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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

"Escrever, então, passa a ser uma responsabilidade terrível. Invisivelmente, a escrita é convocada a desfazer o discurso no qual, por mais infelizes que nos acreditemos, mantemo-nos, nós que dele dispomos, confortavelmente instalados. Escrever, desse ponto de vista, é a maior violência que existe, pois transgride a Lei, toda lei e sua própria lei."

Maurice Blanchot
A conversa infinita 1: A palavra plural

domingo, 14 de setembro de 2014

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A CARNE

Pode entrar que a carne
é friboi
Anúncio de açougue?
Não. De uma loja de prazeres
no Largo da Batata

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

EDUCAÇÃO PARA QUÊ?

Impossível dizer que o Brasil passa por uma crise na educação, nós vivemos a crise, já que ela existe há tempos, talvez desde o início do sistema público de ensino. Apenas sua intensidade se transforma. Ao invés de passar, a crise se estabeleceu; hoje é instituída, banalizada, tanto que as próprias políticas se adequaram a ela (cotas raciais, Bolsa Família etc.). São pacotes oferecidos como solução e que, por ora, apenas remediam sem atuarem na raiz do problema, enterrada a fundo na cultura brasileira. Inclusive, não é sem razão acreditar que outros dos nossos pontos fracos sejam frutos dessa questão educacional. Já formamos algumas gerações nessas escolas despreparadas, que produzem cidadãos embrutecidos, desacreditados, sem espírito crítico ou mínima bagagem intelectual; passivos no que diz respeito a seus direitos e violentos no que se refere a seus deveres. Escolas que não acolhem nem acompanham a formação, apenas processam alunos com a finalidade de passá-los adiante. Porque falta infraestrutura, capacitação de professores, planos de carreira, segurança, programas de incentivo aos estudantes, materiais didáticos, uniformes, acompanhamento psicossocial etc. Em suma, falta praticamente tudo. São todas assim? Não. Porém as boas escolas públicas são exceções. Infelizmente.

No Estado de São Paulo, a crise chegou às universidades. Nos vários anos em que frequento a USP, já vivenciei algumas greves, porém nenhuma tão exigente quanto a atual. Acreditar que o problema é o 0% de reajuste nos salários oferecido pelo reitor é tão ingênuo quanto dizer que as manifestações de 2013 solicitavam apenas a redução de R$ 0,20 no preço das passagens. A questão salarial cresceu, e no momento presente todo o sistema da instituição está sendo revisto. Se não mudar, não voltará a operar, e com isso todos perderiam muito. Inclusive você, leitor.

As reivindicações são claras: abertura das contas, auditoria, diálogo, administração competente, maior participação dos docentes, alunos e funcionários nas decisões, reajuste salarial conforme padrão em outras categorias, melhores condições de trabalho, infraestrutura adequada e, talvez mais importante, autonomia.

USP, UNESP e UNICAMP se encontram hoje subjugadas pelo Estado. Quando deveriam, sim, dispor de autonomia, já que a universidade pública seria uma instituição livre dos interesses econômicos e políticos. Ela precisa de autonomia para tomar decisões administrativas e para colocar em debate assuntos que possam prejudicar o próprio governo ou o mercado. Pois um dos seus princípios é a reflexão crítica.

Nesse ponto, concordo com Jacques Derrida, que almeja a uma universidade sem condição, ou seja, de entrega completa a seus próprios interesses, autônoma para discordar e propor mudanças: "lugar em que nada está livre do questionamento, nem mesmo a figura atual e determinada da democracia; nem mesmo a ideia tradicional da crítica, como a crítica teórica, nem mesmo ainda a autoridade da forma 'questão', do pensamento como questionamento". Sua imunidade deveria ser inviolável, de modo a sustentar esse potencial de resistência e dissidência que lhe é tão caro.

Ele sabe que se trata de um ideal, portanto um lugar que se afasta na medida em que nos aproximamos. O ideal é um horizonte, mas não por isso deve-se boicotar sua busca – se não o alcançamos, ao menos fazemos descobertas no percurso.

Fala-se em privatizar a universidade pública, e quem fala desconhece que o direito à educação é assegurado pela Constituição. A educação é um direito, não um serviço oferecido pelo Estado. Fala-se em privatização por conta dos altos custos de mantê-la pública. Mas não se admite que, privatizada, a universidade se voltaria ao mercado, e que sua prioridade de pesquisa e reflexão seria substituída pela capitalização. Sua liberdade para existir sem finalidade clara – ou seja, como espaço de criação de possíveis e incubação de devires – seria corrompida pelo sistema produtivo que domina o lado de fora.

Como escreveu Marilena Chaui, "se quisermos tomar a universidade pública por uma nova perspectiva precisamos começar exigindo, antes de tudo, que o Estado não tome a educação pelo prisma do gasto público e sim como investimento social e político, o que só é possível se a educação for considerada um direito e não um privilégio, nem um serviço". Não devemos, portanto, nos livrar do custo, mas auditar as contas, exigir uma administração responsável e, se o dinheiro não for suficiente para sustentar a universidade pública – cujo trabalho cresceu de maneira desproporcional a ele nas últimas duas décadas –, devemos aumentar a quantia. Vale lembrar que a USP, sozinha, soma mais de 100 mil pessoas entre alunos, docentes e funcionários – é maior do que várias cidades ao seu redor.

A greve não é somente para os grevistas. É para a sociedade e também para o Estado. Sua organização é muito mais complexa do que se imagina, e compreendê-la é essencial para produzir uma crítica relevante. Os interessados se reúnem em núcleos diversos dentro de suas faculdades e laboratórios; num sistema representativo, propõem e discutem cada pauta em assembleias. Nada é feito ao acaso; pelo contrário, o processo demanda tempo justamente por sua seriedade. E precaução.

Foto de Renata Buelau

Isso não significa que os grevistas sempre utilizem mecanismos compatíveis com os tempos atuais. Quando paralisam as atividades, por exemplo, assemelham-se aos operários de fábricas, e se aproximam do sistema produtivo do qual tanto querem se distinguir. Em outras palavras, a universidade usa um recurso da organização privada para exigir que seus direitos de instituição pública sejam preservados. Um paradoxo que precisa ser repensado.

O mesmo vale para os casos em que grevistas impedem os colegas de acessarem seus locais de trabalho. É uma hipocrisia porque utilizam da opressão quando estão, justamente, reivindicando o fim da opressão por parte da reitoria e do Estado, além de maior abertura ao diálogo. Quando ouço notícia assim, lembro do grafite deixado numa das paredes durante a invasão da reitoria da USP em 2011, que mostrava um tirano[ssauro] e a frase: "Ocupe a reitoria que há dentro de você".

São apenas dois exemplos. E já sugerem que a maneira como se faz greve deve ser reinventada para que seja compatível com o contemporâneo. É dever da universidade repensá-la, assim como é dever da sociedade e do Estado manter a autonomia desse território de questionamento.

Por fim, quero esclarecer que, ao fazer greve, a universidade ainda executa o que Derrida considera sua essência: a elaboração reflexiva, a produção do saber e a publicação dos frutos desse esforço. E que, conforme escreveu Elizabeth Araújo Lima, devemos "pensar os lugares da produção de conhecimento não apenas como lugares de transformação de conhecimento em mercadorias e de exploração da subjetividade de todos os que dele participam, mas também e especialmente como lugar de novas formas de conflito e novas formas de luta".

A universidade pública deve ser estranha ao [jogo de] poder, livre dessas relações condicionais de soberania e dominação. Se traz exigências de um lado, enfrenta intransigências do outro. Pois a política que falta hoje deveria vir do governador Geraldo Alckmin, que empossa os reitores e, após meses de greve, ainda não se dispôs a conversar. Em tempos de eleição, preferiu evitar o risco da polêmica.

Cabe a nós, nas urnas, indicar a que vem a educação, e como vem, para evitar outra volta no círculo vicioso da crise. Porque, sem ela, jamais resolveremos os demais problemas do Brasil.

Mais informações: Sintusp e Adusp

sábado, 6 de setembro de 2014

A CRÍTICA COMO ATO CRIADOR

Se a crítica não for espaço de criação, não tem razão de existir; nestes dias em que a mediação, esse espaço institucionalizado do poder, já não opera mais.

Se a crítica insistir no jogo da tradição, se quiser medir forças, faz-se desnecessária.

Isso nada tem a ver com concordar ou discordar, apoiar ou combater; tem a ver com sustentar lugares de resistência, ser relevante diante das questões atuais. Tem a ver com fazer/criar sentidos sem qualquer lógica ou finalidade. Fazer junto. Viver junto.

Fazer crítica é fazer arte. Ou não é nada.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

EXCESSO (DE INDIFERENÇA)

"Estamos anestesiados.
Jeanne Marie Gagnebin, em sua conferência no seminário 'Vida Coletiva' da 27ª Bienal de São Paulo, utiliza-se das análises do sociólogo alemão Georg Simmel para dizer que o excesso de estímulos, demandas e exigências leva o homem moderno a desenvolver mecanismos para se proteger da quantidade imensa de informações a que é submetido diariamente e não sucumbir física e intelectualmente. Esses mecanismos de proteção tomam a forma de uma atitude de indiferença e frieza, e dão lugar a uma sociabilidade marcada pela indiferença em relação ao outro. Uma indiferença que muitas vezes torna-se o primeiro grau de um sentimento de hostilidade para com o outro. É preciso nos darmos conta de que a indiferença diante do que acontece em nosso próprio território, com nossos colegas, nossos estudantes, é uma faceta da indiferença mais geral, que nos anestesia e que desenvolvemos para poder continuar."

Elizabeth M. F. Araújo Lima
(Se) Ocupar (d)a Universidade

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

LIMITE

"A poesia se converte em religião para aquele que chegou ao limite do despossuimento da fala. Quando o mundo vai se desvanecendo e indo embora, quando os outros vão ficando estranhos e o insondável vira o nosso cotidiano companheiro, tudo o que desejamos é um religamento; um maçarico amoroso que solde novamente nossa pertença quebrada e nos retire deste divórcio de suspensão.

Quando todas as outras prosas vão morrendo e se gastando, só a poesia pode nos acordar e reintroduzir-nos na vitalidade e na trama do tempo...

Mas a poesia deve então instaurar um novo mundo, pois o antigo já não tem mais sentido para nós... já perdemos a familiaridade... e sonhamos com uma nova espessura do tempo – o tempo feito de outra tecitura."

Sabedoria do Nunca
Juliano Garcia Pessanha

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O MAPA E O TERRITÓRIO

É bom caminhar pela cidade grande. Lentamente. Deixar o trem passar só para aguardar o seguinte na plataforma, talvez o outro, talvez mudar de ideia e voltar às ruas. Resistir à correria, ao empurra-empurra, ao impulso enérgico que contagia. Ao canto de sereia da metrópole. Sem perceber, estamos agindo da mesma maneira que nos incomoda, sofrendo os mesmos males, alimentando o mesmo estilo de vida. Então, diminuir o passo é uma forma de resistência. Buscar outro ritmo. O descompasso. Deslocar-se por linhas diversas, percursos e percalços. "Caminhando", propôs Lygia Clark. Fazendo escolhas. Transformando os arredores com a beleza do gesto mais singelo; fazendo poesia com a matéria-prima mais abundante no mundo.


Difícil caminhar sem trajeto pré-definido, sem mapa ou GPS. Oferecer-se à experiência, colocar-se à disposição do acaso. Aceitar que a errância é também uma possibilidade. Perambular não por meio do mapa; mas, sim, traçar o mapa enquanto perambula. Linhas de força, linhas de fuga, linhas flexíveis. Cartografando.

Impõe-se a nós a necessidade do projeto, que é maior que tudo e quer dominar, quer ditar as regras do viver. Vale contrapor a esse fazer – obra, sentido, comunicação – o agir. "Sem finalidade, o agir é puro agir, e se se quer atrelar o agir ao ritual, onde ele recupera sentido e querer, já se desprendeu daquilo que o caracteriza, embora muitas vezes ele o lembre", escreve Peter Pál Perbart (em O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento). A atitude criativa, fluida; o ato de criação.

* * *

Quem dera botar todo o ódio do mundo no papel; toda a violência, a intolerância, a brutalidade. A guerra, os usos e abusos do poder, que se justificam por uma causa qualquer, por uma lógica de dominação. Retirar do mundo e trancafiar no papel, fazer disso uma ficção assumida. Só o papel aguenta o fardo, só ele sabe lidar. Porque não sustenta aquela lógica, não passa o ódio adiante, não combate a intolerância com mais intolerância; ele transforma a realidade dura em literatura.


Esta não existe para salvar o mundo – palavras de salvação, sacralizadas, acabam servindo a mil causas próprias. Não se trata de fazer literatura para salvar o mundo, mas para apreendê-lo, registrar quem somos, considerar possibilidades sem medo. Comunicar pontos de vista sem entrar no mérito da verdade ou da mentira, sem autoria ou autoridade; contra o absolutismo, afeito ao absurdo. A literatura em que acredito não oferece dogmas, e sim a chance de se ver livre deles. Um convite à emancipação. Como disse Iberê Camargo (em A gaveta dos guardados), "a necessidade cria a linguagem. O imperativo da regra mata a criação".

* * *

"A resistência é um modo de ser. É uma forma/força de estar imerso no movimento, é perceber-se como acontecimento corporal ativo, é a única possibilidade de tornar-se ação criativa de arte. A resistência é a dobra do ser. E essa dobra é a insistência na diferença, no outro, na produção de singularidades múltiplas", escreve Ericson Pires (em As produções de arte atuais).

Vale lembrar que resistir não significa combater mudanças ou pregar a tradição. Ao contrário, trata-se da atitude viva de provocar deslocamentos, desviar-se do lugar-comum e oferecer poesia ao mundo. Resistir ao automatismo, ao pensamento fácil, à sedução do novo e também ao conforto da tradição. Ampliar as perspectivas críticas. Resistir, com atitude contemporânea, às forças que corrompem as vontades/demandas do agora. Criar suas próprias linhas de força. Resistir pelo ato de ser; existindo.

* * *


É muito bonito o trabalho de Guillermo Kuitca exibido na Pinacoteca do Estado de São Paulo, especialmente seus mapas. Trajetos que levam a lugar algum; plantas baixas de habitações que se transformam em pistas de aeroporto; cidades retiradas de seu lugar para recompor a paisagem; mapas de assentos no teatro que se dissolvem. Territórios resignificados por meio da ferramenta que, em geral, os enrijece e reduz. "Mapas são tanto abstrações como figurações", diz o artista. "Para mim, eram mais um dispositivo para se perder do que para se orientar". São ficções nas quais se acredita – indubitavelmente – porque se fantasiam de realidade. Em geral, acredita-se mais no mapa do que no registro dos próprios sentidos; mais nos mapas do que na experiência vivenciada no território. São ficções assim como uma pintura, que correspondem a algo sem que o espectador necessariamente o alcance. Quem nunca se perdeu ao passar os olhos por um quadro? Quem nunca obedeceu ao GPS à risca, até ele recalcular a rota, enganar-se, mudar de ideia e levar o carro para outro destino? Quem nunca, confiando no destino, foi surpreendido pelo acaso?

Costumo planejar viagens com cuidado, atento a cada detalhe. Porém as recordações que sobrevivem são aquelas de quando o roteiro foi deixado de lado e o improviso pediu licença para atuar.

[IN]DIREITO

“Ela é ignorante comigo, me dá o direito de ser ignorante também”, foi a frase que ouvi de um ignorante assumido ontem à noite, domingo, quase 22h, no caixa do supermercado. O cliente se dirigia à atendente e a quem mais pudesse ouvir. Um homem de camisa social. E maluco, só podia ser. Já o tinha visto gritar com o filho quando o moleque pegou e atirou um produto de volta na prateleira. “Não, caro ignorante, nada disso”, tive vontade de responder. “Se por acaso ela foi ignorante, isso lhe dá o direito de reclamar com o gerente e, no limite, não voltar a comprar aqui. Caso seguíssemos essa sua lógica do olho por olho, o mundo se tornaria uma enorme imbecilidade”. Inclusive, a alta frequência de cenas desse tipo já sugere que o mundo está pequeno demais para a quantidade de ignorância que sustenta. Tive vontade mas não disse, porque nunca se sabe até onde vai a ignorância alheia.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

"O esgotamento do possível é o esgotamento de um certo possível, aquele 'dado de antemão', o repertório de possíveis que nos é ofertado em forma de múltipla escolha a cada dia. (...) Para Deleuze, tal esgotamento nada tem de negativo, é apenas condição para alcançar outra modalidade de possível, o possível como o 'ainda não dado', o possível 'a ser inventado', e a ser inventado numa situação de 'impossibilidade', portanto, de 'necessidade."

Peter Pál Pelbart
O Ato de Criação
[em O Avesso do Niilismo - Cartografias do Esgotamento, p. 297]

terça-feira, 29 de julho de 2014

"Agamben lembra que a mídia nos oferece fatos desprovidos de sua possibilidade, ela nos dá, portanto, um fato em relação ao qual somos impotentes. A mídia gosta do cidadão indignado, mas impotente, o homem do ressentimento. Em contrapartida, um certo cinema projeta sobre aquilo que foi (o passado, o impossível) a potência e a possibilidade. Repetir uma imagem no cinema teria essa função, restituir a possibilidade daquilo que foi, torná-la novamente possível, a exemplo da memória, que restitui ao passado sua possibilidade. Mas o cinema também exerce a potência da interrupção, e, ao subtrair uma imagem ao fluxo de sentido para exibi-la enquanto tal, como no caso de Godard ou Debord, introduz-se uma hesitação entre a imagem e o sentido, a exemplo do que faz a poesia. O cinema, em todo caso, reintroduz a possibilidade, des-cria a realidade, na contramão da mídia e da publicidade."

Peter Pál Pelbart
O Ato de Criação
[em O Avesso do Niilismo - Cartografias do Esgotamento, p. 296]

segunda-feira, 28 de julho de 2014

JORNAL DE LITERATURA

Entrei no vagão do metrô com o jornal em punho porque a viagem seria curta e o artigo era longo. Uma entrevista, na verdade, depois transformada em artigo pelo editor, que queria mostrar suas asinhas. Duas páginas inteiras de cima a baixo. Um jornal de literatura, claro. Porque somente jornais de literatura são capazes de publicar duas páginas inteiras sobre literatura. Nestes tempos em que apenas a exceção da exceção – no caso eu, personagem profunda – leria tanto a respeito de ler e escrever, ou sobre pessoas que leem e/ou escrevem. Enfim, pessoas dedicadas à nobre arte da literatura, que quase não existe mais. Em extinção por abandono e maus tratos, é essa a minha opinião. Pois bem, eu voltava de uma longa palestra sobre literatura, estava cansada, precisava me concentrar se quisesse acabar logo com aquela perda de tempo.

Os assentos estavam ocupados, todos eles, porque assim acontece no drama. Então me posicionei estrategicamente de lado, com as pernas tão abertas quanto as páginas do jornal – sem perder a compostura, obviamente –, com objetivo de evitar sobressaltos. Não suporto perder a linha e ter que retomar do princípio.

Ainda na primeira frase do primeiro parágrafo, logo após o título, ouvi um homem se introduzir na história. Penetramente.

Cê vem de onde memo?

Falava com voz afetada, meio gutural. Achei que estava bêbado, seria típico, mas depois notei certo problema de saúde, talvez deficiência nas cordas vocais. Tirei os olhos do jornal. A pergunta se direcionava a uma mulher de jeito bastante humilde, tadinha, que viajava perto da porta. Respondeu baixinho. Vim do Jardim Paulista, vou pro Brás.

Não se conheciam, era evidente. Ele solto; ela encolhida, constrangida. Ele estava exatamente no centro do vagão, dependurado como um babuíno, os dois braços agarrados ao tubo de metal preso no teto, mal se apoiando nos pés, balançando de um lado para o outro conforme o trem o conduzia. Balançando de modo irritante. Sem modos, para ser sincera.

Recomecei a leitura do artigo. Cê vem de oooonde memo?, quis saber o sujeito pela segunda vez, e me deixou inclinada a perguntar se era surdo ou bobo. Não poderia responder, fosse o que fosse; além do mais, achei prudente manter distância. Talvez estivesse provocando a coitada. Tenho medo de confusão. Já vi um pouco de tudo acontecer nos últimos anos, o nível desceu demais. Inclusive no metrô, que já não é como costumava ser. É bom ficar atenta. Sempre atenta.

Incomodada com a situação, a mulherzinha olhou ao redor e falou mais alto, um alto ainda acanhado: vim do Jardim Paulista. Vou pro Brás. E se recolheu novamente, abraçando a bolsa com a força que dispunha, e que não era muita. Escondeu-se atrás do nó.

Desviei os olhos para não parecer enxerida. Brááááss..., repetiu o sujeito, com calma, lentamente, ruminando as vogais, em especial as vogais abertas. Como se sonhasse com ninfas bailando no paraíso. E o paraíso fosse o Brás. E aquela mulher fosse uma ninfa, talvez. Que visão doida. Sua voz soava ainda mais grave.

Nesse ponto, minha única certeza era que não conseguiria concluir a leitura a tempo, uma vez que sequer havia começado, e compreender isso me fez sentir uma impertinência. Tentei apressar os olhos.

Linha um...

Cê vai pro Brás, é?

Sim, Brás.

Cê mora lá?

Linha um.

Moro.

Do Jardim até o Brás...

É.

Jornal de Literatura, linha um.

Que tem no Brás?

Moro lá. Não tem nada.

Nada?

Literatura!

Nada especial.

Bráááás. Não conheço o Bráááás.

É... Eu sim.

Jesus! Literatura!

Cê faz isso todo dia?

...

O caminho...?

É, faço.

Jardim Paulista. Até o Brááás.

Concentração, concentração, concentração.

U-hum.

É.

Vamos lá, você consegue. Linha um.

Eu não. Eu não conheço o Brááás.

Deixei a cabeça cair, derrotada. Espiei. A mulher disfarçava o olhar do homem, que atravessava sua pele até as entranhas. Atravessava a bolsa, o constrangimento, os bons costumes, a vontade de chegar logo em casa. Ele ria. Eu quase podia ver sua saliva escorrer pelos cantos da boca, fazendo espuminha. Ainda tinha receio de que fosse um psicopata, desses da TV. Que seguisse a pobre mulher pela estação e sabe-se lá que tipo de atrocidade cometeria.

Literatura!

Tenho visto muitos casos assim, de lunáticos agressivos. É essa sociedade de hoje, essa correria, solidão, essa virtualização das relações sociais. Eles agem sem razão aparente. Estão todos soltos por aí.

O sistema de som do trem anunciou a chegada à estação Brás. Achei que saltitaria de alegria; a mulher, entretanto, não esboçou qualquer reação, fingiu não prestar atenção no homem que a encarava. Sabia lidar com esse tipo de gente; a infeliz devia passar por isso todo santo dia, supus. Todavia, desceu do trem, caminhou sem pressa pela plataforma, sem olhar para trás. Sem pressa mas com firmeza. Decidida.

O esquisitão continuou dependurado. Tive a impressão de que lhe escapuliu um tchau indeciso, ou talvez fosse imaginação minha. Pensei que agora se voltaria para mim. Não aconteceu. Dei graças a Deus por ter bastante gente no metrô, mesmo àquela hora. A mulher sumiu de vista sem averiguar se aquele sujeito a seguia. Achei corajosa, num primeiro momento. Achei-a irresponsável depois, sem consciência do perigo. Por fim, pensei que talvez estivesse sendo paranoica.

Tentei reiniciar a literatura. Quer dizer, a leitura. Tentei reiniciar a leitura do Jornal de Literatura. Artigo longo, linha um, aqui.

Ora, o homem estava apenas puxando assunto, certo? Eu que fiquei assustada. O que me assustou? Sua deficiência de fala? O descontrole do tom da voz? Ou ele puxar assunto com uma moça qualquer no metrô, na frente de todo mundo, com tamanha indiscrição. Esse seu descabimento.

Tirei os olhos do jornal, botei-os no homem, sujeitinho curioso, que continuava a balançar para lá e para cá, para lá e para cá, para lá...

Despertei com um solavanco. Não tinha como saber. Não é uma atitude comum, ainda mais nos dias de hoje. Não estou acostumada a essas coisas! O mundo está perdido, même.

Não era problema meu, na verdade. Só me dizia respeito o que o escritor, do qual eu não gostava nem um pouco, pensava da literatura; isso sim me interessava, só para poder criticá-lo depois, com fundamento. O homem deficiente que procurasse sua turma.

Jornal de Literatura, linha um.

Queria me concentrar. Só que fiquei repassando, de cabeça, aquela história toda. Que se fazia ali mesmo, numa composição do metrô.

Maldita literatura contemporânea.

Chegou minha estação. Só iria até aquele ponto.

Dobrei o jornal com delicadeza, coloquei-o na bolsa, tomando cuidado para que a tinta preta não sujasse o forro. Saltei na plataforma. O trem levou meu personagem para longe, eu acho. Aquele ser infinitamente superficial.

domingo, 20 de julho de 2014

"Se esta não lhe agrada, não lhe convém, pegue outra, coloque outra no seu lugar. (...) Há apenas palavras inexatas para designar alguma coisa exatamente."

Gilles Deleuze
Diálogos, p. 13

sábado, 19 de julho de 2014

IDEIA PARA PERSONAGEM

Eu o faria assim, obsessivo: alguém que deseja proibir tudo, convicto da ordem e progresso; pior: que os tem como lema e dele não abre mão. Não abre mão de nada, de uma opinião sequer, por mais bruta que pareça [aos outros]. Um sujeito que acredita na rigidez do sistema, na proibição como medida educativa, na punição severa como remédio contra inadequação social, na supressão de direitos por um bem maior; um sujeito como tantos.

Daria a ele o nome de Cristiano, em referência a certo moralismo que, com frequência, se torna um problema e ajuda a esconder faltas de quem o pratica. Não revelaria o sobrenome, bastaria dizer que é oriundo de família tradicional(ista); ou, ainda, que possui no currículo uma sólida base familiar. Prefiro assim porque mais gente pode se identificar, até quem não se afeiçoa ao sentido figurado.

Cristiano é um homem de palavra. Sério, trabalhador. Certo do que é certo e mais certo ainda do que é errado. Divide o mundo em duas metades: o bem e o mal, a direita e a esquerda, o ataque e a defesa, a verdade e a mentira, amigos e inimigos, pretos e brancos; levanta um muro entre elas, um muro alto; defende-o com unhas e dentes e verbos imperativos. Vê facilidade nisso. Não consegue perceber nuances, ambiguidades, perspectivas. Tampouco está interessado. Homem determinado não muda de opinião no meio do caminho.

Acredita que violência gera violência. Ao mesmo tempo em que afirma a necessidade da guerra contra o terror. Tem certeza de que é um problema crônico onde vive – digamos que seja no Brasil, a título de exemplo. Esse problema não se resolve com revisões do sistema policial, judiciário e carcerário; resolve-se com a Rota na rua, o exército nos morros, bombas nas manifestações, trava de bicicleta no pescoço. Resolve-se com diminuição da maioridade penal e, Deus lhe perdoe, com pena de morte também. Pronto, falou. Porque não pode dar moleza pra vagabundo, entende?

Acredita que tudo seria melhor com respeito e educação. Só mantém uma arma de fogo em casa porque nunca se sabe, né? Não dá pra confiar.

Aceita o homossexualismo contanto que fique longe; entre amigos, permite-se dizer isso de um jeito um pouquinho diferente, que mal não faz, imagine! Dá risada. São apenas umas verdades.

Não se envolve com política porque é um ninho de vespas, ninguém ali presta. Não acompanha essas coisas, é responsabilidade daquele sujeito em quem votou nas últimas eleições, o do partido de sempre, reeleito pela quinquagésima vez. Também não entende nada de justiça, mas tem certeza de que houve mamata no veredicto do mensalão. Porque é sempre assim. Acha que só se faz política com partido e colarinho branco.

Reconhece que a educação vai mal, mas não compreende o motivo, pois seus filhos estudam em escola particular. O SUS é uma lástima, mas não sabe quanto, pois paga plano de saúde. Apoia reivindicações de menor custo nos transportes contanto que não atrapalhem o trânsito, que é caótico. Muitos não têm onde viver? Virem-se!; ele já se resolveu comprando – com muito esforço, diga-se de passagem – um apartamento num bairro tranquilo. Sua razão vagueia ali nos finais de semana, é gostoso; só não vai longe para não se cansar. Políticas públicas/sociais são graves sim; graves problemas dos outros. Não tem nada a ver com isso, nadinha. E, mimimis à parte, tudo se resolveria com mais verba e vergonha na cara.

É o que falta para o povo: vergonha na cara. Tem certeza, deu na TV. Mas Cristiano é homem de muita esperança. Tem certeza também que, um dia, Deus sabe quando, o Brasil há de entrar nos eixos. Um dia ele vai acordar no paraíso; o melhor país do mundo, o mais evoluído. Como num passe de mágica. Porque nossa economia é forte. Porque somos abençoados e bonitos por natureza.

O governo ditará o que pode e o que não pode, facilitando nossas vidas; bem paternalista, preocupado, como nos bons tempos de antigamente, quando se trabalhava em prol da nação, quando ninguém ficava inventando moda. O povo vai obedecer porque é consciente e civilizado. Não pode vandalismo, não pode vaiar presidente, não pode greve; não pode perguntar, exigir, criticar. Não pode reclamar quem não tem solução melhor para apresentar. Não pode nada, entendeu bem? Assim é melhor; sem tentação não há pecado.

Meu personagem Cristiano seria absurdo, estereotipado; tão próximo da realidade que duvidaríamos se é realmente ficcional ou se o cotidiano é que parece uma grande invenção. Tipo novela das nove. Já pensou que legal?

terça-feira, 15 de julho de 2014

"O significado originário, a referência etimológica do termo 'personagem' nos ajuda a ver isso: persona, termo latino de onde deriva o vocábulo atual, guarda a memória da palavra grega para máscara – artefato utilizado no teatro para caracterizar, de modo convencional, as expressões e os afetos dos atores. Logo, personagem nem sempre indicou um indivíduo único e irrepetível, mas uma função, um lugar convencional a ser ocupado por sujeitos que representassem, de modo sintético, pessoas de uma determinada classe ou condição social (como ocorre nas comédias da Antiguidade Clássica, por exemplo) ou personagens alegóricos, que figuram a própria condição humana (como o caso do próprio Dante Alighieri, protagonista da Divina Comédia). Se pensarmos historicamente, veremos que a ênfase dada ao indivíduo (e aos personagens marcados como sujeitos únicos e em tudo diferente dos demais) é um fato recente, datando do início da Era Moderna (séculos XV e XVI)."

Gustavo Silveira Ribeiro
Cândido, 35, junho/2014

sábado, 12 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (POSFÁCIO)

Talvez você tenha sido amada também, embora não tenha se encontrado nestes relatos. Talvez eu não me recorde, talvez não deva falar. Talvez tenhamos nos visto apenas uma, duas, muitas vezes. Talvez não o bastante. Talvez a gente ainda não se conheça. Talvez não o suficiente. Talvez pareça que me apaixono fácil, mas não é verdade; a maioria dos casos foi puro platonismo. Talvez eu ainda ame você. Talvez nem mesmo eu saiba. Talvez ainda venha a amá-la. São as incertezas, essas imprecisões e indecisões, que fazem do amor uma aventura viva, pulsante, tão memorável. Tanta gente se dedicou ao amor ao longo da História! Tanta gente se dedicou 'simplesmente' a amar, às suas próprias histórias de amor. Não sou, nem de longe, pessoa apropriada para dar voz aos grandes anseios e mistérios da humanidade. Tenho meras lembranças. Meia dúzia de recordações. Que talvez sejam verdade, talvez não. Seja como for, são obras da minha cabeça. Talvez do coração.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (12)

Enquanto realizava as pesquisas para o mestrado, caí de amores pela artista que permanecia no foco das minhas atenções. É natural que o interesse gere mais interesse. Não seria nada excepcional caso ela não estivesse morta há trinta anos. Mesmo assim eu me sentia próximo, folheando seus escritos, descobrindo suas obras, assistindo aos seus filmes. Era como se pertencesse ao seu mundo, um pouquinho que fosse. O qual, de tão encantador, me fez apaixonar.

Uma certeza que tive, talvez a única certeza que se permita ter, é que o amor não cabe no tempo, no espaço, numa língua ou numa cultura específica. Ele avança fronteiras. E reside aqui e ali consecutivamente, em ambos os territórios, independente da nossa vontade. Numa ambiguidade sedutora.

Lygia tinha temperamento difícil. Discordávamos com frequência. Porém sua obra causava fascínio e admiração, então eu deixava as desavenças de lado para me dedicar inteiramente aos elogios. Conheci o universo pelo seu ponto de vista. Pensei as relações humanas segundo a sua perspectiva. Cada aspecto seu emergia e me transformava. Não tinha outra maneira de agradecer senão agregando pontos positivos às suas memórias.

Foi muito difícil deixá-la. Contudo, era preciso. Voltar as costas, seguir adiante. Trouxe uma parte preciosa comigo. Não suas pinturas e esculturas, que até valem um bom dinheiro. Trouxe experiência de vida. Fé na liberdade. Vontade criativa. Não tem dinheiro que compre essas coisas. Aliás, o dinheiro nem sabe o que significam.

Toda vez que me deparo com uma nova pesquisa sobre arte, sei como Lygia pensaria. Ou pelo menos eu imagino com tamanha convicção que faço realidade da ficção. E vice-versa. De todo modo, é sempre ela que vem. Sempre em primeiro lugar. Como um amor do passado que eu jamais esqueci.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (11)

Não tenho condições de esmiuçar o grande amor da minha vida porque ele não cabe aqui; eu teria que escrever um romance, talvez uma trilogia, como está na moda. Nem mesmo assim... a literatura não daria conta, é muita responsabilidade. Além do mais, o amor é nosso, tem a nossa cara, o nosso jeito; duvido que interesse aos leitores.

Posso compartilhar apenas uma lembrança, que no fim das contas resume bem o casamento. Uma cena. Assim:

Eu quero sanduíche, Juliana quer sopa. Inclusive, ela quer que eu tome sua sopa também. Levo meia hora persuadindo-a de que podemos muito bem jantar juntos com ela tomando a sopa e eu comendo o sanduíche. Gera um atrito mas ela concorda. Preparamos os pratos, sentamos para jantar. E ela come o meu sanduíche.

Rimos. Tomo a sopa, que estava gostosa, até.

Passamos então a planejar o cardápio do dia seguinte.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (10)

Já amei mulher casada. Sim, já. Para melhor ou para pior, acredito que ela me amou também, e ficou esperando um movimento meu para reviver o universo em seu estado de caos. Não seria um ato fugidio, ou ato falho, isso nunca me interessou; seria aposta das grandes, daquelas que põem tudo em risco. Acredite, milhares de possibilidades passam pela cabeça de quem ama nessas condições. Porém as cartadas nem sempre são decididas ali, na cabeça, e algumas daquelas possibilidades por vezes se tornam fato.

Eu estava solteiro na época, sem namorada nem nada. E achava inconcebível não poder amá-la porque um dia, num passado não tão distante, Giovana decidiu se comprometer por toda a vida. Não fazia sentido. Era tão jovem! Tão jovem quanto eu. E, no limite, restava a nós somente uma parcela da vida para sermos felizes.

Sabe, a traição é sempre questão de egoísmo. Não é um moralista que fala, ok? Penso isso friamente. Pode ser que a mudança compense, afinal; não dá para estabelecer uma regra. Mesmo assim, quando a jogada dá certo e os envolvidos ficam bem, ainda me parece egoísmo. Por causa do desejo de romper uma relação somente para iniciar outra. Porque essa outra seria supostamente melhor. Pura tentação. Uma cilada que pode terminar mal. Enfim, é amor. E amor não tem mesmo fundamento, de nada adianta querer justificá-lo.

Fato é que hoje o casado sou eu. Só quando me comprometi é que pude entender o poder do rito. Não foi antes, não foi quando achei que convinha casar. Foi na hora do sim. Compreendi que não se trata de abrir mão de outros amores. Mas, sim, de me dedicar inteiramente ao meu; aquele que provou valer a pena.

Ainda, uma aposta. Que beco sem saída!

Veja bem, sem arrependimentos, continuo a amar mulher casada. A minha.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (9)

Já tentei amar com objetivo de esquecer outro amor. Foi patético; óbvio que não deu certo. Porque não se anula um amor com outro, assim como não se divide o amor em dois. Amor apenas soma. Se o resultado não confere, sinal de que algo na equação está errado – convém rever os elementos.

Insisti durante um tempo. Pouco, na verdade. Para minha sorte, Júlia percebeu e não se deixou enganar. Foi mais esperta, pois eu nem sabia que a enganava. Aliás, enganava a mim, a ela e a meu outro amor, o verdadeiro.

Nossa relação, na qual eu depositava uma quantia incontável de esperança, ingênuo que fui, rompeu de uma hora para a outra, tamanha a sua inconsistência. Desandou. Até nisso eu me enganava.

Investi meu espírito na ciência do amor, por mais incompatíveis que fossem, a princípio. Jamais consegui explicar a razão. De algum modo, acredito que ela compreendeu. Não precisou da lógica, apenas do sentimento. Achei-a forte, decidida. Foi gentil comigo. E desapareceu.

Fiquei livre para me dedicar ao amor primeiro, aquele que eu tentava esquecer sem sucesso, que originou toda a discórdia. Também ele não deu certo, coisa que eu sabia desde o início. Repassei cada uma das suas questões, revisei os dados, adicionei pontos positivos, subtraí pontos negativos, contei demais com conjuntos vazios. Procurava uma resposta esclarecedora. A solução era sempre igual. Tratava-se de um amor impossível.