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terça-feira, 16 de agosto de 2016

EU, TU, NÓS

A desvantagem de amar é também a sua vantagem
desgostar e gostar o tempo inteiro, atar
nós de tempos em tempos, sem tempo
ao infinito

Ficar a sentir e a dessentir
sem temer, sem ter
certeza alguma senão a momentânea
absoluta até não ser mais
nada

O que é sólido desmancha
no ar a totalidade se fragmenta, esvai
a tradição não vai além
das nossas reminiscências

O que resta? O que vem?
Quem caminha lá adiante? Alto!
Identifique-se! Seja lá quem for
ignora o aviso e é
alvejado e cai e sangra e morre
como qualquer ser
indigente, eu, tu, nós

Não se deve falar de amor em termos de
vantagem, não tem significado algum
traz apenas sentimento
nada em troca
afoga

Outra coisa, o amor
ainda desconhecida por ora
apenas gostamos e desgostamos
em nossa inocência matamos
quando convém
desatamos nós, tu, eu

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

CONSCIÊNCIA DO CORPO

A apresentar o garoto Jorge Alberto Gomes, de 14 anos, que acendeu a pira olímpica na praça da Candelária, a repórter mencionou que ele “estuda atletismo” na Vila Olímpica da Mangueira. Achei bonita essa expressão: estudar atletismo. Porque é comum usar os verbos “treinar” e “fazer” quando falamos de esporte; enquanto “estudar” acaba associado a outras atividades de conhecimento, a maioria delas mais valorizadas, como se pudesse haver grau hierárquico nesse quesito. Pois existe um conhecimento que é próprio do esporte, que vai além do aprendizado técnico e da prática exaustiva, ou seja, vai além de treinar e fazer. É uma inteligência especial que se produz através do corpo – pelo desenvolvimento físico, pelo aguçamento da sensibilidade e pelo atravessamento do mundo no corpo. Uma inteligência tão difícil de localizar que por vezes acaba desconhecida, menosprezada e raramente experimentada nesta atualidade em que os corpos são quase sempre objetos de violência, suportes de cabeça ou prolongamento de máquinas. Onde o esporte, em geral, é considerado apenas instrumento de saúde, fábrica de beleza ou mero entretenimento.

Eu mesmo não sou nada esportista, sinto-me pouco afeito à prática e muito menos ao seu aperfeiçoamento. Minhas atividades físicas se resumem a caminhadas e bicicletadas eventuais, despretensiosas, que me fazem sair do escritório, habitar um pouco a cidade e chegar a um destino específico. Porém faz alguns anos que me aproximei das interfaces entre arte e clínica, que encontram recursos para a intervenção terapêutica nas atividades de sensibilização e de linguagem corporal. Isso me leva a acreditar que o esporte é um poderoso meio de expressão dessa humanidade encarnada, que não existe somente por causa da razão esclarecida, mas também porque está implicada num ser sensível, ou seja, num corpo que sente o mundo ao mesmo tempo em que age no mundo. Um ser que existe não apenas porque pensa logicamente, como afirmou Descartes, mas porque incorpora pensamentos, afetos e sensações para assim gerar uma existência singular, que percorre outras estradas na interioridade e exterioridade da vida, tanto no âmbito particular quando no coletivo.

O filósofo José Gil fala de uma “consciência do corpo” que se encontra além do simples reconhecimento de que o corpo existe, possui forma e pode sentir dor ou prazer. Seria a impregnação da consciência pelo corpo; uma instância de recuperação das forças do mundo e de devir as suas formas, intensidades e sentidos. Não falaríamos mais de separação do físico e do psíquico, como se corpo e mente fossem entidades alheias; carne e consciência seriam, em sua ambiguidade, manifestação de uma outra inteligência.

Segundo Gil, a percepção do mundo não provém do interior nem do exterior do corpo, mas desse lugar fronteiriço em que ambos se sobrepõem. Um conhecimento formado na ambiguidade do dentro e do fora, que exige um importante trabalho de abertura do corpo aos afetos. Em suas palavras, “é todo o corpo que se transforma. O seu em-redor torna-se espaço, confunde-se com um espaço de intensidades, de osmose potencial, de visões e tatos à distância, espaço pronto a entrar em conexão com intensidades de outros corpos. (...) Abrir o corpo é, antes de mais nada, construir o espaço paradoxal, não empírico, do em-redor do corpo próprio. (...) Um espaço-à-espera de se conectar com outros corpos, que se abrem por sua vez, formando ou não cadeias sem fim. (...) O espaço e o corpo-consciência são afetivos porque neles se formam turbilhões poderosos de vida”.

Como podemos nutrir esse espaço relacional ao redor de nós mesmos, de nossos corpos, de nossas vidas? Além da simples prática do esporte, devemos investir no seu estudo. De modo que seja possível apurar essa consciência do corpo e o abrir aos afetos que nos convocam o tempo inteiro. Estudar o esporte para que possamos, por meio da consciência que ele gera, experimentar os problemas do mundo numa outra perspectiva, com outros valores e sentidos.

Isso não significa transformar o esporte num objeto de análise acadêmica, como as faculdades de educação física ou mesmo a medicina e suas ramificações fazem há muito tempo. Significa perseguir e aguçar aquele conhecimento que só é possível através da atividade corporal enquanto linguagem; ou seja, da consciência, da sensibilização e da expressão que se desenvolvem através do corpo do esportista.

Nos últimos séculos a humanidade vem ignorando enfaticamente diversas instâncias de conhecimento em prol de uma única, hegemônica, que é a da razão, da lógica, das justificativas de ordem pragmática. Acho vital, para nossa sobrevivência diante da hostilidade capitalista que nos oprime cotidianamente – e que é vivida no corpo e pelo corpo –, que providenciemos lugar onde outras inteligências possam se desenvolver e onde elas se complementem. Onde possamos partilhar o que existe de sensível no mundo e, daí, colher uma sabedoria mais adensada e intensificada.

Costumo defender que a arte é um desses lugares de sobrevivência. Outro com certeza é o esporte. Mais do que a prática de ambos, devemos lutar pela consciência que eles podem aprimorar. Lutar para que a educação pelo esporte seja tão relevante quanto pela matemática, pela história, pela biologia etc. Uma sociedade com tamanha defasagem educacional como esta em que vivemos jamais será justa com os seus desejos e as suas potências. Por ora, como bem sabemos, ela só condiz com o próprio sistema que a oprime.

Quem sabe os jogos olímpicos, apesar de toda a problemática política, econômica e social que trouxeram ao Brasil, não provoquem também algum contágio em relação ao esporte? Que esse contágio seja grave o suficiente para irromperem regimes de consciência mais complexos, que deem conta de apreender a situação do país, unir as pessoas e transformar o sistema político-social de forma mais efetiva, onde os demais modos de consciência e de conhecimento têm falhado dia após dia, ato após ato.

domingo, 10 de julho de 2016

ESTADO DE CAOS

Um conforto perigoso habita a opinião benquista. Pois é cômodo dizer aquilo que os demais querem ouvir, é um alívio ser aplaudido por tamanho consenso; um prazer ainda maior do que ouvir do outro a ideia com a qual concordamos sem tirar nem pôr, com a qual compactuamos, ou seja, selamos um pacto. Obtemos, em ambos os casos, paz de espírito, confiança e tranquilidade na ordem geral das coisas; na qual, confortavelmente, nos enquadramos muito bem.

O que há de perigoso nisso? Sucumbir à regra. "Pois é da opinião que vem a desgraça dos homens", afirmam Deleuze e Guattari na conclusão do livro O que é a filosofia? Para eles, o termo "opinião" se refere àquelas ideias prontas que se encadeiam segundo um mínimo de regras constantes e nos fornecem o sentimento de proteção, semelhança, contiguidade, causalidade e ordem.

A contrapartida seria o caos: o inconstante, o incerto, o desvio, o dissenso, aquilo que não se deixa determinar pelas regras nem pela moral e que produz embates com o instituído. O estado de caos provoca insegurança, conflitos e desordem geral.

Salto no vazio (1960), de Yves Klein
O que pode ser positivo. Porque é no caos que reside a potência transformadora; é somente daquele desconhecido que pode surgir o novo. Segundo Deleuze e Guattari, a filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e mergulhemos no caos. Não para nos afogar nele, mas para que possamos traçar novos planos de imanência.

O artista mergulha no caos à procura de variedades; ele sensibiliza o caos para que dali nasça um ser sensível, para que possamos experimentar novas sensações, novas formas, novas possibilidades de existência.

"Será preciso sempre outros artistas para operar as necessárias destruições", dizem aqueles filósofos. Porque o artista enfrenta o caos e apressa o desregramento, querendo produzir uma sensação que desafia toda opinião pronta, todo clichê – até que a própria destruição vire regra e sua potência de arte esmaeça. Afinal, a arte deve se manter em movimento, continuar sempre a se reinventar. Para assim se manter viva.

A arte viva provoca inquietação, ainda que sutil. Por mais encantadora que seja, por mais agradável e benquista, a arte viva não é mera opinião – ela opera, justamente, um desgaste das regras, das instituições, das formas de existência enrijecidas. Enquanto que, por outro lado, a arte livre de conflitos perde sua conexão com o caos e se cristaliza num pastiche.

Ignorar o caos leva invariavelmente às atitudes fascistas. Que implicam negar a vivacidade, a potência e a diferença do outro. De maneira a impor a ele como regra a própria opinião, os próprios modos de ver, pensar e fazer do fascista, como se fossem "os corretos", como se não pudesse haver outros. Nesse sentido, o fascismo é a impossibilidade da vida comunitária, pois nega a existência dos demais seres.

O mito fundador desse termo remete à velha Itália de Mussolini, quase um século atrás, porém seu uso permanece em alta. Sim, existe esse outro perigo que nos contagia e que habita boa parte das opiniões sobre o fascismo atual: a institucionalização do fascista como um personagem, meio Cunha meio Bolsonaro, que deve ser cassado/caçado a todo custo.

Esse estereótipo, que se encontra sempre no outro, acaba por atrair atenção para si e por ocultar o fascista que nos habita e nos constitui. Que parece inofensivo, apesar da crueldade de suas ideias. Que não se percebe como fascista porque olha apenas para fora. Um comportamento perigoso, comum e banalizado, que Foucault já apontava no prefácio de O anti-Édipo, outro livro de Deleuze e Guattari.

Nesse texto, Foucault sugere um exercício que cabe a nós ininterruptamente, como verdadeiro esforço para o conviver social: atentar, identificar e banir todas as formas de fascismo, não somente as colossais, que nos envolvem e nos esmagam, mas também – e principalmente – as formas miúdas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas. O fascismo que ronda nossos espíritos e nossa conduta, que nos faz gostar do poder, que está incrustado na cultura ao ponto de parecer normal, como uma simples ordem geral das coisas.

Como não agir como fascista, mesmo quando se acredita ser um militante revolucionário?, pergunta o filósofo. Como livrar do fascismo nosso discurso e nossas atitudes, nosso coração e nossos prazeres? Como lutar para que os outros sejam como desejam ser, e não conforme nós acreditamos que devem ser?

Abrindo as portas ao diálogo, acolhendo o diferente, livrando-se da conduta moralista, polarizada entre o bem e o mal, o certo e o errado, o real e o falso. Evitando desqualificar ou repudiar movimentos sociais sem conhecê-los de perto, sem se deixar afetar por suas causas. Deixando de reproduzir os modelos que se quer combater e as suas violências. Preferindo o positivo e o múltiplo ao invés da falta e do uniforme. Liberando a ação política da paranoia totalizante. Lutando com alegria.

O medo constitui uma das mais antigas formas de manipulação. Um povo com medo aceita se submeter às promessas de segurança do governo que anulam direitos e jamais se cumprem por completo. Um povo com medo vive sujeitado a um estado policial, acreditando que somente assim terá paz.

Precisamos vencer o conforto da ordem e mergulhar no caos. Abandonar a lógica sistêmica, os números sem sujeito, os projetos organizados administrativamente, que nunca darão conta de compreender o que é vivo e se transforma a todo instante. Porque o vivo escapa das regras, ao ponto de ser ingenuidade querer enquadrá-lo nos formulários todos com que sonha a nossa vã burocracia. Precisamos mergulhar no caos e traçar, a partir dali, nossas intenções de futuro. Precisamos inventar, poeticamente, o país que queremos ser. É pelo estado de caos, sobretudo, que nos veremos livres deste atual caos de Estado.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

SOBRE AS RUÍNAS DO HOJE

Uma criança constrói um castelo à beira-mar. Um castelo de sonhos, desejos e ilusões. Cuja estrutura de areia não resiste à primeira onda mais forte. A criança tenta protegê-lo, atira-se à frente; pensa que pode, sozinha, conter a catástrofe. Não adianta. Na investida da água, ela e o castelo desmoronam. Então o mar recua, e a criança, com a inocência que lhe é natural, põe-se a construir um novo castelo. No mesmo lugar do anterior, com a mesma forma, a única que conhece. À distância, a onda observa seu esforço.

A criança cresce, o reino ganha a dimensão do real, o lúdico se desfaz. Seus encantos se contaminam pelo excesso de verdade, de lógica e de razão. No paradigma em que vive já não há lugar para o simbólico, o mítico ou a fantasia. Há somente a consciência e a permanência da crise. Ela olha ao redor e percebe todos os castelos arruinados, tentando sobreviver à inércia, levando-se a sério, apesar de tudo. Fundamentados num modo de agir ilusório, que já não condiz com as demandas do presente. Mesmo as instituições novas, que se propõem substituir as precedentes, logo desmoronam, pois são erguidas conforme um modelo falido. Ainda assim os muros se elevam, a desordem interna é mantida e administrada para que o controle da ordem seja mais desejado do que a revolução. O autoritarismo de alguns explora a impotência de outros. As violências produzem novas formas de violência. Invoca-se o medo, assume-se o patético. Que vêm anunciar um final iminente.

Diversos círculos (1926), de Vasily Kandinsky

Até pouco tempo os fragmentos daquela ruína eram inspiração de certo romantismo; agora se transformam na linguagem da decadência. Vestígios de utopias que não se recuperam, exceto pela ilusão de edificar novamente o passado longínquo, um pressuposto desconhecido senão pelo que se conta a seu respeito. Passado a limpo pelas bateias da História.

As energias se exaurem. Entretanto o fim nunca basta em si mesmo. Algo sobra para indicar novo início. Algo larval, que pode gerar forma qualquer de existência. "Não se trata de deplorar essa realidade, mas de constatá-la. Pois talvez se esconda, no fundo desta recusa aparentemente disparatada, um grão de sabedoria no qual podemos adivinhar, em hibernação, o germe de uma experiência futura", diz Giorgio Agamben.

É esse ser qualquer que vem, é dele que precisamos cuidar. Abrir espaço na melancolia, retirar o acúmulo de entulho, inventar lugar algum onde aquela larva possa desenvolver sua potência, seu devir humanidade.

Como? Despojando-se do moralismo, da tradição, das regras do jogo. Tudo para fazer valer o mais importante: o direito aos direitos. Garantir, qualquer seja a comunidade porvir, que ela tenha direito à emancipação que desejar. Que possa partilhar o sensível, afetar-se, transfigurar-se. Que possa e consiga inventar desvios em desconformidade com o estabelecido, o mal ordenado e mal construído. Cuja contestação se formule à parte do senso-comum.

Se o desfazimento é incontornável, ainda podemos criar e sustentar lugares de refúgio, repouso, acolhimento, diálogo, experiência, invenção. Lugares poéticos e provisórios, sutis e delicados; algo heterotópicos, que contradigam todos os demais lugares, como pensava Michel Foucault. Lugares ambíguos, feitos de sonhos localizados na realidade, feitos da mistura de incompatibilidades; onde exista habitat para o dissenso, onde proliferem outras relações com o tempo, onde todo dispositivo fascista seja desarmado pelos artifícios poéticos. Lugar sem lugar, como um barco à deriva no mesmo oceano em que deságua o rio do esquecimento. Um imenso limiar, uma passagem sem limites.

Não cabe defender modelos nem reproduzir discursos esgotados. A ética do contemporâneo está em defender aquilo que vem. Por meio do difícil método da criação sem finalidade nem objetivo, que possibilite essa vinda sem pretendê-la solução, cura ou salvação. Está em preparar o espaço, cuidar das poéticas e políticas do sensível, abri-las ao desconhecido. É preciso coragem para se desapegar das estruturas enrijecidas, sempre de prontidão para confortar a opinião preguiçosa, que não flexiona, não reflete nem dialoga. Também é preciso acreditar naquela existência que está para ser inventada. Uma convicção intensa o bastante, de maneira que esse desconhecido sobreponha o medo que paralisa todos nós. É somente assim que evitaremos sufocar, nos escombros dos nossos ingênuos castelos de areia, o ser que vem. As ruínas estão dadas. A onda continua à espreita.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

fora tudo
do lado de fora
enquanto dentro nada
afunda atrás
de desatar um nós
que nunca existiu
na real
é posta de lado
incipiente
mulher da vida
sem eira
nem beijo

sábado, 4 de junho de 2016

PRÊMIO SESC DE LITERATURA: MENÇÃO HONROSA

Pintura nº. 125, de Felipe Góes
Este é um post para expressar a imensa felicidade que a notícia me trouxe: meu romance Bem diante dos meus olhos foi um dos três premiados no Prêmio Sesc de Literatura deste ano, entre os 794 inscritos em todo o Brasil. Um reconhecimento muito importante, eu nem imaginava! Estou tremendo desde que recebi o telefonema com a informação.

O mesmo livro já tinha recebido outra menção honrosa, no Projeto USP Nascente de 2015. E continua inédito! Quem sabe alguma editora não se anima a publicá-lo?

Tem mais informações sobre a premiação aqui: Resultado do Prêmio Sesc de Literatura 2016


Se você ficou curioso, cá está o trecho inicial:

BEM DIANTE DOS MEUS OLHOS

Papai morreu hoje. Talvez ontem, não sei dizer. O velório acontece ao redor. Estou sozinho num canto há... Sei lá quanto tempo. A bateria do celular morreu também, não sei que horas são. Também não importa, faz muito tempo. Muito tempo que estou aqui. Não conheço ninguém, me sinto um estrangeiro, perdido e ignorado. Bastante gente compareceu, por incrível que pareça. Bem mais do que eu imaginava. Papai fez vários amigos nos últimos anos, não tive como conhecer todos.
      Ora, quem eu quero enganar? Não conheço nenhum desses velhinhos que entram de cabeça baixa e vão em silêncio até o caixão dar uma olhada no que o futuro lhes reserva. Futuro breve, pessoal.

      Encaram-me com um misto de pena e indagação, escolhem uma cadeira e ficam parados ali, alguns sustentando as mãos na bengala, bem velhinhos mesmo, de olhos fechados, rezando, talvez cochilando em silêncio. Um silêncio fúnebre, se me permite o trocadilho.

O silêncio é o problema. Ao contrário do que eu esperava, saber que jamais ouvirei a voz de papai novamente é triste e um pouco angustiante. Pelo jeito, hoje é um dia de surpresas. Estou decepcionado.

Os amigos de papai me observam, porém não me reconhecem. Talvez a maioria nem saiba que eu existo. Ou que estou vivo. Talvez sequer ouviram falar de mim. Devem estar surpresos também – não esperavam alguém tão jovem? Sim, eles têm dúvidas se sou quem imaginam, está na cara.

      Isso é tudo suposição, claro. Ninguém veio me perguntar nada. Ninguém veio dar os pêsames – é assim que se diz? Dar os pêsames? É a terna indiferença do mundo. Ainda bem. Não sou mais o homem das respostas. Não quero ser, ao menos por enquanto. Estou feliz assim. No fim das contas, é melhor o silêncio.

Bebo café com leite morno, quase frio. É horrível, a pior temperatura. É quando eu sinto mais o gosto. Detesto café com leite. Nunca gostei, desde criança. Papai dizia que era bom tomar café com leite antes da escola e molhava meu pão com manteiga na xícara. Fazia para me provocar. Queria ver minha cara de indignação. Aquilo era o fim. Não bastava ter que beber o café, ainda estragava o pão, tudo ficava com gosto ruim de café com leite. Morno, quase frio. Papai sabia ser desagradável. Não estou dizendo que sabia ser desagradável quando queria. Ele era assim o tempo todo. Fazia questão. Este café, agora, só bebo porque foi trazido por uma senhora do asilo a quem papai contava tudo, segundo o que ela me disse. É para enganar o estômago, você deve estar com fome. Ajuda a aliviar a cabeça. Faço o esforço. Enquanto penso, o café esfria. Sempre um dilema.

É como se eu conhecesse você desde sempre – ela me abraça meio sem jeito por causa do bule e dos copinhos de plástico, evitando derramar tudo em cima de mim, e prossegue na tarefa, dedicada. Quase acredito em suas palavras.
      Sei tudo sobre você, a senhora me disse. Seu pai contou. Observo. Talvez tenha sido a última namorada de papai. Tem seu charme, admito. Gosto das feições entristecidas, elas me atraem, são sinais de gente vivida, de experiência verdadeira. É visível que se mantém ocupada para disfarçar a dor da perda, servindo café com leite aos presentes. Para pensar em outra coisa. Ajuda a aliviar a cabeça, ela me disse. Ou porque sente que é sua obrigação, já que foi a última companheira do morto. Um tipo de obrigação conjugal implícita, uma obrigação moral. Parece uma senhora simpática, dessas que se divertem com qualquer bobeira, qualquer bate-papo, um carteado à toa no meio da tarde. Dessas que se contentam com novela, biscoitos, tricô e café com leite. Talvez um pedaço de bolo recém-tirado do forno, sim, uns minutinhos atrás, ainda quente. A manteiga escorre pelo bolo, libera aquele perfume sedutor de colesterol. Papai tinha dom para encontrar mulheres decentes, considerando o exemplo que era minha mãe. Os opostos se atraem? Talvez sim, infelizmente. É difícil demais livrar-se do seu oposto, a imantação é forte demais. Conheço bem o caso. Ao menos uma coisa ele fazia direito, sem motivo para reprimendas. Encontrar alguém que o aturasse.

      Ela diz que me reconheceu pela maneira como papai me descrevia. Não seria difícil: neste lugar sou o único não senil. Ainda. Sem foto, só descrição mesmo. Percebo isso nas entrelinhas. Eu sou bom, um menino de bom coração, que encara a vida com seriedade e sabe resolver as coisas com a rigidez necessária, usando a cabeça. Um bom menino? Papai deve ter me descrito como um crápula, essa é que é a verdade. A senhorinha mal consegue disfarçar. Ou com indiferença, talvez papai tenha falado de mim en passant, seria bem típico, apenas duas ou três frases quaisquer, meio desconexas. Sim, a velhinha só está exercendo sua simpatia nata, é muito boa nisso. Tanto que nem me dá muita bola. Deve me achar um bastardo sem coração. Vou superar, ela diz. Vou superar isso tudo. É muito boa mesmo. Concedo a ela aplausos imaginários.

A verdade – ou o verdadeiro? – não pode ser verossímil, diz uma máxima clássica, se não me engano. A verdade ou o verdadeiro? Não me lembro ao certo. Papai vivia dizendo esse tipo de bobagem, a que eu só fingia prestar atenção. Ok, não dá para saber até onde vai a verdade. É bom todo mundo saber disso, embora quase ninguém se importe. As pessoas gostam de ser enganadas, compactuam na maioria das vezes, tenho milhões de exemplos, quer ouvir? Que seja. Nunca dá para saber. Se a mentira tem perna curta, a verdade nem perna tem. Ela rasteja. Sim, a verdade rasteja. Tenho milhões de exemplos que não vêm ao caso, não agora. Prefiro não mexer com ela, prefiro não mexer com seu veneno fatal. Por quê? É simples. Não quero acabar como papai.

Se ele falava de mim, esqueceu de mencionar minha aversão a café com leite. Deve ter havido oportunidade entre uma lorota e outra, durante o papo furado com que ocupava o próprio tempo e o dos outros. Ah, papai... Eu daria tudo por um café preto forte, sem açúcar. Um levanta defunto, se me permite o sarcasmo. Serviria para animar um pouco esse lugar, afastar o tédio. Talvez também para fazer o tempo caminhar depressa. Está abafado aqui. Queria saber que horas são. A madrugada é inerte. Preciso sair. Será que existe padaria 24h neste fim de mundo? Não sinto fome alguma, não é isso. Só aceitei o café por educação. Não se deve discutir com uma senhora como essa. Não se discute num lugar como este. Isso não se faz.

Quando o cansaço me surpreende, vejo de relance um velho amigo de papai. Abro os olhos e ele está ao meu lado. Um conhecido, afinal. Não exatamente uma presença reconfortante, mas... Um amigo de infância, desses a quem ele se apegava e mantinha por toda a vida sem ter razão alguma para fazê-lo. Jamais compreendi uma só atitude sua, e ele sabe disso. Ele sabia. O velho olha o caixão, depois se volta para mim um instante sem dizer nada. Suspira, dá os pêsames com solenidade, abaixa a cabeça, abaixa a voz etc. Consigo controlar uma vontade repentina de sorrir. Gargalhar talvez fosse mais sincero. Abro os olhos uma segunda vez e ele continua ali. Ficamos lado a lado, bebericando e observando. Não tenho assunto para puxar nem quero papo. Saio para respirar, espiar a noite, e ele vem junto sem ser convidado. Parece oferecer apoio. Acho gentil. Fazer o quê?

O silêncio do velório ecoa aqui fora. Céu estrelado, ar estagnado, verão. Calor típico dessas cidadezinhas do interior. Como nas profundezas do inferno. Talvez um sinal? Sorria, vá! É só uma piada. Foi mal, hein, papai? Mal aí, desculpe.

      Que se dane, o tempo está agradável, comparado com o clima dentro da sala, embora eu preferisse um pouco mais frio, com certeza. Um friozinho gostoso, uma manta, um sofá macio. Um tempo desses e eu aqui, num velório. Não passa um único carro na rua, nenhum bêbado ou boêmio, seja qual for a diferença, ninguém aproveita a noite. As luzes cansadas dos postes clareiam em vão. Minhas pálpebras trepidam com elas, abro os olhos e a vista falha. Pressão baixa, será? Odeio calor.

O amigo de papai olha para o fim da rua, depois para o fundo do copo, depois para o fim da rua novamente. Vai longe. Pergunto como estão as coisas e ele responde "bem". A questão retorna, ele quer saber como estou me sentindo. Papo de elevador. É constrangedor. Como é mesmo o nome do sujeito? Sem saber a maneira adequada de responder para não parecer indiferente demais com o morto ou manifestar minha vontade real de sair dali o mais rápido possível, dou de ombros. Desejo voltar para casa o mais rápido possível. O velho balança a cabeça afirmativamente, concordando. Era o que esperava de mim, suponho. Não que eu me importe também. Não estou nem aí para o que ele pensa.

Passados alguns minutos, o velho comenta: – Achei que você não tomava café com leite de jeito nenhum.

(...)

sábado, 28 de maio de 2016

A PARTE DO LEÃO


A Vaca, a Cabra e a paciente Ovelha se associaram um dia com o Leão para gozar de uma vida tranquila, pois as depredações do monstro (como o chamavam pelas costas) as mantinham numa atmosfera de angústia e inquietação da qual dificilmente poderia escapar se não fosse pelas boas.

Com a conhecida habilidade cinegética dos quatro, certa tarde caçaram um ágil Cervo (cuja carne, por falar nisso, repugnava à Vaca, à Cabra e à Ovelha, acostumadas como estavam com as ervas que colhiam) e de acordo com o convênio dividiram o enorme corpo em partes iguais.

Aqui, proferindo em uníssono toda espécie de queixas e juntando ainda a incapacidade de defesa e extrema debilidade, as três se puseram a vociferar de modo acalorado, combinando antecipadamente em ficar também com a parte do Leão, pois, como ensinava a Formiga, queriam guardar alguma coisa para os dias duros do inverno.

Mas desta vez o Leão nem se deu ao trabalho de enumerar as conhecidas razões pelas quais o Cervo pertencia só a ele, e o comeu todo ali mesmo de uma sentada, no meio dos enormes gritos das três, entre os quais se escutava expressões como contrato social, Constituição, direitos humanos e outras coisas igualmente fortes e decisivas.

A ovelha negra e outras fábulas, de Augusto Monterroso

quinta-feira, 26 de maio de 2016

A OVELHA NEGRA


"Em um país distante existiu faz muitos anos uma Ovelha negra.
Foi fuzilada.
Um século depois, o rebanho arrependido lhe levantou uma estátua equestre que ficou muito bem no parque.
Assim, sucessivamente, cada vez que apareciam ovelhas negras eram rapidamente passadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e vulgares pudessem se exercitar também na escultura."

A ovelha negra e outras fábulas, de Augusto Monterroso