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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

DEMASIADO HUMANO

basta ser humano
basta, ser humano
basta ser, humano
basta ser humano,

é preciso ser humano?
humano, impreciso ser




Vemos tudo conforme nossa própria ótica; o ponto de vista do humano, tão complexo e restritivo, é somente o que nos resta. Por isso o mundo muitas vezes parece feito em nossa medida. Também é por esse motivo que o que foge dessa medida ganha dimensão de sagrado – a noite estrelada, o oceano infinito, a cordilheira dos Andes, o deserto do Saara; e também as bactérias, as partículas atômicas, os glóbulos vermelhos, as sinapses. A razão científica caminha na direção desse sagrado e o desmistifica. Desvendamos os mistérios do cosmos ao mesmo tempo em que recombinamos material genético; vigiamos a calota polar com satélites orbitais enquanto produzimos nanorobôs para tratar certos tipos de câncer. A humanidade se expande ao macro e ao micro.



No meio persiste o hábito egocêntrico de utilizar o termo "humano" como adjetivo elogioso. Certo idealismo também. Dizemos que o mundo precisa ser mais humano, que as pessoas devem agir com mais humanidade. Como se pudéssemos agir de outro modo, como se houvesse outra perspectiva para nós. Como se a atitude dos homens fosse somente louvável e justa. Como se o dito "desumano" não estivesse contido na humanidade e não existisse somente por causa dela; como se houvesse jeito de escaparmos de nós mesmos.



Temos humanidade em demasia. Os maiores horrores foram todos muito humanos. Inclusive a própria ideia de tragédia é exclusividade nossa; aquilo que chamamos de "tragédia natural" é figura de linguagem – a natureza age conforme suas próprias regras, ela é amoral; nós que a tratamos como boa ou má.

Mesmo a tragédia grega, provocada pela fúria divina, é criação nossa; não existe mito elaborado por outros seres. A tragédia é necessariamente humana.



Assim, precisamos assumir que o Holocausto foi muito humano, no sentido de que só se realizou porque nós o fizemos e deixamos acontecer. Os atentados terroristas e as retaliações militares são ações humanas. O desastre ambiental em Mariana. A violência policial em nosso Estado de exceção permanente, o preconceito racial, a distinção social, o menosprezo pelo feminino, a devastação da Amazônia, a corrupção em todos os seus graus, os abusos e impunidades, isso tudo é próprio dos seres humanos.

O dito "desumano" sugere algo que repudiamos. Pois mesmo ele é completamente humano, um termo está implicado no outro, assim como não existe arqui-inimigo sem que haja também o herói. O desumano é nossa obra. Tanto quanto a ajuda humanitária, o parto humanizado, o tratamento do outro com respeito e dignidade. "Sempre a vida condicionada pela nossa perspectiva e a sua injustiça", escreveu Nietzsche em Humano, demasiado humano. Não há exatidão nem completude, somente disposições e oscilações. Somos seres injustos; todo juízo de valor é injusto porque provém apenas do ponto de vista de quem julga. Entretanto resta a nós uma saída: reconhecer isso e mudar as atitudes.




É necessário admitir que as atrocidades também são humanas justamente porque muitas delas foram pautadas no argumento contrário. Por exemplo, uma vez que os indígenas não tinham alma, acabaram dizimados no maior genocídio que a América já produziu, e que ainda persiste. A escravidão negra, para citar outro exemplo, privou os africanos de sua humanidade e os transformou em mercadoria. Os judeus na Alemanha nazista, considerados "indignos", não tinham direito de viver e podiam ser exterminados. Os internados em hospícios, loucos ou não, tratados com abandono, frieza, eletrochoque e lobotomia. Nossa situação carcerária atual, a pseudossolução de reduzir a maioridade penal e o momento simbólico mais marcante da questão, conhecido como "massacre do Carandiru". As milícias, os linchamentos, as chacinas, a "bancada da Bíblia" pregando violência no governo; todos esses horrores executados em nome do bem da humanidade refletem o tipo de humanos que nós somos. "A maioria acredita no valor da existência porque o quer e o afirma somente para si", escreveu Nietzsche há quase 140 anos.



O filósofo dizia que seus livros são escola da suspeita e do desprezo, pois provocam "inversão das valorações habituais e dos hábitos valorizados". É algo que ainda nos falta. Desconfiar do senso comum, fugir dos holofotes e olhar para a escuridão, levantar o tapete e acolher todas as historietas da humanidade que foram varridas para lá. O que é ser humano? A partir dessa questão podemos revisar os nossos valores e repensar a humanidade que desejamos. Tendo em mente que esse projeto deve se transformar sempre que necessário, jamais ser concluído. Ser humano é inventar constantemente a própria existência, inventar a si e o outro. É aceitar as faltas e saber ser impreciso.


* * *

"Para que serve toda arte que há no mundo?", pergunta Nietzsche. Não acredito em função nem em utilidade da arte, mas podemos pensar numa arte que "serve", não no sentido de serventia ou servidão, mas no sentido da vestimenta, da arte que nos cabe e muda a nossa forma. "A humanidade, em seu conjunto, não tem objetivo nenhum", diz o filósofo. "Apenas o poeta é capaz de perceber isso e sentir sua humanidade despedaçada".



Quem oferece uma boa saída para tal desconstrução é Nicolas Bourriaud, em sua Estética relacional, de 1998. Inspirado na filosofia de Félix Guattari, ele diz que a arte é aquilo sobre o que e em torno do que a subjetividade pode se recompor. Pois ela oferece um "direito de asilo" às práticas desviantes que não encontram lugar em seu leito natural. A arte seria um dispositivo de reconstrução daquilo que foi despedaçado. Tanto quanto daquilo que parece cristalizado, imutável, eterno.

Devemos identificar no cotidiano o tipo de humano que não queremos mais ser. Enquanto que talvez encontremos na arte outras humanidades possíveis para experimentar e, quem sabe, vir a exercer.



Ps: Aviso que encontrei numa loja em São Paulo: "Cachorros são bem-vindos. Humanos, tolerados." Não, não era um pet shop. :)


*As imagens que ilustram este texto circulam na imprensa online desde o rompimento da barragem de resíduos de mineração, ocorrido na cidade mineira de Mariana em 5 de novembro de 2015.