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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A FORMA SE NUTRE DE MATÉRIA ORGÂNICA

estrutura (ex)posta do movimento
aperto desafoga no fôlego
forma desfaz a si
do si mesmo
outro
tempo inteiro
prestes a cair
não fosse a gravidade
manter o chão
onde está
onde?

tocar o fora
dentro
núcleo vazio
ressoa longe
estende os fios
linhas de força
potências
desejando conexão
pode, vai
o pé sustenta
a planta do pé
aterrada
no concreto do chão

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O VÍNCULO URGENTE

Sem título (da série "Droguinhas"), Mira Schendel, cerca de 1965

A vida contemporânea carece de afetividade, basta folhear este jornal* para verificar como estamos distanciados do sentido profundo das notícias (digo "sentido" pensando em "sentimento", não em "significado"). Lemos sobre violência, abuso de poder, destruição da natureza, miséria e logo retomamos nossas atividades ordinárias como se nada tivesse acontecido, isso praticamente não nos toca. Claro que é possível estabelecer relações interpessoais hoje em dia; ninguém vive isolado por completo e, no limite, mesmo o isolamento implica uma relação, seja de afastamento, ignorância, recusa etc. Então, se de alguma forma nos relacionamos com os demais, por que nem sempre criamos vínculo? Aliás, qual seria a natureza desse vínculo e por que ele seria tão urgente?

Algo que falta às sociedades de hoje, de modo geral, é disposição ao vínculo. Digo isso não num sentido moralista, mas porque essa falta provoca sofrimentos de diversas ordens, inclusive morais. Digo também que falta disposição porque vínculo não é algo que se adquire – não compramos vínculo no supermercado, não o encomendamos pela internet, não cozinhamos alimentos ricos em vínculos. Eles se constituem a partir da disposição das pessoas. Portanto não é pela lógica do capitalismo que detemos vínculos – o máximo que podemos fazer é nos abrir ao outro e sustentar a natureza vincular que porventura desperte desse exercício. O que não é pouco – exige uma complexa transformação de comportamento, de sentimento e de pensamento sobre as coisas do mundo, sobre o que está do lado de fora e tudo o que está dentro de nós.

"O tecido do vínculo é o real entre dois organismos. (...) Uma realidade feita de 'sentires', emoções em sua maioria inconscientes, mas também conscientes (...). O que faz o vínculo entre dois humanos são os alicerces de uma presença", a psicanalista Radmila Zygouris explica no ensaio O vínculo inédito.



Sem título (da série "Droguinhas"),
Mira Schendel, cerca de 1965
Durante uma consulta recente com minha endocrinologista, falávamos sobre como mudou a relação entre médico e paciente – ou como deveria mudar – nestes tempos em que a informação não procede mais de uma única fonte. Se antes o "doutor" era o detentor oficial do conhecimento científico – e por vezes abusava do poder a ele associado –, hoje é diferente: o paciente chega já sabendo pormenores da sua saúde e requer cuidado especial. Deseja ser ouvido, deseja que seu corpo seja analisado como um ser inteiro – não somente resultados numéricos de exames laboratoriais –, deseja ser acolhido naquele momento de intimidade e no espaço-tempo do seu histórico pessoal. Deseja vincular-se, talvez. O que contraria a lógica produtivista dos convênios médicos, que cobram caro, pagam pouco, recusam-se a oferecer planos particulares (porque o governo regulamenta o serviço), são coniventes com corrupções diversas – veja a quantidade de obstetras que tem solicitado remuneração à parte daquela que o convênio lhes concede para realizar partos – e alimentam um sistema de atendimento automatizado, insensível e rápido, muito rápido, que nada tem de saudável – o paciente nem se acomodou na cadeira e as guias de exames são chacoalhadas na sua frente, junto com meia dúzia de receitas farmacêuticas, algumas de antidepressivos.

Algo semelhante ocorre nas salas de aula. Cada vez mais cheias e administradas por professores desestimulados, sua forma não incentiva qualquer vínculo que leve a conhecimento consistente ou que permita ao aluno buscar emancipação. Todos os anos inúmeros estudantes saem da faculdade sem habilidade intelectual, crítica ou analítica; passaram duas décadas copiando o conteúdo exposto pelo professor sem apreendê-lo adequadamente ou, pior ainda, ficaram esses anos todos a ignorar o que lhes era oferecido. São pessoas que chegam ao mercado de trabalho justamente como produtos – ofertados, patéticos, nada profissionais e ainda assim responsáveis por levarem o país adiante, seja no setor público ou privado.

Citei esses exemplos para mostrar que a questão do vínculo não é puramente abstrata – ela implica sofrimentos de diversas ordens, como vimos. Para pensá-la, vale retomar algumas ideias de Zygouris. Embora ela trate de uma relação oriunda da experiência analítica, acredito que provoque também uma reflexão sobre as demais relações experimentadas em nosso cotidiano. Podemos traçar um paralelo e, dessa maneira ampliada, destacar os seguintes pontos:

– O vínculo pertence ao território, não ao mapa. É da ordem do vivido, uma experiência que se vive em relação ao outro. Ele não se sustenta como teoria, é necessário vivenciá-lo na prática, no contato, no contágio.

– Não se interpreta o vínculo, ele não tem razão de ser, não há metáfora que dê conta da sua potência. Trata-se de um lugar de sentimentos, de silêncios; ele estabelece um plano de sensibilidade, um não-verbal que existe enquanto pessoas estão juntas – é o encontro em si.

– Sua natureza é fisiopsíquica. Isso quer dizer que não se basta numa afetação racional, ele é também visceral, vivido nas diferentes profundidades do corpo. Um vínculo "musical", que nos toca em tonalidades diversas.

– Ele requer implicação dos envolvidos, o que é mais do que participação. O vínculo exige que o "eu" esteja liberto para ser formado a partir do encontro. Não pelo poder, ao contrário; para ser formado por dissociação.

– A experiência vincular nunca se repete, ela é um fluxo sempre atual e cativante. Até ser interrompida e deixar de existir.

Antes de racionalizar, analisar ou criticar, é necessário sentir o outro na questão. Porque o "pensamento é, em primeiro lugar, um sentir que precede a linguagem e a formatação pela linguagem", diz Zygouris. Toda pessoa que pretende assumir a responsabilidade de oferecer um pensamento à sociedade precisa saber que "pensar é antes de mais nada fazer a experiência sensível do pensamento" – isso é muito grave e muito urgente, veja quantas agressões trocamos cotidianamente sem afeto algum, sem qualquer cuidado com o outro. Enquanto não desenvolvermos a sensibilidade, que é vital ao humano e imprescindível ao convívio, continuaremos com medo, isolados e infelizes, desvinculados inclusive de nossa própria potência de ser juntos.

*Este texto foi publicado originalmente no Caderno C do Correio Popular.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

BARBARIDADE INTRÍNSECA

fico fazendo poesia
para alimentar o espírito
um banquete
interrompido pelo grito
do estômago
selvagem

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

SOBRE A POLÊMICA DE VENDER "MEIN KAMPF"

Algumas livrarias têm anunciado que não venderão o livro "Mein Kampf" (Minha Luta), de Adolf Hitler, que recentemente se tornou domínio público e está recebendo novas edições em português. Ora, por quê?


Em primeiro lugar, isso parece uma censura ingênua, uma vez que é possível obter o texto na internet com facilidade, basta digitar no Google. Depois, que história é essa de a livraria selecionar o que podemos ou não comprar (ok, todo comércio é assim, eu sei, mas normalmente a escolha não se dá por moralismo e sim por capitalismo, o que é bem diferente)!?

Tem outra coisa: estão com medo de quê? De produzir nazistas? É assim, como ignorantes ou como potenciais ignorantes, que as lojas veem os clientes leitores? No contexto de hoje? Como se todos aqueles nazistas dos anos 1930 tivessem lido o livro e se "transformado" com a leitura! Ou como se não existissem outros livros de conteúdo muito mais perigoso sendo vendidos aos montes por aí. Essa linha de raciocínio é tão tola quanto dizer que "vira terrorista quem ler o Alcorão" ou vira "cozinheiro quem ler a Dona Benta".

Há quem diga que um dos problemas éticos seria "lucrar com as ideias de Hitler". Eu fico me perguntando em que mundo essa pessoa vive. Porque tudo aqui envolve ganho ou perda de dinheiro, infelizmente essa é a lógica que nos conduz. Trata-se de um produto editorial e será comercializado como produto editorial. E daí? Eu adoraria implementar estratégias de desvio à lógica capitalista, mas boicotar o Hitler e continuar a vender os demais livros não parece muito eficaz.

Na minha opinião, a melhor forma de combater fascismos de todo o tipo é não agir como fascista. Nem agir "em nome do bem estar social", o que na prática dá quase sempre no mesmo. Política se faz de muitas formas, inclusive mais inteligentes. Com educação, por exemplo. Com acesso à cultura e liberdade de expressão também.

Torço para que muitas livrarias disponibilizem o título a quem desejar lê-lo, ao invés de quererem ocultar esse capítulo da história (como se fosse possível) ou de quererem ditar como a cultura deve ou não deve ser (como se fosse possível).

(Queridos livreiros, por favor, que tipo de política bárbara é essa que estão promovendo?)

Momento curiosidade: Esse episódio me fez lembrar de outro recente, quando as produtoras de DVD e Blu-Ray do Brasil se recusaram a distribuir o filme "Azul é a cor mais quente", num descarado ato de homofobia. Pode?

Saiba mais: Livro escrito por Hitler volta às livrarias brasileiras em meio a polêmicas

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

CARNICEIROS

a cultura requer todo
poder de pensamento
desgasta, desbasta
o corpo largado a
ser devorado
na jaula dos leões

medo terrível
do absoluto
fechado
feito barbárie

poderes que se pegam
numa rinha
ali, trancafiados
excessos
num depósito
de vazios

Varal (1993), de Adriana Varejão

A LENTIDÃO DO VERBO

"Pensar é antes de mais nada fazer a experiência sensível do pensamento. Para tanto, é preciso dar o salto e admitir como premissa que o pensamento é, em primeiro lugar, um sentir que precede a linguagem e a formatação pela linguagem. À questão: Como sei que penso? Respondo: Sei porque sinto que penso antes de conhecer aquilo que penso. Quando Isso pensa, é o inconsciente que se apodera do intelecto e do já aí com a rapidez de um raio: é o insight, ou o Einfall do qual falava Freud. É algo que despenca sobre nós, uma experiência fulgurante. Prefiro traduzir o termo freudiano Einfall por "pensamento-raio". A tradução por "associação livre" é ruim: diria que se trata mais de uma dissociação, já que o insight chega dissociado do contexto. Chega como uma faísca, com a rapidez de um raio. Depois é preciso passar dessa velocidade para a lentidão do verbo. O verbo nos impõe a resistência de nossos órgãos submetidos ao desenvolvimento sequencial da linguagem. O Einfall, a coisa encontrada na rapidez de um raio, força a dizer e dizer obriga a amortecer, para que possam se formar as palavras, as frases, a lógica do discurso."

O vínculo inédito, Radmila Zygouris

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

YOU DON'T SAY!


Qual é o meu segredo? Estou sempre ocupado com alguma coisa, seja ler, pensar, rabiscar papel, matar tempo, responder email, levantar e sentar na cadeira, coçar a orelha, esfregar as mãos nos olhos, sorrir maliciosamente para o espelho, lembrar de alguém de que gosto e sentir saudade, cantarolar melodias, ouvir o vizinho martelar algo no andar de cima pela terceira semana consecutiva, roer unhas, guardar no armário as roupas penduradas nas maçanetas, empilhar livros sobre a mesa do escritório, bocejar, atualizar a agenda, recarregar canetas-tinteiro, beber a água do copo, encher o copo com água mais uma vez, olhar para o relógio, ouvir o tique-taque do ponteiro que marca os segundos, fazer xixi, passar café, comer biscoitos com o café, pagar contas, renomear arquivos no computador, considerar tudo o que preciso ler ainda esta semana, tomar notas, passar notas a limpo, riscar tarefas cumpridas, jogar notas velhas no balde de lixo reciclável, comer uma fruta, lavar as mãos, dedilhar um acorde qualquer no violão, dormir em pé e sonhar alto, escrever rascunhos, desesperar-me com tudo que prometi e ainda não cumpri, imaginar a mim mesmo numa outra vida em outro lugar com outras pessoas, ler uma frase qualquer no livro mais próximo, fingir que trabalho, esquematizar um capítulo da tese, lavar a louça, checar mensagens no celular, deixar as respostas para depois, pesquisar o preço de um livro na internet, comprar livros por impulso, esquecer de ler notícias, sentir-me só, jogar uma fase no videogame, beber suco, colocar o notebook para recarregar, esquecer de almoçar, publicar um poema no blog, surpreender-me com o ronco do estômago, abrir o armário, esquecer o que procurava, fechar o armário sem pegar nada, atender telefone, revisar manuscritos antigos, recortar imagens de folhetos que peguei outro dia já não lembro onde, guardar as imagens para quem sabe usar numa possível oportunidade, cortar um fio solto da camiseta, arranjar desculpa para sair de casa, fazer compras no supermercado, esquecer de responder as mensagens que tinha deixado para depois, perceber a preguiça acontecendo, fazer corpo mole, buscar uma encomenda na portaria, beber outro café, lembrar dos milhares de problemas que precisava resolver, reclamar que não tenho tempo para nada, passar a tarde inteira sem fazer nada útil, prometer a mim mesmo que amanhã isso não vai se repetir, sentir vergonha, maldizer o produtivismo capitalista, inventar polêmicas e teorias da conspiração, acreditar nelas por um instante, rir de mim mesmo, ignorar bobagens de Facebook, não planejar o futuro, desejar um prazo motivador e estimulante, nem que seja apenas um!, apaixonar-me por algo inesperado, esquecer todo o restante, escrever esta nota nesta caderneta, refletir. Para que serve este meu segredo tão sem graça? Para nada, segredos não ajudam nada, não existem segredos a não ser no plano ideal, claro, quando os descobrimos eles já deixaram de ser segredos. Sobra apenas mais uma anotação a ser reciclada. Assim, espero.

sábado, 26 de dezembro de 2015

UM BRINDE AOS VAGA-LUMES



A última lembrança nítida que tenho deles remete à infância, às férias vividas no litoral. Já naquela época era difícil vê-los na cidade grande. Desde então, é possível que um ou outro tenha se exibido para mim, assim como é possível ter sido apenas o relampejar de uma fantasia minha que logo se apagou.

Onde estão os vaga-lumes?, Pier Paolo Pasolini quis saber ainda na primeira metade do século passado. Questão retomada por Georges Didi-Huberman num dos livros mais tocantes que li neste ano assombroso, intitulado Sobrevivência dos vaga-lumes. Nele, o autor retoma o trabalho poético e político do cineasta italiano para refletir sobre as situações que vivemos na atualidade. Faz isso com graça, delicadeza e maturidade invejáveis, que resultam num inspirador modo de fazer crítica.

É um texto lindo, sensível, flutuante e muito urgente no que diz respeito a inventar curvas nesta barbárie reta e veloz que estamos produzindo em escala local e mundial, cuja trajetória leva certamente ao precipício.



Naquele contexto, os vaga-lumes são luzes menores que lutam para sobreviver em meio ao iluminismo feroz dos holofotes. Essas máquinas espetaculares, que pretendem trazer tudo à luz do dia e expor à razão exacerbada, ofuscam a existência daquelas luzinhas pulsantes, frágeis, ansiosas por uma escuridão que possam habitar, onde possam mostrar seus dotes, encontrar seus pares; enfim, onde possam viver as suas vontades e alegrias. Luzes intermitentes, que dançam a poesia da resistência.

Desses vaga-lumes pude ver uma porção em 2015. Um pequeno grupo aqui, uma reunião pouco maior ali, movimentando-se, requerendo a atenção dos nossos olhos para questões invisíveis, para demandas suplantadas pelos refletores dominantes, pela ignorância e pela indiferença em relação ao outro. Vaga-lumes que insistiram em brilhar apesar de todas as tentativas de repressão; os cassetetes, as palavras de ordem, as manobras políticas, os abusos de poder, a incitação e a execução de violências as mais diversas, desde o rompimento com a ética até a violação de direitos constitucionais, desde a verborragia à agressão física, as prisões, os silenciamentos, preconceitos, menosprezo e morte.

Para Didi-Huberman, os vaga-lumes desaparecem da nossa vista porque já não estamos no melhor lugar para vê-los. Não é que deixam de existir, eles simplesmente se reorganizam e se realocam quando seu habitat é invadido. Portanto fica a nós uma tarefa vital: reinventar os territórios de modo que os vaga-lumes possam habitá-los, seja esse território um país, uma cidade, uma comunidade, uma casa ou um jardim, seja esse território nem mesmo um espaço, mas uma temporalidade ou um registro afetivo. Nas palavras do filósofo, "há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes".

Existem mais de duas mil espécies desses insetos. Milhares de modos de ser. Para conhecê-los, não devemos capturá-los e os trazer à luz, "é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite", diz o autor. Pois jamais compreenderemos os vaga-lumes se os arrancarmos de seu lugar; para falar deles é necessário experimentar a escuridão.

Humanos têm algo de vaga-lume, uma vibração interior que pode ganhar vida e iluminar o arredor. A luminescência de alguns esmaece por conta da carapaça grossa, pesada e enrijecida que a oprime. Despojar-se das couraças, abrir-se à experiência sensível, amolecer o juízo e desconstruir os dogmas implicam expor a si mesmo a ameaças variadas. Mas existe outro jeito de produzir luz própria?

Sustentar o próprio brilho é um gesto poético corajoso; um ato político, social, estético. Tanto quanto deixar-se encantar pela luz dos outros. Ser atraído por ela, desejá-la; ambos tão frágeis e tão belos! Capazes de brilhar uma única vez e marcar para sempre a retina de quem os viu.



Didi-Huberman conta que, na década de 1970, após intensa batalha contra o neofascismo incorporado aos modos de agir italianos, Pasolini caiu em desespero e não conseguiu mais sustentar sua resistência poética. Os vaga-lumes deixaram de existir para ele. Não porque foram extintos, embora ele acreditasse nisso, mas porque ruiu algo central no seu desejo de ver. "O que desapareceu nele", diz o autor, "foi a capacidade de ver – tanto à noite quanto sob a luz feroz dos projetores – aquilo que não havia desaparecido completamente e, sobretudo, aquilo que aparece apesar de tudo, como novidade reminiscente, como novidade 'inocente', no presente desta história detestável de cujo interior ele não sabia mais, daí em diante, se desvencilhar".

Vivemos tempos sombrios, em que é difícil enxergar ao longe. Tempos varridos por refletores de vigia ou de espetáculo. Também são tempos propícios para compartilhar nossa luminescência interior. Neste ano que se inicia, desejo que você brilhe, se puder. Que se deixe sensibilizar pela poesia dos vaga-lumes. E, independentemente do que venha a acontecer, que jamais deixe de procurá-los. Eles estarão dançando em algum lugar, mais perto do que você imagina.

>> Este texto é dedicado aos estudantes e professores que têm lutado em diversas frentes pela educação no Brasil, porque acreditam que toda transformação social passa necessariamente por ela. Pessoas que têm ensinado a importante lição de que política não se faz de cima para baixo nem de baixo para cima, mas horizontalmente: disponível, dialogada e, claro, com respeito pela potência luminosa dos demais.

sábado, 19 de dezembro de 2015

BREVE HISTÓRIA MINHA

vem chegando
o fim do ano
fim do mundo
afim de tudo
no fim das contas
vem chegando
junto
um começo
vem a ser a
servir
devagar um
porvir, além
após o fim
desta
breve história
minha

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

CORPO PRESENTE

Mapa de lopo homem II (2004), Adriana Varejão

este lugar
quem
é um aqui
agora

ambos numa só
expressão

coincidente
é no corpo
que o hoje
se encontra

domingo, 13 de dezembro de 2015

Domingo (1926), Edward Hopper
 
são alguns silêncios
difíceis demais

suportá-los como?
sustentar esse peso,
presença insaciável

incansáveis gritos surdos
ecoam no meu vazio

sim, sim, fale
qualquer palavra
faria sentido

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

PALAVRAS ROUBADAS

"Às vezes sinto que nos roubaram até as palavras. A palavra socialismo é usada, no Oeste, para maquilar a injustiça; no Leste, evoca o purgatório, ou talvez o inferno. A palavra imperialismo está fora de moda e já não existe no dicionário político dominante, embora o imperialismo na verdade exista e despoje e mate. E a palavra militância? E o próprio fato da paixão militante? Para os teóricos do desencanto, é uma velharia ridícula. Para os arrependidos, um estorvo da memória."

O menino perdido na intempérie (1990), Eduardo Galeano

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Monumento a Balzac (1898), de Auguste Rodin

morrerei velho
porque sou lento
se fosse jovem
morreria incompleto

morrerei pleno
conforme planejei
ou de improviso
se requisitado

morrerei ainda
que não todo, afinal
são sempre os outros
que morrem

morrerei no tempo
incerto ponto, além
deixarei viver
outro eu

sábado, 5 de dezembro de 2015

Quadrado preto de tinta biodegradável sobre fundo de papel reciclado
livre de alvejantes
(2015), apropriado por Eduardo A. A. Almeida

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

é preciso ter fibra
diz a embalagem
ao meu redor
é preciso ser duro
para suportar o peso todo
empilhado
sobre
eu

é preciso ter fibra
diz o doutor
para engolir sapo
sem ir pro brejo
fibrose
de processar nas entranhas
as favas do mundo

fibra entre os dentes, pequena
maldita implicação!
quero resolver no braço
arrancar raiz e tudo
e os dedos grandes demais
para alcançar

fibra ótica, ótima
velocidade a habitar
sem limites nem vínculos
no tempo-espaço de um clique, um touch
o mundo inteiro em zero segundos
acabou

é preciso ter força
para mover montanhas
abrir os mares
criar filhos com juízo
impassível carapaça
solidez à flor da pele

é preciso ter pulso firme
mostrar quem manda,
grita a maioria
empoleirada em seus galhos,
o rabo preso

bobagem

é preciso cuidado
isso sim, cuidado!
com si, com o outro
é preciso aprender a ser
maleável, poroso, vulnerável
elástico suficiente para resistir
às tensões subsistir
na aridez das relações

é preciso ser água
pingar, penetrar espaços inacessíveis
hidratar, expandir, deixar brotar
abraçar as ilhas
acolher profundamente
criar frutos suculentos
que alimentem a alma

é preciso ser vento
leve, sem razão
mover a terra
grão a grão
dia a dia
assim
a dureza do deserto
ganha curvas

é preciso ser terra
firme, territorializada, disponível
para habitar-se
na dobra do fora

é fogo
perceber que tudo vira cinza
o mesmo cinza
o mesmo tom
indiscernível

salivar
impreciso ser
aberto
amplo
disposto

cheio
de vitalidade,
tônus social

não há embalagem
em que caiba isso tudo
não há bula que dê conta de explicar
em letras miúdas
a dose certa
do afeto

é preciso ter fibra
muscular
é preciso ter pulso
cardíaco
é preciso ter estômago
rins, pulmões, fígado, cordas vocais
cérebro
pés no chão
braços abertos
desejos flutuantes

estofo, muito estofo
ser feito do mesmo estofo
com que fazemos o mundo

há fibromialgia, há sensibilidade, há flor na pele
o toque sutil da flor na pele, os espinhos
agarrar os espinhos sem piedade
incorporá-los

é preciso ter corpo
para dançar
é preciso ter corpo

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

choro
é a primeira fala
convocada
choramos
quando não resta nada
a dizer
falam então as lágrimas
linguagem das águas
cálidas

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

DESFAZER UNS LAÇOS

é o presente
desfazer uns laços,
desatar uns nós
ver a fita caída
cansada ainda
com as marcas do que passou
ali

passado um tempo
eu passo
a ferro quente desfaço
o desfeito remoço
para um novo laço
diferente
é lindo, veja só
é um presente!
do desalento para
mim mesmo

domingo, 29 de novembro de 2015

CERTA DESCONEXÃO

Cartas de agradecimento (2015), Chiharu Shiota
Na última década, trabalhei em frente ao computador num regime de dez horas por dia, com folgas ocasionais nos fins de semana. Informação de todo tipo chegava até mim sem que fosse necessariamente solicitada; em contrapartida, eu também alimentava essa rede de conexões ao mesmo tempo maravilhosa e potencialmente perversa chamada internet. Seguia o fluxo, às vezes era arrastado por ele, nunca sabia que corredeiras aguardavam adiante. Então senti necessidade de parar, tomar fôlego e refletir sobre essa infinidade na qual estamos todos imersos, que tenta nos convencer de que continuará a existir independentemente da nossa vontade.

Por trinta dias estive de férias e tentei uma experiência: quis me desconectar da urgência por informação e pertencimento virtual. Foi bom, está sendo bom e sustentarei um pouco disso na medida do possível. Para dosar essa vontade é necessário assumir que não conseguimos estar completamente conectados ou desconectados da rede – uma ingenuidade utópica acompanha ambas as opções. Por sua vez, somente uma parcela mínima de toda essa informação a que estamos expostos se converte em experiência, e o tempo dedicado a ela poderia ser melhor aproveitado, seja fazendo outra coisa, seja fazendo nada.

Lembro-me de um post de Facebook em que a pessoa se fotografou numa lagoa "distante da civilização" e escreveu: "Nada como me desconectar". Lembro e sorrio; ela foi até a lagoa, tirou uma selfie com o celular, compartilhou na rede e ainda acreditava estar "desconectada". Sim, é difícil arrancar o plugue da tomada. Talvez seja pior ainda aceitar que, no fim das contas, ele não faz tanta diferença assim. Não existe necessidade de vivermos conectados virtualmente a tudo e a todos a todo instante. Isso é uma bobagem à qual o "estilo de vida moderno" deseja nos incorporar. Por outro lado, não é o caso de considerar patológico o uso de tablets, smartphones, smartwatches, entre outras engenhocas high-tech que continuamos a inventar. Ouço a crítica com frequência: “Esse aí é viciado em celular”, “A criança só quer saber de tablet” etc. Por excessivo que seja, falta de bom senso é diferente de doença. Além disso, já somos hipocondríacos o suficiente.

Claro que um bocadinho de noção sobre o que está acontecendo não faz mal a ninguém, seja qual for sua opinião a respeito, seja qual for a atitude que tomará a partir daí. Só não pense que certa desconexão, na medida em que é possível e saudável, significa optar pela ignorância, como se fechássemos as portas para o mundo atual ou quiséssemos nos isolar dessa humanidade cool. Negar a tecnologia e seus benefícios é uma barbaridade. As oportunidades de conhecimento que hoje temos à disposição estão entre as maiores conquistas de todos os séculos.

Se não é de negação que falo, é de produzir consciência: saber se desconectar é a inteligência que precisamos exercitar. Perceber o esforço empregado nessa ilusão de compartilhar experiências com o mundo inteiro, quando na maior parte do tempo apenas buscamos distração ou fuga das nossas próprias realidades. E pesar os prós e contras desse esforço.

Neste contexto atual de superexposição, é prudente desenvolver a inteligência de nos recolher quando necessário, de selecionar aquilo que nos chega e a forma como vem. Temos que desenvolver a inteligência de gerir nossos veículos de informação ao invés de sermos dirigidos e digeridos por eles. Aprender a dizer não, a não estarmos sempre disponíveis, a organizar nosso dentro e nosso fora, a controlar o que entra e o que sai por essa membrana sensível, por vezes tratada com relapso. O que ainda nos cabe? Qual é o nosso limite?

Uma amiga fez a corajosa escolha de não receber notícias em primeira mão via mídia convencional, seja revistas, noticiários, sites ou rádios. O que chega a ela percorre outros caminhos, outros filtros, outras temporalidades. Ao contrário do que parece, ela é uma das pessoas mais bem conectadas com o contemporâneo, sustentando com ele uma fina sintonia ao mesmo tempo em que está de alguma maneira protegida dos perigos (de aparência inocente) que vão nos afetando aos poucos sem que os percebamos, até que se tornam "normais". Ao tomar aquela decisão, restou tempo e disposição para ela desenvolver novas formas de relação com os outros; sensibilidades mais aguçadas, maneiras mais profundas de apreender o que acontece à sua volta e que a toca, seja no círculo imediato (família, amigos, trabalho), seja no outro lado do planeta. Há tantas outras formas de conexão possíveis!

Cartas de agradecimento (2015, detalhe), Chiharu Shiota

Ilya Prigogine, Nobel de Química em 1977, escreveu no fim do século passado uma "Carta para as futuras gerações", na qual afirma: "Estou convencido de que estamos nos aproximando de uma bifurcação conectada ao progresso da tecnologia da informação e a tudo que a ela se associa, como multimídia, robótica e inteligência artificial. Essa é a 'sociedade de rede', com seus sonhos de aldeia global. (...) Minha mensagem às futuras gerações é de que os dados não foram lançados e que o caminho a ser percorrido depois das bifurcações ainda não foi escolhido. Estamos em um período de flutuação no qual as ações individuais continuam a ser essenciais".

Segundo ele, a ciência de hoje nega o determinismo, e essas bifurcações que exigem de nós uma tomada de decisão são ao mesmo tempo sinal de instabilidade e de vitalidade. Em suas palavras: "Quanto mais a ciência avança, mais nos espantamos com ela. (...) O homem é até agora a única criatura viva consciente do espantoso universo que o criou e que ele, por sua vez, pode alterar. A condição humana consiste em aprender a lidar com essa ambiguidade. (...) Cabe às futuras gerações construir uma nova coerência que incorpore tanto os valores humanos quanto a ciência. (...) Não precisamos de nenhum tipo de pós-humanidade. Cabe ao homem tal qual é hoje, com seus problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva no futuro".

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Inscrições no túmulo de Fernando Pessoa

a única conclusão é morrer
nem ponto final coloco
ou caixa alta nos nomes próprios
melhor tudo minúsculo
sobrevivendo de incertezas
a descobrir o todo,
miséria da verdade
quando fecho a porta
o encanto desfaz
os destinos todos
que poderia visitar
provisoriamente

sem eira nem beira
deixo que um caminho me pegue
pelo caminho torço
que outros entrecruzem
misturem, façam com que o eu se perca

há quem almeje encontrar a graça
prefiro ainda procurar
está certo isso?
não venha com afirmativas
decerto
já basta o fim

terça-feira, 27 de outubro de 2015

AGRADEÇO SUA CARTA E A NOTA DE 50 FRANCOS

Quase sempre a história acaba por determinar um ponto de vista hegemônico sobre um assunto, e quase sempre essa "verdade" revela outras facetas quando começamos a escavá-la, removendo o acúmulo de significações que soterrou sua essência. Nunca sabemos com exatidão como as coisas aconteceram, como tal sujeito pensava, por que a humanidade seguiu por este e não por aquele caminho. Temos teses e suposições. Temos realidades ficcionadas. E não devemos desejar mais. Em certo sentido, a história é apenas uma coleção de causos que sobreviveram ao tempo agarrados a uma grande narrativa, escrita conforme certo método científico, interesses particulares e uma dose de imprevisto. O que de maneira alguma invalida o lindo trabalho dos historiadores. Cada vez é mais evidente nossa necessidade de cultivar raízes, pois um povo sem história é um povo sem sabedoria.

O que não podemos é nos deixar enganar pela aparência de verdade da história. Não existe um passado completamente revelado, apenas uma série de ideias de passado, algumas bem complexas, outras fragmentadas, em forma de vestígios. Para Walter Benjamin, "articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo".

Destacar certas cenas do passado é um modo de construir história. Encadear essas cenas numa narrativa plausível é outro. Isso implica, como disse antes, determinar um ponto de vista hegemônico sobre o que pode ter acontecido e sobre como aconteceu. Por conta disso, um número incontável de outras histórias é varrido para debaixo do tapete. Histórias menores, às vezes menos relevantes; porém muitas vezes são histórias incômodas, que alguns querem esquecidas, fazendo triunfar o ponto de vista dos colonizadores. Como Benjamin alerta, a história nunca é contada pelos colonizados. Daí sua célebre conclusão de que "nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie". Daí também a sua proposta de escovar a história a contrapelo, buscando dar luz àqueles pontos de vista abandonados na escuridão do tempo. Revisitar, desconfiar, pesquisar e reescrever a história é estabelecer uma relação sincera com nós mesmos. É também assim que nos tornamos contemporâneos de nossos ancestrais, dos antigos feitos da humanidade e de tudo aquilo que nos constitui.

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Foi com objetivo de exercitar um pouco esse pensamento crítico que, junto com alunos de pós-graduação em filosofia da USP, li as cartas enviadas por Vincent Van Gogh a seu irmão Théo; reunidas, selecionadas e publicadas pela esposa deste após a morte dos dois. Para nossa surpresa, o Van Gogh das cartas é diferente, em muitos aspectos, daquele conhecido pelo senso comum – o pintor louco, transbordante de emoções, que gostava de girassóis e que decepou a própria orelha.

Ao término da leitura, da comparação entre pelo menos quatro traduções e dos ricos debates que tivemos, ainda acredito que o sujeito do texto teve seus momentos de loucura, era um grande apaixonado pela vida simples na natureza, pintou uma série de girassóis e usou uma navalha para cortar a própria orelha. Os escritos que restaram nos autorizam supor isso tudo, com certa margem de erro interpretativo.

Porém não devemos confundir o autor das cartas com o homem Van Gogh, o qual viveu, pintou e morreu mais de um século atrás. Enquanto o primeiro é acessível e concreto (sujeito feito de texto), o segundo não passa de uma abstração, da qual podemos somente apreciar pinturas e fantasiar a respeito da sua existência.

Com isso em mente, passamos às cartas, que são reveladoras. Elas apresentam, por exemplo, um homem culto, nascido numa família com boas condições, que o possibilitou visitar museus importante da Europa e formar um profundo senso crítico em relação à história da arte. Um homem que demorou quase trinta anos para decidir pela carreira artística. Que, ao invés de grande revolucionário, preocupava-se com a tradição da pintura. Ao invés de apaixonado irracional, foi um pesquisador intenso e convicto, que não abandonou seus princípios e, por conta disso, permaneceu miserável durante toda a vida, sustentado pelos 50 francos que o irmão eventualmente anexava às cartas. Um sujeito cuja doença parece oriunda dos graves problemas de estômago causados pela fome, pela vida rústica e solitária; não uma maluquice estereotipada.

Além disso, impressiona sua consciência político-social, que o impelia a compartilhar seus parcos bens e a imprimir nas telas a força dos trabalhadores anônimos – mineiros, tecelões e lavradores –, cujo valor fora ignorado durante séculos de produção artística. Van Gogh não se considerava um pintor de girassóis, mas um pintor de camponeses. Lutou para dar lugar na arte a essas existências menores e menosprezadas, que permaneceram debaixo do tapete dos nobres e clérigos retratados com frequência entediante ao longo da história ocidental.

Não cabe comentar aqui as 652 cartas, assim fica minha sugestão de leitura a quem se interessar. No lugar de produzir uma imagem "eterna" do passado, Benjamin propõe que façamos dele uma experiência singular. Mais do que reproduzir a história de maneira boçal, temos que narrá-la novamente, pois é apenas assim que produzimos e compartilhamos sabedoria. Antes de falar, convém ouvir. Antes de aceitar, temos obrigação de desconfiar. Antes de exercer juízo é prudente pesquisar e nos implicar na questão.

Não bastassem todas as pinturas maravilhosas do artista, o outro Van Gogh, escritor de cartas, deixou esta linda imagem sobre o passar do tempo: "O moinho não existe mais, o vento continua". Assim segue a história, sussurrando notas em nossos ouvidos, sugerindo leituras e interpretações sem entretanto revelar o livro inteiro, que sustentará certo teor de mistério para nos instigar a imaginá-la.

*Pesquisadores disponibilizaram todas as cartas conhecidas de Vincent Van Gogh neste site, confira só (em inglês): vangoghletters.org As imagens que ilustram o texto foram retiradas daí.