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segunda-feira, 30 de março de 2020

VÍRGULAS FORA DO LUGAR, SENTIDOS FORA DE CENTRO

Logaritmosentido (editora Penalux, 2019), de Fernando Andrade, é composto por textos curtos, com uma ou duas páginas, a maioria deles em prosa. São, entretanto, exigentes, vão se deixando decifrar aos poucos e, para isso, pedem para ser lidos e relidos, buscando-se sentidos por meio de uma lógica que talvez não exista. Eles apresentam uma operação claramente linguística; um desafio ao leitor. Percebi, vez ou outra, que me debruçava sobre o livro como se lesse um caça-palavras. À procura de quê? Fiquei intrigado com inúmeras questões pontuais, mas para a entrevista a seguir mantive um plano mais geral, de modo que não nos prolongássemos demais e pudéssemos apresentar, a quem ainda não leu, uma primeira visão da obra.

1) Desde o título está anunciado o tensionamento entre a lógica matemática e o sentido, talvez entre a racionalidade e a emoção. Nos textos do livro, por vezes uma explicação de tom científico põe em jogo a própria ciência por trás das explicações. Como você entende essa relação entre a ciência e a literatura?

Na verdade tento colocar em jogo a racionalidade de uma sentença (tese) que às vezes chamo-a de nucleada. Nos meus livros de poesia, também, tento trabalhar a noção de núcleos que detém verdades ontológicas, certezas definitivas. Meu jogo com a matemática vem desta durabilidade infinita dos conceitos fechados (nucleados) ou binários. Portanto meu deleite com a ciência é partir do sentido de suas exposições, teses, para através do jogo lúdico das palavras na linguagem, deslizar a imanência do signo decifrável, criar uma interface de comunicação não unilateral. Quando ludico a palavra do conto Mark onde o próprio destino do personagem é sua língua, crio um efeito potencial, exponencial, de saber até onde os sentidos podem ir na frente de uma narrativa polissêmica.

2) Os títulos das seções que compõem o livro poderiam ser os de uma tese: Sentido exponencial, Infância e normatividade, Corpo poético, Teatralizantes, Ensaio, Paródicos, Gêneros. Mas o conteúdo que os segue não quer provar nada, apenas degustar certo apuro linguístico em cenas de enredo enxuto. Essas seções, curtas, com cerca de dois ou três textos cada, dão ao livro uma estrutura singular. Por que optou por essa forma?

Trabalho sempre com seções nos livros. Na primeira parte, os sentidos se desdobram em vórtices, passam pela palavra ideia e potencializam significâncias como a pedra do conto Petrificante (pedra de crack, pedra preciosa). Tinha alguns contos com teor de fatos sobre a infância e via que eles passavam por alguma função de nomear-normatizar. Aí fui colocando temas. Claro que na maioria das vezes o conteúdo do livro desnormatiza-se de classificações e rótulos. Mas não queria fazer a linha de costura do livro inteiramente solta sem um fio de caminho. Por exemplo o conto-poema Colher de chá colher de sopa poderia entrar em duas seções, tanto Infância quanto a própria seção Gêneros; aliás, ele fala e é da questão entre prosa e poesia, da questão do gênero biológico masculino e feminino.

3) A pontuação, o jogo de palavras, a alternância de narradores, a sonoridade e o retorno a elementos dos próprios textos, entre outros recursos típicos da poesia, produzem certo estranhamento da língua — e dos sentidos — convencionais. Como se você inventasse outra língua ou farreasse com esta nossa, estranhando-a, querendo-a incomum. Buscando, talvez, um “sentido exponencial”, como diz o título da primeira seção. Como este livro se relaciona com os seus anteriores, todos, até então, de poesia?

Acho que este último se relaciona muito com meu anterior de poemas, pois ambos são divididos em seções, parecidas. A perpetuação da espécie (editora Penalux) também tem Infância e gêneros, e nos dois pude trabalhar a questão do hibridismo de gêneros, formatando o meu texto entre a prosa e a poesia. Uma psicanalista do Sul (Porto Alegre), ao ler A perpetuação da espécie, comentou num texto dirigido a mim que ela via vários pequenos romances dentro da condução dos poemas, como se dentro de um subtexto eu falasse ou contasse um tipo de enredo de um homem e sua história de casamento/separação. Já em outros mais antigos há esta brincadeira com o som das palavras, sua grafia, resvalando para polissemia dos sentidos.

4) Há uma experimentação marcante ao longo do Logaritmosentido, com torções e provocações sofisticadas, que exigem do leitor o desejo de vivenciar algo diferente, apreço pela forma e por narrações desconstruídas, que às vezes partem de um ponto desconhecido e nada revelam, sustentando o mistério. Aliás, existe mesmo em alguns dos seus logaritmos essa espécie de problema sem solução, cujo sentido falta ou falha? Ou será que, em vez de sentido, que está mais próximo das sensações e dos sentimentos, deveríamos dizer que quem falta são os significados?

Não há nos contos uma solução para uma investigação sobre a linguagem. Até pela minha dificuldade com coisas fechadas e binárias, tento ir criando status de suspenses e pequenos enfrentamentos linguísticos para dosar forma e conteúdo, mostrando que ao utilizar bem as palavras e seus sentidos, até ocultos, podemos aumentar a rede de interpretações ou signos sobre uma arte literária. Trump e seu trumpete é o olhar semiológico do signo com sons próximos, parecidos, que faz aproximar mundos distintos do jazz ao da política; faz Trump, que é conservador, pois nunca deixo de referencializar ele no conto, até crio um verbete para isso, ser um trompetista de jazz e morar no Rio, na Lapa. Talvez a significação esteja no olhar do leitor que olha para um texto que se move, se pluraliza, busca o outro na sua referência tacanha.

5) Há no livro uma variedade de temas como humor, sonhos, erotismo, política, religião, entre outros. Há também citações mais ou menos explícitas a outros livros, personalidades, produtos culturais. Enquanto lia, voltaram-me os Cronópios, de Julio Cortázar, e o surrealismo de Boris Vian, por exemplo. Daí aquele livro curtinho começou a se desdobrar, como se eu abrisse um origami para conhecer sua estrutura, e assim ele se alongou no tempo e no espaço, também se adensou — como a pedra que afunda no rio, naquele continho “Atire a primeira pedra”, que mais parece um provérbio chinês. Como é possível juntar isso tudo numa obra com somente 82 páginas?

Este olhar quase de editor não tive, risos. Foi acontecendo pelas valises de conteúdo que ia depositando no fundo das páginas. A escrita é um pouco inconsciente, levamos talvez uma ordem de séries, objetos, deslizes, imitações, até porque estes contos foram escritos não para um livro direto e único. Foram traçados por temas e motes no Clube da Leitura de que participo desde 2013, aqui no Rio, e cujo exercício é de ler motes que levamos e escrever sobre o mote escolhido como referência da noite. Depois vem a escrita de até duas páginas de um conto levemente inspirado no mote. Estas narrativas, portanto, foram bailadas neste percurso de 7 anos a maioria delas, dos 18 contos, 14 são do Clube da Leitura.

domingo, 29 de março de 2020

VER APESAR DE TUDO

Já li uma porção de coisas sobre o holocausto judeu na 2ª Guerra Mundial, ou Shoah, em hebraico. Não porque sou aficionado pelo assunto, mas porque qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade e interesse histórico naturalmente se depara com livros, filmes, notícias, obras de arte, exposições, que de alguma maneira mantêm vivo aquele acontecimento. Há pouco li Cascas, misto de relato poético e ensaio produzido pelo filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman após sua visita aos campos de Birkenau, hoje parte do museu de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, onde colheu fotografias, impressões – de início intuitivas – e cascas de bétulas. Essas árvores são as poucas testemunhas remanescentes do genocídio perpetrado pelos nazistas naquele empreendimento sociopolítico que perseguiu judeus, entre diversos outros povos, culturas e ideologias menos falados e, assim, menos conhecidos hoje.

Fotografia feita por um avião de reconhecimento da Força Aérea Britânica em 23 de agosto de 1944, que veio a público apenas em 2004. A fumaça provém de um dos crematórios. Na época, os Aliados não compreenderam as instalações de Auschwitz-Birkenau porque eram inimagináveis, apesar das imagens.

Didi-Huberman comenta uma história já bastante escrita e bem estruturada, que justamente por isso vem até nós sem que estejamos procurando por ela. O que ele faz no livro, porém, é colocar em questão os modos como essa memória vai se transformando em história, em vez de apenas a reiterar tal como se costuma contá-la. Em especial ali, no museu erigido sobre o antigo campo de extermínio, onde o ser humano foi capaz de matar vinte e quatro mil dos seus semelhantes num único dia de 1944 e, algumas décadas depois, abrir uma loja de lembrancinhas especializada no tema.

O autor fala dessa cultura capaz de realizar ambas as coisas. “A questão toda está em saber de que gênero de cultura esse lugar de barbárie tornou-se o espaço público exemplar”, diz. Sua observação parte das três cascas de árvore colhidas na ocasião da visita – “Birkenau” significa “campo de bétulas” –, que até a Idade Média eram usadas para registrar textos e desenhos. Para reescrever a história, por exemplo, o museu substituiu os velhos arames farpados da época por novos, que de artefatos de barbárie passaram a se apresentar como produtos culturais. Didi-Huberman observa transformações similares no “paredão das execuções”, restaurado feito um simulacro do original, e nos galpões 13 a 21, que abrigavam prisioneiros, agora “pavilhões expositivos”, cada um dedicado a uma nacionalidade vitimada.

Apaga-se assim uma memória para fazer dela história, a qual é fundamentalmente uma criação humana. Nas palavras do autor: “todos os centros culturais – bibliotecas, salas de cinema, museus – podem construir uma memória de Auschwitz. Mas o que dizem quando Auschwitz deve ser esquecido em seu próprio lugar, para constituir-se como um lugar fictício destinado a lembrar Auschwitz?”

Quando o fim da guerra era certo, os nazistas dedicaram todos os esforços à dita “solução final”, que pretendia exterminar o maior número possível de judeus. Com a impossibilidade de se fabricar suficiente Zyklon B, pesticida usado nas câmaras de gás para as execuções em massa, as vítimas eram atiradas ainda vivas nos fornos crematórios. Ler sobre isso me provoca uma sensação de abismo, um medo profundo porque real e possível, como um pesadelo inimaginável que se materializa. Volto à minha realidade deslocado, sem jamais poder recuperar o prumo ou conseguir olhar as pessoas com os olhos de antes.

“Isto é inimaginável, logo devo imaginá-lo apesar de tudo”, afirma Didi-Huberman num ato de resistência. Pois o “impasse da imaginação foi uma das grandes forças estratégicas – via mentiras e brutalidades – do sistema de extermínio nazista”. Com a aproximação do exército soviético, em 22 de janeiro de 1945 os administradores do campo dinamitaram os fornos para apagar as evidências do inferno, mostrando que sabiam da gravidade do que fizeram.

Daí o mérito desse novo ensaio sobre o holocausto que Didi-Huberman se propôs escrever. Como ele diz, “o fogo da história passou. Partiu como a fumaça dos crematórios, soterrado junto com as cinzas dos mortos. Isso significa que não há nada a imaginar porque não há nada – ou muito pouco – a ver? Certamente não. Olhar as coisas de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido”. Pois é a partir dessa suposta invisibilidade que ele vai revendo e problematizando o papel dos museus, das curadorias, das imagens e livros; das maneiras, enfim, como produzimos discursos na história e, no limite, a subjetividade do presente. Porque “a memória não requer apenas nossa capacidade de fornecer lembranças circunstanciadas”. Escavar esses apagamentos do passado é uma dívida inegociável que herdamos.

De minha parte, penso em como aquela estratégia nazista de impasse da imaginação via mentiras e brutalidade persiste em nosso dia a dia, nas grandes e nas pequenas mídias, nas redes sociais, na publicidade, nos discursos oficiais, em moralismos, nos gestos a princípio inocentes feitos em nome de um suposto bem. Penso nas histórias outras que ainda não conseguiram se estruturar como a da Shoah, ao ponto de permearem o imaginário coletivo com tamanha força, e que, ainda assim, lutam bravamente por visibilidade. O holocausto negro, o indígena, o feminino, o dos perseguidos políticos, o dos miseráveis, cujos escombros estão postos diante dos nossos olhos, convocando-nos a escavá-los, e muitas vezes nos recusamos a ver, apesar de todos os que ali sucumbem sem a dignidade que merecem na morte e, claro, na vida.

sexta-feira, 20 de março de 2020

#INDIEBOOKDAY 2020

Uma notícia boa, enfim! Durante todo o final de semana (21 e 22 de março), os livros da editora Reformatório estarão com descontos de até 70%! Então não compre carro hoje: gaste tudo em livros amanhã! Use este link para encomendar meu romance com desconto aqui >> Diante dos meus olhos

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quinta-feira, 12 de março de 2020

ENTRE VISTAS: EDUARDO A. A. ALMEIDA E DIANTE DOS MEUS OLHOS

A entrevista abaixo foi concedida à escritora Renata Py e publicada originalmente em sua página no Medium. Você pode adquirir seu exemplar do romance Diante dos meus olhos na loja oficial da editora Reformatório, clicando aqui.



Eduardo, o seu romance apresenta uma trama psicológica entre pai e filho, com uma série de acontecimentos inusitados em uma viagem entre eles. O fato de eles terem passado aqueles momentos na vila militar me pareceu decisivo na relação, em muitos aspectos. Uma situação-limite que envolve lembranças, intimidade e até sobrevivência. Comente um pouco sobre isso.

A vila atua como uma catalizadora de emoções, trazendo à tona memórias, expectativas, traumas, desentendimentos, frustrações, enfim, todas essas experiências compartilhadas e de alguma maneira mal resolvidas entre o pai e o filho. Tudo que aguardava há tempos num estado de latência encontra na antiga vila o motivo para acontecer. O local se apresenta também como uma espécie de encruzilhada entre o passado e o futuro; é, portanto, decisivo em muitos sentidos para os dois personagens. Um mapa feito para que tudo se perca.

Como se deu a ideia de usar uma antiga vila militar?

A vila surgiu na medida em que eu criava o passado dos personagens e precisei de um local essencialmente estabelecido conforme a ordem. Era importante pelas contradições que produziria nas três gerações daquela família que se relacionariam com ela. O curioso é que eu, pretensamente, pensei ter inventado tudo aquilo. Foi durante uma conversa casual com um completo desconhecido que descobri que, de fato, aquele tipo de vila militar não apenas existiu como ainda resiste no Brasil, com as devidas adaptações trazidas pelo tempo. E que os conflitos entre os moradores não são tão diferentes do que imaginei para os personagens do livro.

Após a viagem, a relação deles ficou aparentemente definida, como se a partir daqueles acontecimentos eles não precisassem mais cumprir o protocolo da relação pai e filho, a ponto de o narrador só voltar ao encontro do pai em seu enterro. Você acha que, com a idade e obrigações da vida adulta, essa distância é mais comum do que imaginamos?

A tal viagem marcou uma passagem. Daí a importância de, no final, eles cruzarem o portal da vila, que funciona como um símbolo. A vida dos personagens mudou a partir daí, os conflitos ganharam outras formas e uma nova situação se criou. Eles continuaram a manter alguma relação, eu imagino, mas ela já foge da história que o livro pretende contar. Não acredito que o mesmo aconteça o tempo todo por aí, mas a vida adulta exige também uma passagem e um abandono dos pais para que o novo adulto encontre o seu lugar. Existe um distanciamento, uma transformação, uma necessidade de redesenhar as relações.

O livro nos prende, do começo ao fim, numa atmosfera psicológica muito interessante, incluindo acontecimentos que muitas vezes nos fazem perguntar se são meros devaneios ou realidades pra lá de inusitadas. Você acha que, quando se trata de memória, ela muitas vezes pode nos criar peças?

Desde o começo, me interessava questionar isso que a memória estabelece como uma espécie de fundação para o sujeito, quer dizer, como uma base firme sobre a qual podemos construir os nossos mundinhos particulares e coletivos. Não à toa a incerteza está presente o tempo todo na narrativa, não se pode acreditar sequer no que os olhos apresentam como real. Para mim, o passado é tão vivo quanto o presente e se modifica a todo instante. É fundamental preservar essa sua qualidade, de maneira que possamos sempre nos reinventar. Um passado cristalizado já não serve para nada, a não ser para sustentar dogmas, preconceitos, conservadorismos ingênuos e perigosos. Entrar no jogo impreciso da memória e deixar-se ludibriar é uma força, não uma fraqueza, como muitas vezes somos levados a crer.

Interessante o narrador, o filho, ter uma personalidade tão racional e ambientada no sistema externo. Geralmente, talvez por questões de geração, é o contrário que acontece. Por que você optou pelo filho ser o mais “conservador” da história?

Acho importante que a literatura ofereça outras perspectivas sobre as coisas e as pessoas. Um pai conservador com um filho revolucionário é um paradigma da humanidade. São também estereótipos por demais confortáveis para o escritor e para o leitor. Já basta disso em nosso dia a dia, nas rotulagens que predominam em nosso embate com o outro. A literatura tem aí uma potência crítica de mostrar que o conservador tem algo de revolucionário e o revolucionário verdadeiro, por sua vez, está a todo instante lutando com os seus próprios conservadorismos, entre tantos outros matizes que formam a complexidade do ser humano e que vão muito além dessa questão binária. Ainda que o personagem do filho, no romance, pareça mais conservador, ele não está satisfeito com isso, fica reafirmando-se como se precisasse se certificar de que as coisas permanecem no lugar, quando na verdade está vivendo uma revolução pessoal. Com o pai acontece o mesmo, mas num sentido inverso. E ambos precisam lidar com esses conflitos, pois são diferentes e ao mesmo tempo parecidos. Isso é literatura e é também a vida; elas extravasam a simplória polarização que hoje parece tão à flor da pele.

Sem querer dar spoiler, você pode comentar sobre os negativos que o pai achou na vila quando aparentemente encontrou um amigo fotógrafo?

Os negativos são mais um exemplo da imagem que não dá conta de apresentar a realidade. São a prova fatual de que os fatos são tendenciosos, manipuláveis, parciais. Essa cena é quase um resumo do romance, pois materializa as questões que antes talvez parecessem por demais metafísicas.

Os acrobatas encontrados na vila me pareceram personagens de Beckett, de tão inusitados, mas que, ao mesmo tempo, poderiam ser perfeitamente reais. Fale sobre eles. 

Sim, personagens de Beckett, sem dúvida. São esse tipo fantástico que, de tão real, faz com que a realidade se torne fantasiosa. Eles são contorcionistas, na verdade, justamente porque trazem essas torções e distorções na percepção dos personagens; têm uma função direta e outra parabólica.

O filho demonstra em muitos momentos uma frieza prática em relação a determinadas situações. Ele poderia ser quase um psicopata?

O filho tem um pragmatismo alimentado por uma subjetividade produtivista, muito parecido com o que vemos a todo instante no outro lado do balcão, em pé conosco no metrô, na propaganda de cursinho de vestibular. Hoje mesmo vi uma dessas notícias rápidas e desnecessárias que nos são lançadas até enquanto subimos cinco andares de elevador, como se todo o tempo precisássemos ser impactados, como se diz no meio marqueteiro. Ela falava sobre o prejuízo financeiro na Europa, que já não recebe turistas chineses por conta do coronavírus. Quer dizer, não bastasse a especulação, a espetacularização e a exploração engendradas com essa doença, lemos sobre um índice econômico que, no final, está associado a pânico, mortes, comoção social, sensibilidades das mais diversas, e que no entanto sequer nos afetam, exceto por nos colocar no mesmo buraco midiático. Acho um tanto perigoso esse tipo de diagnóstico das psiques. Se a frieza faz do filho um quase psicopata, vivemos todos num manicômio chamado civilização.

Uma das cenas que mais me despertaram curiosidade foi o encontro do narrador com a velha senhora. Você poderia falar mais sobre o impacto daquele encontro na vida dele? 

A velha senhora não é bem uma personagem, é uma entidade, como gosto de dizer. Está ali para evocar o tempo e as diferentes elaborações que ele exige; é quem alarga as noções do personagem, permitindo a ele novas possibilidades existenciais.

Eduardo, parabéns pelo livro. Extremamente intrigante e envolvente. Queremos saber sobre os novos projetos. Muito obrigada pela entrevista. Me despeço com uma última pergunta. Tem uma frase no livro que diz: “Aquelas lembranças pertenciam a ele. Eu teria me livrado delas na primeira oportunidade, só que não há mais como devolvê-las; nem como ignorá-las”. Você acha que a gente carrega o peso do passado dos nossos antepassados no nosso DNA ou realmente isso só seria possível se fosse vivenciado de alguma maneira, como foi o caso dos personagens de “Diante dos meus olhos”?

Somos ensinados a viver de determinado modo, a reproduzir maneiras e a programar inclusive as descobertas mais revolucionárias. Carregamos o passado como uma bagagem cultural que media nossas relações com todas as coisas. As plaquinhas de identificação, na vila, evocam essa mediação — de maneira alusiva, claro, mas elas põem em questão essa necessidade de legendar, proteger, explicar tudo com as palavras já conhecidas que nos foram ensinadas. Não acredito que seja possível fazer tábula rasa, nem devemos, mas é nossa tarefa colocar em questão essas formas que nos são dadas prontas, e nisso me parece que a literatura e as artes em geral são grandes aliadas. Somos, afinal, muito bem domesticados. Meu próximo livro, que deve sair no próximo semestre, investiga essa domesticação de maneira inusitada, num viés da animalidade e com um formato completamente diferente do romance: são textos curtos, humorados, que vêm provocar atrito entre a ideia de beleza e o abismo da nossa realidade diante da natureza.

segunda-feira, 2 de março de 2020

“TESTEMUNHO OCULAR” REFLETE OS ESTÍMULOS DAS IMAGENS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

A resenha abaixo foi publicada originalmente pelo escritor Fernando Sousa Andrade no portal Literatura & Fechadura. A primeira edição do Testemunho Ocular se esgotou na editora, mas ainda restam os últimos exemplares comigo. Se tiver interesse, mande e-mail para edualmeida@artefazparte.com e enviarei um para você com o maior prazer.


O eu e o objeto que lhe devolve o olhar. O objeto sorri, já que foi nutrição do olhar do outro. Não vamos aqui discursar sobre o efeito do sujeito. Pois aquele que olha (a sujeição do olhar) também pode virar uma imagem fremida dentro da retina de alguém.

Trocar efeitos de visão, ambos serem matéria concentrada do olho-entorno. Mas aqui situamos um narrador, aquele que conta uma ação sobre algo, e sua imagem toda serrilhada de sinapses, sensações que parecem que dão até arrepios em quem emite.

O que acontece quando procuramos o que não achamos? Não é somente a fuga, a falta de respostas. Um narrador precisa decifrar suas imagens, elas precisam ter receptores que encaixem na sua rede de quebra-cabeças. O que procura? Mas o objeto que procura também é seu desejo, que recebe estímulos de trocentas imagens por raios afora.

Diríamos que há uma poluição de imagens sem seu devido reconhecimento? Estas incitações, diríamos filosóficas, encontrei no livro Testemunho ocular, do escritor Eduardo A. A. Almeida, editora Lamparina Luminosa. São textos cujo arcabouço teórico investigam relações de causa e efeito das sondagens pelo que têm dentro de ações muitas vezes engendradas por enganos, cuja refração enganosa da imagem nos ofusca tal entendimento.

Se a paranoia é um delírio de uma imagem fabricada por uma fuga do real, inventamos narrativas para indexar o real de pura fantasia, assim como o medo de um urubu no conto Rapinagem, pode ter algum trauma oculto sob a ofensa da sua pulsão de morte. É como uma corrida atrás de algo como o pote de arco-íris atrás da montanha. E se este ideário fosse apenas um efeito de contraluz do que tem de estranho, oculto familiar, pela abordagem, aquele mesmo do caminho trilhado pelos arquétipos narrativos, um desejo, às vezes, é apenas seu medo camuflado.