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terça-feira, 26 de julho de 2022

BRASIL, TERRA SERTANEJA


ERVA BRAVA, de Paulliny Tort (Editora Fósforo), reúne doze contos que se passam na cidade fictícia de Buriti Pequeno, no interior de Goiás. Daquela terra sertaneja brotam personagens como o agricultor turrão, a primeira-dama romântica, a benzedeira dedicada, a parteira feminista, o drogadito, o sineiro, o ludibriado, entre outros. Com seus dramas particulares, eles de alguma maneira contam do lugar onde vivem, assim como a cidade diz muito a respeito dos habitantes. No fim, uma parte não existe sem a sua contraparte. E digo contraparte porque tais relações não são pacíficas — boa quantidade dos conflitos do livro provém daí. Trata-se, sem dúvida, de um projeto literário belamente estruturado, com perspectivas e enredos variados, todos eles também conectados a um destino nada promissor: a destruição do município por um dilúvio no conto final, intitulado “Rios voadores”. Com isso, lava-se a alma de um Brasil perdido entre as modernidades, tradições e contradições do agronegócio, do tráfico de drogas, da corrupção, da herança colonial, da intolerância, do machismo, enfim, das violências todas que vivemos em nossas cidades reais.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

MORRE UM JOVEM

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Escrevi os versos abaixo quando soube do falecimento de Victor Heringer. Nos primeiros rascunhos havia uma menção a ele. Mas achei que, no livro que estou publicando agora, o poema poderia ser dedicado a todos que nos deixam ainda jovens. E à esperança que resiste. Por isso não há dedicatória alguma.

O livro em questão se chama Sutilezas, fins. É o quinto na minha trajetória de escritor, e o primeiro composto exclusivamente por poemas. Ele aposta na apreciação da sutileza, da delicadeza e da profundidade como saída para nossa condição contemporânea.

A pré-venda vai até 31 de maio no site da Loja Pedregulho. Como se trata de uma editora pequena e a tiragem é limitada, faz toda a diferença você encomendar seu exemplar. Clique aqui

Agora sim, o poema.

MORRE UM JOVEM

Morrem milhares
todos os dias dizem:
o país não se importa
exceto por este sujeito
ele se importa
e aquela moça mais aquele senhor e
assim por diante
morre um suposto país

É preciso matar muitos países supostos
para viver um
fresco rebelde ingênuo ousado delicado
desse tal jeito jovem
que outros tantos ajeitados
teimam em envelhecer
ao ponto em que a obsolescência
confunde-se com salvação.

quinta-feira, 24 de março de 2022

COMO SER MACUXI?


“A damurida, prato tradicional de meu povo
já fazia parte, de um jeito mágico, de meu paladar.
[…] As pimentas dançam no rio da minha memória,
invocando a antiga canção dos antepassados que me chama de volta
pra casa.”

Julie Dorrico, Editora Caos & Letras, p. 27

Acredito que a grande questão do livro Eu sou macuxi e outras histórias é aprender a ser/pertencer a essa etnia. Isso implica não apenas conhecer a língua ou praticar os costumes, mas reavivar uma memória que, no limite, é a própria essência cultural daqueles indígenas. 

Quem encara a jornada é a narradora dos textos que compõem o livro, que não são exatamente contos, são também poemas, relatos, fábulas, registros de acontecimentos. Narradora que ora é observadora, ora é personagem, ora cede a palavra e se torna ouvinte da avó, que por sua vez conta histórias por intermédio de uma tradutora – do macuxês para o inglês para o português para uma língua própria, inventada. Assim, coloca-se em pauta a tradição oral e as permanências e transformações que atravessam gerações. 

Mas talvez o que mais tenha me intrigado seja o abandono daquele “eu” convencional, numa atitude fundamental para a narradora se tornar macuxi. Ela faz isso contando não somente uma experiência sua de conhecimento e imersão, mas dando voz às mitologias fundadoras de um povo. Só assim, abandonando uma determinada “si mesma”, é capaz de aprender a ser ainda mais; aprender a ser uma indígena e uma nação macuxi ao mesmo tempo.

quinta-feira, 10 de março de 2022

COLONIALIS MUNDI

Foto de Jovis Aloor


Haveria então essa porta
de civilização antiga, descoberta
durante uma escavação
ao ser deitada no chão ela se abriu
para o mundo inferior

Algum debate e mulheres e homens avançados
se propuseram descer por ela para explorar 
e foram 
surpreendidos por homens e mulheres 
e silêncios emergentes
tais como eles, de idêntica aparência e conduta
haviam descoberto em seu canteiro de obras 
uma porta 
caída
que os levava ao mundo inferior.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

ESTATUTO SOCIAL DA PINTURA

Por que paisagens impressionistas como as de Camille Pissarro, Claude Monet ou Alfred Sisley, hoje apreciadas em termos estéticos e econômicos, causaram tanto escândalo ou foram vítimas de tamanho desprezo em sua época, na segunda metade do século XIX?

Prados de Sahurs no sol da manhã (1894), de Alfred Sisley

Essa é uma daquelas perguntas que podem ser respondidas de maneiras diversas, muitas delas tomando como base a questão técnica – as pinceladas de cores puras que, por sua proximidade, criam certo efeito ótico – ou o fato de os artistas deixarem o ateliê para buscarem registrar impressões visuais em suas telas diretamente da observação da natureza, num dado local e numa dada circunstância atmosférica, com uma rapidez de execução inaceitável pelos mestres das academias de belas artes. Rapidez que às vezes se tentava confundir com facilidade ou como falta de rigor por estes, que, ao contrário, passavam dias e dias retocando à perfeição um músculo de cavalo ou o reluzir de um metal precioso.

Mas outra maneira de explicar o tal escândalo remonta ao empreendimento renascentista de legitimação social e teórica da pintura, que pretendia conceder a ela o reconhecimento então dedicado apenas às artes da linguagem. Os artistas visuais queriam, eles próprios, gozar da dignidade dos liberais, uma vez que pintura e escultura eram consideradas ocupações mecânicas, tal como a construção civil ou a marcenaria. Em suma, o pintor não queria ser tomado por operário ou simples artesão, mas como profissional culto e letrado. Ao mesmo tempo, sua atividade deveria deixar o posto de ilustração e ser apreciada como um saber em si mesma.

Essa diferença tinha origem bem mais antiga. Horácio, no século I a.C., ao meditar sobre a ideia defendida por Simônides de Ceos de que “pintura é poesia muda e poesia é pintura que fala”, deu sua famosa declaração “ut pictura poesis”, ou seja, a pintura é como a poesia. Esse paralelo entre as artes da imagem e as da palavra ganhou fôlego no Renascimento e perdurou pelo menos até Lessing contestá-lo no século XVIII, preferindo pensar na especificidade de cada arte em vez de naquilo que porventura tivessem em comum.

Acontece que a máxima de Horácio deriva de um erro de interpretação. A frase completa – “ut pictura poesis erit” – coloca a imagem como termo referencial da comparação, não o contrário. Ou seja, o poeta romano na realidade privilegiava as artes da visão, dizendo que um poema existe tal como uma pintura. Isso porque, assim como se fazia em relação a esta última, ninguém teria dificuldade para reconhecer na poesia a realidade, ainda que imaginária, como o escudo do herói Aquiles ou o drama de Laocoonte.

O erro de interpretação pode não ter sido tão despropositado, uma vez que permitiu aos intelectuais da Renascença galgarem um novo estatuto para a pintura. O quadro, sendo como um poema, teria assim o mesmo nível valorativo. Mas como fazer versos com pincel e tinta?

Fato é que a linguagem gozava, desde a Antiguidade, do privilégio de pertencer à ordem da razão e do discurso. De modo que a pintura somente poderia obter a mesma legitimidade absorvendo a poética e a retórica para contar histórias, ou melhor, para “narrar com o pincel”, como se dizia no século XVII.

Em termos de hierarquia pictórica, o gênero que se utilizou daquelas categorias do discurso para contar grandes feitos, transpondo uma sequência narrativa – portanto temporal – para o espaço da visibilidade, foi a pintura de história, que ostentava entre os acadêmicos o estatuto da mais alta expressão da arte de pintar. Tomando seus temas da literatura e da tradição, esses pintores gozaram ao máximo da dignidade concedida aos artistas liberais.

Assim, retomando nosso ponto inicial, quando os impressionistas abriram mão dos ricos ateliês das academias para pintarem, no meio do mato, banalidades como montanhas e vegetação, puseram em xeque uma posição social confortável, conquistada pelos artistas visuais a duras penas. Questionaram também a concepção de que a pintura poderia, sim, provir da sensibilidade, em vez do intelecto; da matéria, em vez da ideia; e da prática, em vez da teoria.

Banida dos famosos salões, que funcionavam como espaços de legitimação de uma arte específica e produzida segundo critérios e regras bem estabelecidos, a pintura impressionista construiu seu lugar no mundo da arte desde a margem, inicialmente atacada pela crítica e pelo público, cujo olhar era educado a apreciar uma determinada forma e nada além dela.

Ao longo do século XX, esse olhar foi se transformando e, por consequência, o gosto pelas novas formas, que ganharam destaque entre os artistas, na crítica e, claro, no mercado de arte.

Poderíamos seguir por aí, adentrando a história da arte moderna pelo menos até os experimentos com a abstração, o que se estenderia por páginas e páginas, inclusive atualizando o interminável embate entre a poesia e as artes visuais, que de alguma maneira ainda persiste. Sem que isso caiba num artigo despretensioso como este, deixo aqui uma provocação: existe imagem que não evoque palavras e palavras que não sugiram imaginários?

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

ESCRITO NA AREIA


Textos para lembrar de ir à praia, de Rodrigo Luiz P. Vianna, traz poemas que têm em comum essa temática explicitada no título. O livro se divide em três partes: Escrito na areia, Ampulheta e Pérola. Que implicam também três destinações da areia, às quais são dedicados inúmeros versos. A sensibilidade e a criatividade do autor para escrever tanto a esse respeito são impressionantes. Sem dúvida, o grande destaque do livro fica com a sua exploração, que ganha aspectos, camadas, perspectivas e significados a cada página, trabalhados com uma cuidadosa elaboração.

Há jogos de palavras, como “mãos em concha” e “o labirinto se despedaça aos ouvidos”; há também ideias muito bonitas, apresentadas na forma de imagens sugestivas, como em “a circunstância tem vida e espessura” ou “cartografar durante o terremoto”. Há muito mais. Trata-se de um escrito capaz de produzir inusitados a partir de algo corriqueiro como um passeio no litoral. Por exemplo, quando nos fala da escultura conforme aquilo que falta a ela: “pedra pole a água / lapida ao longo da vida / as faltas da estátua”.

Sua complexidade nem sempre é fácil de apreender, e por diversas vezes me peguei flutuando em ondas de indefinição. Tal como faz o vento de um dos seus poemas, este livro “dissolve os limites / entre meu corpo e a praia”. Daí a sensação de desfazimento, da impossibilidade de se reter os significados diminutos, que escorrem por entre os dedos. Afinal, “a areia é um fragmento da areia”. Se por vezes enchemos as mãos com ela, outras vezes é ela que se agarra em nós. E seguimos assim, por simples prazer.

Publicado no Brasil pelas editoras Reformatório e Patuá em 2020.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

O QUE FAZ DE PICASSO UM PICASSO?

Gertrude Stein (1905-1906), de Pablo Picasso

Essa pergunta pode ser respondida de inúmeras maneiras e sob inúmeros aspectos. Um deles é o de sua amiga Gertrude Stein, que escreveu a respeito do artista ainda em 1938. No pequeno livro intitulado Picasso, publicado no Brasil pela editora Âyiné, ela traça um elogio da técnica, do talento e, principalmente, do seu olhar aguçado, que fez dele um verdadeiro “criador”. Segundo Stein, Picasso foi o primeiro capaz de enxergar sua época com os olhos do século XX. Afinal, se “nada muda nas pessoas de uma geração para a outra exceto a maneira de ver e de ser visto”, como lemos ali, o criador é o sujeito capaz de perceber esse movimento. “Ele é sensível às mudanças pois a vida e sua arte são inevitavelmente influenciadas pela maneira como cada geração está vivendo, pela maneira como cada geração está sendo educada e pela maneira como as pessoas se movem, tudo isso cria a composição dessa geração”.

Essa ideia se inspira num pronunciamento de Sir Edward Grey, citado por Stein, para quem os generais da 1ª Guerra Mundial ainda batalhavam como no passado, apesar de possuírem armamento do século XX. Apenas no auge do conflito eles teriam mudado essa percepção, o pensamento e as ações de combate.

A guerra é um ponto relevante no argumento do livro. A autora inverte o senso comum de que tudo se transforma com ela ao explicar que as mudanças na verdade já aconteceram e que o conflito apenas obriga as pessoas a reconhecê-las. Aliás, como Stein bem observa, as mudanças e as guerras jamais acabam, elas apenas dão a impressão de terminar. É aí que o olhar do criador se diferencia. Em suas palavras, “um criador não está à frente de sua geração, mas ele é o primeiro entre os seus contemporâneos a ter ciência do que está acontecendo”. Ele percebe e expressa a guerra antes que ela seja declarada. E o público, depois, deve reconhecer o seu trabalho, assim como as mudanças evidenciadas pelo confronto.

Todos foram obrigados a aceitar Picasso, que anteviu o conflito mundial ainda na década de 1900, diz Stein. Seu cubismo já expressava essa nova maneira de ver e de viver.

Dado o seu pioneirismo, para Gertrude Stein, Picasso foi herói de uma era, embora não tivesse clareza da amplitude do que fazia. Ela explica que “há heróis em todas as eras em que são feitas coisas que não podem deixar de ser feitas, e nem eles nem os outros entendem como nem por que essas coisas acontecem. Ninguém jamais entende, antes de elas serem completamente criadas, o que está acontecendo, e ninguém entende nada do que fez antes de terminar tudo”.

Depois de realizado, aquilo que parecia estranho vai sendo assimilado, ao ponto de ninguém mais se lembrar por que se estranhavam, por exemplo, as composições cubistas. Todavia, a grande luta de Picasso foi justamente pelo estranhamento, quer dizer, pela sua capacidade de estranhar aquilo que a todos parecia evidente. Com seu esforço para pintar como se desconhecesse, como se visse pela primeira vez, ele focou numa parte do todo por vez, tal como os nossos olhos fazem. Picasso percebeu que vemos no outro apenas uma sobrancelha ou um braço, o ombro esquerdo ou a mão direita; se observamos a boca, as orelhas serão uma construção da memória ou complementos da imaginação, o que simplesmente não o interessava. “Os pintores nada têm a ver com reconstruções, nada a ver com memória, eles se preocupam apenas com coisas visíveis”, afirma Stein, categórica. Assim, Picasso foi desconstruindo um paradigma visual e reeducando o olhar para perceber a contemporaneidade do século XX.

Fez isso pintando o corpo, ou melhor, a materialidade. A alma das coisas e das pessoas não lhe dizia respeito. E Picasso pintava como ele próprio via, não como os demais ou com uma visão generalizante. Essa insatisfação com certa aparência comum seria a sua singularidade, que em pouco tempo, porém, foi sendo absorvida e reproduzida, fazendo surgir réplicas de Picasso, secundárias em todos os sentidos.

E nem mesmo Pablo Picasso era um Picasso o tempo inteiro. Stein usa a imagem de expansões ou acúmulos para se referir a seus períodos de se deixar influenciar. E trata seus momentos de reinvenção como esvaziamentos daquilo que o afastava do seu “temperamento espanhol”, que para ela seria uma espécie de essência do artista. Os colegas franceses, a escultura africana, as cores de Matisse, tudo isso que comumente entendemos como elementos constitutivos da obra de Picasso, para Stein eram desvios.

Essa ideia de essência, tal qual a de gênio moderno (“que já nasceu sabendo tudo sobre pintura”, como ela escreve), mais as generalizações acerca das nacionalidades (como se todas as pessoas de um determinado país fossem iguais) e a lógica exagerada que busca justificar os resultados (como se a criação artística e a vida pudessem ser reduzidas a explicações simples) são alguns dos defeitos do livro, muitos dos quais perceptíveis apenas hoje, com o distanciamento que acumulamos em relação ao Modernismo. Todavia, a proximidade que a autora manteve com Picasso e o encanto por sua obra trazem pontos de vista bem mais cativantes do que encontramos outros textos teóricos ou críticos também disponíveis. Com sua intensa amizade e admiração, Stein faz de Picasso ainda mais Picasso.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

UMA PERGUNTA POR DIA


Estipulei metas para mim no início deste ano. Eu nunca tinha feito isso de maneira tão sistemática. Para me lembrar de cumprir algumas delas, escrevi um bilhete que dizia: Pergunta do dia, Leitura do mês, Projeto da vez. Ele ficou grudado em minha mesa de trabalho durante muito tempo, até deixar de ser necessário. A primeira frase implicava justamente isto: eu me propus elaborar uma pergunta por dia – apenas uma já seria suficiente para fazer irromper, da superficialidade da rotina, algum pensamento crítico. 

Mais do que respostas, acredito que precisamos de perguntas, e de todo o tipo: lógicas, poéticas, urgentes, ideais, reflexivas, retóricas, impossíveis, e assim por diante. Apesar de ter seguido o plano com mais lapsos do que gostaria, até setembro redigi um total de duzentas e vinte e nove. Então, meu filho nasceu, e as prioridades mudaram um tanto. Sem a cobrança assídua do tal bilhete, acabei me esquecendo momentaneamente da meta e, por fim, assumi seu abandono. Ainda assim, incompleta, ela apresenta um mapa de afetos, lampejos, aprendizados, inquietações, ingenuidades, sonhos, entre outros motivos que inspiraram minhas questões. 

A seguir, trago uma seleção delas. Compartilho, desse modo, parte de quem fui em 2021. E torço para que elas também sirvam de provocação para você no ano que vem chegando.

7) Como permanecer ileso?
10) Até que ponto é possível sustentar o sentimento de não ser visto?
20) Como medir a distância entre as coisas e as palavras que correspondem a elas?
22) Existe passado mais passado do que outro? E passado mais presente?
23) Quanto de animalidade resta na humanidade?
30) Em que medida a esperança é só uma ilusão?
31) Como ver apenas as coisas postas, em vez de, nelas e com elas, ver coisas que não estão aqui?
32) Que marcas do passado sobrevivem em meus gestos?
39) Quando se aprende demasiado?
41) O que uma lista de realizações diz a respeito de uma vida?
43) Como fazer com que o tempo seja verdadeiramente livre?
46) Como ver ou ouvir sem julgar? Como suspender o ímpeto de encontrar significado?
49) Por que fizemos essa escolha?
50) Quanto mundo cabe em mim?
55) Quando termina?
56) Existe alegria neste fazer?
57) A obra de arte é parte do mundo ou a sua recusa?
62) Como dizer de agora sem ser evidente?
64) Que saber incide/insiste/existe na matéria?
68) Toda obra contém um público?
71) Repetir é reiterar, ampliar ou esvaziar?
72) Deixamos de fato algo para trás?
77) Existe diferença entre nós e eles?
79) Como ser mais do que o que eu conheço?
80) Como é possível raciocinar sobre algo que é essencialmente sensível?
82) Por que é tão difícil observar com atenção plena?
87) Como tropeçar na lisura?
96) Uma experiência pode perdurar sem ganhar forma?
97) Como é possível uma coisa familiar parecer tão diferente de uma hora para outra?
98) Quanto tempo precisamos para morrer?
100) Por que naturalizamos até mesmo as imagens mais horríveis?
103) É possível que exista hora certa?
108) Para que salvação?
112) Ler histórias nas imagens é o mesmo que encontrar palavras nelas?
116) Ainda é possível falar em belo?
117) A educação do olhar é fruto de um projeto?
122) Que diferença uma palavra pode fazer?
123) O que significa ser tocado por uma imagem?
125) Existe preço justo a pagar pelo capital?
128) Cadê a capacidade de tomar uma atitude diante da indignação?
132) Por que não questionar?
140) De quem é a culpa: do monumento ou de quem o sustenta?
142) Que vestígios deixamos do que não fizemos?
143) Por que demorou tanto?
147) Que diferença faz o detalhe?
148) Como tornar visível somente o visível, sem que com ele apareça qualquer invisível?
153) Em primeiro lugar vem o medo?
155) A imagem pode ser apartada da narrativa?
157) Mais luz para maior visibilidade ou para intensificar as sombras?
160) Como transformar e ainda assim me reconhecer no que faço?
161) Qual é o oco da minha vida?
162) Que ordem pode haver num mundo que tem a morte?
163) Como reconhecer a presença da arte?
165) Como duvidar da realidade estando presente no mundo?
166) Como tornar mais real o que existe?
167) O conhecimento terá mesmo que sacrificar populações inteiras que nele não cabem?
168) Uma existência pode conquistar por si própria sua legitimidade (ou seu direito de existir)?
170) O que é preciso limpar do campo de visão para poder ver melhor?
171) Como saber se não estou sendo atraído por quimeras?
173) O que devo me dedicar a tornar real?
175) Como estar fora estando dentro e permanecer dentro estando fora?
178) Quantas coisas não vou poder nunca mais deixar de saber?
184) Existe uma queda da qual não preciso me levantar?
185) Como identificar o ponto exato em que deixo de ter certeza?
186) Como é possível um tirano ainda ter lugar?
191) Chorar pelo que se foi ou cuidar do que permanece?
195) Por que ainda tolerar tanto?
196) Como identificar preciosidades no banal?
199) Quanto dura um gesto mínimo? Medimos isso em unidade de tempo?
204) Por que insistir?
207) É possível escrever para alguém além de si próprio?
208) Ser influenciado ou pensar junto?
209) Por que acredito ser ocidental?
213) Por quais motivos tão poucos conhecem?
216) Alguma sensibilidade ainda?
217) Como apreciar a beleza conforme seu próprio projeto, em vez de a estimar com o meu preconceito?
218) Que tal criar um cemitério para o que não deu certo? Ou um museu?
220) Como demolir a casa?
221) Quando foi a última vez?
223) É possível haver relação quando não existe compreensão?
228) Baseado em que devo afirmar que haverá amanhã?

Quero acrescentar uma pergunta a essa seleção, que não consta em minha caderneta, mas que continua a me instigar dia após dia: como pode, um recém-nascido, já reconhecer a intenção de um sorriso?

sábado, 27 de novembro de 2021

AMOR DE ÓCULOS — UMA RETRATAÇÃO

Foto de Mariana Beltrán
Seus olhos me convocam 
para mais uma aventura 
a criança no colo 
o dia após dia o 
favor, não esquece 
me tira o sono 
olhos cansados, braços estendidos 
na minha direção 
tudo ainda por fazer 
só o desejo pronto 
a vida correndo solta 
o esforço para agarrar o possível 
tão forte, o que resta 
desta nossa fortuna 
são seus olhos 
atrás da armação 
das lentes engorduradas 
minha insistência em elogiá-los 
em pedir que tire os óculos 
essa insensibilidade minha de não ver 
que eles fazem parte de você 
de não perceber a sua beleza neles 
inclusive quando estão na mesinha de canto 
sugerindo que você está por perto 
como sempre, meu amor.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

A RAZÃO DE BEATRIZ MILHAZES

O diamante (2002), de Beatriz Milhazes

Me surpreendo quando Beatriz Milhazes fala sobre a importância da razão em seu trabalho artístico, que sempre me pareceu fundamentalmente sensível. “Existe uma geometria por trás, embora minha pintura não possa se resumir a ela”, explica. Esse fascínio pelo aspecto racional tem origem em seu primeiro emprego como professora num colégio Montessori, que a ajudou a desenvolver o raciocínio sobre o próprio fazer. A ponto de ela afirmar que seu trabalho trata, sobretudo, de processos. E o que seriam eles? Técnicas, como por exemplo a de monotransfer, que desenvolveu pesquisando materiais e maneiras de aplicar a tinta – na prática, são monotipias feitas com tinta acrílica numa espécie de filme plástico, que Beatriz depois gruda na tela, construindo a imagem sem esboços preparatórios.

Outro dos seus processos de criação seria os desafios que ela se propõe. “A cada período, quero acrescentar novos elementos e preciso, assim, lidar com sua presença na imagem”, diz. Rendas, flores, arabescos, vestígios barrocos, crochês, folhagens, retalhos, frutas. Pergunto se ela tem a preocupação de desenvolver uma “visualidade brasileira”, arriscando afirmar uma identidade nacional. Beatriz gosta muito de Tarsila do Amaral e da nossa arte popular, que estão entre as suas principais referências, junto com o colorido de Matisse e o pensamento sistemático de Mondrian. Ela é também uma das nossas artistas mais conhecidas e valorizadas no exterior, o que sem dúvida traz indagações sobre a sua terra natal. “Minha origem me torna profundamente relacionada com este lugar”, comenta; e conclui que “não adianta aplicar aqui um aprendizado estrangeiro porque ele sempre será de certo modo incompatível; essa é a lição deixada por nossos modernistas”.

Beatriz Milhazes produz uma visualidade autêntica, que escapa dos estereótipos ao mesmo tempo em que valoriza o que é próprio da nossa cultura. Sem receio de se misturar ao tradicional e ao decorativo, ela atualiza os elementos que busca nesses territórios. “Através da arte decorativa é possível contar uma história da humanidade”, justifica. “O trabalho plástico obriga o artista a se haver com essa história, a elaborar um pensamento e a inventar com isso algo seu”.

Suas cores vêm dos tecidos do carnaval brasileiro, assim como o movimento e a alegria. Em 1995, quando a artista deixou de usar uma cola de tom ocre – por sugestão de técnicos do museu norte-americano onde expunha –, suas pinturas ganharam uma vivacidade contagiante. “A cor tem relação com a vida”, e com essa crença Beatriz estabelece um vínculo especial entre as pinturas e a realidade nossa de cada dia. Está aí aquela sensibilidade que extravasa a geometria e que sem dúvida dialoga com o Programa Ambiental de Hélio Oiticica, com a Roda dos Prazeres de Lygia Pape, com os Objetos Relacionais de Lygia Clark, artistas de geração anterior que também partiram de uma racionalidade – a concretista, no caso – e foram além.

Benguelé (2020), de Beatriz Milhazes

Nossos olhos ficam encantados diante de suas pinturas. Existe nelas uma beleza, mas também um movimento incessante, rodopios, reviravoltas; um encantamento mágico, difícil de localizar, tamanha a sua complexidade. Nada é simples e muito menos pacífico. “Quero uma obra que ofereça uma possibilidade de vertigem”, explica ela. “Uma estridência, o contraste das disputas”. Em suas obras há embates por espaços, intensidades, atenção; tensionamento próprio daquilo que é vivo e que não se deixa calar.

“Até mesmo o meio cultural pode ser fascista em relação a ideias e fazeres. Liberdade é fundamental em todos os lugares”, afirma a artista, que voltou às origens de docente ao oferecer atividades para crianças como parte do programa educativo de sua última exposição no MASP. Oportunidade de defender a liberdade experimentada desde a infância, quando desenhava muito. Mais tarde, decepcionada com a faculdade de jornalismo, contou com o incentivo da mãe, professora de História da Arte, ao se inscrever num curso de verão da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro.

Revendo sua trajetória, ela destaca a importância do aprendizado com o educador britânico Charles Watson. “Achei desafiante porque não entendia nada do que ele falava”. Essa confissão diz muito sobre a ousadia de sua personalidade e sua obra, cujo ponto de virada aconteceu no Salão Nacional da Funarte, em 1983. A ocasião lhe rendeu um convite para participar, ainda muito jovem, da famosa exposição “Como vai você, Geração 80?”, realizada no ano seguinte.

Atualmente, ganhando mercados na Ásia depois de se consolidar nas Américas e na Europa, a artista tem repensado as narrativas que acompanham sua obra pictórica. “Os chineses, por exemplo, têm como referência outra história da arte, não sabem o que se passou até chegar a minha geração”, explica. “Eles enxergam meu trabalho daqui para frente”.

De todo modo, Beatriz se interessa por algo capaz de sensibilizar qualquer cultura: o tracejar humano, a manufatura, o rastro de quem produz objetos estéticos. É isso que se propõe investigar. Apesar de todos os elementos figurativos que apresenta, ela se considera uma artista abstrata. “O pensamento é abstrato”, diz, mais uma vez se referindo à implicação geométrica que estrutura suas composições. Passados meses de elaboração, a pintura ganha camadas, e o espectador dificilmente consegue identificar nelas algum resquício da racionalidade que a originou. E tudo bem, não é necessário demonstrar, “o trabalho de arte visual deve se sustentar sem discursos”.

Quero saber dos títulos, que são curiosos. “Eles vêm por último e são muito importantes. Devem abrir as possibilidades de apreensão”. Não à toa, Beatriz dedica a eles um tanto de criatividade, assim como ao restante de sua obra. Criatividade, sensibilidade e, quem diria, alguma razão.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

SOBRE ERROS

Foto de Inge Poelman

Se de forma antecipada
eu soubesse das coisas
que quase tudo daria certo e afinal
o que não daria importa pouco, ah
se eu tivesse sido informado que
para o que não deu certo
e fosse ainda importante
haveria perdão
teria eu agido diferente
teria mais paciência, talvez
teria dito que amava, teria
ido aonde não tive coragem
sonhado ininterruptamente
arriscado mais, errado menos
por certo
teria deixado de fazer, e assim
teria deixado de viver uma parte, ah
mas que coisa
esta minha vida mediana
feita de altos e baixos
alegrias e tristezas
companhia e solidão e sabores e dissabores e
você já entendeu, logo
sua vida deve ser também assim
ambas têm lá alguma autenticidade
– os erros a comprovam
e por mais que saibamos perfeitamente
a realidade é que corremos e tropeçamos
e caímos e levantamos e
corremos sem poder fugir
disto que nos forma
e com o tempo me fez
careca de tentar aprender.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

ESCRITOS SOBRESCRITOS

Página 47 do DOCUMENTO PT/AMLSB/RJA/01/018, Arquivo Municipal de Lisboa


Meu ofício é escrever. Seja na ficção, na poesia, na comunicação, na revisão, na pesquisa, na edição, na crítica, nas aulas, no acompanhamento de projetos alheios, enfim, escrevendo é como me sustento e me expresso. É pela escrita, especialmente, que me coloco no mundo. Tenho com ela uma obrigação, uma companhia, por vezes certa desconfiança, em outras, uma paixão permeada por realizações, conflitos e frustrações. E mais. Meu ofício me convida para conversas, que rendem anotações a seu respeito, quase sempre perdidas em cadernos e folhas avulsas. Revendo-as, senti o desejo de compartilhar algumas, que você lê a seguir. Elas não concordam entre si nem pretendem estabelecer verdade incontestável; na realidade, com frequência são incompatíveis e precisam ser acolhidas com parcimônia. Seja como for, espero que tragam alguma inquietação a leitores e escritores, assim como trazem para mim.

***

Existe um abismo entre as palavras e as coisas. Escrever é atirar-se nele, não como forma de suicidar-se, pelo contrário: é levar às últimas consequências a tentativa de sobreviver.

***

O que diferencia um texto da “arte literária” de outro qualquer é que ele sempre tratará do próprio ato de escrever, por mais que se apresente dissimulado na forma de temas, narrativas, versos, personagens.

***

Para ser um escritor bem-sucedido é preciso se interessar pelas pessoas, pelas coisas, pela língua; tanto quanto pelas relações, jogos de força e diferenças que atravessam isso tudo. É preciso ter curiosidade e abertura ao que é estranho. Escrever é elaborar esse profundo interesse pelo outro.

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A boa escrita jamais é a mera expressão do ego. Ela só se realiza quando o escritor se abandona, inclusive ao falar de si mesmo.

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Ser influenciado pela obra de outrem não pode significar uma receptividade passiva; não se trata de simulação. Melhor é deixar que ela e a sua própria obra colidam, reflitam e se transformem. É uma ação poderosa e, em geral, perturbadora.

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É sempre o livro que escolhe o seu leitor – o contrário é uma ilusão.

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Hoje, e talvez desde sempre, não saber ler imagens é o mais grave tipo de analfabetismo.

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Uma artista me afirmou certa vez que pintar é escrever. Referia-se não apenas ao aspecto narrativo da imagem pintada, mas ao que apresenta também de linguagem, de estrutura, da sua relação com as palavras que a interpretam, com o que ela dá a ver e como é vista. Essa artista não disse que pintar é “como” escrever, não sugeriu uma compatibilidade. “Pintar é escrever”. A pintura é um escrito – embora não necessariamente um texto, claro. Poderíamos responder que escrever é pintar? Que a escritura é também pintura? Uma composição de cores, sensações, espessuras, forças, temporalidades, sugestões, camadas, visualidades, imaginários, ilusões?

***

Poesia é a capacidade de tornar visíveis as singularidades onde a princípio vemos apenas lugares-comuns.

***

Ao mesmo tempo em que um escrito realiza uma memória, dando a ela a materialidade das palavras, torna-a ainda mais distante, impessoal, autônoma, como um construto, uma invenção, uma obra fictícia da qual o autor já não é o sujeito que a viveu e que sobre ela tem ainda algum controle. Tomamos notas para lembrar; escrevemos para esquecer.


***

Como sombras deslocadas do objeto que as produz, personagens são o autor do livro projetado, espelhado, ampliado, negativado, reduzido, distorcido, ou seja, modificado segundo as necessidades da narrativa. Autor e obra são como formas similares e não coincidentes. São e não são. Assim.

***

Um escritor precisa ter muito claras as questões que mobilizam sua escrita. O que não significa respondê-las, mas enunciá-las. Somente assim saberá se de fato acredita nelas e se exerce seu ofício com sinceridade. Essa é a única verdade que importa quando falamos em escrever.

***

A cada palavra do escritor, a obra pode viver ou morrer. É preciso compreender a responsabilidade implicada nesse gesto toda vez que acrescentar, excluir, modificar palavras num texto. Ao mesmo tempo, somente é possível escrever deixando-as livres para escolherem a si mesmas, sem o controle muitas vezes autoritário do autor. Escrever é manejar esse paradoxo.

***

O real motivo do texto é a sua escrita. Qualquer outro produz resultados duvidosos, quando não desastrosos.

***

O texto deseja existir por sua conta e risco. Nossa tarefa é tornar essa existência possível. E basta.

***

A palavra é sempre um aprisionamento, ela encerra no significado a dimensão maior e mais complexa da vida. Na medida em que cria fissuras no entendimento, subjuga o óbvio, reinventa usos, a poesia tenta escapar dessa limitação. Tentativa deveras frustrada.

***

Um texto que não perturba certa ordem preestabelecida não merece ser escrito. Não há escritura real senão em afrontamento.


*Publicado originalmente no jornal Correio Popular.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

ARTE, CONJUNÇÃO ADVERSATIVA

 
Plugue (2018), de Nina Beier
 
O título da 34ª Bienal de São PauloFaz escuro mas eu canto – é um verso escrito por Thiago de Mello em 1963. Embora seu poema fale do trabalho na lavoura, podemos lê-lo sob a chave das tensões sociopolíticas entre os movimentos libertários e as repressões da época, muitas das quais, infelizmente, continuamos a vivenciar. Faz escuro. Mas eu canto. A escuridão persiste, assim como as formas de resistência a ela, entre as quais a esperança, a poesia, a alegria. E a curadoria de Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada cria espaço propício para que se possa exercitar o ato verdadeiramente revolucionário, sugerido no poema pela conjunção “mas”. Está aí o levante, a indignação, a denúncia, a resiliência, a afirmação da adversidade, o rompimento do ciclo, o desejo de mudança, a experiência alternativa, a apreciação da complexidade do mundo através de mais do que apenas um ponto de vista. “Mas” é a arte que se apresenta no Parque do Ibirapuera, na capital paulista, até 5 de dezembro de 2021.
 
Os mais de 1,1 mil trabalhos em exibição, criados pelos 91 artistas participantes, elaboram por vezes o escuro, por vezes o canto, se quisermos usar a mesma metáfora que parece balizar as escolhas dos organizadores. Eles abrangem um arco temporal que remete à formação do universo – representada pelos dois meteoritos – às produções desenvolvidas especialmente para a ocasião. Isso tudo disposto de modo a suscitar relações e, claro, sentidos interpretativos, questionamentos, atritos, reflexões, diferenciações, encontros de forças, entre inúmeras outras possibilidades.
 
Gustavo Caboco
Essa “poética da relação” tem base no pensamento do martinicano Édouard Glissant, filósofo, poeta, ensaísta, autor de um livro com esse mesmo título e uma das grandes referências conceituais da mostra. Tais relações já podem ser notadas na entrada, numa “sala” montada em torno do meteorito de Bendegó, símbolo de sobrevivência por ter resistido a variadas situações de risco, sendo o incêndio do Museu Nacional em 2018 a mais recente delas. Embora não esteja fisicamente presente por conta da dificuldade de se transportar suas 5,36 toneladas desde o Rio de Janeiro até São Paulo, sua história é retomada junto a outros trabalhos de arte que também colocam em questão a memória, a ancestralidade, a origem e a extinção nos seus mais variados sentidos.

Vemos ali, além de um meteorito menor – o de Santa Luzia, segundo em tamanho encontrado no Brasil – e de bonecas indígenas doadas pelos seus criadores para substituírem as originais queimadas – ambos os itens também provenientes do acervo do museu incendiado –, uma espécie de cosmologia inventada pelo artista Gustavo Caboco para problematizar sua identidade indígena; performances com declamações de livros feitas de memória, que aludem às deliberadas destruições por fogo do romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; cerca de 150 monotipias da série Boca do Inferno, de Carmela Gross, criadas a partir de imagens de vulcões; entre outros trabalhos.

Coloquei aspas na palavra “sala” porque não se trata exatamente disso: a bienal apresenta as obras em nichos, separados por três tipos de divisórias chamadas “peles”. Elas são feitas de policarbonato, juta ou madeira, e suas transparências e opacidades remetem tanto à filosofia de Glissant quanto aos ocultamentos de culturas, saberes, pessoas etc. realizados por gestos opressores conscientes ou não.
 
Ainda que algumas peças ocupem o espaço com maior liberdade, boa parte delas fica reunida sob a imantação dos 14 enunciados propostos pela curadoria. Esses enunciados são objetos, ideias ou narrativas que não pertencem necessariamente ao campo das artes, mas que carregam histórias e simbologias. O Museu Nacional é um deles, assim como o sino da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos, dita Capela do Padre Faria, em Ouro Preto; os retratos do abolicionista estadunidense Frederick Douglass; a obra de Paulo Freire; o filme Hiroshima mon amour, de Alain Resnais; e assim por diante.

Mais do que um punhado de grandes nomes, me parece que os curadores conseguiram fazer do conjunto de obras e artistas a verdadeira potência da exposição. A temática, de modo geral, trata das relações entre culturas, temporalidades, valores, atitudes, com destaque para questões oriundas do colonialismo – entre as quais, e talvez principalmente, as sobre a diáspora africana por meio do tráfico de escravos e o extermínio dos povos originários. Há também menções a práticas democráticas ou autoritárias, como por exemplo em A carga e Presunto, trabalhos criados nos anos 1960 e que se atualizam no Brasil de 2021. Isso tudo configura a força de resistência, assim como as limitações que toda exposição de arte apresenta.
 
Arjan Martins
As diferenças entre os participantes e as muitas semelhanças estéticas e formais de suas obras, por um lado, fazem pensar em como essas proximidades são construídas na contemporaneidade. Já as dificuldades que senti para assimilar certas propostas talvez indiquem minha condição de estrangeiro, inclusive em minha própria terra e entre as pessoas que aqui habitam. Isso é algo previsto, pois existe na mostra um convite declarado a que se estabeleçam relações, mesmo que as partes não sejam perfeitamente compreensíveis entre si.
 
“Da adversidade vivemos”, afirmou Hélio Oiticica em seu famoso ensaio sobre a Nova Objetividade brasileira. Esse artista, falecido em 1980, compõe um dos enunciados da 34ª Bienal de São Paulo. E a exposição, como um todo, parece reiterar sua proposta, mostrando que pela diferença entre as formas de vida se produzem também variadas criações artísticas.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

UM VAZIO

Foto de Kunj Parekh


Era
uma concha
não era uma concha, era uma cavidade
uma ferida
uma caverna
era
o escuro o abismo a depressão
não, era uma queda
profunda
a queda era uma verdade
a verdade era a dor
a dor era um corpo, de fato
um filho
era
o mar
a onda
a lágrima
a convulsão
o agudo atravessando toda a rouca imensidão
não era um buraco, era
uma marca
a ferro e fogo
perfuração na superfície da história
era mais uma história de ocultamento
era
o trecho da história que não se conta, e muda tudo
a carne que faltava à vítima
a alma que faltava à casca
a existência renegada
era
uma mãe também
não era uma mãe, era um eco
um horror
o júri montado ao redor, nós
como urubus
uns aqui e outros ali e todos
a mesma culpa jamais assumida
assistindo apenas
ao último carinho, à tentativa
de agarrar o que já se tinha esvaído
era o buraco de bala no peito
era a areia ao redor
era uma concha
o nome já meio enterrado
como sempre
a água que batia
e se afastava
a água ia e vinha e batia
uma vez mais
displicente
escavando
desfazendo a concha
em mais areia.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

QUANDO O MUNDO LÁ FORA NÃO FAZ SENTIDO


 
“Eu imitava com grande facilidade o vídeo de treinamento a que assistimos na sala dos fundos, ou os gestos que o instrutor nos mostrava. Até então, ninguém jamais havia feito essa gentileza de me explicar claramente: ‘Este é o jeito normal de sorrir, este é o jeito normal de falar’.” (p. 22) 
 
Vencedor de prêmios importantes, best-seller internacional, Querida Konbini chega a soar um tanto ingênuo e repetitivo. Acontece que essas são também características da protagonista, funcionária temporária – há 18 anos – de uma loja de conveniência (konbini) em Tóquio, o que é considerado um desastre, profissionalmente falando. 
 
Seu jeito estranho de compreender as relações sociais, embora inadequado aos padrões, obedece a uma racionalidade sistemática típica daquele comércio popular, que todos os cidadãos frequentam e sabem como funciona. Percebe o paradoxo? É uma mulher tão bem encaixada no mecanismo que por isso mesmo deixa ver seu desencaixe. 
 
Li o romance em poucos dias e ele permanece crescendo em mim. É uma leitura que instiga com sua simplicidade, nos coloca diante da estranha ordem contemporânea e, oscilando entre risos e espantos, mostra como nossa sensibilidade também segue uma espécie de manual de atendimento ao cliente. 
 
Querida Konbini, de Sayaka Murata, foi traduzido do japonês e publicado no Brasil pela editora Estação Liberdade.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O BELO E A BESTA: RESSONÂNCIAS


Este é um livro escrito para o leitor rir de si mesmo. Ou melhor, rir de sua patética humanidade. Seja com ironia, espanto ou escracho, estes textos breves retomam uma questão que atravessa as fábulas de Esopo, os bestiários medievais, os seres imaginários de Borges, a bicharada de Guimarães Rosa, qual seja: há diferença entre nós e eles?

“Predicamos ‘homem’ de um homem; assim, de ‘homem’ predicamos ‘animal’”, escreveu Aristóteles em suas Categorias. Para concluir que “um homem é tanto ‘animal’ quanto ‘homem’”. Este O belo e a besta, com menos filosofia e mais absurdo, parece inverter a equação e sugerir que a humanidade não está um grau acima na evolução; ela é a limitação de uma animalidade maior e desconhecida, ainda que jamais abandonada.

O que resta a nós? Ler e rir. Porque, bem sabemos, é melhor rir do que chorar.

Saiba mais no site da editora Moinhos

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

ENTREMEIO (ALGUMA LUZ)

Foto de Shio Yang

Trinta e sete mil e quatrocentos metros de fio de cobre paralelo foi a quantidade que conseguiu comprar com todas as suas economias. Esticou-o desde a sala de estar de seu apartamento, no décimo segundo andar, atravessando ruas e avenidas, estradas, linhas de trem suburbano, terrenos baldios, pracinhas cheias de capim alto etc., desviando de feiras livres, crianças, ruínas, córregos etc., fazendo as curvas necessárias para manter uma trajetória suficientemente retilínea na direção da cidade vizinha mais próxima. Na extremidade do fio, instalou um soquete e, no soquete, uma lâmpada. Voltou para casa. Na ponta inicial, acoplou um interruptor, desses de abajur, e na sequência um plugue macho. Ligou o circuito à rede elétrica. Precisou forçar um pouco para que alcançasse a tomada localizada atrás do sofá. Tudo certo. Era noite. Acionou o interruptor. Desde então, isso já faz meses, muda a chave seletora para a posição contrária toda manhã ao acordar. Imediatamente antes de dormir, coloca-a outra vez na posição anterior. Jamais soube se, ao fazer isso, acende ou apaga a lâmpada no entremeio. Sequer tem certeza de que ela continua rosqueada no soquete a trinta e sete mil e quatrocentos metros de distância. Sua rotina é acender e apagar a lâmpada em qualquer ordem que seja e atender clientes de uma rede de lanchonetes para, todo décimo dia do mês, pagar a conta de luz.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

DE ONDE A ARTE VEM

Salto no vazio (1960), de Yves Klein
“Entre as ideias, tem algo que a gente não conhece, não sabe o que é, e não sabemos nomear. E é exatamente por isso que eu me interesso, pelo que eu não conheço”, disse o artista Carlito Carvalhosa em 2011, numa entrevista ao curador Hans Ulrich Obrist. A conversa faz parte do livro Entrevistas brasileiras, volume 2, recém-publicado pela editora Cobogó. Esse seu interesse pelo desconhecido é uma constante entre artistas. Willem De Kooning, por exemplo, disse em 1972: “É isso que me fascina, fazer algo de que nunca terei certeza, e de que ninguém mais vai ter”. Como se o trabalho de arte surgisse entre lacunas do conhecimento, entre escombros de verdades, entre esboços de vidas possíveis.

***

Nenhuma solidez ou consistência têm os seres virtuais elaborados por Étienne Souriau e comentados por David Lapoujade no livro As existências mínimas, do qual falei no artigo anterior. É da natureza deles o caráter de esboço; “são perfeita e intrinsecamente inacabados”, afirma o autor. Podem até mesmo ser confundidos com o puro nada. De modo que é preciso atenção para percebê-los, cuidado ao manejá-los, sensibilidade para apreender seu valor. Ao mesmo tempo, “sua arte é suscitar ou exigir a arte; seu ‘gesto’ próprio é suscitar outros gestos”. Esse princípio de criação é como uma célula-tronco; potencialmente, pode ganhar qualquer forma. A cada escolha do artista, a obra pode viver ou morrer.

***

O brasileiro Paulo Pasta tem uma relação de reciprocidade com suas criações. “Caminho na medida em que o trabalho também caminha, e o reconheço na medida em que também sou reconhecido por ele”, escreve no livro A educação pela pintura. Ele também explica que, dada a condição especular de sua relação com a arte, ela mostra quem ele é de verdade, não quem imagina ser. O artista existe pela obra e ela existe pelo artista; e a maturação de ambos acaba por equivaler ao tempo de uma vida. São longos anos de dedicação a um mesmo tema, que se transforma sutilmente. Ao comentar essa suposta lentidão, Paulo esclarece que se trata também de uma estratégia para evitar que a ideia precipite imediatamente em projeto. Em suas palavras, “a pintura talvez seja a construção da distância entre o desejo e o projeto”.

***

Naquele mesmo livro de entrevistas que mencionei, Jac Leirner diz a Obrist: “Fico quase passiva no trabalho, porque tento seguir aquilo que já está lá. Não sou eu quem propõe, é a coisa em si que se impõe”. A artista fica à mercê da obra, que se adianta a ela, coloca as regras, exige a execução. Cria sob um sentimento de dominação.

***

Um ser virtual só toma posse de si mesmo se encontrar um mediador. Por sua vez, o criador é sempre apenas o hospedeiro das suas virtualidades, explica Lapoujade. Para quem possuir não significa se apropriar, mas fazer existir de maneira apropriada. “Fazer existir é sempre fazer existir contra uma ignorância ou um desprezo”. Quanto mais “possuída”, mais real é a existência daquele ser a princípio frágil, evanescente.

***

Em um vídeo curto divulgado pelo Museu de Arte Moderna de São Francisco, nos Estados Unidos, Philip Guston aparece pintando e divagando sobre seu ofício. Ele conta de uma pintura que realizou num único dia e que então lhe parecia muito boa. Naquela mesma noite, porém, ao observá-la mais uma vez, algo lhe desagradou, e ele recomeçou a trabalhar nela. As mudanças na parte direita da tela o induziram a mudar também o lado esquerdo, e um tempo depois tudo tinha desaparecido. “A pintura que estava quase terminada não parecia ruim, ela era ok”, diz Guston. “Mas é quase como se fosse boa demais. Como se eu não tivesse experimentado nada”. Se experimentar é tentar responder da melhor maneira a perguntas ainda não formuladas, o trabalho de arte precisa trazer algum risco, alguma incerteza, algum estranhamento. Ele obriga o artista a se lançar numa espécie de vazio, como o famoso salto de Yves Klein, fotografado em 1960.

***

“A partir de certo ponto não há mais retorno. É este o ponto que deve ser alcançado”, diz o quinto aforismo do escritor Franz Kafka. A expressão “ponto de não retorno” tem emprego na aviação: trata-se daquela posição na trajetória e a partir da qual a autonomia de combustível da aeronave não permite que ela volte para seu local de origem. É preciso, assim, encontrar um novo lugar, seja para pousar em segurança, seja para despencar. Para pintar o espaço, propôs Klein, é preciso estar no espaço.

***

Quando participou do nosso grupo de discussão de arte contemporânea, Paulo Pasta ofereceu uma excelente definição: “Aprender a desenhar é começar a reconhecer as suas dificuldades”. Não existe um certo e um errado a priori; o trabalho de arte vem do enfrentamento das adversidades encontradas no próprio fazer.

***

No fim de sua entrevista, Carlito Carvalhosa dá um conselho ao artista jovem: “Você não deveria saber o que está fazendo”.

***

Artista é o responsável por intensificar as potencialidades das obras de arte até que adquiram autonomia. Ele faz isso por meio da instauração de formas, que lhes dão estrutura, consistência e visualidade. Advoga em seu nome e pelo seu direito de existirem, legitimando sua maneira de ocuparem um espaço-tempo. Saberemos dar aos seres virtuais, ou às ideias em arte, a realidade que merecem? Como fazer isso? O argumento e as perguntas são de Lapoujade. As respostas, todavia, permanecem em aberto.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

O BELO E A BESTA: RESSONÂNCIAS


Este é um livro escrito para o leitor rir de si mesmo. Ou melhor, rir de sua patética humanidade. Seja com ironia, espanto ou escracho, estes textos breves retomam uma questão que atravessa as fábulas de Esopo, os bestiários medievais, os seres imaginários de Borges, a bicharada de Guimarães Rosa, qual seja: há diferença entre nós e eles?

“Predicamos ‘homem’ de um homem; assim, de ‘homem’ predicamos ‘animal’”, escreveu Aristóteles em suas Categorias. Para concluir que “um homem é tanto ‘animal’ quanto ‘homem’”. Este O belo e a besta, com menos filosofia e mais absurdo, parece inverter a equação e sugerir que a humanidade não está um grau acima na evolução; ela é a limitação de uma animalidade maior e desconhecida, ainda que jamais abandonada.

O que resta a nós? Ler e rir. Porque, bem sabemos, é melhor rir do que chorar.

Saiba mais no site da editora Moinhos

MAGIA

Foto de Geoffroy Hauwen

Primeiro a ouço
como se fosse uma só
gota, são inúmeras
num mesmo tom
frisson da natureza
lembro-me como se fosse
hoje, o cheiro da saudade
vento frio a entorpecer meu rosto
a vontade de permanecer
observando essa magia, a água
cair do céu. Ouviu?
É água
caindo
do céu.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

AS "EXISTÊNCIAS MÍNIMAS" DE FLÁVIA RIBEIRO


Existências mínimas, de Flávia Ribeiro, na exposição Continuum

Em dado momento da pandemia, com a crise pessoal agravada, a artista Flávia Ribeiro precisou se recolher num sítio. Ali, não poderia continuar seus trabalhos com bronze fundido, então levou consigo algumas tintas guache, entre elas o seu vermelho favorito. Ao longo dessa temporada, recolheu gravetos de um velho ipê, já muito doente, algumas pedras, toquinhos de madeira remanescentes de uma construção feita há pouco no local. Não pensou em, com eles, criar arte, no sentido de executar um projeto artístico, muito menos em expor as pequenas esculturas que surgiam do longo processo de entalhar os gravetos com uma faquinha, pintar os toquinhos, empilhar pedras em formações instáveis. Todavia, depois de criadas, ficou impossível ignorá-las.

Na exposição Continuum, na Galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, essas esculturazinhas foram reunidas sob o título de Existências mínimas. Trata-se de uma referência ao livro As existências mínimas, de David Lapoujade, publicado no Brasil pela N-1 Edições, que fala de certas entidades virtuais, ou potencialidades que acompanham cada ser e carecem de realidade, como se não houvesse lugar para elas no mundo real. Aquilo que poderia ser e até certo ponto é; porém, de uma maneira precária, provisória, fictícia, sempre em busca do direito de existir mais intensamente.

Das cerca de trinta peças criadas no sítio, algumas já se quebraram, tamanha a fragilidade da sua composição. Essa fragilidade física talvez seja a grande força do conjunto que me chamou a atenção em meio aos demais trabalhos da mostra, disposto com singularidade entre a leveza e a translucidez dos desenhos em papel manteiga e a carga histórica e corpórea dos bronzes. Pois, criadas com uma espécie de gesto mínimo, também basta um sopro para se desfazerem, deixando de ser como são, e se tornarem outra coisa. Elas apontam, assim, para a nossa impermanência e ao mesmo tempo para a suposta longevidade da arte, talvez para o contrário também.

É com essa iminência que tais seres requerem seu direito de existir no mundo real e conquistam um lugar distinto na obra da artista, inclusive colocando o restante em questão. Como ela mesma comentou com o grupo de discussão sobre arte contemporânea do qual faço parte, as Existências mínimas surgiram sem planejamento e então foi preciso lidar com elas. Foi preciso se interrogar a respeito do que provocam, do que trazem de novo, de que relações estabelecem com a sua produção anterior; oferecem, assim, a oportunidade de se aprender com isso.

“Os virtuais têm a força do problemático”, diz Lapoujade. Para quem a força de um problema não é a sua tensão interna, mas a incerteza que ele introduz na (re)distribuição de realidade. Uma nova perspectiva irrompe e confunde a ordem de determinado plano de existência, deslocando os centros de gravidade.

Existência mínima, 2020, de Flávia Ribeiro

O filósofo explica ainda que cada existência provém de um gesto que a instaura, mas esse gesto não emana de um criador, é imanente à própria existência. De modo que, para ter lugar, ela precisa vencer a dúvida, o ceticismo ou a negação que contesta o seu direito de existir.

Pois não seria essa a qualidade daquelas pequenas esculturas de Flávia Ribeiro? Apresentarem-se sem serem convidadas, como um estrangeiro que bate à sua porta e coloca em questão o que acredita saber sobre si mesma? Um estranho imprevisto com o qual precisa dialogar, que invariavelmente a transforma, força-a para além do lugar-comum?

Elas são começos, esboços, fragmentos; quase se confundem com o puro nada, explica Lapoujade. Evidente que as Existências mínimas da artista não são uma representação do conceito desenvolvido no livro. Mas não tenho dúvidas de que as aproximações enriquecem de sentido ambos. Afinal, é próprio desses seres virtuais expandirem as possibilidades. “Seu ‘gesto’ próprio é suscitar outros gestos”, diz o filósofo; “são os virtuais que introduzem um desejo de criação, uma vontade de arte no mundo. Eles são a origem de todas as artes que praticamos”.

Como o novo está sempre posto em relação com o pré-existente, vejo também similitudes com outros trabalhos de Flávia Ribeiro, inclusive alguns da própria exposição. Por exemplo, com as estruturas delicadas do Campo para pensar I, espaço de imantação formado por uma base de parafina em que ideias ganham materialidade, como que desenhadas no ar com fios de arame e organza. Ou com o proposto “vir a ser” das suas esculturas intituladas Pré-objetos. Ou, ainda, com a pulsação da cor vermelha, que acentua algumas peças e, assim, em pitadas, se faz sempre presente.

As Existências mínimas são a amostra mais viva da intuição poética de Flávia Ribeiro, talvez um ponto de virada em sua trajetória, e com certeza um ponto de inflexão. Propõem caminhos alternativos, como as forquilhas do ipê. Carregam algo da brincadeira das crianças, que encaram o jogo da vida com seriedade, mas sem a sisudez de quem já se acostumou com as maneiras convencionais de existir. São receios e fragilidades assumidos; inconsistências e evanescências elaboradas na forma de uma coragem irregular, orgânica, primitiva, tão necessária para sobreviver na dureza do mundo real.


quarta-feira, 14 de julho de 2021

MEIO A MEIO

Foto de Alice Pasqual em Unsplash

Oi, pai.
Oiê.
Oi, meninas. Tudo bem?
Sim.
Mais ou menos.
O que foi?
Nada.
Nada.
Que estão fazendo?
Nada.
Falando.
Falando?
Nada especial.
Só colocando a fofoca em dia.
Estão com fome?
Sempre.
Não muita. Vamos comer o quê?
Pensei em pizza.
Quatro queijos.
Como assim?
Meia quatro queijos.
Por que como assim?
Eu me referia à pizza, não ao sabor. Pai, o médico não proibiu?
De vez em quando pode.
Deixa ele ser feliz.
De vez em quando pode?
Ele não especificou.
Deixa de pegar no pé.
Eu me preocupo, tá?
Já faz tempo que estou só no filé de frango.
Ele não vai comer a pizza inteira. Nem vai comer pizza todo dia. É só hoje.
Faz quanto tempo que você colocou ponte de safena?
Então, agora estou limpo por dentro. Pronto para outra.
Ele pode comer uma fatia ou duas.
Faz três semanas.
Você fala como se eu estivesse para morrer. Logo agora que me salvei.
Tá vendo? Para com isso.
Eu... Eu falei porque não quero passar por esse sufoco mais uma vez.
Eu sei. Obrigado por se preocupar. Eu também não quero, nunca mais.
Pede meia abobrinha.
Não, nada de pizza. Eu faço qualquer coisa para comer.
Eu como abobrinha, pode ser? É mais saudável.
Meia quatro queijos, meia abobrinha. Eu peço.
Pai, por que isso?
Estou bem, de verdade. Só não posso abusar.
Alô, é da pizzaria?
Eu vi seus exames. O colesterol continua no teto.
Até o teto é bom. Não vai melhorar, é genético.
Meia quatro queijos, meia abobrinha.
Você tem feito exercício?
Ainda estou convalescendo.
Rua Tapeté, vinte e um. É casa.
Convalescente toma sopa, não come pizza.
Vou procurar um personal, ok?
Traz a máquina de cartão?
Quando?
Semana que vem.
Ok, obrigada.
Por que não amanhã?
No domingo?
Vai demorar quarenta e cinco minutos.
Então segunda.
Prometo.
Pronto. Vou arrumar a mesa. Você me ajuda?
Ajudo.
Eu também.
Você pega a toalha lá no aparador.
Eu pego os talhares. Você, os copos?
Vou colocar uma toalha especial.
Taças.
O pai não pode beber.
Posso sim.
Tinto ou branco?
Como assim, pai? Convalescente bebe vinho?
Tinto faz bem para o coração.
Você também precisa relaxar.
Como eu posso?
Eu já estou bem.
Ele está bem.
Você sabe que não é só isso. Como pode?
Alguém viu aquela toalha branca que sua mãe trouxe de Portugal?
Não vai entrar nesse assunto agora, né?
Ele precisa saber!
Alô-ô!
Procura direito, pai! Fica aí mesmo.
Eu vou contar. Não é certo.
Na primeira ou na segunda gaveta?
Você vai acabar com a noite dele. E com a nossa. Para quê?
Procura nas duas!
Estou procurando, estou procurando.
A gente conta quando a consulta estiver marcada.
Eu não consigo. Não dá! E quer saber? Será que ele pode beber, não vai fazer mal?
Achei só a vermelha e branca, de piquenique. Pode ser? A do dia a dia eu não quero, hoje é uma noite especial.
Você ouviu o cardiologista. As chances são mínimas. Deixa ele viver o quanto pode.
Se tiver uma chance, eu quero apostar nela. Eu quero acreditar.
Até que combina, parece toalha de cantina italiana. Por que você está chorando?
Não é nada.
É.
Nada?
Bobagem dela.
Eu não sei direito.
Você está estranha desde que eu cheguei. Não é aquele ator, né? Eu já falei para você.
Ator só faz cena, a gente sabe.
Não. Deixa pra lá. Eu... Lembrei agora de uma coisa que perdi.
Vou dar um conselho, tá? Deixa isso de lado e vai ser feliz. Olha aqui a sua taça. Saúde!

terça-feira, 13 de julho de 2021

A PRESENÇA DA ARTE

Composição em cinza, de Arcângelo Ianelli

É possível permanecer
depois de há muito
ter partido
encher os olhos
com resquícios
de uma existência
antever a crise, o caos
inverter a memória em realidade
experienciar a intensidade – que pulsa
ressoar o espírito do tempo
em tocante melodia
e assim
fazer-se inteiro
pleno-sempre
sobre o chão
estar disposto
único
entre outros
porque a arte
instaura essa presença
frente a toda vida
que desvanece.

terça-feira, 29 de junho de 2021

UMA PEQUENA VITÓRIA POR DIA

Foto de Nicolas Solerieu em Unsplash

Privada sem respingos
vaso com novo broto
flerte com o estranho
entre duas estações do metrô
vazio preenchido com chocolate
comido antes de derreter no bolso
nota de cinquenta esquecida
encontrada a cachorrinha da vizinha
alguém segurando a porta do elevador para você
subir desde o fundo do poço
água quente do chuveiro
cantarolar feliz sem letra
a palavra certa
no momento certo
perdão, dizem
dois pedestres em rota de colisão
ao desviarem para o mesmo lado na calçada
voltar para casa mais cedo
acompanhar o nascer do sol
tocar a pele do bebê
dar tudo por alguém
receber de volta
o olhar
abrir as janelas
a brisa do mar
aroma de café preto
o despertar de uma ideia
sorrir por dentro
uma pequena vitória por dia
o resto é perdição
fogo cruzado
sobrevivência.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

ALGUNS OLHARES PARA A ARTE DO PASSADO

Ao analisarmos uma pintura pelo viés da história da arte, vamos querer vê-la em seu tempo e seu contexto, tentando compreender o que representou para seus contemporâneos. A história de A noite estrelada, por exemplo, reconstrói a biografia de Vincent Van Gogh, sua internação voluntária no asilo de Saint-Rémy, na Provença, a janela do quarto por onde ele observava o céu noturno, a arquitetura dos vilarejos holandeses que o artista resgatou da memória e incluiu naquele vale iluminado pelo luar. Tudo isso por meio de documentos, como as cartas trocadas com seu irmão Théo, diários, registros variados deixados por pessoas próximas, relatos, análises técnicas da própria obra etc. A crítica de arte segue caminho semelhante, sendo por vezes indiscernível da historiografia. E tais narrativas se atualizam na medida em que novidades são descobertas e outras associações vão se produzindo. Mas estas não são as únicas formas de olhar a arte do passado.

No livro Studiolo, traduzido do italiano e publicado este ano no Brasil pela editora Âyiné, o filósofo Giorgio Agamben apresenta uma coleção de pequenos textos inspirados por trabalhos de arte que, conforme advertência do próprio autor, pretendem se colocar na tradição do comentário e não da crítica e da história. “Se chamamos de presente o instante em que uma obra chega à sua legibilidade, as obras comentadas no livro, ainda que compostas em um arco de tempo que começa em 5000 a.C. e chega até hoje, são todas igualmente presentes, convocadas aqui e agora em um instante eterno”, explica.

Ou seja, se a história e a crítica de arte leem as obras do passado sob a luz do nosso presente e contribuem, assim, para a elaboração de certa linha de tempo, a abordagem de Agamben é radicalmente outra: seu interesse nelas é ler o hoje sob a luz do passado, considerando que esse passado nunca se interrompeu. Afinal, de que maneira aquelas obras de arte impactam o entendimento de nossa época? Que heranças nos constituem enquanto seres humanos? Por que agimos como agimos e pensamos da maneira como pensamos?

A visão linear da história sempre foi um dos objetos da sua crítica, que desconstrói o formato cronológico ao investigar eventos que nunca cessam de acontecer. No caso da pintura de Van Gogh que citei antes, poderíamos pensar, talvez, na questão da loucura, na condição do olhar do artista, no imaginário e na memória, nas relações do sistema econômico com a organização social, na potência da criação artística e assim por diante. Todavia, A noite estrelada não é um dos trabalhos comentados em Studiolo.

O total de vinte e um textos – a maioria associados a pinturas de épocas muito diversas, desde a antiguidade clássica à modernidade – traça relações entre o próprio fazer artístico, observações acerca da imagem, história, literatura, filosofia, política, teologia, iconologia, entre outras áreas do conhecimento, como é comum nos escritos de Agamben. E, dada a sua extensão de, em média, apenas duas ou três páginas cada, eles se apresentam como lampejos; ideias pontuais, potencialmente muito maiores do que a forma concisa em que foram concebidos.

O título Studiolo remete ao gabinete particular onde os príncipes da Renascença se retiravam para meditar ou ler, rodeados pelas suas obras de arte favoritas. Agamben justifica, assim, a seleção das obras que comenta, as quais a princípio têm pouco ou nada em comum.

A respeito de Ninfa e pastor, pintura tardia de Ticiano, Agamben fala sobre a perda do mistério por meio da satisfação dos amantes e, assim, de certa inoperosidade da natureza humana, conceito já desenvolvido em outros livros seus. Ao dissertar sobre a janela de A noite, óleo sobre tela de Isabel Quintanilha, o autor trata dos limiares entre a realidade e a representação. Ao lermos seus escritos sobre o afresco pompeiano Aquiles renuncia a Briseida, aprendemos sobre certa condição do olhar. No comentário sobre Las hilanderas, de Velázquez, é colocada em questão uma possível ambiguidade entre o divino e o profano. Ao se debruçar sobre uma estatueta de traços femininos esculpida sete mil anos atrás, Agamben fala sobre a importância de entendermos o conceito de origem não como um ponto distante no passado, mas como a única via de acesso ao presente.

“A tarefa do pensamento”, escreve ele, “é arrancar os fenômenos da sua situação cronológica para restituí-los a essa dimensão de insurgência”. De modo que assim se sustente a inquietação causada pela distância temporal, ou seja, sem apaziguá-la por meio de uma consciência histórica que produz distanciamento confortável e se fazendo incapaz de enxergar a atualidade das obras do passado.

O pensamento, para Agamben, não pode ser apartado da forma. Ele jamais deixa de ser uma experiência de e com a linguagem. Por isso seu interesse na poesia e nas artes visuais. Por isso os comentários articulados com tamanho apuro. Se Studiolo não consta nas listas das obras fundamentais Giorgio Agamben, nem por isso deixa de ser uma leitura relevante para quem busca conhecer seus textos de teor estético e, claro, exercitar outras formas de olhar para a arte.