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quinta-feira, 15 de abril de 2021

O CAMINHAR NA HISTÓRIA DA ARTE RUMO A PAULO NAZARETH: ALGUNS PONTOS DE PARADA E OBSERVAÇÃO



Em 2019, tive o prazer de apresentar mais uma pesquisa no Seminário de Estética e Crítica de Arte provido pelo Grupo de Estudos em Estética Contemporânea da USP. 

Falei sobre a caminhada como prática artística, com destaque para uma performance do artista Paulo Nazareth (em especial no que dialoga com a história da arte e com transformações do olhar, identidade latino-americana e condição de estrangeiro na atualidade). 

O texto decorrente agora pode ser lido neste belo livro recém-publicado, disponível online gratuitamente, que você acessa clicando aqui >> Anais do IV Seminário de Estética e Crítica de Arte da USP: Políticas da Recepção

domingo, 11 de abril de 2021

CASTELO DE AREIA

Foto: Anikza Navas em Unsplash

Lembro das cicatrizes de um tio de consideração
que apareciam de sunga na praia
e pensava, coitado dele
embora criança eu não soubesse bem
o motivo daquelas marcas
nem o significado da piedade

Observo hoje em minhas décadas de cicatrizes
– inclusive as que não se mostram –
que a desgraça não é genética
ela contagia por afinidade
em marés de azar
por isso desejo que jamais
me olhem como a um peixe
trazido à areia pelas ondas
porque já não pode nadar
afogado na própria dor

A lembrança que pretendo construir
nos sobreviventes
é a de um sujeito sólido
feito rocha, mesmo sabendo
que a solidez da rocha
é real como nenhuma outra
ou a de ninguém mais.



sexta-feira, 9 de abril de 2021

IDADES DA PEDRA


Para Júlio Lancellotti


Ontem mesmo era a pedra
um obstáculo poético
a marcar as retinas do passante
hoje descobriram pedras a tornarem
ainda mais deplorável a vida
debaixo da ponte, pedras
para manterem as pálpebras abertas
o corpo fatigado
sem lugar onde repousar
inúmeras pedras deixadas
sem pai nem mãe nem coração
apenas pedras
acontece que nunca são apenas nada
acontece de serem violência
peso doloroso demais
sobre nossas costas já curvadas
nossos horizontes nos pés
nossos braços encurtados e fracos
incapazes de erguer a marreta
ignorando que bastaria erguê-la
para o universo transformar pedras em pó
eis que surge um paladino
nome de herói, porte simples
já muito vivido e ainda muito vivo
cansado disto tudo, disposto
a superar a si próprio
a gravidade da nossa condição
implodir mais um exército nesta era sombria
mais uma muralha invisível posta abaixo
com um golpe somente
um golpe!
tamanha a sua força simbólica.

quinta-feira, 25 de março de 2021

DEZ (OU ONZE) LIVROS SOBRE HUMANIDADE E ANIMALIDADE

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As afinidades e desavenças entre humanos e outros animais estabelecem um ramo extenso da literatura, desde as fábulas de Esopo a escritores contemporâneos. Fui me embrenhando por essa selva cheia de mistérios, encantos e absurdos enquanto escrevia meu livro mais recente, chamado O belo e a besta, que está sendo lançado agora pela editora Moinhos.

Talvez você já tenha lido uma porção de histórias sem se atentar a essa questão. Às vezes, a animalidade é apenas parte de uma obra mais complexa, como no caso das próprias fábulas, que trazem fundamentos morais implicados na relação entre animais falantes, cujo comportamento simula o dos humanos.

A seguir, dou dicas de livros que marcaram minha vida de leitor e que influenciaram a escrita de O belo e a besta. Estes não são necessariamente os melhores. Nem os únicos. Mas podem ser boas portas de entrada para quem se interessar pelo assunto, assim como foram para mim.

1. Em primeiro lugar, dois personagens que já na infância me fizeram perceber que a leitura podia ser tão prazerosa quanto crítica. Não falo de um livro específico, mas de toda a obra de Bill Waterson com Calvin e Haroldo. Se você nunca leu, precisa ler. Calvin é um menininho norte-americano com um tigre de estimação, que para os adultos é uma pelúcia, mas para ele é um animal de verdade. E o engraçado é que o tigre parece bem mais civilizado do que a criança.

2. Atualizando a tradição popular existe o sensacional A ovelha negra e outras fábulas, do escritor hondurenho Augusto Monterrosso. Com histórias repletas de humor, ironia e política, ele subverte a lógica e a moral das fábulas convencionais.

3 e 4. Dois escritores latinos criaram inventários de animais reais ou fantásticos, que nos lembram bestiários medievais e as descrições da fauna americana feitas durante a colonização, quando tudo aqui parecia selvagem e violento aos olhos estrangeiros. Refiro-me ao argentino Jorge Luis Borges, com O livro dos seres imaginários, e ao brasileiro Wilson Bueno, que publicou O jardim zoológico, entre outros títulos com a mesma temática. Em ambos, lemos o nome e uma descrição desses animais, que mostram até onde vai a nossa inventividade sobre a natureza.

5. Eu ia dizer “até onde vai nossa fantasia sobre a alteridade que os animais apresentam”, mas quem explora isso com mais afinco é Guimarães Rosa. A tal animalidade permeia boa parte dos seus textos, e talvez o ápice seja Meu tio o Iauaretê, publicado na coletânea Estas histórias. O conto mostra um matador de onças que vive na mata e que, vamos descobrindo aos poucos, descende das próprias onças; um homem-bicho cujas características correspondentes a um ou a outro são meio indiscerníveis.

6. Falando nisso, outro livro que marcou minha juventude é A revolução dos bichos, de George Orwell, que critica os regimes totalitários usando animais como metáforas de certas organizações sociais. É curto, impactante, e os governos atuais nunca o deixam envelhecer ou se tornar inoportuno.

7. Maus, de Art Spiegelman, tem com ele algumas semelhanças. Inspirado na experiência do pai do autor na Segunda Guerra Mundial, ali as nacionalidades ou etnias são representadas como animais. Os norte-americanos são cachorros, os alemães são gatos, os judeus são ratos e assim por diante. Mais interessante do que as questões de perseguição e dos campos de concentração, já bastante desenvolvidas em outras obras literárias, essa história em quadrinhos mostra como a experiência marca não apenas quem lá esteve, mas inclusive quem nasceu quando a guerra já tinha acabado.

8. Eu poderia citar vários outros títulos de ficção, mas quero aproveitar a oportunidade para compartilhar também três obras ensaísticas que ajudam a problematizar o assunto. A primeira delas é Literatura e animalidade, da brasileira Maria Esther Maciel, que me mostrou a possibilidade de realizar uma abordagem poética para além das alegorias do comportamento humano, por vezes baseadas em animais estereotipados. Boa parte do meu livro foi escrita em diálogo com suas análises.

9 e 10. Duas obras de leitura mais complexa são O que os animais nos ensinam sobre política, do canadense Brian Massumi, e O aberto: o homem e o animal, do italiano Giorgio Agamben. Ambos os filósofos expandem, pesam e cruzam os conceitos de humanidade e de animalidade, revendo-os historicamente, buscando outros sentidos possíveis advindos de diferentes áreas do conhecimento e mostrando como a nossa perspectiva sobre os animais quase sempre é estreita e preconceituosa.

Demais títulos de não ficção que eu poderia citar aqui foram encontrados nas referências bibliográficas desses três. Sugiro que você dê uma olhada, caso também se interesse. A lista é imensa.

Por fim, convido você a conhecer meu O belo e a besta. Ele propõe uma espécie de passeio por um jardim zoológico em que se pode olhar os animais e onde eles olham de volta. O livro é composto por cerca de setenta textinhos que buscam um tom entre a ironia e o bom humor, ou entre o natural e o bizarro. Foi escrito para ser divertido, causar espanto, inquietar. E eu espero que também possa sugerir o que os animais têm a dizer sobre a nossa humanidade.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

TESTEMUNHO OCULAR AGORA EM EBOOK!


 Primeira boa notícia de 2021! Meu livro Testemunho ocular, esgotado na editora, acaba de ganhar uma versão digital. Dá para ler no celular, no computador e no Kindle. 

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sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

SEMPRE PENSEI QUE MORRERIA

Foto de Dasha Urvachova em Unsplash

De dengue, febre amarela, chicungunha 
bala perdida assalto, polícia 
aids 
democracia 
sedentarismo 
achei que morreria por sonhar 
por lutar ou, 
tendo vencido, 
por velhice 
teve momentos em que morrer 
seria sorte 
ignorância 
bênção 
e encontrar o além era 
esperança 
indiferença 
tuberculose, canibalismo, chibata 
eu tinha tudo para morrer de raiva 
estresse esgotamento 
piripaque 
dizia minha avó 
que não está mais entre nós 
por desilusão com a vida 
achei que a sinceridade me mataria 
o tédio, a fome 
a precariedade 
que só se vê de longe, veja bem 
morreria de amor 
assassinado, quem diria 
e teria valido a pena 
senão pularia do viaduto 
do chá envenenado 
por tristeza 
por quem se foi 
gritaria até perder o fôlego 
adeus! 
e me iria em boa hora 
nem um minuto a mais 
nunca a UTI 
o coma induzido 
emagrecer e falecer 
irreconhecível 
como se um outro morresse no meu lugar 
queria o acidente 
heroísmo 
uma legenda favorável, enfim 
jaz aqui: 
eu, no caso 
e diga-se de passagem 
nunca pensei nisso a sério 
ao contrário do que fiz parecer 
não planejei, não 
era jovem e 
descobri com certo espanto 
injustificado, é verdade 
a morte leva mesmo 
a boa gente, 
a boa alma 
não faz distinção 
quebra o vaso 
tira o ar de quem parte 
o chão de quem fica 
onde? 
como foi? 
uma tragédia 
não se sabe direito 
um espirro 
embalagem contaminada aperto de mão gole de copo botão de elevador excesso de confiança 
a brisa de fim de tarde 
noite adentro 
eterna.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

LIDA

Foto de Henry & Co. em Unsplash


No reflexo dos olhos
deste livro que me lê
está posto o lugar-comum
aqui, entre as páginas abertas
o meu encerramento vivo
em pretensa diferenciação
identidade
individualidade, não
nada mais previsível que
uma unidade fabricada
em larga escala, induzida
a testes rígidos
para se manter um padrão na lida
e a repulsa pelo que dele escapa

Não consigo me ver assim, na realidade
é como sou – visto
tudo isto evidenciado
frente ao livro impassível

Enquanto a moldura
me oferece o paraíso
a preços módicos, uma vida
próxima, tranquila, todavia eu
sou encarado pelo poema e até
lido
suficientemente bem
com ser objeto de
complexa trama
algum desinteresse
irresoluta observação

Faço meu esforço convocado
pela leitura desse suposto eu
nos olhos que sequer pestanejam
translúcidos, adiante
e me ofuscam como a luz
no fim da vida.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

HISTORINHA PARA DESPERTAR

Foto de Camila Jacques em Unsplash


Nesta madrugada leio uma historinha
de C. Drummond de Andrade –
sempre ele! – e digo historinha apenas
porque é como ele a chamou.
Pensando bem é sempre uma
– não simplesmente pequena, isso é o de menos –
historinha porque singela como uma flor
e sólida como o asfalto.
Fazia anos que eu não recorria ao Drummond
mas o atual sentimento do mundo
me faz querer aconchegar os olhos
numa historinha assim sutil e
de tamanha potência que me arranca o sono
por um bom motivo, enfim.
Ela conta de uma reunião muito importante
de executivos do mais alto escalão
com graves assuntos a deliberar
um encontro que não pode ser interrompido por nada
nem ninguém
mas é
caso contrário não haveria história
digna de ser contada
batem à porta
anunciam uma senhorinha
– é como a imagino, miúda –
que sem graça pede licença
pede perdão por interromper tão ilustre conselho
mas acontece que
seu canarinho
– que tem ele?
morreu
– e daí?
ela solicita, encarecidamente
caso os senhores não se importem
se não for abusar do valioso tempo
para enterrá-lo no lindo jardim do terraço
pois apesar de pertencer a uma grande firma
é pequeno o suficiente
para abrigar um canarinho
em seu último sono.
O parque municipal
mesmo a praça da esquina
seria demais
e para surpresa geral
– inclusive a minha –
os sérios executivos concordam
concedem tal licença e permissão
até mesmo interrompem sua análise especialíssima
de uma questão profunda
para o cortejo fúnebre
e o sepultamento da ave
em sua cova de sete colheres de terra.
Era uma graça, pousava no dedo.
Muito lindo, como eu me recordava do Drummond
tão simples e delicado e ainda assim
tão Drummond
esse monstro de óculos
apoiados em nariz estreito
e paletó maior que o corpo
a ponto de quase desabarem.
Acontece que
perdi o sono
não para a senhorinha ou
para os executivos,
foi para o empregado responsável
pela maior das mínimas revoluções
aquele que bateu à porta
contrariando ordens expressas e assim
perturbou tantas outras implícitas
aquele que ousou desobedecer
– servidor antigo, conceituado –
e talvez sem querer
fez despertar alguma poesia
do momento qualquer
a ínfima e infinita poesia
à qual Drummond chamou historinha
por completa intimidade,
por certeza do que basta e
do que não encontra limite.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

ASSUMO A DERROTA

Foto de Mark Eder em Unsplash

Abandono os planos no papel

rasgo sonhos ao meio

atiro os fragmentos pela janela

e fico a ver navios

partirem rumo ao destino

que pensava ser o meu



É preciso assumir

a precariedade que se instalou

a distância impossível no horizonte

que meus olhos um dia tentaram alcançar



Não é a idade

a saúde financeira

o desgaste das relações

é mesmo uma percepção

da vida submetida a instâncias superiores

crueldade e perversão sociais

quase uma iluminação profana

de que não haverá amanhã

nem motivo para tentá-lo

outra vez, por teimosia



Assumir a derrota agora

me chega como um alento

no final, quem diria

uma realização,

espécie de vitória

vazia.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

ANTICORPO

Foto de Velizar Ivanov em Unsplash

Fechado
num esforço coletivo
insuficiente, paliativo
sem tocar nem ser
tocado, sem poder
tocar ou fazer
proibido
pela própria consciência
de um comum
possível
sem sorriso, só smile
sem encontro sem reflexo
de mim sobreposto ao outro
a fantasmática do corpo
– ou o seu contrário?
cadáver ainda vivo
apenas
mais um e
nada mais.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

DERROCADA

Foto de Alexander Andrews em Unsplash


Eis que a árvore cede
arrancada de suas raízes
tomba na direção do muro
apoia nele seu derradeiro peso
escora num único abraço
sua ordem arruinada de tijolos e cimento,
a qual cederá
assim que a árvore for retirada.

É uma conjunção perdida
mantida por aparelhos enquanto
insistimos na preservação daquilo
que foi e não tornará a ser.

Há esperança, contudo
já não há árvore nem muro.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

TOMAR DISTÂNCIA


Photo by Andrew Buchanan em Unsplash

Des-ver
estranhar
excomungar
expatriar

ser um pouco estrangeiro
me perder no próprio mapa
tomar distância 
desconhecer melhor a vida 
dada de antemão

ver nessa vida o que
ela não é, vê-la
diversa de mim
e a abrir a vida, esgarçar
sua imagem, escancarar
o olhar para torná-la
imaginariamente
outra e em seguida outra
realmente

embriagar-me das falhas
até que estejam completas
de frescas ligaduras
que também cristalizarão,
desejantes de um olhar
fascinado e perigosamente
próximo.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

QUASE CIDADES


Foto de Issy Bailey em Unsplash

Existem cidades antigas
cidades futuristas
e existem as cidades
que eu conheço
como aquela
onde nasci
onde quase nada vale a pena ser guardado
nem aponta para um sonho
nenhuma utopia
um lugar que é só presente
para sempre, enquanto durar
poderia ser qualquer lugar do mundo
de alguma maneira é
sem graça
uma lembrança que não se assenta
nem aceita carinho
ou gratidão, tão banal
que é só uma cidade de sobrados gradeados
aos poucos derrubados para no lugar
erguerem prédios banais, também gradeados
com sacadinhas onde casais cansados de si
estiveram uma única vez
e prometeram voltar
falaram nisso, fizeram planos
ainda aguardam a oportunidade certa.

Não haverá
futuro ou memória
apenas este presente infinito
ínfimo, cuja intimidade já não tem mistério
ou sonho
– quem dera utopia
não existe
sequer afago que não seja burocrático, rotineiro
automático, não sei
dias iguais como cada andar do edifício parado
com suas sacadinhas estúpidas
sua disposição padronizada de cômodos
vizinhos, uns como os outros
tão semelhantes
que nem mesmo se cumprimentam
nas áreas comuns, no elevador
por exemplo
vizinhos sem passado ou futuro, gradeados.

Mas eu dizia cidades
onde quase nada vale a pena
– e o quase
faz toda a diferença
sinto que preciso buscá-lo, deve estar por aí
naquela luz acesa quando as demais já dormem
num elevador em que não se fala do calor
– dane-se o tempo presente, ainda dá para encontrar o quase
a falha na programação
fôlego retesado de surpresa
que irrompe da sacadinha e salta no vazio
escapa dos tentáculos mórbidos e
voa, enfim, para longe
àqueles lugares clássicos ou revolucionários
deslocados do agora que é igual ao ontem e à semana que vem
onde se pode experimentar um jeito outro
um pensamento fugaz, um desvio, um desejo
a fagulha que inicie o grande incêndio
das cidades onde nasci e conheci e das quais
sequer me recordo
porque nunca habitaram em mim.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

TERAPIA INTENSIVA

Vista lateral leste do Palácio do Planalto (fonte: Arquivo Público do DF)

Por que falar agora (ou nunca)
ou num momento qualquer
suspender a voz, as tintas, o tônus
– o que temos, se nada resta
tão pouco que se torna impossível
“sobre”viver entre
residências
desistências
imobilidades
de corpos tão fragilizados, oscilantes, suspirados
como as pausas nas chamadas de vídeo
com seus espectros de aspecto pacato
absorvidos pela iluminação artificial das telas de LED.

Como é possível estabelecer conexão
à fria luz de maio
meia estação, relação entrecortada por
tudo que falha e só faz escancarar a ruína
abismal, escara de um estado de inexistência
falência múltipla de órgãos públicos
quando lá do alto
do planalto berra-se:
e daí?

De seu leito
há quem sinta que é possível ainda
falar porque é preciso
com a voz, as tintas, o ímpeto derradeiro
dar a ver e a ouvir os aflitos
a quem tal violência disparada a esmo
atinge o âmago como uma bala
nem tão perdida assim porque sempre 
fere o mais desprotegido
a existência mínima que só resta
falar e resistir, pois é fundamental
jamais calar diante das ordens de assassínio
e desaparecimento imemorável.

Enquanto houver voz, ouvirá vida.

Leia mais em: Cartas da pandemia

quarta-feira, 15 de abril de 2020

GUARDADAS

Foto de Melissa Paniagua Ponce.

as distâncias na fila
os vazios no horizonte
as câmeras no céu
os olhos na tela
os pássaros no aquário
as crianças no tédio
os pijamas no escritório
os silêncios no elevador
os medos no outro
as angústias no sofá
os amores na gaveta
as invisibilidades no catre
os monólogos na mudez
os ímpetos na despensa
as revoluções na panela
os sonhos no freezer
as vidas no microscópio
os desejos no exterior
as quebras na saída
as mordaças no app
os disfarces na rua
as esperanças na prateleira
os gelos na mão
os próximos na cova
as imprecisões no número
as imagens no obscuro
as sintonias no impossível
as violências no pronunciamento
bem embaladas e guardadas as
indevidas proporções.

domingo, 12 de abril de 2020

VANESSA VASCOUTO LÊ UM TRECHO DO "DIANTE DOS MEUS OLHOS"

Não é todo dia que recebo um presente desses: em plena quarentena, a escritora Vanessa Vascouto escolheu um trechinho do meu livro para compartilhar nas redes sociais. Aproveito para reproduzir o vídeo abaixo, caso você não tenha visto. E, se ainda não tem o livro, pode encomendar com frete grátis clicando aqui.

Daí vem a talentosíssima Vanessa Vascouto e me presenteia com a leitura de um trechinho do "Diante dos meus olhos". Difícil conter a alegria aqui neste canto da quarenta.
Publicado por Eduardo A. A. Almeida em Sábado, 11 de abril de 2020

quinta-feira, 9 de abril de 2020

DO ALTO DAS MINHAS JANELAS


Vejo nada e o nada me devolve o olhar, incorporado
nos demais moradores de apartamento alocados
diante de mim, atrás, ao redor, de esguelha
eles me olham do alto das suas janelas
não porque têm interesse, veja bem
na verdade eles não têm
nada melhor para ver, sou
o que lhes resta, o seu nada e
ao mesmo tempo tudo
o que resta
neste fim de mundo sem fim
nas alturas intermináveis, as horas
enquanto lá embaixo corre a imaginação
– o risco, o medo, o estranhamento
eles habitam algum lugar antes conhecido
onde estive sem saber, sem me dar
conta do que podia via a ser
hoje sei? espero
enquanto certa invisibilidade traiçoeira
aguarda, permeia, infiltra
não se deve agir como se nada estivesse acontecendo
e o nada acontece, de fato
realiza-se diante de mim
eu o vejo através das minhas janelas translúcidas
tão evidente que lá está
em algum lugar – quem duvida? daí
pretendo ver sem incomodar, ouso
ser visto para estar vivo, ser
reconhecido como um corpo
são – não apenas uma ameaça
eu que nunca liguei para isso, que preferi
passar despercebido, hoje me incomodo
com aquele que se oculta
nas cortinas para me evitar e evitar
cruzar os olhos comigo, mesmo
a uma distância segura, maior do que
os dois metros
os doze andares
as quatro semanas
a meio caminho do céu.

Leia mais em Cartas da Pandemia.

terça-feira, 7 de abril de 2020

+ E-BOOK GRÁTIS PARA SUA #QUARENTENALITERÁRIA

Deixo aqui uma nova contribuição à nossa #quarentenaliterária: meu livro Por que a Lua brilha está disponível para download gratuito no site da Amazon até o próximo sábado, 11 de abril. Clique aqui, baixe agora mesmo e me ajude a espalhar a notícia. :)

quinta-feira, 12 de março de 2020

ENTRE VISTAS: EDUARDO A. A. ALMEIDA E DIANTE DOS MEUS OLHOS

A entrevista abaixo foi concedida à escritora Renata Py e publicada originalmente em sua página no Medium. Você pode adquirir seu exemplar do romance Diante dos meus olhos na loja oficial da editora Reformatório, clicando aqui.



Eduardo, o seu romance apresenta uma trama psicológica entre pai e filho, com uma série de acontecimentos inusitados em uma viagem entre eles. O fato de eles terem passado aqueles momentos na vila militar me pareceu decisivo na relação, em muitos aspectos. Uma situação-limite que envolve lembranças, intimidade e até sobrevivência. Comente um pouco sobre isso.

A vila atua como uma catalizadora de emoções, trazendo à tona memórias, expectativas, traumas, desentendimentos, frustrações, enfim, todas essas experiências compartilhadas e de alguma maneira mal resolvidas entre o pai e o filho. Tudo que aguardava há tempos num estado de latência encontra na antiga vila o motivo para acontecer. O local se apresenta também como uma espécie de encruzilhada entre o passado e o futuro; é, portanto, decisivo em muitos sentidos para os dois personagens. Um mapa feito para que tudo se perca.

Como se deu a ideia de usar uma antiga vila militar?

A vila surgiu na medida em que eu criava o passado dos personagens e precisei de um local essencialmente estabelecido conforme a ordem. Era importante pelas contradições que produziria nas três gerações daquela família que se relacionariam com ela. O curioso é que eu, pretensamente, pensei ter inventado tudo aquilo. Foi durante uma conversa casual com um completo desconhecido que descobri que, de fato, aquele tipo de vila militar não apenas existiu como ainda resiste no Brasil, com as devidas adaptações trazidas pelo tempo. E que os conflitos entre os moradores não são tão diferentes do que imaginei para os personagens do livro.

Após a viagem, a relação deles ficou aparentemente definida, como se a partir daqueles acontecimentos eles não precisassem mais cumprir o protocolo da relação pai e filho, a ponto de o narrador só voltar ao encontro do pai em seu enterro. Você acha que, com a idade e obrigações da vida adulta, essa distância é mais comum do que imaginamos?

A tal viagem marcou uma passagem. Daí a importância de, no final, eles cruzarem o portal da vila, que funciona como um símbolo. A vida dos personagens mudou a partir daí, os conflitos ganharam outras formas e uma nova situação se criou. Eles continuaram a manter alguma relação, eu imagino, mas ela já foge da história que o livro pretende contar. Não acredito que o mesmo aconteça o tempo todo por aí, mas a vida adulta exige também uma passagem e um abandono dos pais para que o novo adulto encontre o seu lugar. Existe um distanciamento, uma transformação, uma necessidade de redesenhar as relações.

O livro nos prende, do começo ao fim, numa atmosfera psicológica muito interessante, incluindo acontecimentos que muitas vezes nos fazem perguntar se são meros devaneios ou realidades pra lá de inusitadas. Você acha que, quando se trata de memória, ela muitas vezes pode nos criar peças?

Desde o começo, me interessava questionar isso que a memória estabelece como uma espécie de fundação para o sujeito, quer dizer, como uma base firme sobre a qual podemos construir os nossos mundinhos particulares e coletivos. Não à toa a incerteza está presente o tempo todo na narrativa, não se pode acreditar sequer no que os olhos apresentam como real. Para mim, o passado é tão vivo quanto o presente e se modifica a todo instante. É fundamental preservar essa sua qualidade, de maneira que possamos sempre nos reinventar. Um passado cristalizado já não serve para nada, a não ser para sustentar dogmas, preconceitos, conservadorismos ingênuos e perigosos. Entrar no jogo impreciso da memória e deixar-se ludibriar é uma força, não uma fraqueza, como muitas vezes somos levados a crer.

Interessante o narrador, o filho, ter uma personalidade tão racional e ambientada no sistema externo. Geralmente, talvez por questões de geração, é o contrário que acontece. Por que você optou pelo filho ser o mais “conservador” da história?

Acho importante que a literatura ofereça outras perspectivas sobre as coisas e as pessoas. Um pai conservador com um filho revolucionário é um paradigma da humanidade. São também estereótipos por demais confortáveis para o escritor e para o leitor. Já basta disso em nosso dia a dia, nas rotulagens que predominam em nosso embate com o outro. A literatura tem aí uma potência crítica de mostrar que o conservador tem algo de revolucionário e o revolucionário verdadeiro, por sua vez, está a todo instante lutando com os seus próprios conservadorismos, entre tantos outros matizes que formam a complexidade do ser humano e que vão muito além dessa questão binária. Ainda que o personagem do filho, no romance, pareça mais conservador, ele não está satisfeito com isso, fica reafirmando-se como se precisasse se certificar de que as coisas permanecem no lugar, quando na verdade está vivendo uma revolução pessoal. Com o pai acontece o mesmo, mas num sentido inverso. E ambos precisam lidar com esses conflitos, pois são diferentes e ao mesmo tempo parecidos. Isso é literatura e é também a vida; elas extravasam a simplória polarização que hoje parece tão à flor da pele.

Sem querer dar spoiler, você pode comentar sobre os negativos que o pai achou na vila quando aparentemente encontrou um amigo fotógrafo?

Os negativos são mais um exemplo da imagem que não dá conta de apresentar a realidade. São a prova fatual de que os fatos são tendenciosos, manipuláveis, parciais. Essa cena é quase um resumo do romance, pois materializa as questões que antes talvez parecessem por demais metafísicas.

Os acrobatas encontrados na vila me pareceram personagens de Beckett, de tão inusitados, mas que, ao mesmo tempo, poderiam ser perfeitamente reais. Fale sobre eles. 

Sim, personagens de Beckett, sem dúvida. São esse tipo fantástico que, de tão real, faz com que a realidade se torne fantasiosa. Eles são contorcionistas, na verdade, justamente porque trazem essas torções e distorções na percepção dos personagens; têm uma função direta e outra parabólica.

O filho demonstra em muitos momentos uma frieza prática em relação a determinadas situações. Ele poderia ser quase um psicopata?

O filho tem um pragmatismo alimentado por uma subjetividade produtivista, muito parecido com o que vemos a todo instante no outro lado do balcão, em pé conosco no metrô, na propaganda de cursinho de vestibular. Hoje mesmo vi uma dessas notícias rápidas e desnecessárias que nos são lançadas até enquanto subimos cinco andares de elevador, como se todo o tempo precisássemos ser impactados, como se diz no meio marqueteiro. Ela falava sobre o prejuízo financeiro na Europa, que já não recebe turistas chineses por conta do coronavírus. Quer dizer, não bastasse a especulação, a espetacularização e a exploração engendradas com essa doença, lemos sobre um índice econômico que, no final, está associado a pânico, mortes, comoção social, sensibilidades das mais diversas, e que no entanto sequer nos afetam, exceto por nos colocar no mesmo buraco midiático. Acho um tanto perigoso esse tipo de diagnóstico das psiques. Se a frieza faz do filho um quase psicopata, vivemos todos num manicômio chamado civilização.

Uma das cenas que mais me despertaram curiosidade foi o encontro do narrador com a velha senhora. Você poderia falar mais sobre o impacto daquele encontro na vida dele? 

A velha senhora não é bem uma personagem, é uma entidade, como gosto de dizer. Está ali para evocar o tempo e as diferentes elaborações que ele exige; é quem alarga as noções do personagem, permitindo a ele novas possibilidades existenciais.

Eduardo, parabéns pelo livro. Extremamente intrigante e envolvente. Queremos saber sobre os novos projetos. Muito obrigada pela entrevista. Me despeço com uma última pergunta. Tem uma frase no livro que diz: “Aquelas lembranças pertenciam a ele. Eu teria me livrado delas na primeira oportunidade, só que não há mais como devolvê-las; nem como ignorá-las”. Você acha que a gente carrega o peso do passado dos nossos antepassados no nosso DNA ou realmente isso só seria possível se fosse vivenciado de alguma maneira, como foi o caso dos personagens de “Diante dos meus olhos”?

Somos ensinados a viver de determinado modo, a reproduzir maneiras e a programar inclusive as descobertas mais revolucionárias. Carregamos o passado como uma bagagem cultural que media nossas relações com todas as coisas. As plaquinhas de identificação, na vila, evocam essa mediação — de maneira alusiva, claro, mas elas põem em questão essa necessidade de legendar, proteger, explicar tudo com as palavras já conhecidas que nos foram ensinadas. Não acredito que seja possível fazer tábula rasa, nem devemos, mas é nossa tarefa colocar em questão essas formas que nos são dadas prontas, e nisso me parece que a literatura e as artes em geral são grandes aliadas. Somos, afinal, muito bem domesticados. Meu próximo livro, que deve sair no próximo semestre, investiga essa domesticação de maneira inusitada, num viés da animalidade e com um formato completamente diferente do romance: são textos curtos, humorados, que vêm provocar atrito entre a ideia de beleza e o abismo da nossa realidade diante da natureza.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

ENTREVISTA: COMO EU ESCREVO (PARTE 2)

Há pouco mais de um ano, José Nunes me convidou para falar sobre meu processo criativo, entre outros assuntos relacionados ao ofício.

Seu projeto, intitulado Como eu escrevo, tem agora um desdobramento: novas perguntas com o objetivo de compartilhar ideias e contribuir com os desafios de quem se põe a lidar com as palavras.

Deixo abaixo a segunda rodada de perguntas que respondi, publicadas originalmente junto com as anteriores na página do projeto: comoeuescrevo.com/eduardo-a-a-almeida

Ficou com curiosidade de ler os livros que menciono? Clique nos títulos para saber mais: Testemunho ocular (contos) e Diante dos meus olhos (romance).

Foto: Edi Rocha

11. Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?

Normalmente o projeto se forma a partir do que estou escrevendo, não é premeditado. Experimento formatos sem grandes pretensões, anoto ideias, escrevo alguns parágrafos. Um dia olho para aquele amontoado de coisas e percebo uma linha condutora, um interesse em comum, talvez. Foi o caso do Testemunho ocular, livro publicado em 2018 pela Lamparina Luminosa: eu tinha alguns contos e percebi que havia em todos eles uma inquietação de natureza similar. Comecei a retomar textos antigos, engavetados, e aquela inquietação também aparecia neles de uma maneira ou de outra sem que eu tivesse me dado conta disso até então. O conceito do livro surgiu daí. Para dar a forma que pretendia, acabei por editar alguns textos, escrever outros e criar um projeto editorial. Não gosto de pensar em meus livros como meras coletâneas; é preciso haver uma amarração, um conceito, um ponto central que possibilite outras camadas interpretativas.

O caso do Diante dos meus olhos, publicado no fim de 2019 pela Reformatório, não foi muito diferente. Comecei por tomar notas de um sonho, ainda de madrugada, porque eu não podia voltar a dormir e correr o risco de esquecê-lo. Na manhã seguinte, ainda sem saber bem a razão, percebi que a ideia tinha um potencial a ser explorado. Escrevi um pouco mais, o texto foi criando corpo, passou de uma cena curta a um conto longo. E não parava, era incontrolável. Segui nesse ritmo por bastante tempo, até ter em mãos um pequeno romance. Ele foi publicado dez anos depois do primeiro esboço.

Em meio a esses processos mais "espontâneos", por assim dizer, o difícil não escrever a primeira nem a última frase, mas identificá-las para que, entre elas, exista um projeto literário.

12. Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?

Eu não diria que prefiro assim, mas vários projetos acontecem ao mesmo tempo, é uma maluquice. Tenho trabalhado em tempo integral num escritório, escrevendo textos para outras pessoas e empresas. Também atuo como revisor e preparador de textos. Minhas criações pessoais muitas vezes são resolvidas na hora do almoço, no metrô, nos minutos em que minha filha dorme e eu consigo permanecer acordado, nas brechas dos finais de semana, entre os compromissos familiares e os afazeres de casa. Tenho escrito pouca literatura de ficção. Inclusive porque uma série de outras tarefas me convocam a todo instante, requisitando prioridade: as atividades do coletivo Discórdia (encontros, feiras, rodas de leitura e debate, cursos etc.) e do GEPPS - Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível, minha coluna no jornal Correio Popular, aulas, oficinas, pareceres, palestras, compromissos da academia (ainda tenho para resolver várias reminiscências do doutorado, que defendi em 2018). A literatura de ficção vai forçando espaço em meio a esse entulho todo, é uma sobrevivente. Fico muito agradecido por ela não desistir de mim. Mas, para ser mais concreto, organizo minha semana anotando as tarefas e compromissos numa agendinha de bolso, de papel mesmo. A meta é chegar até a página seguinte, de preferência ileso.

13. O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?

Não é que eu tenha de uma hora para outra decidido me dedicar à escrita, quer dizer, isso jamais ocorreu de forma tão dramática. Mas eu me lembro da primeira vez em que me assumi escritor, e nem faz tanto tempo assim. Foi há uns cinco ou seis anos, durante um curso sobre práticas artísticas comunitárias no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo. Eu deveria me apresentar para a turma e disse: meu nome é Eduardo, sou escritor. Uma amiga estava junto e, quando a aula terminou, veio falar comigo. Escritor é? Que vitória! Eu ainda gaguejava um tanto. Escrevia profissionalmente há mais ou menos quinze anos, mas até então me intitulava publicitário, redator, pesquisador. Nessa ocasião, eu tinha deixado a publicidade de lado, precisava assumir um "eu" que de fato me desse orgulho. Ainda assim demorei para dizer "escritor" em bom tom. Houve um dia, eu estava num cartório fazendo sabe-se lá o que, e o atendente preenchia um formulário. Ele perguntou: profissão? E eu disse. Ele tirou os olhos do papel e quis saber: é sério? Balancei a cabeça, afirmando que sim. Esse sujeito virou para os colegas e falou bem alto: gente, tem um escritor aqui! Foi bizarro, ninguém deu a mínima, mas o atendente estava animado. Imagino que tivesse os escritores em boa conta. Talvez seja esse o tipo de coisa que me motiva: produzir algum estranhamento no banal. Como dizia Michel Foucault, os textos são formas de inscrição no mundo. São meios de existência. Escrevo por muitos motivos, alguns ainda indiscerníveis, mas com certeza uma motivação é produzir essa inscrição que inquieta, que abre uma fenda na normalidade e chama atenção para algo que sempre esteve ali, mas nunca foi olhado por aquele ângulo. Escritores me motivam, artistas visuais, o teatro, filósofos, entre vários outros agentes do conhecimento que me provocam a pensar diferente, profanar verdades, manter a curiosidade viva.

14. Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?

Não me sinto muito à vontade com a ideia de ter um estilo próprio. Tenho, sim, interesses que vão se destacando pela recorrência. O maior deles talvez seja a questão da visualidade, já que o mundo que existe para cada um de nós quase sempre se resume naquilo que vemos, que se põe diante dos nossos olhos. E ele é tão ficcional quanto qualquer outro: são convenções, contextos culturais, perspectivas sociopolíticas etc. que produzem entendimentos sobre o mundo, no limite, inventados. A realidade é simplesmente imaginada. Daí eu acreditar que algumas imagens inusitadas, operando num sentido de deseducação do olhar, têm força estética e política capaz de produzir deslocamentos e sugerir outros pontos de vista. São capazes de dar a ver o que sempre esteve ali e até então não podíamos encarar. Isso não é um estilo propriamente dito. Na realidade, isso só acontece por meio de muitos atravessamentos, diferenciações, vertigens. Alguns escritores me ajudaram a trilhar esse caminho, sem dúvida. Mais do eles, foram livros específicos que me marcaram. O som e a fúria, de William Faulkner. O estrangeiro, de Albert Camus. A espuma dos dias, de Boris Vian. Bestiário, As armas secretas e Histórias de cronópios e de famas, do Cortázar. As cidades invisíveis, do Calvino. Na colônia penal, de Franz Kafka. Os contos de Murilo Rubião. Para fugir dos clássicos, cito ainda Pássaros na boca, de Samanta Schweblin. Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas. Li há pouco o Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, recém-Nobel de Literatura, e de fato é incrível, eu gostaria de escrever um pouco como ela, com toda aquela empatia, profundidade psicológica e riqueza de detalhes. E não foram apenas esses autores e livros, claro. Além de outros ficcionistas há todos aqueles da filosofia, das artes, da estética. Eu poderia continuar por muitas linhas.

15. Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?

As cidades invisíveis, de Italo Calvino, é um dos livros mais lindos que já li. Existe nele tanta poesia que transborda em aspectos sociais, políticos, afetivos. É daquelas leituras imprescindíveis. Sempre que o retomo é com um prazer singular, como se lesse um texto sagrado, capaz de falar por meio de simbologias com qualquer pessoa em qualquer lugar e em qualquer época.

O som e a fúria, de William Faulkner, foi um livro que me exigiu um grande esforço, e assim conquistou um lugar muito especial em minha bibliografia. Ele tem inúmeras camadas, preciosidades, lições de literatura. Mas o destaque fica com a capacidade de o autor "outrar-se", como costumo dizer na tentativa de explicar essa maneira como ele escreve numa espécie de devir outro (retardado, pobre, mulher, negro etc.). É sem dúvida uma obra de mestre.

Fiquei tentado a recomendar outro daqueles clássicos que citei na resposta anterior, mas acho importante lermos contemporâneos nossos que apresentam problemáticas urgentes. Nesse quesito, todos precisamos ler os poemas de Um útero é do tamanho de um punho, da Angélica Freitas, que usa um humor perspicaz para criar versos arrebatadores sobre feminilidade, condição da mulher, intolerância, entre vários outras questões. Seu livro é uma lindeza, impossível parar de ler e de, com ele, repensar toda essa realidade que construímos.