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quarta-feira, 25 de junho de 2014

[REPENSANDO] ARTE FAZ PARTE

Este blog é um caderno de exercícios. Um apanhado de relatos. Um acúmulo de notas esparsas. Uma reunião de esboços sem relação aparente. Uma coleção de textos já publicados. Ineditismos e imediatismos também. Uma experiência. Um acaso. Uma ficção. Uma obrigação não formalizada, talvez um método de produção e organização. Homenagem e citação. Trama. Uma viagem. Um lugar para habitar. Um meio de existir no mundo. Uma vontade. Uma despretensão. Uma veia literária. Um ponto de encontro. Uma reunião de pensamentos. Uma linha de errância. Um objeto/objetivo sem finalidade. Um ensaio. Uma passagem. Uma brecha. Um mundo paralelo. Uma ambiguidade, com certeza. Um alter ego. Uma perspectiva. Várias. Uma provocação, pode ser. Uma abertura à discussão. Uma bagunça sem pé nem cabeça, lugar onde se perder. Limiar. Entrame. Ausência. Um cuidado, uma curadoria; uma cuidadoria. Um sinal de vida. Uma força. Um contratempo. Arte, por que não?

segunda-feira, 23 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (6)

Patrícia foi mais uma admiração do que propriamente um amor; contudo não acho estranho citá-la aqui. Frequentamos os mesmos lugares durante anos. Sei que ela me admirava também, ainda que não tenhamos trocado mais do que meia hora de papo. Era gordinha e divertida, estava sempre sorrindo. Seu bom astral contagiava. Ficou um tempo sumida. Voltou esquelética, indiferente, nem parecia a mesma pessoa. Vieram dizer que estava anoréxica. Mas por quê? Que bobagem é essa?

Deixei de frequentar aqueles lugares. Isso faz anos. Não tive mais notícias dela. Procurei-a diversas vezes depois, nas redes sociais de que participei, sem jamais encontrá-la. Seu sobrenome era bastante incomum, não deveria ser tão difícil. Também não tive coragem de perguntar aos poucos conhecidos que compartilhávamos, e com quem não tinha tanta intimidade assim. Receio que a doença a matou. Seria uma perda lastimável. Fico triste por imaginar isso, e me dou conta de que falo dela com verbos no passado. Pretérito imperfeito.

Eu gostaria que Patrícia estivesse bem. De verdade. É tudo o que me resta.

sábado, 21 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (5)

Ainda no colégio, tive uma paixonite por uma garota que, se muito, foi amiga minha durante um período breve. A história se resumiria a isso caso eu não tivesse descoberto – anos mais tarde e meses após o ocorrido – que ela falecera num acidente de carro. Tinha o quê?, dezoito, dezenove anos? Foi ela que fez da morte algo factível. Quer dizer, que me apresentou a possibilidade de morte para jovens da minha idade e, no limite, para mim mesmo. Até então, morrer era uma verdade distante. Não pertencia à minha realidade.

O namorado dirigia. Pegaram um caminhão de frente na estrada. Disseram que foi ultrapassagem em local proibido. Para ser sincero, nunca quis saber se foi mesmo. Não queria explicação. Pensei em culpar o namorado, já pensei em culpá-la por namorá-lo, só que isso não leva a nada, exceto a mais arrependimento por nunca ter levado a cabo minha vontade e, com sorte, modificado sua trajetória. Bom, talvez não dependesse de mim. Éramos crianças. E essa culpa só vem acompanhada de remorso. Ninguém precisa dela.

Ainda hoje sinto que Ingrid está viva. De vez em quando, com intervalos de tempo sempre mais longos, me percebo lembrando dela, do seu perfil esguio, sua postura ereta de bailarina. Aos poucos, sua imagem vai desaparecendo. Era uma garota bonita, embora sorrisse pouco. Sempre lhe desejei um futuro próspero. Eu queria vê-la dançar, coisa que fazia tão bem. Dançar num palco grandioso. E ver a plateia aplaudi-la de pé.

Sim, penso nela de vez em quando. É como se estivesse dançando por aí, em algum teatro da cidade. Um lugar próximo de mim. Como se a notícia não tivesse passado de um mal entendido. Como se não houvesse nada com que se preocupar. Bastaria isso. Um desencontro. Um desencontro de informações. Um encontro, talvez. Bastaria.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (4)

É curioso falar de sonho porque traz à tona outro amor breve da minha adolescência; amor fugaz e inseguro como eu era na época. Falo de uma amiga num grupo de amigos em que os amores e as desilusões se revezavam. Amávamos e nos desamávamos tanto que o grupo se desfez assim que chegamos à faculdade, e cada um seguiu seu próprio rumo sem remorso ou coisa do tipo.

Mas eu falava de sonho. Foi mais um pesadelo, na verdade, que me acordou com uma sensação esquisita. Eu estava na cobertura de um prédio muito alto; tão alto que só enxergava as luzes da cidade à distância lá embaixo. As ruas eram como rugosidades num tapete. Até o sol estava baixo, deixando tudo numa atmosfera crepuscular. Não havia outros prédios como aquele, talvez sequer houvesse prédios naquela cidade que se esticava além do limite dos meus olhos. O que havia era gente. Muita gente comigo, no topo da torre, e eu não conhecia ninguém, eram tão estranhos quanto o contexto. Estavam todos em pânico e eu não sabia o motivo, mas também ficava em pânico por causa deles. Eu também tinha medo. Do quê? Lembro de olhar para baixo e ver fumaça. O prédio pegava fogo e nós estávamos refugiados no topo sem ter como ir mais para cima. Esperávamos socorro num lugar que o socorro jamais alcançaria. Estávamos no limite entre o céu e a terra.

Reclinado no parapeito, vi outro prédio igualzinho àquele em que eu me encontrava. Tão alto quanto. Não sei se já estava ali ou se apareceu de repente. Então não era apenas um, mas dois prédios maiores do que a humanidade; duas torres isoladas do mundo, da realidade profana das ruas.

O prédio vizinho também tinha fogo, eu podia ver um buraco enorme bem no meio dele, por onde saíam labaredas e uma espessa coluna de fumaça.

No sonho, eu conseguia ver mais um monte de gente na cobertura do prédio vizinho, na mesma situação desoladora. Apesar da distância, eu podia ver Paloma, uma das amigas do grupo do colégio, sozinha no meio daquela gente toda, tal como eu. Tentei gritar, ela não ouviu. Uma, duas vezes. Não deu para fazer mais nada.

Logo em seguida o chão cedeu sob meus pés e eu caí com ele; uma queda interminável. Passavam pessoas, blocos de concreto, estilhaços de vidro, fogo. Tudo voava em torno de mim enquanto caíamos. As pessoas gritavam; eu permanecia impassível, com enorme frio na barriga enquanto o prédio se desmanchava. Uma cena dantesca. Ainda sinto frio na barriga só de pensar.

Lembro também de olhar para o lado e ver o prédio vizinho repetir os movimentos do meu, como um mergulho sincronizado em direção ao inferno. Acho que foi ao vê-lo que compreendi o que acontecia comigo.

Por algum milagre, eu sobrevivia. Caminhava pelos escombros, branco de pó, respirando fuligem em meio a uma escuridão de pedras, ferro retorcido e objetos quebrados. Procurava Paloma. Por algum milagre eu a encontrava. Estava meio inerte, meio soterrada. Completamente atordoada. Eu a resgatava. E o pesadelo terminava.

Acordei com uma sensação esquisita, como disse. Ignorei-a por uns dias, esperando passar. Não aconteceu. Eu sabia que não passaria. Alguma coisa me dava esse pressentimento Chamei então Paloma num canto, expliquei que só contaria o sonho porque ela estava nele e eu não sabia direito o que significava. Fiz isso num tom muito sério. Até demais para um adolescente. Ela ouviu sem dar a menor bola. Me devolveu a mesma mistura de tristeza e receio que se oferece a um lunático. Voltei para casa angustiado. Era tudo o que podia fazer.

Cerca de três meses depois, um ataque terrorista derrubou as Torres Gêmeas de Nova York. Vi os prédios queimarem e desabarem na TV. Fiquei em choque. Nunca mais esqueci a sensação. Nunca deixei de senti-la quando o assunto retornava.

Lembro-me de ir até Paloma e descarregar nela toda a minha aflição. Não disse que aconteceria? Eu sabia. Avisei você. Eu sabia que se realizaria.

Não fui grosso, apenas um pouco afetado. Falei baixo para ninguém ouvir. De qualquer maneira, nenhum colega prestava atenção em outra coisa que não o noticiário.

Paloma também ficou assustada. Não sei o que pensava. Não voltou a falar comigo, embora tenhamos estudado juntos durante o resto do ano. Eu não queria falar tampouco. Sequer na formatura nos cumprimentamos.

Jamais soube se ela contou a história para outra pessoa. Eu a guardei todinha para mim. Até agora.

terça-feira, 17 de junho de 2014

UM PONTO ALÉM DO CONTO

Uma coisa aparentemente chata muito me fascina: a trajetória da Estética no século XX. Trajetória conturbada, que começa com a ingenuidade das vanguardas europeias e sua crença na transformação do mundo por meio da arte, no sentido de "melhorá-lo". Fosse pela negação da beleza clássica, fosse pela pesquisa das formas, das impressões da natureza no homem ou das expressões da natureza humana. Essa ingenuidade acabou dilacerada pelas guerras, quando descobrimos os horrores de que nossa própria natureza é capaz. Tanto que, ao término do primeiro conflito mundial, apareceram as manifestações dadaístas: provocadoras, absurdas, de certo modo até violentas. Estavam em desalinho com os valores clássicos e também com os revolucionários; sem chão, sem esperança, perdidas nas brumas da desilusão. Porque a "missão" do Modernismo falhara – seus esforços foram subjugados. Não havia salvação moral para quem matava sem piedade. Muito menos salvação por meio da arte.

O pouco que restou daquela vontade transformadora sobreviveu menos de duas décadas, sucumbindo de vez nos campos de concentração, nos bombardeios maciços e nas frentes de batalha da segunda grande guerra. "É isto um homem?", pergunta Primo Levi no título do livro em que relata sua passagem por Auschwitz, de onde só era possível sair por um lugar: a chaminé.

Aqueles traumas, entre tantos outros, interromperam o que havia de criativo e jovial na humanidade. Isso nunca pôde ser retomado.

Quando o artista pop Roy Lichtenstein anuncia, na década de 1960, que a arte "não transforma, apenas forma", ele revela outra concepção de Estética, então em voga. Não se acreditava mais no potencial transformador da arte, mas no construtivo, no sentido de que ela poderia erigir numa nova realidade. Estamos falando dos Estados Unidos pós-guerra, da sua chamada Era de Ouro; país vitorioso, pleno de dinheiro e oportunidades, que desde aquela época fabricava cultura em enormes corporações e a exportava para o mundo inteiro. Nós, brasileiros, compramos toneladas do estilo de vida americano. Sonhamos o American Dream. Trouxemos para cá seus automóveis, fizemos estradas para eles transitarem; construímos Brasília inspirados na razão matemática, nas técnicas de engenharia recém-desenvolvidas, na ordem como método de obter progresso. O trabalho estético, por sua vez, afastou-se da natureza do homem e se direcionou à forma plástica; o espiritual na arte perdeu espaço para superfícies modulares, minimalismos e equilíbrio visual pela repetição de padrões.

Alegra-me saber que, no contemporâneo, esse ideal não se sustenta mais. Filósofos e artistas dedicados a compreender nossos modos de existência não acreditam em transformação ou formação pela arte, mas em desformação. Quer dizer, trabalham o esfacelamento dessas estruturas sólidas que foram sedimentando ao longo do século XX, multiplicando-as em singularidades infinitas. Estrutura familiar, social, governamental, militar, religiosa; hierarquias de todo o tipo, cânones, verdades absolutas que, sacralizadas como estão, já não servem mais, ou seja, não condizem com o nosso dia a dia. Pertencem a outro plano. E, dada sua incompatibilidade com a vida contemporânea, precisam ser revistas, reinventadas, desfeitas, profanadas; reorganizadas para voltarem a operar, se ainda forem pertinentes. Destituir as instituições. Deixar a rigidez mais elástica. Manipular o intocável conforme melhor convier.

Há resistência, entretanto. Embrutecimento. Teimosia. Inclusive nas vontades de mudança. Porque muitas vezes essas vontades apenas retomam procedimentos obsoletos e dão outra volta às mesmas reviravoltas. Quando, na realidade, o que se deseja é sair do circuito; linhas de fuga, trajetos de errância em vez do conforto das certezas.

Exemplo dessa resistência está no filme Malévola [se você não viu, talvez seja melhor interromper a leitura para não ter o final revelado]. Quando o vilão morre, o mal é extirpado e os heróis viverão felizes para sempre – conforme protocolo da Disney –; a princesa é coroada e o povo se reclina a seus pés. Povo que não era povo. Reino que não era reino. Quem se lembra do início da história? Quando os seres mágicos viviam felizes e saltitantes, antes da chegada do homem, que os corrompeu e os infligiu os horrores da sua estrutura sociopolítica. Até então, as fadas e seus amigos viviam com harmonia, pois ninguém era mais privilegiado. Depois, conheceram a ambição, a tentadora ascensão social, a possibilidade da dominação do outro.

No dito "final feliz", os produtores optaram por recriar o conflito principal – o jogo de poder – que provocou todo o drama, envelopando-o de "sonho de princesa". Os personagens não precisavam de governantes, porém os aceitaram, mesmo sabendo que renderiam futuras crises. No geral, é o que costumamos fazer em nossas vidas: permanecer atados ao círculo vicioso que se critica, opõe e autoalimenta.

Perguntaram se gostei do filme. Essa revisão inteira passou pela minha cabeça e a resposta foi negativa, claro. Não gostei. Achei uma pena que não reinventaram a fábula de modo que fizesse sentido no contemporâneo: que provocasse deslocamentos, ruídos; que correspondesse às questões mais urgentes.

A Estética segue seu rumo pelos caminhos mais imprecisos. Enquanto o filme encalhou num daqueles pontos retrógrados em que os blockbusters adoram se firmar.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (3)

Tive muitos amores quando criança, naquele período mágico de descoberta do mundo. A cada nova descoberta um novo amor. É fácil apaixonar-se quando se é inocente. Depois fica tudo mais complexo, mais difícil. Inclusive amar.

O amor de que me lembro agora ficou retido na segunda ou terceira série do primário. Menina branquinha, de olhos levemente puxados e cabelo curto. Linda. Todo amor é lindo enquanto dura.

Não me lembro de ter falado com ela sobre minhas intenções. Claro que não; nem mesmo eu sabia quais eram. Lembro-me apenas de ter relatado um sonho:

Ela, uma espécie meio robótica, com rodinhas nos pés, braços estendidos à frente do corpo, mãos prontas para agarrar e não soltar jamais. Eu, vítima acuada, assustada. Com medo de amar.

Havia uma sirene em sua cabeça, isso foi marcante. Aliás, sirene não, era uma luz giroscópica; uma só, igual nos filmes dos anos 1980, nos carros de detetive à paisana que, de uma hora para outra, entravam em missão e tinham uma luz alaranjada acoplada ao capô.

As rodinhas nos pés davam à Karina ritmo constante, e naquela velocidade baixa, angustiante, ela vinha atrás de mim, chegando cada vez mais perto; não importava o quanto eu corria ela se aproximava mais e mais. A perseguição se dava numa escuridão infinita, sem paredes nem pessoas. Apenas o desconhecido para além de nós dois. Apenas solidão. Eu corria, suava, em pânico. Ela vinha atrás, incansável, impassível. Até que despertei.

Não sei dizer qual foi a reação dela ao sonho. Hoje eu jamais o contaria, por mais que sonhar seja meigo. Ainda que o bizarro seja afeito ao mundo dos sonhos, nem todos o aceitam. Comigo seria diferente? Não sei... seja como for, Karina se foi, e o sonho permaneceu por décadas.

Eu tinha um carrinho de pilhas na época, uma viatura policial futurista. Era azul, e quando batia ficava todo amassado. Pois bastava apertar um botão e a lataria retomava a forma original. Eu adorava. Lembrando dele agora, acho que desvendei a associação feita pelo meu inconsciente enquanto eu dormia. Incrível como nunca tinha me dado conta.

Não saberia dizer se gostava mais do carrinho ou de Karina. Essas coisas não se mediam assim, na época.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

quinta-feira, 12 de junho de 2014

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

42ª questão:
O QUE NÃO É RESISTÊNCIA?

terça-feira, 10 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

41ª questão:
O QUE NÃO É DISSIDÊNCIA?

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

40ª questão:
O QUE NÃO É VALOR?

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (2)

O primeiro amor de que lembro remonta à minha pré-história; a pré-escola, antes mesmo de apreender a ideia de amor. Mocinha sorridente, dividia comigo o balanço do parquinho, na hora do recreio. Nosso caso ia e vinha sem sair do lugar. Ela nunca percebeu. Eu jamais quis que alguém soubesse. Diziam, meus amiguinhos, que o pai dela era dono do açougue, e cortaria fora a graça de quem se engraçasse com Fabiana. Eu tinha pavor de perder a graça, claro. Meus amiguinhos riam. Mais ligeiros, estavam preocupados com proteger outros interesses. Quando entendi a piada, meu primeiro amor estava distante; distante demais para o tamanho da minha precoce liberdade. Talvez no outro período, talvez na escola ao lado, talvez no quarteirão de cima. Enfim, longe de toda possibilidade de germinar; além de qualquer ilusão em meu remoto deserto de experiências.

domingo, 8 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

39ª questão:
O QUE NÃO É ENTRETENIMENTO?
ser
no limite
da incerteza

estar
no fundo
do infinito

mergulhar
no exato
do mundo

deixar
para trás
a indiferença

na superfície
flutuante
do ser

sábado, 7 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

38ª questão:
O QUE NÃO É CURA?

COINCIDENTE

o passado
aqui
e agora

o futuro
já – não muito –
adiante

tudo junto e misturado
– com-temporâneo –
num embrulho
só;

pacote inconsistente
dado de presente

sexta-feira, 6 de junho de 2014

"A resistência não se dá de forma frontal, unilateral, nem age na negatividade ou na reação tardia. A resistência é um modo de ser. É uma forma/força de estar imerso no movimento, é perceber-se como acontecimento corporal ativo, é a única possibilidade de tornar-se ação criativa de arte. A resistência é a dobra do ser. E essa dobra é a insistência na diferença, no outro, na produção de singularidades múltiplas."

Ericson Pires
As produções de artes atuais
(em Ensaios Fundamentais: Artes Plásticas – editora Beco do Azougue)

terça-feira, 3 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (1)

Lembro como se fosse hoje daquela menina magrela do colégio. Tinha se tornado um mulherão, enquanto eu continuava com jeito de adolescente. Dei a ela uma carona, estiquei a viagem querendo saber mais. Fazia o quê?, quatro ou cinco anos que a gente não se via? Talvez nem tanto, não lembro bem. Acho que permaneci no mesmo colégio, e ela foi cursar um técnico. Disse que namorava, trabalhava, essas coisas que só fui descobrir mais tarde. Eu ia pra faculdade e dirigia o carro de minha mão no outro meio período, para cima e para baixo, e só.

Foi assim também nosso papo, cheio de altos e baixos. Estranho. Ela com receio da carona – estava na cara que eu a desviava do caminho; eu curioso, cheio de expectativa – ela ficava muito bem naquele uniforme.

Disse que estava resolvida. O namorado era do interior, filho de gente bem de vida, eu soube depois. Queria transferir para lá seu emprego de professora da prefeitura, pré-escola. Dava aula para criancinhas, adorava. Imaginei a cena repetidas vezes, sem acreditar na veracidade dela. Seu sonho era casar, fazer uns filhos e viver com a família longe da loucura da capital.

Achei um absurdo, mas não disse nada. Como uma garota de vinte anos sonha assim? Eu queria enrolar a faculdade, sem pressa, mochilar seis meses pela Europa, ficar rico e fazer qualquer coisa legal durante o resto da vida, quando desse vontade, caso desse vontade. Ela queria filhos e uma casinha no interior. Só isso. E tinha certeza.

Uns tempos depois, descobri que o tal namorado era gente muito rica. Mais velho, talvez uns dez anos, filho de fazendeiro, devia ser algo assim. Não vi filhos nem casinha, vi fotos do Mediterrâneo. Estados Unidos também. Caribe, acho. Ela postou no Facebook. Eu virava noites num estágio cujo 'salário' não pagava transporte nem alimentação. Morava com meus pais. Tinha vinte e cinco, vinte e seis anos, se me lembro direito. Ela viajava o mundo às custas do maridão. Tirava fotografia com taça de champanhe. Grécia, Itália, Turquia. Tudo de barco. O cara tinha jeito de cafajeste, desses que têm esquema com polícia. Careca, um porre. Ela continuava linda, mais linda ainda sem o uniforme de tactel. Só que, não sei... perdeu o encanto. Acompanhei as fotos durante uns meses. Depois a deletei dos meus amigos.

(DES)FORMAÇÃO CONTEMPORÂNEA

Masterpiece (1962), de R. Lichtenstein

Roy Lichtenstein acreditava, nos anos 1960, que a arte não deveria transformar nada, no sentido de "mudar o mundo", conforme o ideal modernista que sucumbiu nas guerras mundiais. Isso não seria "função" da arte, se é que ela pode ter finalidade além de si própria. Para ele, a arte não transformava, apenas formava.

Hoje não cabe afirmar o mesmo. Essa espécie de vontade construtiva se esgotou. Nem transformação nem formação; o interessante, no contemporâneo, é a desformação. O desvio. O dissenso. A errância. A transversalidade. A transgressão. A profanação. A possibilidade de experimentar, por meio da obra – seja ela do tipo que for –, a experiência em si. O ato. O gesto. Experimentar a vida, a proximidade da vida com a arte que por vezes as torna indiscerníveis.

Desconstruir conceitos, desfazer estruturas tradicionais, esfacelar verdades absolutas. Revelar possibilidades. Inventar atitudes pertinentes às demandas de agora. Estabelecer diálogos. Colocar novas formas em operação. Sem razão ou brutalidade, sem informação ou conformismo.