Durante a última aula de pós-graduação, quando fazíamos a avaliação da disciplina, uma estudante tomou coragem e se pôs a falar sobre a crise que experimentara ali, junto com a turma, sem que ninguém soubesse. Ela explicou que, nos primeiros encontros, “sentia-se burra, pois não entendia uma palavra do que estudávamos, não entendia os textos nem os debates”. Seus colegas pareciam saber muito, e ela nada. Foi a mãe que não a deixara desistir. Sábia mulher. Aconselhou a filha a persistir, pois ela também tinha capacidade de saber. Ao final do semestre, a estudante já havia se apropriado do assunto e sentia-se mais à vontade nas aulas. O esforço a recompensara.
Ouvir seu depoimento me tocou profundamente. Aquela linda coragem de assumir o não saber e enfrentá-lo. Agradeci o que ela me ensinava. Relembrei momentos do meu próprio percurso e disse que esses lugares onde nos sentimos burros são os que de fato podem provocar alguma movimentação em nosso pensamento. Não os lugares que oprimem, claro. Mas aqueles que desafiam, tiram o chão, inquietam. Experiências intensas de conhecimento advêm quase sempre quando estamos entre pessoas que parecem oceanos, e que generosamente acolhem o nosso barquinho. Sem graves tempestades, sem bancos de areia traiçoeiros. Por exigente que seja, viver entre quem admiramos é mais promissor do que o conforto do ambiente onde parecemos saber muito ou, ao menos, o suficiente. Acreditar que sabemos é uma ilusão.
Todos conhecemos bastante, entretanto. Isso porque sobreviver demanda aprender o tempo inteiro. Há quem esteja distante do conhecimento certificado, que é o da escola e da universidade, e que não é único. Quantas formas maravilhosas acabam menosprezadas? O conhecimento místico, a prática das artesanias, o conhecimento implicado dos ribeirinhos, caiçaras, indígenas, agricultores, nômades, curandeiros. Sinto-me diminuído diante disso tudo. Teríamos tanto a crescer, enquanto sociedade, acaso valorizássemos tais variedades de conhecimento e as fizéssemos circular! Entretanto ficamos quase sempre restritos ao instituído, formatado conforme o mercado, a comodidade, o preconceito, a aplicação ou até mesmo o medo da grandiosidade dos saberes menores.
Fomos subjetivados a acreditar que o conhecimento amplo é perigoso, desnecessário, entediante. A acreditar que devemos nos especializar: não apenas conhecer muito sobre assunto restrito, mas também restringir a forma, o método e a experiência do conhecimento. De modo que compartilhá-lo se converta em jogos de poder e submissão, como se quem conhecesse mais também pudesse mais. O professor domina a inteligência dos alunos, o médico domina a saúde do paciente, o gerente domina a força de seus operários. Tristeza. Pois o conhecimento, no caso, serve apenas para si. Podemos ser grandes conhecedores, acumular informações preciosas, lotar o cofre com essa suposta riqueza. Ainda assim, conhecer, individualmente, não é saber.
A sabedoria só existe pela partilha do sensível, quando é doada ao coletivo e posta a circular. Um homem pode deter muito conhecimento; sabedoria, entretanto, é produção de um povo. Não pertence a um nem a todos, ela não tem dono. É uma espécie de intensidade invisível, intocável, por vezes indizível e impensável. Sábio não é quem acredita manipulá-la, mas quem se deixa atravessar por ela, quem a evoca e encaminha, quem a alimenta com a própria vitalidade.
Como temos tratado a nossa sabedoria?
Em quase dez anos publicando neste jornal, só nos últimos tempos tenho sentido um impedimento de dizer. As palavras parecem duras demais, as frases soam descompassadas e descartáveis. Em tempos de demasia, é penoso assumir este lugar discursivo. Sinto receio de alimentar o palavrório que dominou as redes, onde todos pensam saber muito de tudo, e de imediato se lançam a dizer; onde não há trocas senão de ofensas, onde ninguém sabe se calar. Fala-se, ininterruptamente, absurdos sem fundamento nem generosidade, sem sabedoria alguma, sem nem mesmo conhecimento. Fala-se apenas por falar, para dominar um território, para impedir que o outro fale. Falam todos ao mesmo tempo, ninguém ouve. Para que, então? Palavras pré-concebidas que sequer apresentam algo apropriado, elas apenas se replicam ao infinito. A cada manifestação supostamente inteligente, crítica e mordaz, escancara-se a ignorância do indivíduo falante, sua redução ao próprio eu, sua captura e colonização, sua fragilidade disfarçada de força e brutalidade. Fala-se alto para esconder a pequenez. Espelho, espelho meu. A estupidez é tamanha que sequer a percebemos, ou não temos coragem de assumir. É preciso, sim, muita coragem, além de um esforço interminável, para ignorar o que conhecemos e assumir o não saber.
Didi-Huberman cita a “rasgadura”, que seria a primeira palavra de quem renuncia às “palavras mágicas”, as quais tudo sabem, tudo dizem, já estão prontas para o consumo. Rasgar para despojar a palavra da sua significação, para arrancá-la do dicionário e da linguagem. Rasgar o mapa da nossa situação, que está por demais domesticado. Buscar um ponto de fuga rumo ao não saber.
Afinal, não somos oceanos, somos meras pocinhas de ignorância que transbordam, afogam as margens, desolam a vida que tentava se estabelecer ali. Quando retomamos a calmaria, ao redor resta apenas aridez. Vamos, assim, constituindo uma sociedade de pequenas poças isoladas num deserto.
O poder até consegue restringir o acesso ao conhecimento, mas não ao saber. A sabedoria é viva porque brota entre os indivíduos, na própria intensidade que faz deles um povo. Onde há água também há esperança. Talvez, se rasgarmos essa terra árida, se abrirmos sulcos por onde cada poça escoe na direção do outro e compartilhe sua liquidez quase extinta, enlameada, talvez alguma sabedoria consiga se formar e transformar a paisagem. Exercício lento, doloroso, de abandonar a relevância das próprias opiniões, tão ilusória; de enxugar o ego, banindo-o ao subsolo da humanidade, deixando a terra filtrá-lo; cavoucar as certezas duras, abrir nelas fissuras por onde os conhecimentos voltem a circular, de maneira a conectar a sua pocinha convalescente a outra, desconhecida. Talvez assim. Talvez.