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terça-feira, 17 de maio de 2016

A ARTE DO ESQUECIMENTO


Haveria essa exposição em Lethe, um vilarejo incrustado nas montanhas do Nepal, distante dos clichês culturais que engordam sites de viagens, afastado dos circuitos turísticos mais populares de todos os tempos. Uma exposição no Museu de Arte Efêmera de Lethe, com sutis intervenções curatoriais, proposta por uma artista que preferiria não fazer – se possível ela apenas seria, existiria, aconteceria. Pois haveria, distribuídos pela sala expositiva, livros encadernados com papéis vulgares, oriundos de cantos desconhecidos do planeta. Páginas e páginas em branco, imbuídas de narrativas desviantes, numa lógica irracional. Haveria também fragmentos do Mapa absoluto revelado por Borges, produzido por antigos Colégios de Cartógrafos na exata medida do Império que esquadrinhava, coincidindo pontualmente com ele. Perfeição tamanha que o tornou inútil – as ruínas do Mapa acabaram nos desertos do Oeste, habitadas por Animais e Mendigos. Tais fragmentos foram cuidadosamente selecionados para que a sua "linguagem de um fim" aludisse à decadência das utopias modernas.

Faria parte do programa emancipatório do museu cultivar as artes do encontro, da narrativa e do esquecimento. Todos os dias, habitantes de Lethe sentir-se-iam convidados a ler seus particulares livros manuscritos, seus papéis biográficos vulgares; contariam os acontecimentos daquele vilarejo onde nada acontece, como se vê, conforme acreditam as pessoas de fora, cidadãos de lugares onde acontece de tudo, conforme acreditam cegamente.

Chega uma senhora para contar do marido, morto num incidente anos antes, que foi visitá-la logo cedo. Fizeram o desjejum com chá preto, tâmaras e figos, pão seco e coalhada, seus alimentos favoritos. Passaram cerca de duas horas muito agradáveis em companhia um do outro, relembraram amores antigos, confortaram-se. Até o marido pedir licença e retornar à eternidade.

Uma menina contou que o universo seria muito menor do que imaginamos. Foi o que concluíra durante a aula de universidades, quando notou que o homem é a medida de toda a cultura; que só é capaz de ver o que cabe em seus olhos.

O padeiro de Lethe revelou que consertava relógios num continente vizinho, até incerto dia em que o pensamento se adiantou: nada acontecia quando os mecanismos deixavam de funcionar! O Sol e a Lua não se atrasavam. Em tempo, deduziu que seu trabalho tratava de uma ilusão aprisionante. Mudou-se para Lethe, onde faz pão, onde a massa cresce conforme a própria vontade. Às vezes antes da fome, às vezes depois.

Uma cabra baliu que a relva no alto da montanha é mais saborosa. Ao compartilhar tal sentimento, percebeu que, acaso morasse por lá e só provasse daquele sabor, a relva do sopé possivelmente lhe pareceria melhor. Além do mais, no inverno há neve no alto da montanha, ponderou a cabra. Tanta neve quanto não há relva.

Um grupo de velhos amigos cantou uma coletânea de odes ao passado, sobre costumes antepassados, sobre heróis que ninguém mais conhece, cujos grandes feitos parecem hoje pequenos e sem propósito. Alguns velhos não tinham certeza dos versos, mas continuavam a cantar, mesmo sem harmonia, com vozes dissonantes. Cantavam como podiam, num coletivo que jamais desafina. Não se tratava de cultuar o passado, mas de fazê-lo presente conforme ainda ressoasse.

Houve mais, muito mais; realizações sem registro técnico, apenas registros sensíveis. Por vezes sequer havia alguém a ouvir as histórias narradas pelos visitantes do museu. Elas existiam por si mesmas, celebravam o próprio ato da contação. Nenhuma era maior que a outra; não havia como mensurar intensidade, extensão ou relevância. Não havia como contá-las, pois interessava a qualidade mais do que a quantidade. Uma começava antes mesmo que a anterior estivesse finalizada. Essas histórias fizeram a exposição durar enquanto durou. Foram elas que fizeram o museu existir enquanto existiu. Terminadas, se é que terminaram de verdade, a tradição já não estava na linguagem, mas na consistência dos corpos que a carregam como a um fardo.

Da exposição se produziu um catálogo adornado com singelas páginas brancas, posteriormente distribuído a bibliotecas e a influentes intelectuais de todo o mundo. Não há nada escrito na capa, na lombada, no verso, na folha de rosto, no prefácio, no índice, no glossário. Não há texto, tampouco há imagens. Trata-se de um livro impecavelmente branco.

As cópias restam esquecidas, sem catalogação nem carimbo oficial, numa prateleira qualquer. Jamais publicaram resenha a seu respeito. Certos intelectuais sequer retiraram o invólucro. Outras cópias repousam em locais desconhecidos, aguardando o leitor desatento que as encontrará.

No museu, o texto de parede situava o visitante:

Para os antigos gregos, a palavra lethe significava "esquecimento". Seu oposto, alétheia, representaria a verdade, o desvelamento, a base de toda crença e de toda forma de realidade. A verdade é o que permanece. Ou seria o contrário, o que persiste na memória acaba por se fazer verdadeiro para os homens de juízo e boa intenção?

Lethe é também um rio do Hades. Quem bebe das suas águas abandona uma existência, uma cultura, um espaço e um tempo. Esquece quem foi, torna-se porvir. Toda verdade abandonada num processo de assepsia do real, à margem da excessiva humanidade. Livre.

Li a respeito do vilarejo de Lethe um dia desses, em algum lugar. Chega-se a ele através de um imenso rio de águas cristalinas, muito convidativas. Além dele, nada há.

Haveria essa exposição no Museu de Arte Efêmera de Lethe, uma exposição que nunca existiu.

Haveria, no lugar, somente uma inquietação: qual história perdurará?

sexta-feira, 15 de abril de 2016

A ESCRITA CONTRAPRODUTIVA


O que significa escrever nestes tempos de alta tecnologia de comunicação, de imensa produção e consumo? Quando mal terminamos a mensagem e o destinatário já está a ler? Quando o leitor, cada vez mais ansioso, deseja significados e sentidos prontos, bem formatados, fáceis de reconhecer, entender e de concordar com eles? O que significa escrever para além das palavras, dobrando a língua, torcendo a moral? Escrever como ato de resistência e/ou dissidência, a inventar não-lugares? Escrever sem reproduzir discursos prontos, ideologias, preconceitos, verticalidades, pretensas verdades. Uma escrita que seja também ato político; que provoque, pela experiência estética, certa perturbação da ordem, certa reformulação das leituras e dos leitores. Que pode ser delicada; um toque sutil. Não necessariamente uma escrita combativa e muito menos persuasiva; mas sim uma que dissolva, areje, desconstrua; que seja dissonante e dissensual. Qual é o lugar dessa escrita hoje, no país em que vivemos, na situação que enfrentamos?

O escritor que percorre caminho tão inseguro está por fora, não está com nada. Está de parabéns. Seu trabalho não presta, seja ficcional ou não; o que significa que não alimenta o maquinário produtivo deste sistema de dominação e submissão, não dá corda à própria forca. Pois inventar um mundo de palavras implica, ao mesmo tempo, inventar o "mundo real" por meio das palavras.

Que seja descoberto em camadas, cada vez mais fundo; que não dite regras nem explique nada, não estabeleça certo ou errado. Um convite ao diálogo. Que pergunte mais e responda menos, incentivando a vontade de questionar e refletir. Que não subjugue nem menospreze o leitor, mas em vez disso o desloque do conforto da luz na direção das sombras desconhecidas. Que permita a ele, nessa escuridão sem fim, sonhar com horizontes mais encantadores.

Em entrevista ao jornal Rascunho, publicada na edição de fevereiro deste ano, Gonçalo M. Tavares fala da protagonista de seu romance Uma menina está perdida no seu século à procura do pai. Chama-se Hanna e é portadora da síndrome de Down. Tida como frágil pelos demais personagens, revela uma potência inesperada. O autor explica: "Essa ideia de que a fraqueza pode gerar novos acontecimentos me parece importante. Nós estamos muito habituados a pensar que é a força que gera acontecimentos, que a força é que faz as coisas, e o que vemos em muitos episódios do livro é que a fraqueza potencializa situações, que a fraqueza e a fragilidade de Hanna é que mudam muitas vezes as condições". Gonçalo notou esse movimento entre os portadores da síndrome com quem trabalha há vários anos e fez dele literatura. Em vez de inferiorizá-los num dramalhão, ele reverte a passividade costumeira e dá a ver seus conflitos.

Luiz Ruffato pensa de modo similar. Acusado de ser "difícil", portanto um "escritor para intelectuais", ele rebate com uma aula de política nada assistencialista: "Esta posição pressupõe que se o outro é um proletário, então ele é imbecil, ele só vai conseguir ler um texto ordenado de forma básica. (...) O mundo que eu quero é o mundo em que as pessoas tenham condições de ler qualquer coisa. (...) Aquela linguagem é abertura e não fechamento. Se faço um livro em que falo de favela, usando linguagem absolutamente pobre e falando de violência de uma maneira absolutamente pobre, que graça tem? Qual o sentido de reforçar, com a minha literatura, um pretenso papel de inferioridade do outro?"

Se a política se define como experiência de linguagem e o nosso ser político se forma em atos de linguagem – conforme Marcia Tiburi explica no livro Como conversar com um fascista –, impor ideias ao escrever denota autoritarismo. Pois a língua é um lugar de poder. Cujo exercício autoritário se dá no discurso que nega ou desautoriza o outro em prol da verdade do autor. Ao mesmo tempo, é pela palavra que as pessoas vulneráveis ou fragilizadas podem se empoderar e fazer corpo político – então devemos abrir ouvidos àquelas vozes e nos esforçar para que, ao falarem, adquiram sua emancipação.


Como criar estratégias que abram o texto à experiência de leitura, ao invés de fechá-lo num sistema pré-concebido que somente reproduz a lógica do entretenimento? Que ampliem o vocabulário e, com ele, os limites da língua, tanto quanto o nosso entendimento sobre o outro? Esse é o desafio que rompe com o banal e apresenta a possibilidade de uma experiência estética. Olhar atentamente para tal questão resulta em escritores melhores, textos melhores, leitores melhores e, afinal, um mundo melhor. Esse sistema de retroalimentação opera por instabilidade. Porque é somente assim que podemos transformar o ser humano a tempo de evitar o colapso.

Precisamos criar um país de leitores. Lemos pouco e lemos mal. Cidades sem bibliotecas públicas são inconcebíveis. Escolas sem bibliotecas idem. O projeto social que fará um Brasil inteligente, propositivo, autocrítico é a implantação de uma rede de bibliotecas ativas, com bom acervo, bons profissionais e boa programação cultural. Se não é este governo autoritário e manipulador, seduzido pelo poder, que promoverá tamanha transformação, cabe aos escritores, às editoras, aos pais, alunos e professores, às associações civis e, no limite, à sociedade em geral exercer a tarefa.

A boa escrita desmancha realidades para que possamos fantasiar outras mais interessantes. Para que sentimentos ganhem forma. O bom texto não é estático nem preso ao seu tempo; é um fluxo de forças que percorre culturas; é a energia e também o alicerce para humanidades mais conscientes de si, dos seus problemas e soluções possíveis. É o único caminho? Não. Mas é ainda um caminho. À margem da via excludente, fria e agressiva da produção capitalista, preocupada apenas com desempenhos do mercado. A escrita necessária vai à contramão: prefere transitar pela presença, pela sensibilidade, pelo conhecimento, pela desconfiança e pelo diálogo. Prefere inventar o caminho enquanto transita por ele. Um caminho de ética e poética.


Obs.: As imagens que compõem este texto são excertos do Caderno de Escritos de Janmari, publicado na França em edição fac-símile.

domingo, 10 de abril de 2016

O CÃO


Às vezes eu acordava de madrugada e ia até o quarto de meus pais, querendo dormir com eles. Dizia ter pesadelos, de modo que me deixassem ficar. Nem sempre dava certo, mas tudo bem, custava apenas uma mentirinha e na maioria das vezes, exaustos, eles simplesmente se afastavam para os cantos, abrindo espaço onde eu me encaixava. A cama era pequena, porém suficiente para o meu tamanho.

Houve uma noite em que, no longo corredor que separava nossos quartos, deparei-me com um cachorro de olhos vermelhos e dentes tortos. Ele estava lá e rosnava, impedindo-me de avançar. Era pequeno, porém muito ameaçador. Fiquei paralisado, encarando o animal que brilhava, iluminado pelo luar da claraboia. Pensei em voltar a dormir. Ele anteviu meus movimentos e saltou para o ataque. Gritei.

Minha mãe abriu a porta do quarto na mesma hora, perguntando por instinto o que tinha acontecido. Meu pai saltou atrás dela e ambos se ajoelharam para me olhar nos olhos. Eu soluçava, sem fôlego.

Passado o susto, meus pais admitiram já não acreditar nesses pesadelos. Só me deixaram dormir na cama com eles quando perceberam a dentada profunda em minha canela, sangramento que demorou a estancar.

Passamos a noite seguinte juntos, numa cama de pensão. Voltei àquela casa apenas uma vez, acompanhado da equipe de mudança. Os carregadores estavam apressados e tremiam. Ouvi murmurarem que era por causa do cão. Para mim, estava evidente.

quarta-feira, 30 de março de 2016

IMOLAÇÃO DE SI

“Quando o vi pela primeira vez, meu avô estava numa foto em uma lápide. Eu tinha apenas cinco anos de idade, meu pai me carregou no colo e pediu que eu beijasse o seu retrato” (trecho de A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf).


De onde viemos? Quem somos e por quem somos? O que nos constitui, qual é o nosso estofo? Quanto devemos ao passado, inclusive àquele mais distante, imemorial, cujos pontos de referência se perderam? São questões que a religião tenta iluminar com seus textos sagrados, portanto não é absurdo afirmar que há muito tempo é pela literatura que tentamos desvendar a origem e a essência do ser.

No ensaio intitulado Tradição do imemorável, o filósofo Giorgio Agamben diz que toda transmissão de conhecimento – portanto toda tradição – pressupõe também a transmissão da própria linguagem, e que é por meio dela que o passado chega a nós. Transmitimos, por sua latência, a própria ilatência; alimentamos assim a tradição da transmissibilidade. “Esse legado imemorável, essa transmissão da ilatência constitui a linguagem humana como tal. [...] Por isso a filosofia, que quer dar conta dessa dupla estrutura da tradição e da linguagem humana, apresenta desde o início o conhecimento como preso na dialética memória/esquecimento, ilatência/latência, aletheia/lethe”, explica.

Essa problemática está implícita em A imensidão íntima dos carneiros, embora o romance passe longe daquelas complicadas filosofias. O que Marcelo Maluf fez foi investigar empiricamente o passado da própria família para depois o reinventar num texto leve, simbólico e tocante, que tem algo de fantástico; características antecipadas por Esquece tudo agora, seu livro de contos publicado em 2012.

Finalista do prêmio da APCA e vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, esse primeiro romance do autor trata da relação entre avô e neto, que não se conheceram pessoalmente, dado o falecimento precoce do primeiro. Ainda assim, sua presença é forte ao ponto de convocar uma jornada mística do neto em busca da própria origem; jornada corajosa, pois sua linhagem inteira estaria enraizada no medo. “O medo estava no princípio de tudo”, diz a frase de abertura do livro. “O mesmo medo que hoje ainda vive em mim. Um medo genético passado de pai para filho, de avô para neto”.

O personagem Marcelo Maluf visita o avô em sua infância e juventude, acompanhando seus dramas desde as montanhas do Zahle, no Líbano, até Santa Bárbara d'Oeste, cidade do interior paulistano que o acolheu. O desejo do avô por uma fronteira que barrasse as lembranças trazidas na bagagem se revelou um extenso limiar entre o passado e o presente, do qual ele jamais escapou. Embora a guerra tenha ficado para trás, os horrores persistiram, ocupando outro território da sua experiência, provocando feridas jamais cicatrizadas, por maior que fosse o seu esforço de cauterizá-las na memória.

De humana physiognomonia (1586), de Giambattista della Porta
(ilustração do livro)
O narrador explica: “por todos os filhos, Assaad temia. Por isso não lhes ensinou o árabe, amaldiçoou o Líbano e não lhes contou de sua infância, nem de como Rafiq e Adib foram mortos. Assaad dizia sempre que havia renascido para o mundo dentro do navio cheio de imigrantes que o trouxera para o Brasil. Assaad tem a consciência de que aos filhos negou o seu passado”.

Maluf registra fatos abandonados ao esquecimento e lembranças daquilo que não existiu, ou que não foi conhecido senão por meio de relatos anônimos – cultura ancorada na oralidade, que o autor utiliza como recurso técnico, cujas referências de tempo se perderam e que sobrevivem apenas pela transmissão. Tanto que as vozes do avô e do neto se misturam, abrem mão da identidade, até que o conteúdo da narrativa não pertença mais a ninguém específico, somente à própria história, à voz que não pode calar. O narrador se faz todos ao mesmo tempo em que não é ninguém.

Sem compromisso com o realismo, o autor recria sua própria tradição por meio da literatura. Tampouco se atém à cronologia, o que transforma a narrativa num mergulho livre na memória oceânica, nesse lugar sem começo ou fim estabelecidos, feito apenas de meios.

Como narrar uma história e permanecer fiel à realidade? Como transmitir uma tradição se o próprio linguajar a modifica, traduzindo a experiência em literatura, reinventando a vida no texto? “Penso que Assaad talvez esteja com medo de errar ao narrar o assassinato dos seus irmãos”, diz o neto ao observar as tentativas frustradas do avô de registrar num caderno suas inquietações mais profundas. “Medo de não ser fiel à sua história e que ela se apague, como um sonho que se esquece ao despertar”.

Ao transformar a história da sua família em romance, Marcelo Maluf reafirma que a ficção provém da experiência da vida, portanto toda obra fictícia se baseia em fatos reais, não somente aquela etiquetada dessa maneira com objetivo de realizar certo fetiche dos leitores. Todo livro desse gênero tem algo de biografia. Se a matéria-prima da escrita é a vida, a literatura apresenta sempre uma realidade, ainda que mais ou menos misturada à imaginação. Sua “verdade real” é uma utopia. Temos apenas perspectivas ficcionais sobre uma possível ideia de realidade. Tais fronteiras são quase sempre indiscerníveis.

Em A imensidão íntima dos carneiros, Marcelo Maluf se apropriou daquele artifício para expandir a trajetória de sua história pessoal à apreensão universal. Não se trata de um significado particular: é um romance sobre medo, violência, tradição, memória e esquecimento, razão e sensibilidade, divino e profano, mitos e fatos. Questões fundamentais da existência humana, dispostas num livro que pode ser lido de maneiras variadas; desde a trajetória de um libanês refugiado no Brasil, que jamais conseguiu se livrar dos horrores da guerra, à reflexão sobre o fazer literário e sua relação com a experiência cotidiana, com as vivências do autor e a potência de diálogo delas com o outro.

Diz o protagonista: “eu preciso que as suas palavras venham ao meu encontro. Eu preciso devorar o passado para não ser por ele consumido. Dentro de mim, meu avô, também habita um carneiro”.

Em vez de contar sua história pessoal, a seu modo Marcelo Maluf conta uma história de todos nós. Sacrifica a si próprio como a um carneiro. Sacrifica suas lembranças, sua genealogia e sua identidade para dar sentido a uma existência maior, partilhada num banquete por todos os leitores que a desejarem. Faz isso em nome da literatura.


A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf
Editora Reformatório, 2015.

Trechos:

"Uma estrela cadente é um segredo que se guarda para sempre nos olhos, pois eles contemplaram o último sopro de uma luz". Essa frase esteve presente na família como uma máxima que repetíamos todas as vezes que víamos uma estrela cadente. "Quem foi mesmo que disse isso?", perguntávamos uns aos outros. Esquecíamo-nos da autoria. Essas palavras tinham o mistério necessário para que se transformassem em uma citação recorrente. (p. 31-32)

Passei horas em frente ao seu túmulo, tentando compreender que jamais tornaria a ver o seu corpo novamente, que ele estaria ali por algum tempo se decompondo e que sua imagem iria aos poucos se tornar a minha memória. Eu teria dele as impressões que, a partir daquele momento, comecei a reinventar para mim. Como nossas vidas juntas e os nossos momentos bons e ruins. Tudo seria transformado em experiência que não sei mais o que realmente aconteceu ou o que eu hoje acredito ter acontecido, ou mesmo tenha inventado. (p. 104)

O berro de um carneiro é a sua imensidão íntima, doada em forma de som para o mundo. Quando um carneiro berra, ele expressa a sua angústia, raiva, medo ou alegria. O berro de um carneiro é a maneira dele de se comunicar com Deus. O cristo berrou: "Pai, por que me abandonaste?" (p. 113)

O autor:

Marcelo Maluf nasceu em Santa Bárbaro d'Oeste, interior de São Paulo, em 1974. É músico e mestre em artes pela Unesp. Autor do livro de contos Esquece tudo agora (2012) e do infantil As mil e uma histórias de Manuela (2013), entre outros. A imensidão íntima dos carneiros é seu primeiro romance. Vive em São Paulo desde 1999.

quarta-feira, 23 de março de 2016

ORGULHO FERIDO


O C-47 que eu pilotava foi interceptado com a comporta aberta, a 37ª infantaria paraquedista saltando para trás das linhas inimigas, ponto-chave na reconquista do litoral norte francês.

– O que você está fazendo?

Não precisei tirar os olhos dos caças que perfuraram a fuselagem; eu reconhecia a voz de vovô pelo sotaque alemão, que meu pai não herdara.

– Brincando de guerra! –, respondi.

– De quem ganhou esse aviãozinho? –, quis saber ele. Nenhum detalhe escapava à revista.

– Do seu Vittorio.

Distração é morte certa, soldado! A missão foi retomada assim que ouvi o clique da fechadura.

Dias depois, encontrei outra miniatura estacionada no aeroporto, sobre a cômoda de meu quarto, lado a lado com o C-47. Havia também um bilhete de vovô, que dizia apenas: "Pilote este Junker 52 da Luftwaffe. É melhor que seu yank".

segunda-feira, 21 de março de 2016

O TEMPO DE CADA UM

Relógio de sol em Tiradentes, Minas Gerais

Penso no meu primeiro relógio "de verdade", que já não tinha pulseira de plástico nem personagem da Disney no mostrador. Presente de minha avó. Não me recordo com exatidão a idade. Dez? Doze anos no máximo. Usava-o todos os dias em todos os lugares, quer dizer, de segunda a sexta-feira na escola, fim de semana em casa de parentes. O relógio escorregava de cima a baixo em meu pulso magrelo. O tempo que marcava não condizia com o meu. Até o dia em que matei aula para jogar fliperama no boteco. Tinha acabado de descobrir essas possibilidades. Cedinho, fazia frio, estávamos apenas eu e os bêbados mais dedicados. Enquanto jogava, outro garoto se aproximou, ficou olhando. Quando apenas ele olhava, puxou do bolso uma faca e levou embora meu relógio. A frágil ingenuidade que me restava acabou ferida de morte. Sem festa nem parabéns, naquela hora abriram para mim as portas da vida adulta. Fui empurrado para dentro, passaram a chave logo depois. Ninguém notou nada diferente, nenhum movimento suspeito. Vivo desde então desorientado, incerto, inseguro; sem saber direito quanto tempo me resta.

sábado, 19 de março de 2016

MÃE É AMOR

VERSÃO1: Minha mãe é amor. Minha mãe é amor quando cozinha. Quando jogo bola dentro de casa enquanto ela pica cebolas. Quando jogo bola dentro de casa contra a sua vontade, quando a desobedeço. Quando quebro seu vaso de orquídeas favorito. Minha mãe é amor quando me surpreende ao lado do vaso, em cacos, paralisado. A faca ainda na mão. O cheiro ácido das cebolas. Amor que explode de raiva, berra maldições, agarra a bola e a apunhala na minha frente. A sangue frio. Meus olhos arregalados se enchem de lágrimas, é o único movimento de que sou capaz. Sem ar, tenho o vazio dentro de mim. Reajo assim àquela violência jamais sofrida. É amor de mãe que a faz paralisar também, que solta a faca no chão. É seu amor, somente ele, que a traz para chorar junto comigo.

VERSÃO 2: Eu queria ficar por perto enquanto minha mãe cozinhava. Ela me mandava ao quintal, eu insistia com a bola dentro de casa. Ela berrava sem largar a faca nem a cebola. Eu chutava a bola. Corria, batia nos móveis, quicava nas paredes. Continuei até atingir seu vaso de orquídeas favorito. Eu não tinha ido ao quintal, agora sequer podia dar um passo. Minha mãe sim, deu todos os passos num só. Chegou transtornada. Era outra pessoa, alguém que eu desconhecia. Tudo mudado, menos a faca, ainda à mão. Minha mãe nunca me batia, era uma santa. Naquele dia ela atirou a cebola no chão, agarrou a bola e a apunhalou sem piedade. Eu era apenas olhos, arregalados; jamais me moveria de novo. Chorar era tudo o que me restava. Não pela bola, mas pela mãe, que não era a minha, não podia ser. Chorei tormentas que lavaram sua maldição. Até ela voltar ao que era, aquela mãe amorosa que me envolveu e chorou comigo. Que eu queria para sempre por perto.

quinta-feira, 17 de março de 2016

DESRAZÃO

Que me desculpem os pragmáticos, não acredito em função da arte. Se me perguntarem para que ela serve, respondo com convicção: para nada. Ela não pertence a esse registro típico do capital nem da razão esclarecida; a arte como produto vale somente para colecionadores e como ganha-pão dos artistas e donos de galeria. Se você não é nenhum dos três, usufrua dessa liberdade. Pois a arte pode se apresentar como produto, mas não é o produto em si; é aquilo que se abstrai dele. Você pode pendurar um quadro na parede, encher a biblioteca de livros, convidar amigos para uma sessão de cinema ou de teatro; pode pagar por isso tudo e acabar sem nada. Quantos colecionadores conheci que possuíam apenas dinheiro transmutado em pintura!

O valor da arte, se é que devemos usar esse termo, está na experiência que ela proporciona, ou seja, está na sua relação com as pessoas. Não podemos dizer que uma obra é melhor do que outra sem determinar o sujeito: essa é melhor para você, esta conversa melhor com as minhas questões, aquela os toca profundamente. Colocadas na balança, todas pesam o mesmo; quer dizer, não pesam nada. Não se consome arte a quilo.

Por outro lado, quanto vale a emoção de encontrar uma obra que lhe desconstrói e apresenta outra forma de pensar, fazer, olhar, existir? Que permite a você reorganizar sua subjetividade? A experiência tem efeito alucinógeno. Uma informação se conecta a outra, produz novos sentidos, apresenta uma realidade que estava ali o tempo inteiro e que você não percebia. Isso é magnífico. Descobre-se outro eu, que chega tanto pela razão quanto pela emoção. Essa é a potência transformadora do conhecimento pela arte.

O nascimento de Vênus (cerca de 1484), de Sandro Botticelli

Quando estive na Galleria degli Uffizi, deparei-me com O nascimento de Vênus, de Botticelli, um clássico renascentista. Eu perambulava pelas salas do museu até que, de repente, estanquei diante da pintura; linda, estonteante, muito maior do que eu imaginava a partir das reproduções nos livros. Junto me veio uma onda de sentimentos, que só então ganharam corpo. Eu estava na Itália, pisando o solo de meus antepassados e de muita gente que admirava. Eu realizava um sonho. Via com meus próprios olhos séculos de história espalhados por todos os cantos e me sentia transbordante. Aquilo tomou uma dimensão que eu não podia controlar e tampouco queria. O que pude fazer foi chorar.

Quanto vale essa experiência? Nada. Não há dinheiro que pague, não se mede isso de jeito nenhum. A pintura pode atingir centenas de milhões de dólares, caso colocada à venda. Para mim, não vale nada. Minha relação com ela é imensurável, incomparável, insubstituível; sem valor de troca nem de uso.

Enquanto soluçava diante da Vênus, uma porção de turistas passava, olhava, apontava um detalhe aqui e outro acolá, fazia comentários em sua língua estrangeira, prosseguia a visita. Sabe qual é o valor daquela pintura para eles? Eu não sei. Mas tenho certeza de que cada um contaria algo diferente, se fosse questionado; algo banal ou impressionante, conforme seu interesse.

Muitos ainda não se deram conta de que a arte tem essa potência de nos deslocar do lugar comum para outra realidade e para outro regime de relação com as coisas. É um privilégio que poucos conseguem realizar. Mudar a chave, experimentar diferentes pontos de vista, aproximar-se do outro, recusar absolutismos e permitir a si mesmo experiências transformadoras. Nestes tempos de crises, isso tem uma importância vital.

A arte oferece a possibilidade de nos afastar dos excessos, da lógica maniqueísta, da percepção condicionada pela mídia e pela moral. No lugar do racionalismo, ela convoca o plano sensível, das poéticas, que também é um meio de apreender o mundo, trocar conhecimento e fazer política. Uma produção impactante ou delicada, abrangente ou profunda, quase sempre ignorada em meio a este automatismo que habitamos e que só existe por nós.

É ignorância enquadrar a arte no sistema de valores cotidiano, que estamos cansados de saber como funciona e que, no geral, só produz violência. Você pode tentar fazer isso, não duvido que consiga, porém nada restará no fim senão um número ou uma razão qualquer. Talvez até o sentimento narcisista de que você poderia ter feito melhor.

Mais uma vez, não se trata de fazer melhor. Trata-se, sim, de se propor a fazer e fazer de fato, de se colocar à disposição da arte e se permitir transformar. Nem sempre é possível, há trabalhos que simplesmente não conectam. Isso significa que não foram feitos para você neste momento, para este você de hoje que, espero, não é o mesmo de ontem nem de amanhã. Pode ocorrer daqui uns dias, pode ser que jamais seja afetado por eles. Tudo bem, alguma arte haverá de lhe tocar.

Quando julgamos a produção de um artista, falamos de nós mesmos e em nosso próprio nome. Quando muitos concordam que é bom, seja porque vende mais ou porque sensibiliza mais pessoas, é provável que ele entre para algum rol, seja de best sellers, seja a História. A essa altura você já supõe o que tenho a dizer: nos termos da estética, tal seleção não significa que o trabalho é melhor do que os outros, por mais que o mercado e a comoção popular insistam no contrário. Não é melhor nem tem maior serventia.

Ao visitar uma exposição de artes, ao ler um livro, ouvir música ou assistir a um espetáculo de dança, tente saber mais sobre o trabalho daqueles artistas. O que os motiva? O que investigam? O que desejam com a obra?

Tente também dispensar o juízo. Sustente esse lugar do não julgamento, afaste as ideias preconcebidas tanto quanto puder; abra espaço na dureza do cotidiano e experimente. Se não gostar, tente descobrir por quê. Sem receio da explicação, ela não precisa fazer sentido. Se o trabalho não lhe disser nada, paciência, acontece. Não há necessariamente nada de errado com ele ou com você. Pode ser que a execução deixou a desejar, pode ser que você não estivesse num dia propício, pode ser que um não interesse ao outro. Tudo bem. Haverá outras oportunidades de viver com arte, se você deixar.