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segunda-feira, 30 de abril de 2018

ENTRAR NA DANÇA

Dois dançarinos (1937), de Henri Matisse

Dois garotos falavam alto e gingavam na plataforma da estação Sé do metrô de São Paulo, brincando um com o outro. Sua atitude inoportuna incomodava a maioria dos passageiros. Só podia ser assim, uma vez que desobedeciam às normas da boa conduta social. Essa é uma maneira de olhar para eles. Outra maneira seria considerar que, se existe um padrão de comportamento, todos nós de alguma maneira o desobedecemos. Isso porque não há nada mais antinatural do que um padrão; a vida não cabe em padrão algum. Com isso em mente, pode ser que consigamos perceber nuances naquela atitude que, a princípio, parece apenas impertinente.

Não se trata de afirmar que uma maneira é a certa e a outra é errada, mas de perceber que o “sistema” quer sempre estabelecer esse tipo de padrão para lidar com grande quantia de singularidades. Por mais que tente, ainda não consegue investir nas sutilezas de cada indivíduo. Acabamos encaixotados com nossos semelhantes conforme o que consumimos – cadastros de lojas, perfis de redes sociais, listas de interesses, desde Netflix a aplicativos de relacionamentos, entre inúmeros outros exemplos. Habitamos as ditas “bolhas de iguais”, ou seja, estamos em contato com pessoas de hábitos, gostos e pensamentos similares, das quais concordamos inclusive nas formas de discordar. Somos padronizados como lote de produtos recém-fabricados. As bolhas tornam nossos mundinhos mais confortáveis, seguros, acolhedores – e mais ilusórios também.

É o princípio de redes como o Facebook, onde vemos atualizações de poucas pessoas em nossa linha do tempo, ainda que tenhamos milhares de conexões. São os perfis que o sistema elege como compatíveis de acordo com um cruzamento de dados bastante complexo, mantendo os mais próximos em evidência a fim de nos entreter por mais tempo e, claro, fazer consumir mais anúncios. O algoritmo do programa afirma que temos muito em comum: somos atraídos pelos mesmos assuntos, frequentamos os mesmos lugares, temos os mesmos desejos, compartilhamos ideias e amigos. Porém estamos muito longe de instituir um comum, no sentido comunitário em que as individualidades se dissolvem numa experiência coletiva.

Um caso pessoal: costumo encomendar muitos livros pela internet. Ao escolher um título, recebo a mensagem sugestiva: quem comprou este também se interessou por... Na sequência há indicações de leitura baseadas em pedidos feitos por clientes de perfil compatível com o meu. Reiterando certa padronização, o sistema mostra opções de que também posso gostar e, de preferência, consumir. Não tenho dúvida de que se trata de uma ferramenta para conhecer autores. Entretanto a programação oferece as mesmas leituras aos mesmos leitores, desenvolvendo padrões de gosto viciados, manipuláveis e lucrativos. Se a ferramenta quisesse sugerir algo diferente, teria que inverter os dados e dizer: quem se interessou por este jamais compraria A ou B. Você gostaria de arriscar?

É claro que nenhuma empresa implementaria despropósito tão inusitado e incompatível com seu objetivo de venda. Porém se quisermos lidar com a diversidade sociocultural própria de nossos tempos, precisamos tentar escapar das capturas do sistema. Ler páginas de Facebook de cujo conteúdo discordamos ou, melhor ainda, abandonar a rede para conhecer quem não está nela. Buscar livros em outras seções da livraria, evitando os best-sellers importados. Quem sabe participar de encontros com escritores nacionais nas bibliotecas públicas? E também frequentar outros parques, restaurantes, bairros etc. São exemplos rotineiros, que podemos desenvolver de maneiras variadas. Talvez assim seja possível criar furos nas bolhas de iguais, deixando-as mais permeáveis à alteridade.

Se o diferente nos perturba, é essa perturbação que pode desestabilizar o funcionamento dos nossos próprios sistemas e nos tornar menos automáticos. Não é fácil. Aliás, é um tanto exigente. Mas é um princípio para nos fazer diferentes de nós mesmos; não há maior sinal de vitalidade do que a transformação.

Isso ajuda a pensar os casos em que a normatização pode ser ainda mais violenta, como no acompanhamento de menores infratores ou de usuários dos Centros de Atenção Psicossocial, por exemplo.

Neste semestre, tenho colaborado com o programa de estágio do Laboratório de Estudo e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da USP. Uma das estagiárias teve que lidar com situação inusitada durante suas atividades práticas: a senhora acompanhada por ela, que apresenta grave quadro de sofrimento psíquico, se pôs a dançar no Centro Cultural São Paulo. Ninguém mais dançava, sequer música havia. O que fazer?

Uma maneira de lidar com o caso seria impedi-la de burlar a moralidade e interromper sua dança. Uma resposta paradoxal às políticas de inclusão, fazendo com que a senhora em questão se comportasse como os demais ao seu redor, ou seja, agisse “normalmente”. É a primeira reação da maioria: voltar às regras, deixar de incomodar, obedecer aos preceitos sociais. Mas o que significa “ser normal”? Que padrão de comportamento queremos e a que custo? A estagiária titubeou. E optou por outra atitude: acompanhou a senhora na dança.

Alguns comportamentos que extrapolam as expectativas podem tirar as pessoas do conforto oferecido pela existência-modelo, verdadeiro porto seguro. Mas podemos entender algumas desobediências não como atentados às regras, e sim como oportunidades de algo diferente vir ao mundo.

Havia uma beleza transgressora naquela dança em meio ao CCSP. A dançarina sequer notou, ela apenas deu forma ao seu desejo. Nossa estagiária teve o privilégio de assisti-la. Só uma senhora “fora do padrão” poderia oferecer tal oportunidade. Que, se não tivesse se realizado, o dia da estagiária teria sido igual a todos os dias da maioria das outras pessoas. Nem mesmo este texto teria sido escrito.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

O GESTO MÍNIMO

Monotipias de Mira Schendel (1964-5)


A exposição Sinais, no MAM-SP, apresenta uma seleção de trabalhos de Mira Schendel produzidos entre as décadas de 1960 e 1980, na maioria monotipias e objetos gráficos. São composições de tamanho convencional, com poucas figuras e cores, como gestos mínimos marcados no papel. Obra delicada e, por causa disso, muito potente. A artista usa canetas de variados tipos, datilografia, decalques, nanquim, letraset, entre outras técnicas artesanais. Mas o que chama atenção é a sua “não técnica”, como Paulo Venancio Filho, que assina a curadoria da mostra, escreveu em 1997: se a técnica é o modo de o homem se impor ao mundo, a arte de Mira Schendel se recusa a privilegiar o sujeito; ela induz, suscita, provoca, sensibilizando a matéria e ativando sua estrutura molecular. Parece mesmo uma técnica desinteressada, como o crítico a definiu, ou seja, uma técnica sem outro interesse que não o próprio gesto criador, e que portanto não busca uma eficiência positiva.

Saí do museu com uma inquietação: qual é o lugar do gesto mínimo em tempos que demandam graves transformações? Tal gesto é capaz de convocar ou provocar mobilizações amplas? Uma poética como a de Mira Schendel estaria de acordo com nossas tormentas sociopolíticas atuais?

Penso que, mais do que nunca, é o gesto mínimo que tem a capacidade de produzir efeito real. As grandes comoções sociais, infelizmente, têm obtido resultados pífios, que acabam por desestimulá-las ou as transformam em espetáculos, no pior sentido do termo.

Do mesmo modo, pensar que a arte deve corresponder tal e qual às demandas do presente é reduzi-la a uma simples reação, ou a uma espécie de panfleto. Não devemos lutar sob a bandeira da arte; a arte só deve levantar bandeira contra as próprias bandeiras, talvez nem isso. Para condizer com seu presente ela deve desdizê-lo, desacreditando-o, tensionando-o com um outro, deslocando-se à distância para criticá-lo com linguagem menos viciada.

Se a arte se apresenta como sintoma do contemporâneo, não é porque aponta o que ele é, mas porque sugere o que pode vir a ser. Nas palavras de Gilles Deleuze, não há obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.

Vista da exposição Sinais, no MAM-SP. Foto: studioladecor.com.br


Espera-se que a arte performe um ato político, seja contra ou a favor. É uma expectativa enganosa. O artista, enquanto sujeito social, pode de fato agir e atentar; sua arte, em compensação, deve apenas ativar situações, de maneira que não dilua a poética em militâncias objetivistas nem se converta em instrumento ideológico. Espera-se dela um ato, porém a arte oferece um gesto, que mesmo mínimo já é muito: é a força máxima da criação. Enquanto o ato é automatizado e se resume em seus efeitos, o gesto é “a poesia do ato”, como Jean Galard afirmou certa vez. Só ele é capaz de fazer emergir novos sentidos, ao invés de impô-los.

Com sua potente delicadeza, o trabalho de Mira Schendel consegue colocar a gravidade contemporânea em suspensão. Suas menores intervenções na superfície do papel já a transforma substancialmente. Suas manchas e borrões são de alguma maneira incontroláveis, e essa natureza inexata é incorporada à obra. A transparência do papel arroz apresenta ao espectador uma ambiguidade que expande o espaço e põe abaixo a distinção entre frente e verso, esquerda e direita, certo e errado. Sua manipulação mínima da matéria convoca à contemplação todo o tempo e a disposição de quem chega. Uma fenda, um risco, um ponto de cor, uma letra desarticulada da própria língua, um símbolo ressignificado; singelezas que, acaso não existissem, tampouco existiria a potência da obra de arte.

Não devemos confundir tal singeleza com falta de rigor, e muito menos confundir delicadeza com fragilidade. O trabalho de Mira Schendel transborda consistência na escolha dos materiais, no enfrentamento do desconhecido, na afirmação do sutil como força poética. Recusa o lugar-comum, previsível e explícito. Seu gesto é mínimo não porque denota pouco esforço, mas porque é denso ao ponto de se infiltrar, afetar e desestruturar as maiores instituições. Não as enfrenta com as mesmas armas nem com a mesma lógica; em vez disso cria desvios, reinventa sentidos, desarma mecanismos por demais azeitados.

A que sinais o título da exposição alude? Elementos gráficos, sugestões de forma, indicações interpretativas? Ou sinais de um porvir, agora apenas entrevisto na insurgência silenciosa de sua obra? A exposição alude a isso tudo. Se com os primeiros aprendemos sobre estética, com estes últimos conhecemos o singular componente político da arte, que nada tem a ver com mensagem, moral ou adequação.