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quarta-feira, 14 de agosto de 2013

PINTURAS, PENSAMENTOS

Folhas e flores se espalhavam pela superfície inteira. Era uma cerejeira enorme, rica em detalhes, fiquei bastante tempo observando-a. Um trabalho de nanquim e cores sobre papel, disposto na Pinacoteca do Estado de São Paulo na exposição intitulada Seis Séculos de Pintura Chinesa. De perto, era possível observar os traços do lápis, depois preenchidos com pigmentos coloridos. Um projeto que exigiu semanas, talvez meses, para ser executado. Um bom exemplo da dita sabedoria – e paciência – oriental. Estava claro que, desde o início, o artista tinha consciência do que desejava pintar. É possível que tenha copiado, por observação, alguma planta de seu jardim. Seja como for, ele sabia o que fazer. Dedicou-se, colocou seu talento à prova e obteve, ao fim, uma imagem aproximada daquela suposta a princípio. A obra estava pronta. Um ou dois séculos depois, pendurada na parede do museu, contava sua história para mim.

Chamou-me a atenção porque, naqueles dias, eu estava trabalhando nos textos da mostra Dissolução, de Felipe Góes, inaugurada há pouco no Centro Municipal de Educação Adamastor, em Guarulhos/SP. Para a ocasião, optamos por tratar, justamente, do seu processo criativo, que é bem diverso do observado no retrato da cerejeira. Porque Felipe não parte de uma ideia pré-concebida que deseja traduzir em pintura. Quer dizer, quando se coloca diante da tela em branco, ele não sabe o que vai pintar. Seu pensamento se manifesta por meio do gesto, faz-se e se desfaz a todo instante entre as pinceladas. Sua interioridade se materializa – anseios, arrependimentos, ilusões, satisfações, desapontamentos, alegrias etc. ganham forma com a tinta, ficam implicados na matéria pictórica.

A tela acumula um complexo registro de intenções, das quais temos apenas uma leve suspeita. Indícios das linhas de força, das manchas de expressão e das camadas de sentimento que passam a habitá-la durante o trabalho. Camadas que se sobrepõem e se escondem dos nossos olhos, embora continuem presentes. Horizontes que não conseguimos apreender, ao menos não com exatidão; eles se estendem por trás dos morros, para além dos mares e dos acúmulos de cor... ao infinito. Sempre um novo horizonte após o outro.

Quando uma pintura dessas está terminada? Ao contrário do que vimos com o artista chinês, que podia dar seu projeto por cumprido assim que tivesse diante de si a imagem da planta conforme a previra, a pintura de Felipe Góes é um fluxo de pensamento. A cada instante é uma nova criação. Portanto, aquela forma "final" que se apresenta a nós é, dos embates vividos, somente uma etapa que o artista decidiu preservar.

Pintura 147, de Felipe Góes

No vernissage, alguns amigos observaram que os trabalhos não são assinados. Fiquei pensando se não seria mais uma sugestão do seu suposto "inacabamento".

Não sei. Por ora, só posso dizer que, enquanto selecionava as telas para a exposição, vi a fotografia de uma que evidenciava muito bem o conceito de "pensamento em processo" que queríamos desenvolver. Ela mostrava uma cerca de madeira separando o primeiro plano de uma imensa paisagem difusa, como se um forte nevoeiro impedisse as figuras de se revelarem. Eu quis exibi-la na mesma hora. Até Felipe contar, com certa frustração, que a pintura já não existia, ao menos não daquela forma – após a foto, ele continuou a trabalhar e acabou por "estragá-la".

Foi nesse momento que o título Dissolução me pareceu perfeito para a mostra. Pois, na concepção de um pensamento, muitos outros se fragmentam, diluem, deixam de existir – estão sempre sujeitos a transfigurações positivas ou negativas. Toda verdade é frágil.

Quem se coloca diante da cerejeira chinesa, na Pinacoteca, pode admirar o apuro técnico do artista, deixar-se sensibilizar por sua delicadeza e ler a história acumulada ao longo dos séculos. Por outro lado, quem se coloca diante de uma tela de Felipe Góes é convidado, a partir dela, a criar suas próprias imagens, a inventar histórias e a dar continuidade àquele pensamento em constante devir.

Nesta nossa época automatizante, em que passamos o dia inteiro executando trabalhos sem tempo excedente para refletir, em que esgotamos todas as energias numa produção quase sempre burocrática, é bom saber que a pintura contemporânea dá margem ao pensamento. Mais do que relaxar diante das belezas naturais ou artísticas, vale a pena ser provocado, arrancado da zona de conforto e instigado a recriar o mundo da maneira como acreditamos que ele deve ser.


Saiba mais sobre a mostra Dissolução aqui.