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segunda-feira, 5 de setembro de 2016

QUEM PRECISA DE LITERATURA?


Cheguei ao centro de exposições do Anhembi quinze minutos antes de abrirem os portões. Quase desisti de entrar ao ver o que me aguardava: uma horda de crianças e adolescentes. Um grupo formidável, meio apavorante, interessante também. Se a Bienal do Livro de São Paulo deixou de ser um evento da grande literatura, não se pode negar que permanece um evento cultural imenso. Em especial se considerarmos nosso mercado livreiro, que só recentemente alcançou nível satisfatório de profissionalismo, com editoras, escritores e livrarias de portes e focos diversos, conseguindo sobreviver dos seus produtos num país tão populoso e de tiragens tão ínfimas.

Foi um alívio descobrir que eu olhava para a entrada das escolas, que é separada do público comum. O portão principal estava bem mais tranquilo. E o lado de dentro é tão grande que ainda levaria algumas horas para lotar. Dei uma volta rápida para me situar no pavilhão e em seguida fui à sala onde se realizaria um debate com curadores dos principais prêmios literários da língua portuguesa.

Pois foi só o papo começar para o famoso Lucas Rangel subir ao palco no espaço de eventos ao lado. Sabe quem é? Eu também não conhecia. Mas pela ovação pensei que se tratava de Paul McCartney. Madonna. Alguma dessas celebridades que lotam estádios com pessoas da minha geração para trás. Entretanto quem gritava ali era bem mais jovem. Bem mais entusiasmado também.


O debate a que eu tentava assistir perdia a voz para a gritaria da moçada. Interrompia-se a cada gracinha de Lucas Rangel. Ou a cada lançamento, literalmente falando, dos exemplares de seu livro, que ele atirava para a plateia. “O sensacional livro antitédio do Lucas Rangel”. Sem dúvida ninguém ali padeceria desse mal.

Mais uma surpresa me atravessou: alguém na sala descobrira que Lucas Rangel não é escritor, mas youtuber. Seus fãs não estavam ali pela literatura, embora houvesse um livro no meio da história. Centenas de adolescentes, numa bienal do livro, querendo ver de perto um garoto que só conhecem pela internet. E que não escreve. Enquanto que na sala do debate não havia mais de vinte pessoas. Incluindo os cinco palestrantes. E pelo menos outros quatro ou cinco integrantes da equipe técnica.

Assim como o livro do Lucas Rangel jamais ganharia um daqueles prêmios de que falávamos é bem pouco provável que os escritores contemplados com o Jabuti, Prêmio São Paulo, Prêmio Sesc ou Prêmio Oceanos recebam, algum dia, a mesma aclamação do garoto.

Não vejo (quase) problema algum nisso. A literatura dos prêmios e aquela, digamos, “de mercado” têm públicos diferentes e se inserem em registros culturais diferentes. Isso não faz uma melhor do que a outra, pois sequer são comparáveis segundo um mesmo parâmetro. É preciso compreender essa diferença para aceitar que um livro dedicado à arte da literatura não é ruim porque vende pouco – inclusive há autores que fazem questão de provocar, dificultar a leitura e afugentar o leitor. Sua qualidade nem sempre está no deleite. Ao mesmo tempo em que os livros produzidos com objetivo de grandes vendas raramente contribuirão com questões da estética.


Cada público lê aquilo que lhe interessa. A falta de leitura é um problema, sem dúvida. Porém ler um texto qualquer não é o mesmo que vivenciar a experiência estética da literatura. Saber ler e praticar a leitura é necessário porque acessamos informações e convivemos em sociedade por meio da língua, tanto a falada quanto a escrita, e a maior parte das pessoas leem e se expressam muito mal. Não dominar essa linguagem implica abrir mão de todo o aparato que ela oferece, do qual somos muito dependentes, feliz ou infelizmente. Implica dificuldade de relacionamento, conhecimento e exercício político. Literatura não. Ninguém precisa de literatura para viver, em especial a literatura de ficção. Inclusive é nessa falta de necessidade que reside a sua potência.

Como leitor, pesquisador e escritor é evidente que eu adoraria ver cada vez mais pessoas interessadas pela arte da literatura. Adoraria ver debates, clubes de leitura, bibliotecas, oficinas, saraus, prêmios, enfim, eventos literários em geral se multiplicando e se tornando cada vez mais requisitados. Adoraria ver leitores esmiuçando o assunto e produzindo a sua própria literatura de alto nível. Mas entendo que, por mais que deseje, isso não a torna necessidade vital. Mesmo os profissionais do meio viveriam de outra atividade se não existisse literatura.

É necessário, sim, abdicar do discurso de que todos devem ler os clássicos A, B e C. De que devem gostar e reconhecer que são imprescindíveis. Porque é pretensão demais – e também ingenuidade – obrigar à arte. A educação, a sabedoria e a emancipação não se fazem pela força, mas pelo convite, pela garantia do direito de escolher e pela partilha do sensível.

Claro que a lógica do capital não tolera tais princípios. Por conta disso as grandes casas editoriais do Brasil, praticamente todas ancoradas em investimento estrangeiro, tendem a diminuir o espaço dos escritores que fazem arte de alto nível porém vendem pouco. Ao mesmo tempo em que as pequenas editoras acolhem bons profissionais do ramo e começam a se encarregar dos novos autores e do futuro da alta literatura. E a Bienal do Livro de São Paulo? Tudo indica que estará cada vez maior. E mais barulhenta também.