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sábado, 22 de junho de 2019

EMOÇÃO ESTÉTICA


Edgar Morin entra pela plateia, não pelo palco, e de imediato começam os aplausos. O teatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo, está lotado. O intelectual francês completará noventa e oito anos de idade daqui vinte dias. Pessoas de várias gerações se levantam e o aplaudem de pé durante um longo tempo. Emocionado, ele acena de volta. Então a sua emoção contagia a todos.

Li Morin pela primeira vez durante a faculdade de comunicação. Dois livros seus, na época, foram os que mais me marcaram, e os tenho ainda hoje. Falam sobre cultura de massas no século XX, “espírito do tempo”, indústria cultural e as diversas crises socioculturais dos anos 1960 e 1970. Entre o mestrado e o doutorado, interessei-me por suas ideias sobre o pensamento complexo, em especial enquanto método de pesquisa. Li trechos de seus diários já publicados e estou curioso a respeito de A aventura do método, que deve sair ainda este ano. Tenho certeza de que a maioria do público presente nessa conferência oferecida por Morin no último 18 de junho tem também alguma relação intelectual e afetiva com a sua extensa obra, que soma mais de trinta livros sobre sociologia, epistemologia, educação, filosofia, entre outros assuntos relacionados com o conhecimento.

Após uma breve apresentação de Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, Morin sobe ao palco. Tira o relógio do pulso e o deposita no atril. Fala de pé ao longo de quase uma hora, a princípio em português, depois num francês gesticulado, vivaz. Quase não recorre às anotações.

Seu argumento é um tanto simples: a emoção estética, conforme explica, pode ser experimentada por qualquer pessoa em situações não premeditadas, como ao contemplar uma paisagem ou encontrar-se com um conhecido. Não se trata de uma exclusividade das artes, mas de uma qualidade poética da vida. Ela também independe de cultura, etnia ou classe socioeconômica, sendo natural a todos.

As artes, por sua vez, suscitam tais emoções, que servem à sua comunicação, ao encantamento ou à inquietude. Segundo Morin, além do caráter afetivo, a emoção estética provinda das artes tem também uma força cognitiva. Isso significa que o contato com a literatura, a música, o teatro etc. pode resultar num conhecimento acerca da humanidade, do mundo e da vida em geral; um conhecimento específico que devemos valorizar tanto por sua singularidade quanto por sua potência.

Ao lermos um romance de Dostoievski, por exemplo, podemos conhecer a Rússia de sua época de maneira diversa – e não menos verdadeira – do que ao ler uma análise histórica de cunho científico. Ao ouvirmos um concerto de Schubert, é possível reviver os dramas do músico e de seu contexto. Ao assistirmos ao Marlon Brando em O poderoso chefão, é possível nos compadecer por um criminoso violento que é também um devotado pai de família, e assim apreender que as contradições e os paradoxos do ser humano são muito mais complexos do que os estereótipos, os preconceitos, as polarizações que empobrecem o pensamento e afastam as pessoas.

Com o mundo em constante compartimentação, faz-se necessário criar vínculos e estabelecer conexões. Porém as ditas “bolhas culturais” que habitamos – agrupamentos formados segundo familiaridades, afinidades ou interesses comuns – oferecem poucas surpresas ou situações inesperadas, além de nos isolarem da rica diversidade da vida, como se assim nos protegessem.

Em contrapartida, as artes tendem a nos colocar em contato com o diferente, o inusitado, o estranho, e com eles precisamos nos reaver. Acho bonito o sentido não literal desse termo, reaver, que tem menos o caráter de posse do que o de relação e implica um trabalho de lidar com o outro, vê-lo de novo e vê-lo com cuidado, e procurar maneiras de com ele fazer as pazes, gostando ou não, concordando ou divergindo, mas o respeitando, reconhecendo a legitimidade da sua diferença e assegurando o seu direito de ser como desejar. Daí a impossibilidade de separar estética e política.

Assim como a poesia advém do esforço de fazer as palavras abandonarem seus sentidos prosaicos para assumirem outros singulares, a experiência estética é essa força que nos arranca da banalidade e confere à nossa existência uma qualidade poética. Tamanho deslocamento pode ser tão maravilhoso quanto terrificante; não à toa as artes muitas vezes incomodam, ferem valores morais, desconstroem formas de ver, de pensar e de dizer. Lidar com elas é tão necessário quanto lidar com quaisquer emoções. Precisamos a todo o momento nos reaver com as artes. A experiência estética é, assim, um aprendizado constante. É também um aprendizado daquilo que só pode ser apreendido por meio da estética.

Edgar Morin sabe disso muito bem. Perto de completar um século de vida, continua a pesquisar, conhecer, dialogar e se abrir à música, à literatura, às artes visuais, à fotografia, ao cinema, ao teatro etc. Justamente por isso parece tão vivo enquanto palestra acerca dessa cultura, que chama de humanista porque apenas o homem é capaz de produzi-la e porque, com ela, pode-se ver além da própria humanidade.