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quinta-feira, 16 de outubro de 2025

INSETINHO

Foto de The New York Public Library

 

O vídeo foi interrompido por um insetinho, que passou correndo sob o teclado do computador e me desviou a atenção. Era um vídeo de que eu logo esqueceria, como de fato esqueci. Um insetinho como um desses mosquitos de fruta, só que mais divertido. Tinha, digamos, uma vivacidade contagiante. Me desviou a atenção porque passou correndo debaixo do computador, foi mais além na minha mesa de trabalho, tropeçou e virou de pernas para o ar. Espécie de Carlitos. Sabe? Chamou-me a atenção porque, afinal, um mosquitinho correndo, sendo que podia voar. O que leva um insetinho alado a correr, ora essa? E ainda mais a tropeçar. No que tropeça um mosquitinho que dispara sobre o tampo de uma escrivaninha? Ele se recuperou logo do golpe, correu uma vez mais para lá e outra para cá, sabia ser observado. Pausei o vídeo, fiquei de olho nele. Não quis voar, ficou ali, desperdiçando sua alegria comigo. Passou por entre os fios que ligam o computador à tomada, o fone de ouvido às minhas orelhas, o interruptor à luminária. Fazia arte, como dizem, e com razão. Arte. E esporte, era mesmo um grande corredor, mas despretensioso, sabe? Corria à toa, e estava bem com isso. Tropeçou uma vez mais, depois continuou com sua brincadeira na tarde quente de segunda, um inferno no escritório. Fez-me rir. Teve um momento em que desapareceu, escondeu-se em alguma fresta da madeira, pensei que o tivesse perdido. Fiz um silêncio desses de infarto. E do nada ele voltou, como diz minha filha, aprendeu na escola. Do nada. O insetinho. Podia voar, mas corria. Não tenho dúvida de que me fazia graça de propósito. Durou ali uns minutos, até que sua corrida foi interrompida por mais um tombo. As patinhas, voltadas para cima, pararam de se mexer. Cheguei mais perto com meu nariz e o medo de soprá-lo para longe. Tenho um nariz razoável, sabe? Morreu. Pronto. Era o que me faltava. Como consegue morrer tão fácil assim, meu querido? E me deixa a incumbência de sepultá-lo, é isso mesmo? Por que não voou para longe enquanto podia? Por que me fazer companhia nesta tarde quente de segunda no escritório, tão igual a qualquer outra tarde de novembro? Morreu diante de mim sem que eu nada pudesse fazer para salvá-lo. Sem que pudesse retribuir o favor de ter me resgatado daquela qualquer coisa com que a internet me ocupava. Fiquei a observá-lo. Seu corpinho preto, minúsculo, as patinhas mais estreitas que uma linha de costura. O perfil triangular. O jeito de quem não está nem aí para o noticiário. Seu negócio era correr, feliz da vida. Pois imagine você que, do nada, o insetinho retoma a vida. É, sim. Do nada. Corre uma vez mais sobre o tampo da minha mesa e me faz sorrir de novo, um riso que senti nas rugas ao redor dos olhos e no esforço de erguer as maçãs do rosto. Então, era assim que se fazia. Correu para debaixo do teclado, voltou, morreu pela segunda vez em questão de segundos. Ainda por cima era indeciso. Mas desta vez não havia por que eu me enganar, dera seu último suspiro, o pobrezinho. Soprei-o de leve para ter certeza, uma baforadinha de ponta de bico. As perninhas balançaram com a brisa. As asinhas quiseram virá-lo para a posição convencional de um ser vivo, mas nada aconteceu. Ficou lá, parado. Paradinho. E eu junto dele, sabe? Fiquei. Passaram-se uns minutos. Que coisa, que coisa. Aos poucos, retomei meus afazeres no computador. Digitei umas poucas linhas, acho que respondi a alguma mensagem, li uma notícia desimportante. Quis então escrever este relato para não me esquecer dos detalhes, talvez até para inscrever essa vidinha fugaz na bruta história da humanidade. Mesmo não sendo ele humano, aliás, mesmo nós humanos não sendo felizes como um insetinho. Livre, leve. Uma lição de resiliência. Fui correndo com os dedos pelo teclado, pontuando palavras na tela, espontaneamente, sem pretensão. Catando milho. Deixei a mente alçar voo. Achei umas frases bonitas. Senti pena de mim. Pensei então em recolher o corpo do insetinho, estendido sobre a escrivaninha nesta tarde de segunda, quase hora do café. Era merecido, tadinho. Eu me pus a buscá-lo, ainda que não tivesse ideia do que fazer com ele depois. Afastei o teclado para a esquerda. Pisquei. Sorri. O insetinho não estava mais lá.


Foto de The New York Public Library