pessoas gostam de ser enganadas, compactuam na maioria das vezes, tenho milhões de exemplos, quer ouvir? Que seja. Nunca dá para saber. Se a mentira tem perna curta, a verdade nem perna tem. Ela rasteja. Sim, a verdade rasteja. Tenho milhões de exemplos que não vêm ao caso, não agora. Prefiro não mexer com ela, prefiro não mexer com seu veneno fatal. Por quê? É simples. Não quero acabar como papai.

Se ele falava de mim, esqueceu de mencionar minha aversão a café com leite. Deve ter havido oportunidade entre uma lorota e outra, durante o papo furado com que ocupava o próprio tempo e o dos outros. Ah, papai... Eu daria tudo por um café preto forte, sem açúcar. Um levanta defunto, se me permite o sarcasmo. Serviria para animar um pouco esse lugar, afastar o tédio. Talvez também para fazer o tempo caminhar depressa. Está abafado aqui. Queria saber que horas são. A madrugada é inerte. Preciso sair. Será que existe padaria 24h neste fim de mundo? Não sinto fome alguma, não é isso. Só aceitei o café por educação. Não se deve discutir com uma senhora como essa. Não se discute num lugar como este. Isso não se faz.

Quando o cansaço me surpreende, vejo de relance um velho amigo de papai. Abro os olhos e ele está ao meu lado. Um conhecido, afinal. Não exatamente uma presença reconfortante, mas... Um amigo de infância, desses a quem ele se apegava e mantinha por toda a vida sem ter razão alguma para fazê-lo. Jamais compreendi uma só atitude sua, e ele sabe disso. Ele sabia. O velho olha o caixão, depois se volta para mim um instante sem dizer nada. Suspira, dá os pêsames com solenidade, abaixa a cabeça, abaixa a voz etc. Consigo controlar uma vontade repentina de sorrir. Gargalhar talvez fosse mais sincero. Abro os olhos uma segunda vez e ele continua ali. Ficamos lado a lado, bebericando e observando. Não tenho assunto para puxar nem quero papo. Saio para respirar, espiar a noite, e ele vem junto sem ser convidado. Parece oferecer apoio. Acho gentil. Fazer o quê?

O silêncio do velório ecoa aqui fora. Céu estrelado, ar estagnado, verão. Calor típico dessas cidadezinhas do interior. Como nas profundezas do inferno. Talvez um sinal? Sorria, vá! É só uma piada. Foi mal, hein, papai? Mal aí, desculpe.

      Que se dane, o tempo está agradável, comparado com o clima dentro da sala, embora eu preferisse um pouco mais frio, com certeza. Um friozinho gostoso, uma manta, um sofá macio. Um tempo desses e eu aqui, num velório. Não passa um único carro na rua, nenhum bêbado ou boêmio, seja qual for a diferença, ninguém aproveita a noite. As luzes cansadas dos postes clareiam em vão. Minhas pálpebras trepidam com elas, abro os olhos e a vista falha. Pressão baixa, será? Odeio calor.

O amigo de papai olha para o fim da rua, depois para o fundo do copo, depois para o fim da rua novamente. Vai longe. Pergunto como estão as coisas e ele responde "bem". A questão retorna, ele quer saber como estou me sentindo. Papo de elevador. É constrangedor. Como é mesmo o nome do sujeito? Sem saber a maneira adequada de responder para não parecer indiferente demais com o morto ou manifestar minha vontade real de sair dali o mais rápido possível, dou de ombros. Desejo voltar para casa o mais rápido possível. O velho balança a cabeça afirmativamente, concordando. Era o que esperava de mim, suponho. Não que eu me importe também. Não estou nem aí para o que ele pensa.

Passados alguns minutos, o velho comenta: – Achei que você não tomava café com leite de jeito nenhum.

(...)

domingo, 10 de abril de 2016

O CÃO


Às vezes eu acordava de madrugada e ia até o quarto de meus pais, querendo dormir com eles. Dizia ter pesadelos, de modo que me deixassem ficar. Nem sempre dava certo, mas tudo bem, custava apenas uma mentirinha e na maioria das vezes, exaustos, eles simplesmente se afastavam para os cantos, abrindo espaço onde eu me encaixava. A cama era pequena, porém suficiente para o meu tamanho.

Houve uma noite em que, no longo corredor que separava nossos quartos, deparei-me com um cachorro de olhos vermelhos e dentes tortos. Ele estava lá e rosnava, impedindo-me de avançar. Era pequeno, porém muito ameaçador. Fiquei paralisado, encarando o animal que brilhava, iluminado pelo luar da claraboia. Pensei em voltar a dormir. Ele anteviu meus movimentos e saltou para o ataque. Gritei.

Minha mãe abriu a porta do quarto na mesma hora, perguntando por instinto o que tinha acontecido. Meu pai saltou atrás dela e ambos se ajoelharam para me olhar nos olhos. Eu soluçava, sem fôlego.

Passado o susto, meus pais admitiram já não acreditar nesses pesadelos. Só me deixaram dormir na cama com eles quando perceberam a dentada profunda em minha canela, sangramento que demorou a estancar.

Passamos a noite seguinte juntos, numa cama de pensão. Voltei àquela casa apenas uma vez, acompanhado da equipe de mudança. Os carregadores estavam apressados e tremiam. Ouvi murmurarem que era por causa do cão. Para mim, estava evidente.

quarta-feira, 23 de março de 2016

ORGULHO FERIDO


O C-47 que eu pilotava foi interceptado com a comporta aberta, a 37ª infantaria paraquedista saltando para trás das linhas inimigas, ponto-chave na reconquista do litoral norte francês.

– O que você está fazendo?

Não precisei tirar os olhos dos caças que perfuraram a fuselagem; eu reconhecia a voz de vovô pelo sotaque alemão, que meu pai não herdara.

– Brincando de guerra! –, respondi.

– De quem ganhou esse aviãozinho? –, quis saber ele. Nenhum detalhe escapava à revista.

– Do seu Vittorio.

Distração é morte certa, soldado! A missão foi retomada assim que ouvi o clique da fechadura.

Dias depois, encontrei outra miniatura estacionada no aeroporto, sobre a cômoda de meu quarto, lado a lado com o C-47. Havia também um bilhete de vovô, que dizia apenas: "Pilote este Junker 52 da Luftwaffe. É melhor que seu yank".

segunda-feira, 21 de março de 2016

O TEMPO DE CADA UM

Relógio de sol em Tiradentes, Minas Gerais

Penso no meu primeiro relógio "de verdade", que já não tinha pulseira de plástico nem personagem da Disney no mostrador. Presente de minha avó. Não me recordo com exatidão a idade. Dez? Doze anos no máximo. Usava-o todos os dias em todos os lugares, quer dizer, de segunda a sexta-feira na escola, fim de semana em casa de parentes. O relógio escorregava de cima a baixo em meu pulso magrelo. O tempo que marcava não condizia com o meu. Até o dia em que matei aula para jogar fliperama no boteco. Tinha acabado de descobrir essas possibilidades. Cedinho, fazia frio, estávamos apenas eu e os bêbados mais dedicados. Enquanto jogava, outro garoto se aproximou, ficou olhando. Quando apenas ele olhava, puxou do bolso uma faca e levou embora meu relógio. A frágil ingenuidade que me restava acabou ferida de morte. Sem festa nem parabéns, naquela hora abriram para mim as portas da vida adulta. Fui empurrado para dentro, passaram a chave logo depois. Ninguém notou nada diferente, nenhum movimento suspeito. Vivo desde então desorientado, incerto, inseguro; sem saber direito quanto tempo me resta.

sábado, 19 de março de 2016

MÃE É AMOR

VERSÃO1: Minha mãe é amor. Minha mãe é amor quando cozinha. Quando jogo bola dentro de casa enquanto ela pica cebolas. Quando jogo bola dentro de casa contra a sua vontade, quando a desobedeço. Quando quebro seu vaso de orquídeas favorito. Minha mãe é amor quando me surpreende ao lado do vaso, em cacos, paralisado. A faca ainda na mão. O cheiro ácido das cebolas. Amor que explode de raiva, berra maldições, agarra a bola e a apunhala na minha frente. A sangue frio. Meus olhos arregalados se enchem de lágrimas, é o único movimento de que sou capaz. Sem ar, tenho o vazio dentro de mim. Reajo assim àquela violência jamais sofrida. É amor de mãe que a faz paralisar também, que solta a faca no chão. É seu amor, somente ele, que a traz para chorar junto comigo.

VERSÃO 2: Eu queria ficar por perto enquanto minha mãe cozinhava. Ela me mandava ao quintal, eu insistia com a bola dentro de casa. Ela berrava sem largar a faca nem a cebola. Eu chutava a bola. Corria, batia nos móveis, quicava nas paredes. Continuei até atingir seu vaso de orquídeas favorito. Eu não tinha ido ao quintal, agora sequer podia dar um passo. Minha mãe sim, deu todos os passos num só. Chegou transtornada. Era outra pessoa, alguém que eu desconhecia. Tudo mudado, menos a faca, ainda à mão. Minha mãe nunca me batia, era uma santa. Naquele dia ela atirou a cebola no chão, agarrou a bola e a apunhalou sem piedade. Eu era apenas olhos, arregalados; jamais me moveria de novo. Chorar era tudo o que me restava. Não pela bola, mas pela mãe, que não era a minha, não podia ser. Chorei tormentas que lavaram sua maldição. Até ela voltar ao que era, aquela mãe amorosa que me envolveu e chorou comigo. Que eu queria para sempre por perto.

domingo, 13 de março de 2016

INFERNO



O fogo tem esse poder. Destrói a inocência inteira, bastam-lhe poucos segundos. As chamas a consomem, não importa o tamanho, não importa a idade, não importa a natureza. Diante de olhos arregalados resta a impotência de ser e de agir, a dimensão reduzida diante da claridade infinita; cinzas que mancham a eternidade da memória. Resta a certeza da punição desmedida. No terreno devastado brota a culpa. Só ela. A trajetória sem retorno, a rua sem saída. Reclusão, danação. O arredor se agiganta, as paredes se tornam muros, a fiação de arame farpado, as janelas têm grades. Através delas há a decepção do pai, o choro represado da mãe. A desconfiança dos vizinhos, a família que se recusa a acreditar. Dedos apontam em minha direção, ardentes como labaredas, famintos como o inferno. Atiçam-me a carne, açoitam-me a consciência; as bolhas estouram a pele, o sangue irrompe e se esvai de uma só vez na tentativa inútil de apagar a cena, abafar a tragédia, reverter a brincadeira inconsequente. Aquele eu não existe mais, nada dele sobreviveu. As asas queimaram, a queda iminente anunciada pelas sirenes cada vez mais altas. Nada direi em minha defesa. Não há palavra, tudo se foi. Queimei a língua, queimarei a alma. Nada se sustentará. Desabo diante da verdade. Desfaço-me em fragmentos minúsculos. Recolhem os indícios do que fui. Varrem o pó para o calabouço da humanidade. Frio. Faz muito frio aqui.

domingo, 6 de março de 2016

DISSABORES

O colesterol de minha avó chegou a 800. Nem os médicos acreditaram, segundo relato de meu pai. Meu pai gordo adorava os bifes que só minha avó sabia fritar. Os bifes nadando em óleo fervente, os gomos de batata encharcados, o arroz cozido em banha de porco como ela aprendera a fazer ainda menina na roça. Isso tudo deslizava com prazer goela abaixo de meu pai, eu sabia porque via por entre seus dentes ferozes enquanto ele mastigava com vontade, a mandíbula incansável, como se alguém fosse lhe apanhar a comida antes que se desse por satisfeito, como se jamais pudesse se satisfazer.

O cheiro da cebola amolecida na gordura anunciava o almoço para a vizinhança inteira, mais ainda quando minha avó virava sobre ela uma xícara de vinagre de vinho tinto. Então o caldo gritava na panela como se o torturassem. Aquela essência da cozinha de minha avó me impregnava as roupas, os cabelos, a minha própria carne tenra. Não importava aonde corresse eu continuava a senti-la em redor.

A rusticidade daqueles bifes era demais para mim. A carne acinzentada, por descuido tostada em vários pontos, retorcida de agonia. Aquele sumo que escorria em sangue quente, enquanto os soldados rasos de minha boca tentavam a todo custo esfacelar a resistência do pelotão. Eu mastigava e mastigava e mastigava até que restassem somente talhos de tecido fibroso, invencíveis, intragáveis; mastigava até doerem os músculos do rosto, ao ponto de os bifes encouraçados terem somente gosto de minha própria saliva.

Queria largar aquela provação e afundar os dentes até as gengivas no pudim de leite que só minha avó sabia fazer, servido como um céu após o purgatório salgado. Pudim macio e convidativo, sedutor como o próprio nome sugere, "pudim deleite". Que minha avó dividia conforme as visitas. Fôssemos apenas eu, meu pai e ela, a sobremesa seria partida em três pedaços gigantescos, do tamanho quase compatível ao da minha gulodice inocente, do tamanho exato do diabetes de vovó, que papai dizia chegar ao teto. Um pudim de leite que ia até o teto, não tão alto assim, da sua casinha humilde.

Ao contrário dos bifes, o pudim era cremoso, irresistível às colheradas, tão leve quanto pode ser um pudim de leite gordo; furadinho por toda a extensão, não importava onde eu lhe tascasse os dentes ele estaria repleto de caramelo engrossado ao ponto de fio, nem espesso nem ralo demais. Muita calda abaunilhada a lambuzar meus lábios, por vezes meus dedos e minhas roupas. Eu dava colheradas maiores porque queria mais e mais, eu queria mastigar o pudim inteiro de uma só vez, senti-lo acariciar os cantos todos da boca, deitar a língua em seu sabor familiar.

Talvez eu ainda viesse a compreender por que meu pai amava aqueles bifes; talvez chegasse o dia em que eu também preferiria os bifes ao pudim. Isso não tem receita. De qualquer modo, não tive chance de prová-los por muito tempo. O bom senso diria que me foi oferecida uma vida saudável, sem aquela gordura toda, sem açúcar em demasia. Tendência dos dias atuais, das capas de revista. Não tenho certeza se concordo, para se sincero. Para mim, são dissabores. A cada exame médico que me reafirma a boa saúde, sinto gosto de nada. Eles não estão absolutamente corretos. Não há como ser saudável com essa saudade doída que sinto da minha avó, de seus quitutes, de seu sangue mineiro.

sábado, 5 de março de 2016

Azulejaria com cozinha e caças variadas (1995), Adriana Varejão

o tempo rasga com violência
a carne exposta
ao relento, desalento
rápido demais para a não-máquina

o mundo resta inerte
esfacelado em flashes, fragmentos
daquilo que foi, que já não é quase
desejo de recompor vida nova

quase porque não chega
o progresso lhe deixa para trás
abandonado, órfão, desterritorializado
sem teto, sem chão, sem tempo

quinta-feira, 3 de março de 2016

LINGER*

"Do you have to let it linger?", insistia a vocalista da banda. Cranberries. É o nome da banda. The Cranberries. O nome da vocalista eu não sei. Engraçado isso, só agora me dou conta. Ouvi aquela música pela primeira vez no pé da serrinha que divide as cidades de Caraguatatuba e São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. Minha memória fica ancorada nos ouvidos, aguardando a hora certa de navegar; tal como os barcos de pescadores naquele canto da praia. Lembro da música e no mesmo instante desemboca a viagem, o local exato da estrada, a curva que terminava de frente para o cais. O céu azul claro praticamente sem nuvens, o sol muito brilhante, a brisa morna a entrar pela metade aberta da janela. Lembro da sensação de dirigir aquele carro, vencer a infinidade do asfalto; minha mão apoiada levemente na perna da namorada, sentindo na pele o seu descompasso com a pulsação da música. Eu apreciava cada movimento seu. Ela não. Minha namorada não gostava do calor, da umidade, dos insetos, da pele pegajosa de suor misturado ao protetor solar, dos cabelos desalinhados ao vento. De minha mão em sua coxa. Uma composição dissonante, um dueto sem aplausos no final.

A música toca minhas lembranças; elas vêm e vão como ondas no mar. Têm o mesmo ritmo pacato. A vida demora a chegar ao grand finale.

Decido buscar a tradução e não me surpreendo com o que encontro, tantos anos depois. "Você precisa prolongar isso?", questionava o refrão. E desenterra da memória um baú de sentimentos bem ou mal resolvidos.

Não me surpreendo com a letra da música porque o tempo transforma lembranças em coincidências. Conexões, acasos, destino, chame como quiser. É dele que emerge o sentido profundo daquilo tudo que se passou, que parecia não existir mais.

Desejo cavoucar um pouco mais as areias do tempo, descobrir o nome da vocalista dos Cranberries, ver uma foto sua. Por enquanto, ela tem o mesmo nome daquela antiga namorada, da época da viagem a São Sebastião. Em minha cabeça, o rosto delas também é idêntico. Não parece muito justo com a realidade.


*Durante os meses de fevereiro e março de 2016, estou participando da oficina de criação literária oferecida por Marcelo Maluf na Casa Mário de Andrade, em São Paulo. O título explica seu propósito: "Imaginar, lembrar e narrar - a arte da ficção". Postarei aqui alguns exercícios produzidos no curso, que poderão ser localizados por meio do link "Memória e  Ficção" na nuvem de tags (da coluna ao lado) ou clicando aqui.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

5º PRÊMIO DE POESIA PORTAL AMIGOS DO LIVRO

No ano passado, um poema meu foi selecionado no 5º Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro. Recebi hoje alguns exemplares da antologia, com direito a marcador de página personalizado. Bem legal, olha só:



A propósito, este é o poema premiado:


creio,
entretanto,
no porém.
todavia
até certo ponto
convém considerar
que não devo, nego
afirmo acaso pudesse.

ora!
que nada.
nesse meio tempo
subo
no muro
observo ambos os lados
um de cada olho,
outro a contrassenso
afastando a luz
com a palma da mão
daqui até o infinito
e além

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A FORMA SE NUTRE DE MATÉRIA ORGÂNICA

estrutura (ex)posta do movimento
aperto desafoga no fôlego
forma desfaz a si
do si mesmo
outro
tempo inteiro
prestes a cair
não fosse a gravidade
manter o chão
onde está
onde?

tocar o fora
dentro
núcleo vazio
ressoa longe
estende os fios
linhas de força
potências
desejando conexão
pode, vai
o pé sustenta
a planta do pé
aterrada
no concreto do chão

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

BARBARIDADE INTRÍNSECA

fico fazendo poesia
para alimentar o espírito
um banquete
interrompido pelo grito
do estômago
selvagem

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

CARNICEIROS

a cultura requer todo
poder de pensamento
desgasta, desbasta
o corpo largado a
ser devorado
na jaula dos leões

medo terrível
do absoluto
fechado
feito barbárie

poderes que se pegam
numa rinha
ali, trancafiados
excessos
num depósito
de vazios

Varal (1993), de Adriana Varejão

sábado, 19 de dezembro de 2015

BREVE HISTÓRIA MINHA

vem chegando
o fim do ano
fim do mundo
afim de tudo
no fim das contas
vem chegando
junto
um começo
vem a ser a
servir
devagar um
porvir, além
após o fim
desta
breve história
minha

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

CORPO PRESENTE

Mapa de lopo homem II (2004), Adriana Varejão

este lugar
quem
é um aqui
agora

ambos numa só
expressão

coincidente
é no corpo
que o hoje
se encontra

domingo, 13 de dezembro de 2015

Domingo (1926), Edward Hopper
 
são alguns silêncios
difíceis demais

suportá-los como?
sustentar esse peso,
presença insaciável

incansáveis gritos surdos
ecoam no meu vazio

sim, sim, fale
qualquer palavra
faria sentido

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Monumento a Balzac (1898), de Auguste Rodin

morrerei velho
porque sou lento
se fosse jovem
morreria incompleto

morrerei pleno
conforme planejei
ou de improviso
se requisitado

morrerei ainda
que não todo, afinal
são sempre os outros
que morrem

morrerei no tempo
incerto ponto, além
deixarei viver
outro eu

sábado, 5 de dezembro de 2015

Quadrado preto de tinta biodegradável sobre fundo de papel reciclado
livre de alvejantes
(2015), apropriado por Eduardo A. A. Almeida