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sexta-feira, 26 de junho de 2020

DERROCADA

Foto de Alexander Andrews em Unsplash


Eis que a árvore cede
arrancada de suas raízes
tomba na direção do muro
apoia nele seu derradeiro peso
escora num único abraço
sua ordem arruinada de tijolos e cimento,
a qual cederá
assim que a árvore for retirada.

É uma conjunção perdida
mantida por aparelhos enquanto
insistimos na preservação daquilo
que foi e não tornará a ser.

Há esperança, contudo
já não há árvore nem muro.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

TOMAR DISTÂNCIA


Photo by Andrew Buchanan em Unsplash

Des-ver
estranhar
excomungar
expatriar

ser um pouco estrangeiro
me perder no próprio mapa
tomar distância 
desconhecer melhor a vida 
dada de antemão

ver nessa vida o que
ela não é, vê-la
diversa de mim
e a abrir a vida, esgarçar
sua imagem, escancarar
o olhar para torná-la
imaginariamente
outra e em seguida outra
realmente

embriagar-me das falhas
até que estejam completas
de frescas ligaduras
que também cristalizarão,
desejantes de um olhar
fascinado e perigosamente
próximo.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

QUASE CIDADES


Foto de Issy Bailey em Unsplash

Existem cidades antigas
cidades futuristas
e existem as cidades
que eu conheço
como aquela
onde nasci
onde quase nada vale a pena ser guardado
nem aponta para um sonho
nenhuma utopia
um lugar que é só presente
para sempre, enquanto durar
poderia ser qualquer lugar do mundo
de alguma maneira é
sem graça
uma lembrança que não se assenta
nem aceita carinho
ou gratidão, tão banal
que é só uma cidade de sobrados gradeados
aos poucos derrubados para no lugar
erguerem prédios banais, também gradeados
com sacadinhas onde casais cansados de si
estiveram uma única vez
e prometeram voltar
falaram nisso, fizeram planos
ainda aguardam a oportunidade certa.

Não haverá
futuro ou memória
apenas este presente infinito
ínfimo, cuja intimidade já não tem mistério
ou sonho
– quem dera utopia
não existe
sequer afago que não seja burocrático, rotineiro
automático, não sei
dias iguais como cada andar do edifício parado
com suas sacadinhas estúpidas
sua disposição padronizada de cômodos
vizinhos, uns como os outros
tão semelhantes
que nem mesmo se cumprimentam
nas áreas comuns, no elevador
por exemplo
vizinhos sem passado ou futuro, gradeados.

Mas eu dizia cidades
onde quase nada vale a pena
– e o quase
faz toda a diferença
sinto que preciso buscá-lo, deve estar por aí
naquela luz acesa quando as demais já dormem
num elevador em que não se fala do calor
– dane-se o tempo presente, ainda dá para encontrar o quase
a falha na programação
fôlego retesado de surpresa
que irrompe da sacadinha e salta no vazio
escapa dos tentáculos mórbidos e
voa, enfim, para longe
àqueles lugares clássicos ou revolucionários
deslocados do agora que é igual ao ontem e à semana que vem
onde se pode experimentar um jeito outro
um pensamento fugaz, um desvio, um desejo
a fagulha que inicie o grande incêndio
das cidades onde nasci e conheci e das quais
sequer me recordo
porque nunca habitaram em mim.

sábado, 6 de junho de 2020

TOMAR DISTÂNCIA PARA DESCONHECER MELHOR

Carta ao pai (2015), de Élida Tessler

Para desgosto de meus pais, quando criança eu adorava desmontar objetos, sendo a caixa de ferramentas um dos meus brinquedos favoritos. Dos carrinhos de plástico aos rádios de pilha, do sifão do lavabo à base do liquidificador, tudo se reduzia às suas menores peças. Eu também misturava produtos de limpeza e às vezes ateava fogo numa coisa ou outra para ver o que acontecia. Tinha um profundo interesse pela estrutura desses objetos, aliado à curiosidade de saber como se transformariam quando submetidos a condições inusitadas. Hoje sei que fiz isso tudo movido também por outra vontade: a de estranhar aqueles objetos que me eram tão banais, dispostos no meu dia a dia como se estivessem ali desde sempre e para sempre. Desparafusando tampas, removendo fios, forçando lacres e depois remontando tudo numa nova composição disfuncional.

Certa vez, logo que saímos de uma exposição de Mira Schendel no MAM-SP, pedi aos estudantes de graduação que eu acompanhava para descreverem o que tinham visto. Nenhum foi capaz de se ater à elaboração mais fundamental: trabalhos de arte em sua maioria feitos com tinta e papel, dispostos em sequência cronológica nas paredes, as molduras todas na mesma altura média, poucas cores destacadas na brancura do museu etc. Eles logo saltavam às impressões que a exposição lhes provocara e às supostas intenções da artista. Apesar da minha insistência, parecia impossível limitarem-se à descrição formal sem significá-la.

Em oficinas de escrita, costumo propor um exercício: os participantes devem eleger um objeto comum de sua rotina e descrevê-lo como se nunca o tivessem visto. Isso que parece simples revela-se um transtorno. Em primeiro lugar porque, com o tempo, perdemos o hábito de apreciar as formas, os mecanismos, a complexidade, enfim, desses objetos com os quais lidamos invariavelmente. Em segundo lugar porque é automático irmos direto às experiências que nos proporcionam, quer dizer, ao seu uso, assim como às memórias a eles associadas. Objetos pessoais têm uma função e uma história; acontece que por vezes elas ocupam todo o lugar da sua existência. Essa proximidade prejudica nossa aptidão de vê-los como eram antes de terem se tornado familiares.

Na última vez em que fizemos o tal exercício, um dos presentes escolheu descrever um mapa. Foi engraçado porque o título já anunciava algo como: o mapa em cima da mesa. Quer dizer, o objeto já estava nomeado e sua condição, estabelecida, independentemente de todo o esforço que viesse na sequência do texto para apreciá-lo.

O mapa é um dos objetos mais complicados de descrever como se jamais o tivéssemos visto porque, em si, resume-se a cores e traços no papel. A representação que nos propõe exige um tanto de educação para ser decodificada. Somente assim sabemos, por exemplo, que o azul remete às águas; o verde, à floresta; o laranja, a certa topografia; a escala, ao tamanho real; além das direções, longitudes e latitudes, rotas, fronteiras geopolíticas etc. Sem compreendermos toda essa legendagem, o mapa é um desenho abstrato.

Se recusarmos essa intimidade imediata que nos faz perceber o mundo no mapa e tomarmos distância para desconhecê-lo; se negarmos nosso condicionamento e abrirmos sua imagem, desmontarmos seus dispositivos, talvez possamos nos tornar um pouco estrangeiros nesse mapa e questionar por que a Europa é o norte, por que muitas fronteiras na África são linhas retas, por que é tão difícil localizar países como Irã ou Vietnã, enquanto temos um imaginário tão detalhado de Nova York, entre outros inúmeros exemplos. Experimentar, portanto, um estranhamento que é também como uma expatriação, pois nos destitui de um território doméstico e de uma língua mãe.

A descrição, que implica distanciamento, interrupção, desmontagem e remontagem, deixa ver também um segundo ponto: o de que esses objetos todos ao nosso redor mantêm algo irreconhecível, que permanecerá desconhecido apesar de nossas tentativas para esclarecê-lo. Estranhá-los, ou seja, romper com sua aparente imobilidade e com essa familiaridade das relações já estabelecidas, é bem o contrário: conhecer obscurecendo. Tal como acontece quando a racionalidade ocidental, de herança iluminista, tenta lidar com conceitos orientais como wabi-sabi ou ma, que não se reduzem a uma definição e, no limite, são mesmo impossíveis de dizer; é necessário abandonar a linguagem para vivenciá-los em outros registros do sentido. O que nos leva ainda a um terceiro ponto do exercício: o de que escrever jamais será o mesmo que a aparência visual nem substituirá a coisa em si.

Para se consolarem por minha reinação incontrolável, que eventualmente trazia prejuízos de diversas espécies, inclusive financeiros, meus pais ora suspiravam que “ao menos” assim eu me tornaria cientista, ora diziam “inventor”. É verdade que trago ainda aquele ímpeto comigo. Apenas com ele posso inventar meu caminho nas artes e na vida, do mesmo modo como prossigo com minhas investigações nas ciências humanas.

No que diz respeito ao conhecimento, temos atualmente dois partidos muito em voga e não excludentes: aquele que aposta mais em armas do que na educação e outro que, por completa ignorância de como a humanidade é complexa, acredita que bastaria investir nas ciências exatas e biológicas. Todavia há questionamentos que só ganham forma em lugares menos precisos, talvez até menos dizíveis e, não obstante, vitais para o conhecimento de nós mesmos.