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segunda-feira, 30 de março de 2020

VÍRGULAS FORA DO LUGAR, SENTIDOS FORA DE CENTRO

Logaritmosentido (editora Penalux, 2019), de Fernando Andrade, é composto por textos curtos, com uma ou duas páginas, a maioria deles em prosa. São, entretanto, exigentes, vão se deixando decifrar aos poucos e, para isso, pedem para ser lidos e relidos, buscando-se sentidos por meio de uma lógica que talvez não exista. Eles apresentam uma operação claramente linguística; um desafio ao leitor. Percebi, vez ou outra, que me debruçava sobre o livro como se lesse um caça-palavras. À procura de quê? Fiquei intrigado com inúmeras questões pontuais, mas para a entrevista a seguir mantive um plano mais geral, de modo que não nos prolongássemos demais e pudéssemos apresentar, a quem ainda não leu, uma primeira visão da obra.

1) Desde o título está anunciado o tensionamento entre a lógica matemática e o sentido, talvez entre a racionalidade e a emoção. Nos textos do livro, por vezes uma explicação de tom científico põe em jogo a própria ciência por trás das explicações. Como você entende essa relação entre a ciência e a literatura?

Na verdade tento colocar em jogo a racionalidade de uma sentença (tese) que às vezes chamo-a de nucleada. Nos meus livros de poesia, também, tento trabalhar a noção de núcleos que detém verdades ontológicas, certezas definitivas. Meu jogo com a matemática vem desta durabilidade infinita dos conceitos fechados (nucleados) ou binários. Portanto meu deleite com a ciência é partir do sentido de suas exposições, teses, para através do jogo lúdico das palavras na linguagem, deslizar a imanência do signo decifrável, criar uma interface de comunicação não unilateral. Quando ludico a palavra do conto Mark onde o próprio destino do personagem é sua língua, crio um efeito potencial, exponencial, de saber até onde os sentidos podem ir na frente de uma narrativa polissêmica.

2) Os títulos das seções que compõem o livro poderiam ser os de uma tese: Sentido exponencial, Infância e normatividade, Corpo poético, Teatralizantes, Ensaio, Paródicos, Gêneros. Mas o conteúdo que os segue não quer provar nada, apenas degustar certo apuro linguístico em cenas de enredo enxuto. Essas seções, curtas, com cerca de dois ou três textos cada, dão ao livro uma estrutura singular. Por que optou por essa forma?

Trabalho sempre com seções nos livros. Na primeira parte, os sentidos se desdobram em vórtices, passam pela palavra ideia e potencializam significâncias como a pedra do conto Petrificante (pedra de crack, pedra preciosa). Tinha alguns contos com teor de fatos sobre a infância e via que eles passavam por alguma função de nomear-normatizar. Aí fui colocando temas. Claro que na maioria das vezes o conteúdo do livro desnormatiza-se de classificações e rótulos. Mas não queria fazer a linha de costura do livro inteiramente solta sem um fio de caminho. Por exemplo o conto-poema Colher de chá colher de sopa poderia entrar em duas seções, tanto Infância quanto a própria seção Gêneros; aliás, ele fala e é da questão entre prosa e poesia, da questão do gênero biológico masculino e feminino.

3) A pontuação, o jogo de palavras, a alternância de narradores, a sonoridade e o retorno a elementos dos próprios textos, entre outros recursos típicos da poesia, produzem certo estranhamento da língua — e dos sentidos — convencionais. Como se você inventasse outra língua ou farreasse com esta nossa, estranhando-a, querendo-a incomum. Buscando, talvez, um “sentido exponencial”, como diz o título da primeira seção. Como este livro se relaciona com os seus anteriores, todos, até então, de poesia?

Acho que este último se relaciona muito com meu anterior de poemas, pois ambos são divididos em seções, parecidas. A perpetuação da espécie (editora Penalux) também tem Infância e gêneros, e nos dois pude trabalhar a questão do hibridismo de gêneros, formatando o meu texto entre a prosa e a poesia. Uma psicanalista do Sul (Porto Alegre), ao ler A perpetuação da espécie, comentou num texto dirigido a mim que ela via vários pequenos romances dentro da condução dos poemas, como se dentro de um subtexto eu falasse ou contasse um tipo de enredo de um homem e sua história de casamento/separação. Já em outros mais antigos há esta brincadeira com o som das palavras, sua grafia, resvalando para polissemia dos sentidos.

4) Há uma experimentação marcante ao longo do Logaritmosentido, com torções e provocações sofisticadas, que exigem do leitor o desejo de vivenciar algo diferente, apreço pela forma e por narrações desconstruídas, que às vezes partem de um ponto desconhecido e nada revelam, sustentando o mistério. Aliás, existe mesmo em alguns dos seus logaritmos essa espécie de problema sem solução, cujo sentido falta ou falha? Ou será que, em vez de sentido, que está mais próximo das sensações e dos sentimentos, deveríamos dizer que quem falta são os significados?

Não há nos contos uma solução para uma investigação sobre a linguagem. Até pela minha dificuldade com coisas fechadas e binárias, tento ir criando status de suspenses e pequenos enfrentamentos linguísticos para dosar forma e conteúdo, mostrando que ao utilizar bem as palavras e seus sentidos, até ocultos, podemos aumentar a rede de interpretações ou signos sobre uma arte literária. Trump e seu trumpete é o olhar semiológico do signo com sons próximos, parecidos, que faz aproximar mundos distintos do jazz ao da política; faz Trump, que é conservador, pois nunca deixo de referencializar ele no conto, até crio um verbete para isso, ser um trompetista de jazz e morar no Rio, na Lapa. Talvez a significação esteja no olhar do leitor que olha para um texto que se move, se pluraliza, busca o outro na sua referência tacanha.

5) Há no livro uma variedade de temas como humor, sonhos, erotismo, política, religião, entre outros. Há também citações mais ou menos explícitas a outros livros, personalidades, produtos culturais. Enquanto lia, voltaram-me os Cronópios, de Julio Cortázar, e o surrealismo de Boris Vian, por exemplo. Daí aquele livro curtinho começou a se desdobrar, como se eu abrisse um origami para conhecer sua estrutura, e assim ele se alongou no tempo e no espaço, também se adensou — como a pedra que afunda no rio, naquele continho “Atire a primeira pedra”, que mais parece um provérbio chinês. Como é possível juntar isso tudo numa obra com somente 82 páginas?

Este olhar quase de editor não tive, risos. Foi acontecendo pelas valises de conteúdo que ia depositando no fundo das páginas. A escrita é um pouco inconsciente, levamos talvez uma ordem de séries, objetos, deslizes, imitações, até porque estes contos foram escritos não para um livro direto e único. Foram traçados por temas e motes no Clube da Leitura de que participo desde 2013, aqui no Rio, e cujo exercício é de ler motes que levamos e escrever sobre o mote escolhido como referência da noite. Depois vem a escrita de até duas páginas de um conto levemente inspirado no mote. Estas narrativas, portanto, foram bailadas neste percurso de 7 anos a maioria delas, dos 18 contos, 14 são do Clube da Leitura.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

LITERATURA E IMAGENS: DESEDUCAÇÕES

Um texto requer imaginação tanto para ser escrito quanto para ser lido. E o que significa “imaginar” senão dar forma imagética a ideias e sentimentos? Daí não ser absurdo dizer que uma obra literária também se faz por imagens, algumas descritas com minúcia, outras apenas sugeridas, que o leitor complementa à sua maneira. Essa capacidade de sugestão e abertura é sem dúvida uma qualidade da escrita, na medida em que confere ao leitor alguma liberdade de criação. Ainda que duas pessoas leiam o mesmo romance, por exemplo, cada uma o imaginará a seu modo, e isso vale para personagens, ambiente, situações etc. Ao ponto em que algumas imagens sejam mais marcantes em nossa memória do que o texto propriamente dito. Lembro-me de cenas muito especiais dos livros que li sem ter certeza de como e com quais palavras foram escritas. O comandante sendo morto pela própria máquina de sacrifício em Na colônia penal, de Franz Kafka. O estupro no Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Os soldados bebendo vodca sob a radioatividade em Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch. A lista seguiria até o fim do artigo. Tenho certeza de que cada leitor também pode fazer a sua sem dificuldades.

Esse debate remonta à máxima “ut pictura poesis”, de Horácio, no século 1 a.C. “Tal como a pintura, assim é a poesia”, com o que ele propunha a equivalência – ou correspondência e similitude – entre essas artes. O poeta se referia à possibilidade de se representar e reconhecer o real na poesia do mesmo modo como os pintores faziam, ainda que esse real fosse imaginário como o escudo de Aquiles (na Ilíada) ou o drama de Laocoonte e seus filhos (na Eneida). A questão não é recente, portanto.

Podemos levar em conta ainda a inserção literal de imagens no livro, que em sua maioria obedece a três modos de relação, por vezes difíceis de discernir:

Narrativas visuais: aquelas em que o texto, quando aparece, serve apenas de suporte às imagens, as quais contam a história por si mesmas.

Ilustração: aqui o peso se inverte, pois é o texto o principal narrador, e as imagens apenas conferem uma camada de visualidade a esta ou àquela cena. A própria capa do livro muitas vezes ilustra a história que guarda.

Histórias em quadrinhos (ou similares): embora possam ser semelhantes às narrativas visuais ou às ilustrações, a maior força dessa relação entre imagem e texto está nos casos em que ambos narram a história e se apoiam mutuamente, sendo impossível retirar um dos elementos sem que o sentido pretendido se desconstrua.

Com isso chegamos a uma última relação, que tem instigado minhas investigações mais recentes. Ela vale tanto para imagens inseridas de forma literal quanto para as sugeridas pelas palavras. Refiro-me às obras em que imagem e texto não se complementam, simplesmente, mas se atritam, como se sustentassem um desajuste imprescindível para a apreciação estética da obra. Uma inquietação em vez do conforto que quase sempre advém da capacidade de visualizar com clareza a cena descrita pelo autor.

Essa relação entre imagem e texto é comum em obras surrealistas e fantásticas, que mais explicitamente ferem o senso comum e disparam certo inusitado. Desde o Peixe solúvel, título do livro de André Breton, ao coelhinho Teleco, de Murilo Rubião, que se transforma em outros animais ao longo de sua convivência com o humano narrador da história. Cito ainda o conto Simulacros, de Julio Cortázar, em que uma família entediada decide construir um patíbulo, entre outros instrumentos de tortura e morte, em seu jardim, apenas com propósito de passar o tempo, o que instaura uma verdadeira celeuma na vizinhança.



Com as pequenas experiências chamadas de Isso não é literatura, no coletivo Discórdia, buscamos explorar formatos inusitados capazes de apresentar narrativas fora do livro. Meu primeiro projeto ali foi um poeminha estampado num filtro de café, que se refere à característica da pele de controlar fluxos entre o corpo e o mundo exterior.

Aqui já não se trata de ilustrar ou de elucidar nada, mas de tensionar os limites semânticos e sugerir diferentes possibilidades interpretativas. Como se alargássemos o significado imediato com um rolo de macarrão. Ao longo da vida somos educados a aceitar algumas relações entre texto e imagem como legítimas, as quais vão se acumulando como clichês da compreensão. O clichê é muito amável com o leitor, que não precisa de grande esforço para entender; tudo na narrativa já está dado da maneira como ele conhece e reconhece. As conexões são as mesmas, os limites de significação e de abertura ao diferente permanecem intocados; o leitor apenas lê uma vez mais o que se acostumou a ler. Mas a apreciação estética de uma obra literária – e artística em geral – vai além. Ela opera numa deseducação desse olhar domesticado, levando-o a entrever outras formas de vida, trazendo à tona o que se faz invisível no cotidiano, fazendo-nos estranhar o banal. São imagens que rompem a ordem do dia, arejam palavras, pegam as expectativas com a calças na mão. Todavia, aí existe também um paradoxo: tais imagens deseducam o olhar ao mesmo tempo em que nos ensinam a ver por outra perspectiva. Tudo bem, pois ainda assim ampliam, em complexidade, a visão de mundo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

FAZER-ME ÁGUA PARA SEUS OLHOS


Janmari não falava nem interagia com qualquer outra criança ou presença próxima. Era fascinado pela água, capaz de passar horas a ver o córrego que cortava os morros de Cévennes, na França, onde os aracnianos da rede de acolhimento se refugiavam. Entre eles se encontrava Fernand Deligny – poeta, educador e etólogo que o adotara. O córrego, o balde içado do poço, a caneca de chá. Dizia-se inclusive que Janmari era capaz de encontrar acessos ao lençol freático onde os “normais” viam apenas terra comum. Como ter certeza? Mais incrível – talvez de fato inacreditável se tomarmos como base a forma hegemônica como nos relacionamos hoje no Ocidente – é que de Janmari nada se cobrava. Tampouco se pretendia retirá-lo do seu viver autista e fazê-lo observar o mundo com olhos “sãos”. A ele era permitido ser, simplesmente, assim como às demais crianças autistas da morada. Imagino o sentimento do pai adotivo, jamais visto pelo menino, sua presença imperceptível. Deligny não podia nem deveria moldar Janmari aos seus modos, “incluí-lo na sociedade”, no sentido mais brutal dos termos. Ao contrário, ele apenas se perguntava como fazer-se água para os olhos do filho. A pergunta ecoa até hoje uma afinada ética das relações.

***

A aldeia foi reconstruída numa ilha, em meio ao rio volumoso, num local conhecido como resguardo. O território pertencia aos indígenas do que hoje chamamos Colômbia, para quem a coca é uma planta sagrada, utilizada em rituais pelos homens da tribo para se reconectarem com a feminilidade. Foi dominado por traficantes durante muitos anos, retomado pelo governo e devolvido aos habitantes originais como terra demarcada. A ameaça recente é a pecuária. A aldeia foi instalada numa ilha. Chega-se a ela percorrendo estradinhas sinuosas na floresta, caminha-se um tanto até a beira do rio; é necessário estar acompanhado de um membro da tribo, que grita do alto da montanha para que alguém na outra margem libere a jangadinha. Os visitantes são puxados um a um através da correnteza, pois é essa a capacidade da embarcação. A aldeia é feita com tijolos, galinhas, teares, um fogão a lenha. A coca é cultivada entre as hortaliças. Quase tudo ali, desde os menores apetrechos até os maiores equipamentos, chegou cruzando o rio na jangadinha, puxado por uma corda pelos indígenas. O lugar é conhecido como resguardo.

***

Um dos significados de errar é caminhar a esmo, sem objetivo, desinteressadamente. Erro pode ser aquele momento de deriva em que o motor do barco é desligado, as velas são recolhidas e o destino segue o pulso das águas. O erro pode ser uma falha, e a falha pode ser uma fissura, e a fissura na concretude da vida pode oferecer um espaço por onde olhar para fora ou pode deixar a luz entrar e afogar a todos os enclausurados em demasiado esclarecimento. Errar pode acarretar um desvio do lugar-comum; pode também ser uma alternativa ao acerto de contas. O erro pode ser o desencontro entre o dito e o compreendido, entre o sentido e o significado, entre o pretendido e o resultado; o que muitos chamam de poesia.

***

Pai farmacêutico, mãe psicóloga, um esquizofrênico em busca de lugar. A partir do qual pudesse conhecer outros. Lugar que desse vontade de tirar o sapato, talvez até vontade de dormir. Lugar de onde pudesse falar, ainda que de si mesmo. Aí começa a história. Deambulou pelo tempo. Aonde chegou? Que lugar é esse? Como ter certeza? Sente que encontrou o lugar em meio a um grupo de teatro, que instaura um estado poético capaz de transformar qualquer espaço num palco para performances. Lugar fictício, talvez um dos mais potentes porque pode ser muitos lugares, pode deixar de ser num acender de luzes. Seu lugar é ali, que paradoxo!, onde por princípio não há vaga para nenhum eu bem determinado; lugar de criação, não lugar, sempre um novo lugar, utopia.

***

Todo o ambiente é cuidado com rigor, as coisas retiradas e devolvidas. Essa construção meticulosa é fundamental para o acolhimento das crianças autistas ao mesmo tempo em que se desconstrói a maneira convencional de estar com elas. Por ausência de um sujeito que o limite, o corpo do autista se esparrama pelos arredores. Para ele, qualquer objeto fora do lugar pode ser traumático como ter um órgão removido. Habitar todo o território, vagar sem finalidade, livre da domesticação cultural, da linguagem, dos preceitos morais que estabelecem sociedade. Talvez a única liberdade possível seja a consciência do limite. Como a compreensão é também um confinamento, não podemos, na “normalidade”, estar realmente no mundo; habitamos um mundinho apropriado ao homenzinho-que-somos.

***

Basta sua estranheza para contestar a ordem local. Como é possível oferecer hospitalidade ao estrangeiro? Como lidar com a diferença entre nós? O estrangeiro não aceita apenas ser incluído, submetendo-se à nossa cultura; ele vem para transformar. Fazer junto. Como acolhê-lo senão mudando a nós mesmos, assumindo a nossa estranheza, tornando-nos estrangeiros em nossa própria pátria? Muitos são interrogados numa língua que desconhecem e deportados de volta contra a vontade, como se houvesse possibilidade de retorno, como se a experiência de deslocamento não fosse ao seu modo irreversível. Mesmo se falar a língua mãe daquele que o acolhe, jamais será reconhecido como irmão. A maior proximidade é assumir o longínquo do outro, diz Jean Oury. Para Jacques Derrida, a hospitalidade absoluta seria possível apenas se suspendêssemos a linguagem, de maneira a não mais interrogar nem submeter o estrangeiro à autoridade da Lei. Utopia. Viveríamos assim, quem sabe, uma liberdade real, muito além dessa que nos obriga a conceituá-la para exercê-la e que, contraditoriamente, impõe as suas fronteiras.

***

Aos dezessete anos, pegou o metrô sozinho pela primeira vez para conhecer o coral Cidadãos Cantantes. Mal conseguia falar uma frasezinha sequer. Mas isso já tem muito tempo, foi no início de tudo. Distante dali, num outro país, quando uma criança autista realiza um novo gesto, ele é sinalizado num mapa, que mais parece uma partitura de movimentos do que um instrumento científico de localização. A criança pode ter devolvido à mesa um prato recém-lavado. Pode ter mexido nos próprios pés. Pode ter desprendido um gomo da laranja. Seu gesto inédito é chamado de acontecimento inaugural. O que se pode falar sobre a força de tamanha sutileza? Ouça-a: mal conseguia articular uma frasezinha; aos dezessete anos, pegou o metrô sozinho pela primeira vez para aprender a cantar.

***

Nos últimos dias de outubro tive o prazer de organizar o ciclo de encontros Linhas Erráticas junto com minhas companheiras do Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível e em parceria com o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo. Sob o mote da errância e com mesas que derivaram pela arte, clínica, política, comum, filosofia, entre outros territórios, debatemos com convidados e participantes formas contemporâneas de vida e de produção de subjetividade que se manifestam por meio da perambulação, desvios, aventuras, falhas e recusas à domesticação. Nesse ínterim, histórias, experiências e pensamentos vieram à tona. Alguns deles, que permanecem a flutuar num oceano sensível, tive vontade de compartilhar aqui.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

ENTREVISTA: COMO EU ESCREVO

José Nunes tem um projeto incrível chamado Como Eu Escrevo, que apresenta o processo criativo de escritores, acadêmicos e juristas (Juristas? José cursa Doutorado em Direito na UnB. Ah!).

O arquivo está à disposição e já tem centenas de entrevistas. O propósito é oferecer inspiração às pessoas com dificuldade para escrever. Aplausos para José Nunes. Compartilhar ideias é mesmo uma excelente maneira de enfrentar os desafios da escrita.

Tive o prazer de responder às perguntas do projeto. A entrevista abaixo foi publicada em comoeuescrevo.com/eduardo-a-a-almeida


Se você ainda não leu meu livro mais recente, encomende seu exemplar aqui: Testemunho Ocular. Ou entre em contato comigo e receba o livro com dedicatória: edualmeida@artefazparte.com

 
1. Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Quem me desperta é minha filha de 8 meses, quase sempre entre 6h e 6h30. Às vezes mais cedo. A essa hora, minha esposa já saiu para trabalhar. Lavo a louça da noite anterior, troco fralda, dou mamadeira e tomo café com a nenê no colo, tentando fazendo com que ela pare de puxar a toalha da mesa e jogar tudo no chão. Brincamos até às 9h, quando a deixo no berçário. Só então a escrita tem início.

2. Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Sempre escrevi melhor de manhã, quando a mente ainda está fresca. É meu período criativo favorito. Também gosto de ler e estudar nesse horário. Sinto que, depois do almoço, a cabeça vai dormir e deixa o restante corpo a fazer trabalhos mais mecânicos como pagar contas, responder emails, revisar textos. À noite estou exausto, raras vezes consigo botar uma boa frase em pé.

Não tenho um ritual propriamente dito, mas gosto de abrir espaço na mesa de trabalho, que quase sempre está atulhada de livros e anotações, esqueço o celular em algum canto da casa e tento não ligar o computador. Gosto de silêncio e caneta-tinteiro. São poucas as ocasiões em que consigo realizar isso tudo porque sempre existe alguma tarefa banal a convocar minha atenção e a abalar o mundinho ideal. Mesmo longe o telefone toca. Chega um email urgente. Tenho que resolver qualquer coisa na rua. Além disso, estão subindo um prédio atrás do outro em meu bairro, e já são anos que passo as manhãs a ouvir serras elétricas, martelos, bate-estacas, entre outros prenúncios do caos.

3. Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Escrevo quando é possível e quase sempre incentivado pelo prazo que se esgota. São os prazos que ditam as prioridades. Preciso entregar a coluna do jornal, depois tenho que ler o livro para resenhar, não posso esquecer de revisar o artigo acadêmico, e então, ou antes, ou assim que puder, preciso desenvolver os itens deste e daquele projeto, preparar a aula, enxugar a palestra, enviar o orçamento.

A literatura sobrevive em meio a isso tudo porque é mais forte, atravessa as ordenações, me arranca da cadeira ou da cama, nas madrugadas, e me obriga a desenhar palavras no papel. Minha meta diária é terminar alguma coisa, seja o que for, contanto que termine e abra espaço para algo mais. Não é comum eu escrever à toa. Mas quando tenho um projeto na cabeça, ele volta e meia me requer, sugere ideias, atira a agenda longe para ocupar o tempo possível e, com sorte, o impossível também.

4. Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Costumo acumular ideias, interesses, imagens. Então sento e escrevo de uma só vez. Acontece de nascer um texto que escapou de todas as anotações, como se tivesse se contorcido por entre elas. Outras vezes o texto é uma costura de notas que, a princípio, não tinham nada em comum. Às vezes a pesquisa leva anos, outras vezes o texto aparece sem qualquer pesquisa que esteja diretamente relacionada com ele. Mas é claro que toda obra se realiza a partir dos materiais reunidos ao longo da vida, tivessem ou não um propósito específico. Isso varia conforme o tipo de texto. Ensaios costumam exigir muitas notas, leituras, diálogos. Textos ficcionais, por outro lado, saem à revelia do planejamento. Não é difícil escrever; difícil é arranjar as condições para que a escrita se realize.

5. Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

A escrita só destrava quando escrevo. Antes de começar, o texto parece impossível. Entretanto uma palavra solicita outra, um sentido sugere outro, e assim o processo anda. Às vezes desanda e o texto nasce torto, requer muita plástica ou a lixeira, a depender de quão grave é seu estado. Não costumo forçar demais a barra. Se um texto não quer nascer, gesto um pouco mais, escrevo outro para compensar. Quando vier, será saudável.

As expectativas, por sua vez, podem ser minhas ou dos outros. Dou atenção às expectativas em textos de não ficção, cuja ideia a ser transmitida deve ser mais precisa. No caso de textos artísticos, a expectativa é tanto uma ilusão quanto uma violência. Ilusão porque não se pode prever a reação do leitor. Violência porque, quando se acredita em tal previsão, o escritor está determinando um perfil, um público-alvo, um preconceito. O leitor não deve ser reduzido nem menosprezado assim. Textos que preveem seus receptores são publicitários.

Um projeto precisa se manter vivo durante sua realização, tenha uma página ou cinco mil. Sua longevidade não tem a ver com longitude. Se o projeto estiver vivo, consigo trabalhar nele quanto tempo for preciso. Se morreu, escrever uma só linha será doloroso e, no fim das contas, uma falácia. O melhor teste de vitalidade ainda é a gaveta: pego o texto inconcluso e o guardo. Se volta e meia a gaveta se mexer, gritar, liberar algum feromônio, é meu dever retomá-lo.

6. Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Uma coluna de jornal, por exemplo, é reescrita por volta de três vezes antes de ser publicada. Adoro mostrar rascunhos ou ao menos contar a ideia a alguém para saber sua opinião, embora nem sempre consiga, por razões variadas.

Textos acadêmicos são reescritos algumas vezes também, mas nunca estão de fato finalizados porque as ideias vão se transformando, novas associações são tecidas, novas leituras levam a diferentes concepções etc.

Contos, romances, poesias são reescritos muitas vezes, lidos por amigos, compartilhados aos pedaços. Meu livro Testemunho Ocular foi lido por uma dezena de cúmplices antes de ser publicado, em especial os escritores do coletivo Discórdia, do qual faço parte. Eles comentaram os textos, sugeriram mudanças, compartilharam impressões de leitura. Alguns contos do livro vinham sendo reescritos há anos, outros eram recentes.

Meu primeiro romance, que deve ser publicado em 2019, teve sua versão inicial escrita dez anos atrás, e desde então foi reescrito uma porção de vezes. Já foi lido por vários amigos, algumas versões foram inclusive premiadas, mas só agora estou prosseguindo com a publicação.

A vontade de publicar logo e me livrar do texto é imensa. Ainda bem que outras tarefas me ajudam a controlá-la. Enquanto isso o livro fica se rebelando dentro da gaveta.

7. Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Sempre gostei de escrever as primeiras versões à mão e só depois digitá-las. O manuscrito é mais lento, e esse tempo colabora com o pensamento. Sem contar que é muito mais fácil desenhar setas no papel, rabiscar, tracejar etc. É uma artesania que depois ganha outros contornos quando passa ao computador. Essa fase seguinte privilegia o ritmo, a técnica, a revisão.

Neste ano de 2018 estou integrando o Núcleo de Dramaturgia do SESI - British Council. Entrei ali com a proposta de experimentar modos diferentes de fazer. Tenho escrito as peças diretamente no computador. É um processo estranho, com prós e contras que ainda estou avaliando. Tem sido uma boa oportunidade para tentar e errar.

8. De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

As ideias vêm do mundo. Elas ganham forma escrita e recaem no mundo. É ingenuidade pensar que têm origem na “profundidade do ser”, no “interior obscuro”, nesses lugares de teor expressionista. O mundo nos atravessa e, com sorte, conseguimos sustentar uma ideia ou outra, quase como uma peneira a sustentar uma pedra maior, que não poderia atravessá-la sem provocar um rombo.

Os hábitos que cultivo são todos relacionados a manter essa abertura na relação com o outro. Leio sobre assuntos variados, interesso-me pelas demais artes, prefiro caminhar entre as pessoas a dirigir minha bolha espacial. Gosto de ouvir histórias.

9. O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Com muito esforço fui desconstruindo algumas idealizações e apurando o senso crítico em relação às criações. Aprendi técnicas de escrever, revisar e apreciar. Mas principalmente quis conhecer melhor as potências estéticas e políticas das artes, suas relações com as pessoas, as organizações sociais, os regimes de ver, pensar e dizer. Ainda há tanto para aprender!

Se pudesse voltar àqueles escritos antigos, eu diria para não deixarem a satisfação durar tempo demais. É vital que um texto satisfaça seu autor porque ninguém consegue sobreviver em constante frustração. Mas a satisfação precisa ruir para assinalar um movimento. Não se trata de evolução, mas de pulsação; não se trata de fazer melhor numa escala qualitativa trazida de fora, mas de fazer de um jeito que renove o próprio fôlego, os pensamentos, os interesses. Se um texto antigo ainda me satisfaz, alguma coisa em mim não saiu do lugar desde que o escrevi, e isso é perigoso.

10. Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Difícil identificar quais projetos ainda quero fazer, mas de alguma maneira eles já foram iniciados. A pesquisa e a criação precedem o projeto, que vem apenas dar forma a elas.

Nos próximos anos pretendo lançar um estudo sobre a Estruturação do Self, trabalho derradeiro da artista Lygia Clark, que comecei a pesquisar durante o mestrado. É uma proposta instigante que inventou um lugar entre a arte e a clínica, e que infelizmente é pouco conhecida. Passados vários anos das minhas primeiras investigações, sua obra ainda pulsa.

Eu gostaria de ler um livro que provocasse em mim um corte radical, como os cortes que Lucio Fontana fazia em suas telas. Será que ainda não existe? Deve estar por aí, eu é que preciso encontrá-lo.

sábado, 15 de setembro de 2018

CRIME PERFEITO

The guest (2004), de Adriana Varejão

o que há de criminoso
no crime perfeito é
a sua perfeição, pois bem:
o assassinato do Real

segunda-feira, 26 de março de 2018

para Victor Heringer, que não conheci 

Morre um jovem
morrem milhares todos os dias
dizem: o país não se importa
exceto por este sujeito,
ele se importa
e aquela moça mais aquele senhor e
assim por diante
morre um suposto país.

É preciso matar muitos países supostos
para fazer viver um
fresco rebelde ingênuo ousado delicado
desse tal jeito jovem
que outros tantos sujeitos sem jeito
teimam em envelhecer
ao ponto em que a morte eterna
confunde-se com salvação.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

FALAÇÃO

Eat Me - A Gula ou a Luxúria? Versão I (1976), de Lygia Pape
A fala
muda
uma relação ex-
posta.

Quem era
quem?
Como foi?

Sem saber
dizer,
ouço falarem.
E falam, ah!
como falam.

Trans-
bordam a
experiência
em lingua-
gem surda.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

CONVERSAS-COLETIVAS NO MAM-SP

Em uma parede imensa do MAM-SP você encontrará também o diagrama que Ricardo Basbaum produziu para a exposição. Este é apenas um trecho (clique na imagem para ampliá-la)


Nossa criação coletiva para o 35º Panorama da Arte Brasileira já está disponível no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O projeto é de Ricardo Basbaum. Foram sete dias de trabalho intenso para produzir o texto e gravar o áudio. Em visita ao museu você pode se sentar numa grande mesa branca, colocar os fones de ouvido e acompanhar a conversa pelos roteiros deixados à disposição.

Se você não pôde nos assistir ao vivo durante o evento de abertura ou não conseguirá visitar a exposição a tempo, ouça o áudio e leia o roteiro nos links abaixo. Sugestão: use fones de ouvido para perceber melhor as variações do som.

Ouça aqui o áudio e leia o roteiro.

Como mencionado em post anterior, trata-se de "um texto desconexo porque não é prosa. Sem melodia porque não é canto. Sem dramatização porque não é teatro. Um texto. Uma conversa feita de nós. Um conversa feita de sons".

Participantes: Bruna Beber, Eduardo A. A. Almeida, Julia de Souza, Marina Jerusalinsky, Monise Rigamonti, Rafa Éis, Ricardo Basbaum, Rodrigo Munhoz.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A palavra maiúscula
soa tão minúscula
diante de tamanha pretensão
sua.
Maior é a pequenez
do gesto menor.
Despercebido, invisível, singelo
a transformar não a ordem do dia,
poderoso escalão primeiro.
Mas a oferecer um imensurável
mísero
segundo de desordem.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

A POESIA COMO SINTOMA DO CONTEMPORÂNEO

No final do ano passado, tive o prazer de ouvir Carlito Azevedo recitar todo o Livro do Cão durante um debate sobre literatura e política. Trata-se de um longo poema do seu Livro das Postagens, lançado à época. Esbaforido, ele insistia:

O autor deveria estar aqui
mas é como se não fosse urgente
como se nada tivesse que ser dito
como se não estivessem batendo à porta
como se não estivesse batendo na nossa cara
como se não fosse urgente

O autor deveria estar ali, mas não compareceu. Irresponsável, enviou no seu lugar Carlito Azevedo, leitor. Um cão na iminência de ser devorado pela crise e sem consciência do perigo. A se justificar, inocentemente:

Eu vim porque me trouxeram
eu disse: estou vendo a lenha
eu disse: estou vendo o altar
eu disse: estou vendo a faca
mas onde está o cordeiro?

O real que se abate sobre nós, os cordeiros, é o invisível e o impossível que por acaso se realizam. Que, não por acaso, já eram sugeridos pela poesia. É por isso que alguns filósofos, ao investigarem o contemporâneo, vasculham poemas atrás de indícios. Giorgio Agamben recorre a A era, de Óssip Mandelstam. Alain Badiou recita As cinzas de Gramsci, de Pier Paolo Pasolini. E defende que a poesia e a matemática são as duas únicas atividades humanas realmente proféticas. Pois “todo grande poema é o lugar linguageiro de uma confrontação radical com o real”.

Em sua palestra no 1º Seminário Online de Escrita Criativa, intitulada A poesia das coisas minúsculas, Tarso de Melo expôs a tese de que os grandes poetas são, de alguma maneira, desajustados em relação ao seu tempo. Cita, como exemplo, o mal estar de Drummond, “poeta da anotação”, a registrar em versos aqueles acontecimentos tão minúsculos que em geral passavam despercebidos aos demais. Acontecimentos não evidentes, que só ganhariam lugar no discurso tempos depois.

Outro exemplo de Tarso de Melo é Leonardo Fróes, cuja obra reaparece meio século depois e ganha atenção dos jovens. Por quê? Segundo o pesquisador, existe mesmo um deslocamento temporal do poeta com o seu leitor. Caberia aos interessados procurar nesse deslocamento – nessa falha ou lacuna – a intuição do poeta, que é um saber anterior à constatação da crítica. Intuir, nas palavras de Melo, é ver por meio do olhar minúsculo.

O que o poeta veria por meio desse seu olhar? Não as grandes obviedades, mas a potência invisível das virtualidades. Veria o sacrifício realizado onde, aparentemente, há apenas lenha, altar e faca, além das vítimas – ele próprio e todos nós.

A poesia seria, assim, uma espécie de sintoma do contemporâneo. Indício sensível do desconhecido ainda em vias de tomar forma. É justamente essa sensibilidade para o menor, no sentido deleuze-guattariano, que me interessa nas artes, sejam elas plásticas, visuais, literárias, musicais, dramáticas etc.

Eu completaria aquela ideia com outra, que vem se realizando sorrateiramente nas sombras da minha pesquisa de doutorado, e à qual devo atentar adiante: a ideia de que o termo “contemporâneo” não condiz com a maior parcela da arte que se realizou nas últimas décadas ou que se realiza hoje. Estas são produções atuais, num sentido cronológico e até estilístico, que talvez recebam rótulo apropriado em breve. Mas o contemporâneo não pode ser um estilo, não pode ser o que presentifica, muito menos o que evidencia as questões da atualidade, mas o que se desloca em relação ao próprio tempo e torna as questões obscuras, ambíguas, paradoxais.

Nesse sentido, eu simpatizo com Agamben, e aposto que contemporâneo é o que vem, ou seja, o que aponta para a condição futura, por ora apenas intuída, talvez um dia a ser constatada. Com uma ressalva: apesar da sua força profética, o contemporâneo não é o que induz – é o que dá condições para o acontecimento ser conforme o seu próprio desejo. É o que torna possível o virtualmente impossível. É o que realiza o real.

A forma virtual, intuitiva, é necessariamente poética. Seu sentido não está dado de antemão, mas em potência. E tal forma poética não se encontra somente no poema. Esse é o nosso desafio, enquanto espectadores e coautores do que vem: esmiuçar a vida em seus variados aspectos para quem sabe encontrar, na urgência do presente, as virtualidades que estão por vir. Não para constatá-las, evidenciá-las ou esclarecê-las; não para extirpar a sua poesia, transformando-as em discurso, mas para acolhê-las e para inventar condições de, por acaso, elas virem a ser.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

E A LUA BRILHOU


Apesar da chuva, do frio e do Temer, houve lançamento do meu livro, houve sarau do coletivo literário Discórdia e houve a publicação do zine "Isso não é literatura". Foi uma deliciosa tarde de domingo no Creuza Cultural, em São Paulo. E teve comida boa, música e companhia de muita gente querida.


 
Compartilho agora algumas fotos e também alguns recados.
 
A tiragem do meu livro Por que a Lua brilha está praticamente esgotada. Se você ainda não comprou, encomende já no site da editora Cultura e Barbárie (atualização: desculpe, a tiragem se esgotou em agosto). Se preferir, adquira a versão para Kindle e leia no computador, eReader ou smartphone.

Conheça e acompanhe o trabalho do coletivo Discórdia, do que faço parte, curtindo a página do Facebook e lendo as nossas publicações no Medium.

Agradeço todos que estiveram presente e também quem gostaria de ter estado, mas não pôde, e mesmo assim mandou energias positivas.

Ainda este ano teremos a publicação do meu Testemunho Ocular, ou seja, mais um livro para a gente celebrar juntos!

 




Zine "Isso não é literatura", do coletivo Discórdia, também lançado na ocasião
  



O coletivo Discórdia



terça-feira, 16 de agosto de 2016

EU, TU, NÓS

A desvantagem de amar é também a sua vantagem
desgostar e gostar o tempo inteiro, atar
nós de tempos em tempos, sem tempo
ao infinito

Ficar a sentir e a dessentir
sem temer, sem ter
certeza alguma senão a momentânea
absoluta até não ser mais
nada

O que é sólido desmancha
no ar a totalidade se fragmenta, esvai
a tradição não vai além
das nossas reminiscências

O que resta? O que vem?
Quem caminha lá adiante? Alto!
Identifique-se! Seja lá quem for
ignora o aviso e é
alvejado e cai e sangra e morre
como qualquer ser
indigente, eu, tu, nós

Não se deve falar de amor em termos de
vantagem, não tem significado algum
traz apenas sentimento
nada em troca
afoga

Outra coisa, o amor
ainda desconhecida por ora
apenas gostamos e desgostamos
em nossa inocência matamos
quando convém
desatamos nós, tu, eu

sexta-feira, 10 de junho de 2016

fora tudo
do lado de fora
enquanto dentro nada
afunda atrás
de desatar um nós
que nunca existiu
na real
é posta de lado
incipiente
mulher da vida
sem eira
nem beijo

sábado, 5 de março de 2016

Azulejaria com cozinha e caças variadas (1995), Adriana Varejão

o tempo rasga com violência
a carne exposta
ao relento, desalento
rápido demais para a não-máquina

o mundo resta inerte
esfacelado em flashes, fragmentos
daquilo que foi, que já não é quase
desejo de recompor vida nova

quase porque não chega
o progresso lhe deixa para trás
abandonado, órfão, desterritorializado
sem teto, sem chão, sem tempo

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

5º PRÊMIO DE POESIA PORTAL AMIGOS DO LIVRO

No ano passado, um poema meu foi selecionado no 5º Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro. Recebi hoje alguns exemplares da antologia, com direito a marcador de página personalizado. Bem legal, olha só:



A propósito, este é o poema premiado:


creio,
entretanto,
no porém.
todavia
até certo ponto
convém considerar
que não devo, nego
afirmo acaso pudesse.

ora!
que nada.
nesse meio tempo
subo
no muro
observo ambos os lados
um de cada olho,
outro a contrassenso
afastando a luz
com a palma da mão
daqui até o infinito
e além

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A FORMA SE NUTRE DE MATÉRIA ORGÂNICA

estrutura (ex)posta do movimento
aperto desafoga no fôlego
forma desfaz a si
do si mesmo
outro
tempo inteiro
prestes a cair
não fosse a gravidade
manter o chão
onde está
onde?

tocar o fora
dentro
núcleo vazio
ressoa longe
estende os fios
linhas de força
potências
desejando conexão
pode, vai
o pé sustenta
a planta do pé
aterrada
no concreto do chão

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

BARBARIDADE INTRÍNSECA

fico fazendo poesia
para alimentar o espírito
um banquete
interrompido pelo grito
do estômago
selvagem

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

CARNICEIROS

a cultura requer todo
poder de pensamento
desgasta, desbasta
o corpo largado a
ser devorado
na jaula dos leões

medo terrível
do absoluto
fechado
feito barbárie

poderes que se pegam
numa rinha
ali, trancafiados
excessos
num depósito
de vazios

Varal (1993), de Adriana Varejão

sábado, 26 de dezembro de 2015

UM BRINDE AOS VAGA-LUMES



A última lembrança nítida que tenho deles remete à infância, às férias vividas no litoral. Já naquela época era difícil vê-los na cidade grande. Desde então, é possível que um ou outro tenha se exibido para mim, assim como é possível ter sido apenas o relampejar de uma fantasia minha que logo se apagou.

Onde estão os vaga-lumes?, Pier Paolo Pasolini quis saber ainda na primeira metade do século passado. Questão retomada por Georges Didi-Huberman num dos livros mais tocantes que li neste ano assombroso, intitulado Sobrevivência dos vaga-lumes. Nele, o autor retoma o trabalho poético e político do cineasta italiano para refletir sobre as situações que vivemos na atualidade. Faz isso com graça, delicadeza e maturidade invejáveis, que resultam num inspirador modo de fazer crítica.

É um texto lindo, sensível, flutuante e muito urgente no que diz respeito a inventar curvas nesta barbárie reta e veloz que estamos produzindo em escala local e mundial, cuja trajetória leva certamente ao precipício.



Naquele contexto, os vaga-lumes são luzes menores que lutam para sobreviver em meio ao iluminismo feroz dos holofotes. Essas máquinas espetaculares, que pretendem trazer tudo à luz do dia e expor à razão exacerbada, ofuscam a existência daquelas luzinhas pulsantes, frágeis, ansiosas por uma escuridão que possam habitar, onde possam mostrar seus dotes, encontrar seus pares; enfim, onde possam viver as suas vontades e alegrias. Luzes intermitentes, que dançam a poesia da resistência.

Desses vaga-lumes pude ver uma porção em 2015. Um pequeno grupo aqui, uma reunião pouco maior ali, movimentando-se, requerendo a atenção dos nossos olhos para questões invisíveis, para demandas suplantadas pelos refletores dominantes, pela ignorância e pela indiferença em relação ao outro. Vaga-lumes que insistiram em brilhar apesar de todas as tentativas de repressão; os cassetetes, as palavras de ordem, as manobras políticas, os abusos de poder, a incitação e a execução de violências as mais diversas, desde o rompimento com a ética até a violação de direitos constitucionais, desde a verborragia à agressão física, as prisões, os silenciamentos, preconceitos, menosprezo e morte.

Para Didi-Huberman, os vaga-lumes desaparecem da nossa vista porque já não estamos no melhor lugar para vê-los. Não é que deixam de existir, eles simplesmente se reorganizam e se realocam quando seu habitat é invadido. Portanto fica a nós uma tarefa vital: reinventar os territórios de modo que os vaga-lumes possam habitá-los, seja esse território um país, uma cidade, uma comunidade, uma casa ou um jardim, seja esse território nem mesmo um espaço, mas uma temporalidade ou um registro afetivo. Nas palavras do filósofo, "há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes".

Existem mais de duas mil espécies desses insetos. Milhares de modos de ser. Para conhecê-los, não devemos capturá-los e os trazer à luz, "é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite", diz o autor. Pois jamais compreenderemos os vaga-lumes se os arrancarmos de seu lugar; para falar deles é necessário experimentar a escuridão.

Humanos têm algo de vaga-lume, uma vibração interior que pode ganhar vida e iluminar o arredor. A luminescência de alguns esmaece por conta da carapaça grossa, pesada e enrijecida que a oprime. Despojar-se das couraças, abrir-se à experiência sensível, amolecer o juízo e desconstruir os dogmas implicam expor a si mesmo a ameaças variadas. Mas existe outro jeito de produzir luz própria?

Sustentar o próprio brilho é um gesto poético corajoso; um ato político, social, estético. Tanto quanto deixar-se encantar pela luz dos outros. Ser atraído por ela, desejá-la; ambos tão frágeis e tão belos! Capazes de brilhar uma única vez e marcar para sempre a retina de quem os viu.



Didi-Huberman conta que, na década de 1970, após intensa batalha contra o neofascismo incorporado aos modos de agir italianos, Pasolini caiu em desespero e não conseguiu mais sustentar sua resistência poética. Os vaga-lumes deixaram de existir para ele. Não porque foram extintos, embora ele acreditasse nisso, mas porque ruiu algo central no seu desejo de ver. "O que desapareceu nele", diz o autor, "foi a capacidade de ver – tanto à noite quanto sob a luz feroz dos projetores – aquilo que não havia desaparecido completamente e, sobretudo, aquilo que aparece apesar de tudo, como novidade reminiscente, como novidade 'inocente', no presente desta história detestável de cujo interior ele não sabia mais, daí em diante, se desvencilhar".

Vivemos tempos sombrios, em que é difícil enxergar ao longe. Tempos varridos por refletores de vigia ou de espetáculo. Também são tempos propícios para compartilhar nossa luminescência interior. Neste ano que se inicia, desejo que você brilhe, se puder. Que se deixe sensibilizar pela poesia dos vaga-lumes. E, independentemente do que venha a acontecer, que jamais deixe de procurá-los. Eles estarão dançando em algum lugar, mais perto do que você imagina.

>> Este texto é dedicado aos estudantes e professores que têm lutado em diversas frentes pela educação no Brasil, porque acreditam que toda transformação social passa necessariamente por ela. Pessoas que têm ensinado a importante lição de que política não se faz de cima para baixo nem de baixo para cima, mas horizontalmente: disponível, dialogada e, claro, com respeito pela potência luminosa dos demais.

sábado, 19 de dezembro de 2015

BREVE HISTÓRIA MINHA

vem chegando
o fim do ano
fim do mundo
afim de tudo
no fim das contas
vem chegando
junto
um começo
vem a ser a
servir
devagar um
porvir, além
após o fim
desta
breve história
minha