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domingo, 22 de janeiro de 2017

TESTEMUNHO OCULAR


Estou muito feliz neste final de semana, pois consegui terminar meu novo livro de ficção, uhuu! Que por enquanto tem este título, Testemunho Ocular. São 26 textos no total, além de uma espécie de prólogo. Alguns são curtos (o menor tem 4 linhas), outros são mais longos (o maior tem cerca de 10 páginas em formato A4).

(Bateu uma curiosidade? Clique para ler o conto Descoberta, que faz parte da coletânea.)

Os 27 textos foram finalizados ontem. Então começou o difícil processo de estabelecer uma ordem para eles


O livro investiga certos aspectos da realidade contemporânea, em que o regime de visualidade predomina, e tudo parece exposto, revelado, evidente. Esta realidade das câmeras, dos compartilhamentos de intimidades, do ver para crer. Os textos tentam colocar isso em questão. Não de maneira opinativa, mas como provocações literárias. Eles também tentam encontrar brechas para o obscuro, o não dito, o incerto.

Não à toa, apresentam alguma estranheza, que nem sempre é fácil identificar. Às vezes a estranheza parece absurda, outras vezes ambígua ou misteriosa. Mas a inquietação é sempre a mesma: o que está dado a ver? O que permanece apenas entrevisto? Que tipo de dependência temos da imagem? Que verdade é essa que a imagem quer nos revelar? Até que ponto podemos acreditar nela?

Muito bem, muito bem. Então o livro está pronto? Que nada! Agora chegou a hora de pedir para os amigos mais próximos lerem. Depois de algumas conversas, revisões, modificações, mais conversas, incertezas, vontade de jogar tudo fora, calma, angústia, indiferença, revisões, modificações, palavrões etc., vou atrás de oportunidades de publicação. Será que demora? Sempre!

Tudo bem, faz parte. Espero que eu volte a falar dele aqui assim que possível.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

DESCOBERTA

Você desliza a palma da mão pelos ombros, como se eles a convocassem. Encontra de imediato aquele ponto de descamação na pele. Que injusto!, você pensa. Nem abusou do sol, como costumava fazer na adolescência! Usou filtro de fator cinquenta, reaplicou-o a cada duas horas, fez o que pôde para evitar manchas, alergias e envelhecimento precoce. Com pele clarinha não se pode bobear. Ainda assim... Você não se conforma, mesmo que seja uma descamação discreta, o que os outros vão pensar? Talvez uma boa lambuzada de Victoria’s Secret faça-a parar por aí. Que nada, você se engana, sabe muito bem que, uma vez rompida, toda aquela camada de pele precisa ser removida para dar lugar à nova, que vem de baixo, vem de dentro de você. Então não se acanhe, aproveite. É uma verdadeira realização puxar as pelezinhas que vão soltando como folhas de papel arroz, tão finas! A pele nova será melhor, mais forte e mais saudável. Você olha no espelho e lá está, já consegue vê-la, uma pequena superfície negra debaixo da sua pele branca mal cuidada. Enfia a unha nas bordas e levanta aos pouquinhos para não se machucar. A brancura exaurida se solta, as sardas se vão, aquelas pintinhas vermelhas que herdara de uma tia distante. A pele que se revela é negra e luzidia, tem brilho de ouro. A fissura se expande para o pescoço, você continua a puxar, está curiosa e também um tanto ansiosa para saber o que lhe aguarda. As dobras da orelha exigem certo cuidado. Por vezes a pele branca se rompe e você precisa reencontrar a ponta, como acontece, por infortúnio, nos rolos de fita adesiva. Com o atenuante que, no seu caso, as camadas não são transparentes, quase invisíveis; a que se vai é branca, a que surge é evidentemente negra, são fáceis de identificar pela diferença.

Julian Paulo Rodrigues

Você descobre, soterrado, certo orgulho pela nova pele, algo meio inexplicável ainda, que se manifesta como um sentimento de ancestralidade. Como se essa pele estivesse sempre com você, esperando ser descoberta. Seus olhos mudam de cor, a película que os recobria era fria e gelatinosa. O caramelo esverdeado se foi, no lugar as íris petroleadas são profundas e convidativas, são tão sensuais que você tem o desejo de mergulhar e se perder nos próprios olhos, como se fosse possível adentrar o espelho. A bochecha se estica e, como uma onda no mar, avança até o interior da boca; os lábios finos e pálidos dão lugar a outros, graúdos e úmidos. O nariz adunco ganha sinuosidade. Os cabelos claros, ressecados pela tintura, vão sendo descamados também, e no lugar se armam mexas volumosas, brilhosas e perfumadas. Você afunda os dedos nessas mexas e descobre um universo encantador, uma maciez que não se entrega fácil. Seu perfil já é todo negro. Você vira o rosto de um lado para o outro no espelho, apalpa, joga o cabelo para cima. É isso mesmo. Negra.

Agora falta o restante do corpo. Puxa a pele pescoço abaixo, o outro ombro empretece também, você se lembra daquele picolé minissaia e ri consigo mesma. Chocolate em cima, morango embaixo. As camadas de pele clara se acumulam aos seus pés e, meio translúcidas, lembram vestígios da cobra que cresce e já não cabe em si. A pele retesada dos seios deixa ver maior volume, e mamilos escuros, cor de vinho, intumescidos. Você se excita com a descoberta de si mesma. Desce pela barriga, contorce os braços para arrancar a brancura das costas sem rasgá-la, fica com uma espécie de saiote pendurado na cintura enquanto afaga a lisura da noite, sem pelos nem pintas. As mãos deslizam com suavidade e você poderia se acariciar para sempre, acaso dominasse a curiosidade de descobrir o restante. Não consegue, é a ansiedade que a domina, então você continua a revelar-se, desce a cintura e dá a ver as coxas como se enrolasse para baixo uma meia-calça usada. As nádegas são tão escuras como todo o corpo, não têm necessidade alguma de marcas de biquíni, elas são curvilíneas em si próprias. Os pelos do púbis encrespam e rareiam, as mãos deslizam pelas pernas como em tobogãs e puxam a pele frouxa joelho abaixo.

As curvas dos calcanhares são mais difíceis. Eventualmente algum pedaço se rompe e você precisa retomar a ponta, tudo bem, o que parece uma falha é na realidade a sola dos pés, mais clara do que o peito, não por isso menos negra. Sem dúvida existe um negrume naquela brancura, enraizada nos vincos, nas dobras, nas ranhuras contornadas entre os dedos do pé, nas unhas, nas cutículas.

Faltam apenas os braços, que ficaram esquecidos enquanto eles próprios revelaram o restante do corpo. Com a mão direita você tem mais dificuldade, acaba por se descobrir canhota, como é possível uma coisa dessas? Como nunca percebeu?

Puxa de uma só vez a pele inteira do braço, arranca a brancura ressequida dos cotovelos, admira os antebraços, livres das irreversíveis marcas do tempo. Agarra toda aquela camada com a outra mão e a puxa devagar para o alto, até revelar dedos de dorso escuro, e claros no lado da palma.

Você joga ao chão a pele que já não serve mais e coloca as mãos lado a lado, comparando-as. Uma é negra como a noite, a outra é branca como o dia. O sol agora se põe, é hora da escuridão chegar de uma vez por todas, sem timidez.

Então você termina o que começara meio sem querer. Será que não queria mesmo? Que receio a impedia? Lembra da pele branca como uma fantasia, na qual suas curvas e volumes cabiam mal, causavam desconforto, e entre outras mulheres você parecia sempre eclipsada.

Por instinto você lambe os braços e antebraços, sente o gosto puro e verdadeiro de si mesma. Percorre com a língua toda a superfície da pele, os cantos desconhecidos, as texturas. E como uma pantera você se sente limpa e poderosa.

Leva as mãos às narinas, fecha os olhos e sente o novo cheiro, o perfume almiscarado que seu colo, pescoço e cabelos exalam naturalmente. Uma fragrância doce e sedutora, muito mais sincera do que a doçura artificial da Victoria’s Secret. Sem qualquer segredo oculto, muito pelo contrário. Inteiramente revelada.

*Este conto, publicado no Correio Popular, faz parte do meu livro Testemunho Ocular, que ainda está em fase de leitura e revisão. Gostou? Clique aqui para saber um pouquinho mais do projeto.