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quinta-feira, 6 de maio de 2021

LIVE DE LANÇAMENTO! O BELO E A BESTA

Estou feliz da vida por esta celebração em dose dupla: a live de lançamento do meu O belo e besta faz parte da programação do quinto aniversário da Editora Moinhos. 

Vou conversar com Darwin Oliveira, do canal Seleção Literária. E você pode acompanhar e participar ao vivo no canal de YouTube da Moinhos. Vamos? Vamos!

Se ainda não conhece o livro, clique e leia um trecho no site da editora. \o/

ATUALIZAÇÃO (17 de maio): Quem não conseguiu ver ao vivo pode assistir a gravação a qualquer momento clicando aqui.
 


domingo, 11 de abril de 2021

CASTELO DE AREIA

Foto: Anikza Navas em Unsplash

Lembro das cicatrizes de um tio de consideração
que apareciam de sunga na praia
e pensava, coitado dele
embora criança eu não soubesse bem
o motivo daquelas marcas
nem o significado da piedade

Observo hoje em minhas décadas de cicatrizes
– inclusive as que não se mostram –
que a desgraça não é genética
ela contagia por afinidade
em marés de azar
por isso desejo que jamais
me olhem como a um peixe
trazido à areia pelas ondas
porque já não pode nadar
afogado na própria dor

A lembrança que pretendo construir
nos sobreviventes
é a de um sujeito sólido
feito rocha, mesmo sabendo
que a solidez da rocha
é real como nenhuma outra
ou a de ninguém mais.



sexta-feira, 9 de abril de 2021

IDADES DA PEDRA


Para Júlio Lancellotti


Ontem mesmo era a pedra
um obstáculo poético
a marcar as retinas do passante
hoje descobriram pedras a tornarem
ainda mais deplorável a vida
debaixo da ponte, pedras
para manterem as pálpebras abertas
o corpo fatigado
sem lugar onde repousar
inúmeras pedras deixadas
sem pai nem mãe nem coração
apenas pedras
acontece que nunca são apenas nada
acontece de serem violência
peso doloroso demais
sobre nossas costas já curvadas
nossos horizontes nos pés
nossos braços encurtados e fracos
incapazes de erguer a marreta
ignorando que bastaria erguê-la
para o universo transformar pedras em pó
eis que surge um paladino
nome de herói, porte simples
já muito vivido e ainda muito vivo
cansado disto tudo, disposto
a superar a si próprio
a gravidade da nossa condição
implodir mais um exército nesta era sombria
mais uma muralha invisível posta abaixo
com um golpe somente
um golpe!
tamanha a sua força simbólica.

quinta-feira, 25 de março de 2021

DEZ (OU ONZE) LIVROS SOBRE HUMANIDADE E ANIMALIDADE

Clique aqui para encomendar o seu direto com a editora!

As afinidades e desavenças entre humanos e outros animais estabelecem um ramo extenso da literatura, desde as fábulas de Esopo a escritores contemporâneos. Fui me embrenhando por essa selva cheia de mistérios, encantos e absurdos enquanto escrevia meu livro mais recente, chamado O belo e a besta, que está sendo lançado agora pela editora Moinhos.

Talvez você já tenha lido uma porção de histórias sem se atentar a essa questão. Às vezes, a animalidade é apenas parte de uma obra mais complexa, como no caso das próprias fábulas, que trazem fundamentos morais implicados na relação entre animais falantes, cujo comportamento simula o dos humanos.

A seguir, dou dicas de livros que marcaram minha vida de leitor e que influenciaram a escrita de O belo e a besta. Estes não são necessariamente os melhores. Nem os únicos. Mas podem ser boas portas de entrada para quem se interessar pelo assunto, assim como foram para mim.

1. Em primeiro lugar, dois personagens que já na infância me fizeram perceber que a leitura podia ser tão prazerosa quanto crítica. Não falo de um livro específico, mas de toda a obra de Bill Waterson com Calvin e Haroldo. Se você nunca leu, precisa ler. Calvin é um menininho norte-americano com um tigre de estimação, que para os adultos é uma pelúcia, mas para ele é um animal de verdade. E o engraçado é que o tigre parece bem mais civilizado do que a criança.

2. Atualizando a tradição popular existe o sensacional A ovelha negra e outras fábulas, do escritor hondurenho Augusto Monterrosso. Com histórias repletas de humor, ironia e política, ele subverte a lógica e a moral das fábulas convencionais.

3 e 4. Dois escritores latinos criaram inventários de animais reais ou fantásticos, que nos lembram bestiários medievais e as descrições da fauna americana feitas durante a colonização, quando tudo aqui parecia selvagem e violento aos olhos estrangeiros. Refiro-me ao argentino Jorge Luis Borges, com O livro dos seres imaginários, e ao brasileiro Wilson Bueno, que publicou O jardim zoológico, entre outros títulos com a mesma temática. Em ambos, lemos o nome e uma descrição desses animais, que mostram até onde vai a nossa inventividade sobre a natureza.

5. Eu ia dizer “até onde vai nossa fantasia sobre a alteridade que os animais apresentam”, mas quem explora isso com mais afinco é Guimarães Rosa. A tal animalidade permeia boa parte dos seus textos, e talvez o ápice seja Meu tio o Iauaretê, publicado na coletânea Estas histórias. O conto mostra um matador de onças que vive na mata e que, vamos descobrindo aos poucos, descende das próprias onças; um homem-bicho cujas características correspondentes a um ou a outro são meio indiscerníveis.

6. Falando nisso, outro livro que marcou minha juventude é A revolução dos bichos, de George Orwell, que critica os regimes totalitários usando animais como metáforas de certas organizações sociais. É curto, impactante, e os governos atuais nunca o deixam envelhecer ou se tornar inoportuno.

7. Maus, de Art Spiegelman, tem com ele algumas semelhanças. Inspirado na experiência do pai do autor na Segunda Guerra Mundial, ali as nacionalidades ou etnias são representadas como animais. Os norte-americanos são cachorros, os alemães são gatos, os judeus são ratos e assim por diante. Mais interessante do que as questões de perseguição e dos campos de concentração, já bastante desenvolvidas em outras obras literárias, essa história em quadrinhos mostra como a experiência marca não apenas quem lá esteve, mas inclusive quem nasceu quando a guerra já tinha acabado.

8. Eu poderia citar vários outros títulos de ficção, mas quero aproveitar a oportunidade para compartilhar também três obras ensaísticas que ajudam a problematizar o assunto. A primeira delas é Literatura e animalidade, da brasileira Maria Esther Maciel, que me mostrou a possibilidade de realizar uma abordagem poética para além das alegorias do comportamento humano, por vezes baseadas em animais estereotipados. Boa parte do meu livro foi escrita em diálogo com suas análises.

9 e 10. Duas obras de leitura mais complexa são O que os animais nos ensinam sobre política, do canadense Brian Massumi, e O aberto: o homem e o animal, do italiano Giorgio Agamben. Ambos os filósofos expandem, pesam e cruzam os conceitos de humanidade e de animalidade, revendo-os historicamente, buscando outros sentidos possíveis advindos de diferentes áreas do conhecimento e mostrando como a nossa perspectiva sobre os animais quase sempre é estreita e preconceituosa.

Demais títulos de não ficção que eu poderia citar aqui foram encontrados nas referências bibliográficas desses três. Sugiro que você dê uma olhada, caso também se interesse. A lista é imensa.

Por fim, convido você a conhecer meu O belo e a besta. Ele propõe uma espécie de passeio por um jardim zoológico em que se pode olhar os animais e onde eles olham de volta. O livro é composto por cerca de setenta textinhos que buscam um tom entre a ironia e o bom humor, ou entre o natural e o bizarro. Foi escrito para ser divertido, causar espanto, inquietar. E eu espero que também possa sugerir o que os animais têm a dizer sobre a nossa humanidade.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

TESTEMUNHO OCULAR AGORA EM EBOOK!


 Primeira boa notícia de 2021! Meu livro Testemunho ocular, esgotado na editora, acaba de ganhar uma versão digital. Dá para ler no celular, no computador e no Kindle. 

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sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

SEMPRE PENSEI QUE MORRERIA

Foto de Dasha Urvachova em Unsplash

De dengue, febre amarela, chicungunha 
bala perdida assalto, polícia 
aids 
democracia 
sedentarismo 
achei que morreria por sonhar 
por lutar ou, 
tendo vencido, 
por velhice 
teve momentos em que morrer 
seria sorte 
ignorância 
bênção 
e encontrar o além era 
esperança 
indiferença 
tuberculose, canibalismo, chibata 
eu tinha tudo para morrer de raiva 
estresse esgotamento 
piripaque 
dizia minha avó 
que não está mais entre nós 
por desilusão com a vida 
achei que a sinceridade me mataria 
o tédio, a fome 
a precariedade 
que só se vê de longe, veja bem 
morreria de amor 
assassinado, quem diria 
e teria valido a pena 
senão pularia do viaduto 
do chá envenenado 
por tristeza 
por quem se foi 
gritaria até perder o fôlego 
adeus! 
e me iria em boa hora 
nem um minuto a mais 
nunca a UTI 
o coma induzido 
emagrecer e falecer 
irreconhecível 
como se um outro morresse no meu lugar 
queria o acidente 
heroísmo 
uma legenda favorável, enfim 
jaz aqui: 
eu, no caso 
e diga-se de passagem 
nunca pensei nisso a sério 
ao contrário do que fiz parecer 
não planejei, não 
era jovem e 
descobri com certo espanto 
injustificado, é verdade 
a morte leva mesmo 
a boa gente, 
a boa alma 
não faz distinção 
quebra o vaso 
tira o ar de quem parte 
o chão de quem fica 
onde? 
como foi? 
uma tragédia 
não se sabe direito 
um espirro 
embalagem contaminada aperto de mão gole de copo botão de elevador excesso de confiança 
a brisa de fim de tarde 
noite adentro 
eterna.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

CRIATIVIDADE EMBOTADA

Possivelmente assim como você, estou em casa com esposa e filha desde o início de março, onde vida familiar e profissional nunca estiveram tão misturadas, indiscerníveis até. É sem dúvida um privilégio se comparado a quem precisa sair, expondo a própria saúde e a de seus próximos. Há também outros aspectos positivos. Por exemplo, acompanho cada momento desse terceiro ano de minha menina. Fico a imaginar quanto teria perdido se continuássemos na rotina anterior, em que ela passava dez horas por dia na escola. Os pontos negativos, claro, são inúmeros, nem caberia elencá-los aqui. Todavia, um deles me chamou a atenção recentemente, e pude discuti-lo com amigos escritores e artistas que vivem situação semelhante à minha, quando concluí que existe mesmo uma constante: ao longo da quarentena, o contato com aquele pulso mais criativo, tão típico do ser humano, foi sendo minado até quase desaparecer. Aconteceu devagar, um pouquinho por semana, de modo que não consigo identificar um ponto exato de ruptura, apesar de ser assim que me sinto agora, apartado dele por completo.

Foto de Julia Joppien em Unsplash (detalhe)

De início, tentei elaborar a nova condição imposta pelo vírus, e como os tempos mais alargados já não cabiam, optei por trabalhar com poemas breves. Havia neles o engenho da palavra e, mais importante, uma reapresentação da vida, perturbada com as mudanças que eu observava ao redor. Tais poemas foram escasseando. Não porque me faltavam palavras, mas porque faltava vida.

Pode soar paradoxal, em especial se levarmos em conta que certa inércia das primeiras semanas foi logo preenchida com mais e mais trabalho, ao ponto em que jamais produzi tanto, profissionalmente falando, como neste último mês de novembro. As horas estiveram todas ocupadas, como se não houvesse sequer alguns minutos de respiro. Porém tais realizações não foram além de um modelo automático, dedicado a quem contrata meus serviços de redação. Talvez você se pergunte: é possível escrever sem criatividade? Sim e não, eu diria. Neste caso, basta um apuro técnico com as palavras, como se eu escrevesse com um jogo de peças de montar. O que não é suficiente para escrever literatura, não basta para desenvolver ensaios críticos, coisas que muito me interessam. Talvez você sinta o mesmo em relação à sua área de atuação e seus interesses particulares.

E por que não basta? Porque falta vida. Foi assim que me dei conta de como eram importantes as quase duas horas por dia no transporte público, o horário preservado para o almoço, as pausas para o café. Tanto quanto os passeios de fim de semana no parque, nos centros de cultura, em restaurantes e até mesmo no comércio. O encontro com conhecidos e desconhecidos. Como bem disse uma amiga, visitar uma exposição no museu é muito mais do que estar frente a frente com obras de arte. Vemos pessoas ali e nos percursos de ida e volta, ouvimos uma música, somos atravessados por trechos de conversas, sustos e deleites. O corpo se põe em movimento, sentimos os cheiros da rua, somos tocados pelo sol e pelas sombras. Carros pedem passagem, pássaros nos dão cantadas, desviamos olhares e trajetórias. Reagimos de improviso o tempo inteiro. Estamos abertos ao espontâneo.

É a essa vida que eu me referia, acusando a sua falta. É dela que advém a intensidade criativa capaz de se converter em poesia. É da natureza desse dia a dia social e político se apresentar como uma verdadeira experiência estética a quem se permite. O fato de não poder mais vivenciá-lo leva a um automatismo psíquico e, com certeza, a um comportamento produtivo, porém sem vitalidade. No limite, sinto-me como que morto; um morto-vivo, digamos.

Aquela dificuldade de separar minimamente o pessoal e o profissional tem provocado sentimentos controversos, como a alegria de estar junto de quem amo e a culpa por não realizar algo prazeroso, como pesquisar, por exemplo. Se algum tempo se abre na rotina de trabalho obrigatório, não consigo pegar um livro e apreciá-lo, sabendo que minha filha espera companhia para brincar. Quero estar com ela o máximo possível, ao mesmo tempo em que me pego torcendo pela sua hora de soneca. Quando saio em fins de semana para fazer algum exercício, pedalando, penso que devo retornar o quanto antes.

Claro que a força criativa às vezes encontra falhas no casco e vaza. Acontece de eu despertar de madrugada para escrever alguma coisa que me convoca. Comecei também a fazer pães, de maneira que não me sinto tão culpado com o tempo que demandam, pois todos na casa usufruímos deles. Encontro aí alguma energia para manter o pulso. Mas sinto que mesmo essas atividades começam a vestir o uniforme fabril.

Dizem que 2020 ficará marcado como o ano da doença, enquanto 2021 será o ano da cura. Sem dúvida são narrativas factíveis, ainda que leve um bom tempo até sermos vacinados, ao que tudo indica. Outra amiga manifestou a necessidade de um rito de passagem, como o próprio réveillon, que simboliza o encerramento de um ciclo e o início de outro. De minha parte, sinto que ele não terá esse poder; ainda teremos muito 2020 no ano que vem.

“Vai dar certo no final”, seja lá o que isso signifique, assim como a ideia de um “novo normal” em que a sociedade será mais compreensiva e solidária são visões generalistas, ou seja, não servem para muita coisa, exceto nos ludibriar. Infelizmente, não estou em condições de ir muito além na elaboração de futuros possíveis.

Não quero, contudo, parecer pessimista. Sigo o ritmo que me cabe agora, tentando de uma maneira ou de outra um descompasso, um desvio, um tropeção, que seja. Que me permita cair no mundo outra vez e me conectar com a vitalidade criativa de maneira mais intensa do que a favorecida pela fibra ótica. Se posso desejar algo neste fim de ano é que eu consiga reinventá-lo pela arte. A qual, tenho certeza, me aguarda tão ávida quanto aguardo por ela.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

CRIAR, GUARDAR, COLECIONAR

Na Companhia dos Objetos #8 (2009), de Flávia Junqueira

A história da humanidade pode ser contada por meio dos objetos que utilizamos, acumulamos, passamos de geração em geração, descartamos ou até mesmo sepultamos com nossos restos mortais. Por menos materialistas que pretendamos ser, temos com eles uma relação especial, que é exclusiva da nossa espécie. Uma relação que se manifesta de diferentes maneiras ao longo do tempo e dos povos, mas que mantém um princípio comum com a sobrevivência. São marcas da civilização: as ferramentas, as vestimentas, os adornos; os objetos sagrados e os profanos, os especiais e os banais. Artesanias que passam a existir por meio de um gesto transformador, o qual diferencia a matéria da sua natureza original. Todo artefato é também um artifício justamente porque criado pelo homem e incorporado a uma cultura. Adquire, de algum modo, um aspecto simbólico, um sentido prático, uma função.

O que são esses objetos no rack da sala, exibidos às visitas? Quais são os que guardamos no quartinho da bagunça, longe dos nossos próprios olhos? O que dizem sobre nós, proposital ou inadvertidamente? Quando foram adquiridos, em que circunstância? Quais desejos estão associados a eles? Por que ainda os temos? Que memórias eles sustentam? Que sentimentos produzem?

Lemos no poema Aspectos de uma casa, de Carlos Drummond de Andrade: “Ajudemos Maria (dizem eles / no dizer sem nome dos objetos) / a compor sua casa / como de um baralho de sons / se compõe a estrutura musical”. Antes, ainda, ele escreve: “Maria cria sua casa / como o pássaro cria seu voo”. Ao longo dos demais versos, o poeta enumera coisas que fazem daquele teto um lar, cada qual no quarto do seu respectivo dono, outros no espaço comum do living. São elas as protagonistas da narrativa; são elas que, numa dada organização, compõem o cenário, expõem o enredo e nos fazem imaginar os coadjuvantes humanos que não estão ali, exceto por seus rastros. Não obstante, Maria cria sua casa por instinto, num certo improviso que reage às ações da vida, tal como o pássaro cria o voo.

A organização para uns é a desorganização de outros. Como vemos no breve documentário Nova Iorque, mais uma cidade, que acompanha a indígena Patrícia Ferreira durante sua visita ao Museu Americano de História Natural, onde observa peças dos nativos sul-americanos. Nas vitrines, encontra coisas que em sua opinião não deveriam estar ali, descontextualizadas e distantes das pessoas que as possuíam, abertas a interpretações quaisquer, o que para a cineasta configura um desrespeito à cultura guarani.

O que provocamos ao transferir objetos de lugar, ao reorganizá-los em novas composições, ao exclui-los da vista ou ao trazer à tona os costumeiramente invisíveis? Essas questões foram caras a artistas como Marcel Duchamp, Kurt Schwitters, Pablo Picasso e Salvador Dalí, entre outros que fizeram e ainda fazem, desde o Modernismo, experiências do gênero. Penso, por exemplo, no mictório que Duchamp levou ao espaço expositivo; nos pertences de amigos incorporados por Schwitters a sua Merzbau; nos materiais da vida comum que Picasso agregou as suas pinturas, como retalhos de tecido e jornais; nos objetos oníricos de Dalí, modificados em sua forma e função originais.

Seja em casa ou no museu, por que acumulamos coisas? E por qual motivo as colecionamos, instituindo métodos de escolha e preservação? Quais legendas acompanham essas coleções? Que histórias elas formulam? Que conhecimentos advêm delas?

No conto O colecionador, Maria Esther Maciel fala de um homem que reunia nomes de mulheres. Primeiro os que traziam o som da água, depois os nomes florais, por vezes aqueles com uma inicial específica. Os que não se enquadravam nas categorias “ficaram apenas em sua memória como uma causa perdida”. Até que um dia, sem motivo aparente, tal homem desiste da pesquisa e passa noites em claro, perturbado com o desafio de achar uma mulher sem nome.

Pode, no domínio da humanidade, haver existência não nomeada, talvez naquele “dizer sem nome dos objetos”, como Drummond escreveu? Pode existir objeto que não esteja acompanhado de palavra? No desenlace do poema, acontece algo semelhante ao que vemos no conto de Maciel: após observar as coisas que se encontram na casa de Maria, uma pomba alça voo e vai-se embora. Pois tanto elas quanto seus nomes, para o pássaro, nada significam.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

LIDA

Foto de Henry & Co. em Unsplash


No reflexo dos olhos
deste livro que me lê
está posto o lugar-comum
aqui, entre as páginas abertas
o meu encerramento vivo
em pretensa diferenciação
identidade
individualidade, não
nada mais previsível que
uma unidade fabricada
em larga escala, induzida
a testes rígidos
para se manter um padrão na lida
e a repulsa pelo que dele escapa

Não consigo me ver assim, na realidade
é como sou – visto
tudo isto evidenciado
frente ao livro impassível

Enquanto a moldura
me oferece o paraíso
a preços módicos, uma vida
próxima, tranquila, todavia eu
sou encarado pelo poema e até
lido
suficientemente bem
com ser objeto de
complexa trama
algum desinteresse
irresoluta observação

Faço meu esforço convocado
pela leitura desse suposto eu
nos olhos que sequer pestanejam
translúcidos, adiante
e me ofuscam como a luz
no fim da vida.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

NA COMPANHIA DE GOETHE

Goethe na campanha romana (1787), pintado pelo amigo Johann Heinrich Wilhelm Tischbein durante a estada do escritor na Itália

Tem sido bom ler um livro imenso como o Viagem à Itália, de Johann Wolfgang von Goethe, com suas seiscentas páginas de letras miúdas. Desde o início da quarentena, meu sentimento do tempo é o que mais se desorganizou. As tarefas deixaram de caber nos horários reservados a elas, os dias ficaram iguais, minhas ações tornaram-se reações atrasadas. Uma sensação de não dar conta daquilo que é exigido na administração da casa, na paternidade, no trabalho; verdadeiro descompasso com tudo que se apresenta ao redor. Então à noite, pouco antes de dormir, acompanho Goethe desde a sua Alemanha em fins do século XVIII até Nápoles, cruzando a Itália a partir do nordeste, passando por Roma e outras cidades menores. Viajo a pé ou de carruagem madrugada adentro, observando as montanhas no horizonte, os vales cultivados, os dialetos dos povoados. Elaboro as minhas impressões com desenhos e com palavras.

O livro é composto por uma reunião de cartas e anotações. Seu formato de diário me surpreende: como Goethe consegue percorrer tamanhas distâncias, visitar lugares e pessoas, admirar obras de arte e ainda escrever de maneira tão minuciosa a cada vinte e quatro horas? Não bastasse a percepção desse tempo alargado, seus escritos também produzem em mim um distanciamento através dos séculos que nos separam, que chega como um verdadeiro fôlego para suportar o imediatismo de hoje, as preocupações de prazo curtíssimo, a constante ameaça da morte. “Impossível conhecer o presente sem reconhecer o passado, e o equilíbrio entre ambos demanda mais tempo e tranquilidade”, diz meu companheiro.

Surpreende-me, ainda, seu amplo conhecimento. Ele observa, por vezes em longas descrições, as latitudes, a meteorologia, a composição do solo, a vegetação, as histórias da arte e da arquitetura. Sua curiosidade a respeito de tudo é uma coisa linda de tão viva. Emociono-me, com ele, à vista das primeiras oliveiras, que não germinam em sua terra natal. Tenho o mesmo prazer ao experimentar as uvas, as peras e os figos, suas frutas favoritas. Ao visitar as livrarias e aprender com outros mestres, anteriores ao próprio Goethe, enquanto este busca apreender tudo o que pode sobre os artistas, a antiguidade, os costumes, as vestimentas, os trajetos. Em Roma, ele se esforça para comparar os mapas da nova e da velha cidade. Se no início da viagem prometeu a si mesmo não andar com peso excessivo, assume seu fracasso ao recolher “cerca de seis quilos” de certa barrita. “E lá vou eu mais uma vez, carregado de pedras!”, diz, ampliando sua coleção. Ao seu lado, quero saber: o que é barrita? O que Winckelmann pensava sobre aquela escultura? Como é possível guiar-se pelas montanhas, observando somente o curso dos rios?

Sua experiência de estranhamento com a religião católica, alvo de duras críticas de viés protestante; com o sentimento de solidão e anonimato em meio à multidão italiana, um século antes de Baudelaire escrever sobre o mesmo assunto; com a necessidade de educar o olhar para apreciar as pinturas dos museus; isso tudo se coloca como questões de um estrangeiro no embate com o outro e com a cultura local.

Mesmo bem preparado intelectualmente, Goethe encara sua viagem com o rigor de quem ainda tem muito para ver. Diz ele: “preciso agora concentrar minhas energias da melhor maneira possível, é preciso que haja ordem. Não estou aqui para me divertir de acordo com meus desejos. Quero dedicar-me ao estudo dos grandes objetos, aprender e me instruir antes de completar quarenta anos”.

Acho difícil dissociar essa sede de conhecimento e seus desejos; ela é o próprio desejo manifesto. Já eu, que me aproximo da mesma idade, quero assumir que não dá mais, sinto que preciso admitir a derrota, pois a vida que resta não basta. É ainda pior nas circunstâncias atuais. Caminho pé ante pé, mas Goethe se encontra lá adiante, quase não consigo vê-lo. Impossível aumentar o ritmo para alcançá-lo.

Então leio seus pensamentos registrados em Roma no dia 20 de dezembro de 1786, que mostram não apenas o quanto ele próprio se sentia pouco instruído, como também a sua necessidade de desconstruir o que já sabia para perceber o novo. Em suas palavras: “é certo que eu pensava poder aprender algo aqui. Eu não sabia, entretanto, que teria de retroceder tanto em minha formação escolar, que teria de desaprender tanta coisa, ou mesmo aprender de outro modo. Agora, porém, encontro-me totalmente convencido disso, tendo me entregado por completo ao processo, e quando mais eu tenho de renegar a mim mesmo, mais me alegro”.

Respiro fundo. Sigo com Goethe. Ainda mal cheguei à metade de sua viagem. Acalmo a pressa, redimo-me com a ansiedade. Sinto o pulso da terra, assim como ele o fez. Foi bom até aqui. Antevejo que continuará a me fazer bem explorar o tempo e o espaço, mesmo sem sair de casa, folheando páginas e páginas de uma longa jornada de aprendizado.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

HISTORINHA PARA DESPERTAR

Foto de Camila Jacques em Unsplash


Nesta madrugada leio uma historinha
de C. Drummond de Andrade –
sempre ele! – e digo historinha apenas
porque é como ele a chamou.
Pensando bem é sempre uma
– não simplesmente pequena, isso é o de menos –
historinha porque singela como uma flor
e sólida como o asfalto.
Fazia anos que eu não recorria ao Drummond
mas o atual sentimento do mundo
me faz querer aconchegar os olhos
numa historinha assim sutil e
de tamanha potência que me arranca o sono
por um bom motivo, enfim.
Ela conta de uma reunião muito importante
de executivos do mais alto escalão
com graves assuntos a deliberar
um encontro que não pode ser interrompido por nada
nem ninguém
mas é
caso contrário não haveria história
digna de ser contada
batem à porta
anunciam uma senhorinha
– é como a imagino, miúda –
que sem graça pede licença
pede perdão por interromper tão ilustre conselho
mas acontece que
seu canarinho
– que tem ele?
morreu
– e daí?
ela solicita, encarecidamente
caso os senhores não se importem
se não for abusar do valioso tempo
para enterrá-lo no lindo jardim do terraço
pois apesar de pertencer a uma grande firma
é pequeno o suficiente
para abrigar um canarinho
em seu último sono.
O parque municipal
mesmo a praça da esquina
seria demais
e para surpresa geral
– inclusive a minha –
os sérios executivos concordam
concedem tal licença e permissão
até mesmo interrompem sua análise especialíssima
de uma questão profunda
para o cortejo fúnebre
e o sepultamento da ave
em sua cova de sete colheres de terra.
Era uma graça, pousava no dedo.
Muito lindo, como eu me recordava do Drummond
tão simples e delicado e ainda assim
tão Drummond
esse monstro de óculos
apoiados em nariz estreito
e paletó maior que o corpo
a ponto de quase desabarem.
Acontece que
perdi o sono
não para a senhorinha ou
para os executivos,
foi para o empregado responsável
pela maior das mínimas revoluções
aquele que bateu à porta
contrariando ordens expressas e assim
perturbou tantas outras implícitas
aquele que ousou desobedecer
– servidor antigo, conceituado –
e talvez sem querer
fez despertar alguma poesia
do momento qualquer
a ínfima e infinita poesia
à qual Drummond chamou historinha
por completa intimidade,
por certeza do que basta e
do que não encontra limite.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

[live] LANCEI UM LIVRO. E AGORA?

Participo desse bate-papo sobre publicação e divulgação de livros, que será transmitido ao vivo pelo Facebook da plataforma Vida de Escritor. Clique no link e acompanhe!

 

TRÊS CONCHAS CINZA

Côncavo IV - série azul (2016), Lúcia Quintiliano

Talvez você se pergunte o que significam estes longos períodos de silêncio entre um escrito e outro. Desde a chegada da pandemia ao Brasil, quase não toquei no caderno de memórias que pretendo lhe entregar no futuro, quando você for adulta. Claro que muito tem acontecido, mesmo se a história lhe disser que o mundo parou. Não parou sequer quando deveria ter parado. Estamos confinados numa correria impensável, sobrevivendo precariamente entre o trabalho remoto, o ensino à distância e todas as atividades mal realizadas que só produzem frustração. Nossa situação é privilegiada. A falência geral sangra mais onde não vemos. Há pessoas fragilizadas, vulneráveis, obrigadas a se arriscarem para sustentar o nosso isolamento social. Elas habitam os silêncios entre um relato e outro da história. Se puder, tente ouvir seus sussurros nas conchas que guardei na prateleira da biblioteca, elas falam da fenda entre o que chamamos de sociedade e o que ela de fato é. Por ora, só posso dizer de minha perspectiva parcial e insuficiente, como são todas.

Recolhi da praia três conchas cinza bastante semelhantes, exceto pelo tamanho. Uma maior, outra média, outra pequena. Guardei-as como lembranças de nossa estada no litoral durante alguns dias da pandemia, onde você enfim pôde correr pela areia e tomar sol, após três ou quatro meses isolada em um apartamento. Você não cabia em si; eu e sua mãe ficamos aliviados. Peguei as conchas intuindo que de alguma maneira elas se pareciam conosco. Só agora me pergunto por que, exatamente. A vida que as habitava já não está. Qual teria sido o seu destino? O que significam conchas vazias na areia, trazidas pelas ondas, neste contexto atual? Como é viver numa concha, encontrar segurança apenas no interior daquela estrutura rígida? Ser levada para um lado e para o outro, a dança conduzida pelo mar?

Em casa, folheio poemas escritos pelo chinês Ai Qing na época de sua viagem à América do Sul, em 1954, por ocasião do aniversário de cinquenta anos do amigo Pablo Neruda. A última fotografia reproduzida no livro mostra o poeta agachado na areia, recolhendo o que parecem ser conchas. A mão direita, mais baixa, tenta agarrar uma delas. Na esquerda estão as já escolhidas, posso ouvi-las tilintarem, quase caindo entre os vãos de seus dedos. Os cabelos estão revoltos pelo vento que sopra do Pacífico, o mesmo oceano que contorna sua terra natal. As mangas e pernas de seu terno escuro estão esbranquiçadas pela areia fina do litoral chileno, talvez de Viña del Mar ou El Quisco, conforme a legenda da imagem.

Sabe-se que Ai Qing recebeu com muito carinho a coleção de conchas com que “el capitán” o presenteou e que o encantou pela diversidade de cores e formatos, guardadas como relíquias de uma experiência de liberdade, trocas culturais, inspiração para um ideal de sociedade sempre porvir. Pouco depois de retornar à China, o poeta foi preso pela repressão e condenado a um confinamento de vinte e um anos, que lhe retirou todos os direitos civis e políticos.

Tive o prazer de visitar a casa-museu de Neruda em Valparaíso, apelidada de La Sebastiana, toda decorada com os mesmos motivos náuticos que se encontram nas suas demais residências. Da sua cabine de comando se vê o Pacífico, cujo nome se dilui num horizonte infinito. Diz o longo poema que Ai Qing dedicou ao anfitrião, intitulado Sobre um promontório no Chile: “O dono da casa é / amigo de Lorca, o poeta assassinado / testemunha do martírio da Espanha / diplomata aposentado e / não almirante”. Mais adiante, lemos: “Alguém se levanta e / com uma lupa / busca lugares no mapa-múndi / onde ainda não botou os pés / O mundo em que vivemos / parece-nos tão imenso / mas é de fato pequeno / Num mundo como este / a vida deveria ser melhor”.

Enquanto sobrevoava outro oceano, vindo da Europa e da África e antes ainda de chegar a Recife, Ai Qing escreveu também um longo poema de evidente caráter anti-imperialista, olhando para baixo pela janela do avião. Chama-se Atlântico, do qual recorto uns versos: “Vida é preciosidade sem preço, / Mas, na opinião dos vendedores da guerra, / Vida é insignificante, / Na balança deles, / Para equilibrar com contrapeso, / É preciso um caderno / De mil páginas cheias de nomes de pessoas.”

Será que, ao vasculhar a areia na praia chilena, Ai Qing sonhava com a revolução comunista, que pretendeu criar um país igualitário? Sua poesia viajante, seu olhar estrangeiro voltado à nossa América do Sul.

Neruda escrevia sempre com caneta-tinteiro e uma tinta verde-mar. Já tive um vidro dessa tinta, mas não consigo desaguar no papel sequer uma amostra da sua imensidão poética.

Caminho pela praia do litoral norte de São Paulo, recolho três conchas cinza, olho para as águas que são outras e são as mesmas de Neruda e Ai Qing, separadas por mera convenção. Afundo meus pés na areia sem poder distinguir o que nela são fragmentos de conchas antigas, há muito desbastadas, e o que não é.

Enquanto isso você olha para cima. São andorinhas.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

ASSUMO A DERROTA

Foto de Mark Eder em Unsplash

Abandono os planos no papel

rasgo sonhos ao meio

atiro os fragmentos pela janela

e fico a ver navios

partirem rumo ao destino

que pensava ser o meu



É preciso assumir

a precariedade que se instalou

a distância impossível no horizonte

que meus olhos um dia tentaram alcançar



Não é a idade

a saúde financeira

o desgaste das relações

é mesmo uma percepção

da vida submetida a instâncias superiores

crueldade e perversão sociais

quase uma iluminação profana

de que não haverá amanhã

nem motivo para tentá-lo

outra vez, por teimosia



Assumir a derrota agora

me chega como um alento

no final, quem diria

uma realização,

espécie de vitória

vazia.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

ANTICORPO

Foto de Velizar Ivanov em Unsplash

Fechado
num esforço coletivo
insuficiente, paliativo
sem tocar nem ser
tocado, sem poder
tocar ou fazer
proibido
pela própria consciência
de um comum
possível
sem sorriso, só smile
sem encontro sem reflexo
de mim sobreposto ao outro
a fantasmática do corpo
– ou o seu contrário?
cadáver ainda vivo
apenas
mais um e
nada mais.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

A LEITURA COMO DESREGRAMENTO DE SENTIDOS

Há livros que me causam uma sensação de abstinência quando deixo de lê-los. Ainda é um mistério por que acontece com alguns e não com outros. Resta essa espécie de nostalgia de uma experiência de vida fictícia, uma vontade de voltar ao que nunca vivi de fato, mas que vivenciei de alguma maneira por intermédio de palavras e imagens. 

Penso se ler poderia mesmo desestabilizar o continuum da vida comum e levar a uma “iluminação profana” – para usar a expressão de Walter Benjamin – por meio dessa embriaguez não alcoólica, quer dizer, sem o uso de outras drogas senão o próprio livro, com o delírio sugerido pelo cheiro de tinta em papel. Uma suspensão de certa ordem que nos abre para outra; pensamento que irrompe de um jogo e remonta toda uma cadeia de significações já formada e banalizada.

Abrir as páginas de um livro de prosa ficcional implica abrir a mim mesmo e me dispor a encarnar um personagem outro; a possessão da sua existência imaginária, dos seus sentimentos contornados pela sintaxe. Viver inclusive uma alteridade radical, como a produzida por William Faulkner na primeira parte de O som e a fúria, em que adentramos a lógica torta de um deficiente intelectual, ou a de Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, em sua estranha animalidade.

A experiência é exigente porque requer desativar mecanismos pessoais já muito aprimorados para inventar outro funcionamento. Acaso se consiga decorrerá o horror ou o prazer da ebriedade estética, por assim dizê-la; esse desregramento dos sentidos que expande a percepção para além das fronteiras do senso-comum.

Há pouco li O museu do silêncio, romance escrito pela japonesa Yoko Ogawa em que um museólogo é chamado a um vilarejo para lidar com uma coleção de objetos especiais. Enquanto se avizinha à nova situação, passeia pelos arredores e nos envolve num enredo inquietante e ao mesmo tempo aconchegante, do qual é difícil sair ileso. Cada vez mais implicado no projeto do futuro museu que está organizando, esse personagem transborda a própria margem e dá a ela nova forma; entre os copos de uísque, enamora-se por uma menina, aproxima-se da natureza com o uso do microscópio e se afasta da própria história familiar. Com ele, passo também a operar segundo outra modulação. As regras se desestabilizam, afrouxam, confundem os sentidos e me levam a uma vida não vivida na realidade, mas na ilusão, da qual ainda assim podemos falar, traduzir em imagens, descrever e interpretar; não menos real, portanto.

Sabemos que a criação da perspectiva na representação visual depende de um ponto de fuga; uma formulação matemática para que se possa escapar da banalidade da vida e adentrar um contexto ilusório disposto na realidade. Puro artifício a enganar os olhos, que veem profundidade num plano preenchido de pigmentos coloridos. E na representação literária, seria muito diferente?

Bacchus (1596-1597), de Michelangelo Merisi, dito Caravaggio
Traço aqui mais um ponto de fuga em busca de nova perspectiva: Caravaggio pintou um famoso Baco, composto por um misto de juventude, quimera e podridão, que olha para fora do quadro, desatento. Tudo ao seu redor parece organizado à perfeição. Ao observarmos a pintura, em seu universo ilusório, vemos a mera banalidade de todos nós. Interessa-me, contudo, saber o que ele vê através da superfície pictórica, com seu olhar desviante e suas bochechas rosadas que denunciam um abandono de si. Aquele Baco é um leitor do nosso mundo; o deus que deixa o sagrado perpétuo para habitar a realidade profana. Quem somos diante da sua imortalidade? Uma existência finita, da qual pouco se preserva. Precisamos desaparecer suficientemente bem para que exista o movimento da vida e os momentos de suspensão que denominamos história.

Cansado, não posso controlar o sono e durmo com O museu do silêncio nas mãos. As páginas do livro aberto fazem as vezes de um portal por onde afluxos de sentimentos vêm e vão. Imagens. Palavras. Afetos. Tomo o mesmo trem que leva o museólogo à vila no interior do Japão; o trem que ele jamais pegará de volta. Parte de mim permanece com ele naquele lugar incrustrado nas montanhas e florestas. Parte de mim observa à distância a coleção de objetos que pretende rememorar cada vida extinta naquela comunidade. Outra parte não será vista novamente; esta última talvez seja a única verdadeiramente liberta.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

DERROCADA

Foto de Alexander Andrews em Unsplash


Eis que a árvore cede
arrancada de suas raízes
tomba na direção do muro
apoia nele seu derradeiro peso
escora num único abraço
sua ordem arruinada de tijolos e cimento,
a qual cederá
assim que a árvore for retirada.

É uma conjunção perdida
mantida por aparelhos enquanto
insistimos na preservação daquilo
que foi e não tornará a ser.

Há esperança, contudo
já não há árvore nem muro.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

TOMAR DISTÂNCIA


Photo by Andrew Buchanan em Unsplash

Des-ver
estranhar
excomungar
expatriar

ser um pouco estrangeiro
me perder no próprio mapa
tomar distância 
desconhecer melhor a vida 
dada de antemão

ver nessa vida o que
ela não é, vê-la
diversa de mim
e a abrir a vida, esgarçar
sua imagem, escancarar
o olhar para torná-la
imaginariamente
outra e em seguida outra
realmente

embriagar-me das falhas
até que estejam completas
de frescas ligaduras
que também cristalizarão,
desejantes de um olhar
fascinado e perigosamente
próximo.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

QUASE CIDADES


Foto de Issy Bailey em Unsplash

Existem cidades antigas
cidades futuristas
e existem as cidades
que eu conheço
como aquela
onde nasci
onde quase nada vale a pena ser guardado
nem aponta para um sonho
nenhuma utopia
um lugar que é só presente
para sempre, enquanto durar
poderia ser qualquer lugar do mundo
de alguma maneira é
sem graça
uma lembrança que não se assenta
nem aceita carinho
ou gratidão, tão banal
que é só uma cidade de sobrados gradeados
aos poucos derrubados para no lugar
erguerem prédios banais, também gradeados
com sacadinhas onde casais cansados de si
estiveram uma única vez
e prometeram voltar
falaram nisso, fizeram planos
ainda aguardam a oportunidade certa.

Não haverá
futuro ou memória
apenas este presente infinito
ínfimo, cuja intimidade já não tem mistério
ou sonho
– quem dera utopia
não existe
sequer afago que não seja burocrático, rotineiro
automático, não sei
dias iguais como cada andar do edifício parado
com suas sacadinhas estúpidas
sua disposição padronizada de cômodos
vizinhos, uns como os outros
tão semelhantes
que nem mesmo se cumprimentam
nas áreas comuns, no elevador
por exemplo
vizinhos sem passado ou futuro, gradeados.

Mas eu dizia cidades
onde quase nada vale a pena
– e o quase
faz toda a diferença
sinto que preciso buscá-lo, deve estar por aí
naquela luz acesa quando as demais já dormem
num elevador em que não se fala do calor
– dane-se o tempo presente, ainda dá para encontrar o quase
a falha na programação
fôlego retesado de surpresa
que irrompe da sacadinha e salta no vazio
escapa dos tentáculos mórbidos e
voa, enfim, para longe
àqueles lugares clássicos ou revolucionários
deslocados do agora que é igual ao ontem e à semana que vem
onde se pode experimentar um jeito outro
um pensamento fugaz, um desvio, um desejo
a fagulha que inicie o grande incêndio
das cidades onde nasci e conheci e das quais
sequer me recordo
porque nunca habitaram em mim.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

TERAPIA INTENSIVA

Vista lateral leste do Palácio do Planalto (fonte: Arquivo Público do DF)

Por que falar agora (ou nunca)
ou num momento qualquer
suspender a voz, as tintas, o tônus
– o que temos, se nada resta
tão pouco que se torna impossível
“sobre”viver entre
residências
desistências
imobilidades
de corpos tão fragilizados, oscilantes, suspirados
como as pausas nas chamadas de vídeo
com seus espectros de aspecto pacato
absorvidos pela iluminação artificial das telas de LED.

Como é possível estabelecer conexão
à fria luz de maio
meia estação, relação entrecortada por
tudo que falha e só faz escancarar a ruína
abismal, escara de um estado de inexistência
falência múltipla de órgãos públicos
quando lá do alto
do planalto berra-se:
e daí?

De seu leito
há quem sinta que é possível ainda
falar porque é preciso
com a voz, as tintas, o ímpeto derradeiro
dar a ver e a ouvir os aflitos
a quem tal violência disparada a esmo
atinge o âmago como uma bala
nem tão perdida assim porque sempre 
fere o mais desprotegido
a existência mínima que só resta
falar e resistir, pois é fundamental
jamais calar diante das ordens de assassínio
e desaparecimento imemorável.

Enquanto houver voz, ouvirá vida.

Leia mais em: Cartas da pandemia