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terça-feira, 30 de maio de 2023

OS FILHOS DA PÁTRIA ARRASADA

Na entrevista a seguir, o escritor Nélio Silzantov fala sobre seu livro de contos Br2466 ou a pátria que os pariu.

“A cabeça decapitada, rolando de um lado pro outro nos pés da molecada em um campinho de futebol e, por fim, deteriorando-se a cada dia até a ossatura feito um bibelô na cabeceira de nossa cama.”
(trecho do conto Fale o que você quiser, receba um jab direto sem defesa)

A disputa entre o carnaval e a quaresma, de Pieter Bruegel, o Velho


Títulos longos e proféticos marcam o mais recente livro de contos de Nélio Silzantov. Formado por uma coleção de textos curtos, ele se divide em quatro partes: O estado é uma máquina de triturar homens; Os homens são bestas que se devoram e louvam; O credo é a peste sedenta de morte; Com quantos caracteres se constitui um caráter?

Já vemos indicados aí temas que atravessam as histórias. Entre eles, os avanços tecnológicos de controle, a influência do poder religioso na política e no imaginário cotidiano, o moralismo regendo as relações sociais e, claro, tudo o que pode haver de abjeto nesses tópicos.

Há no livro diversos outros, não menos impactantes. Há uma profusão de citações a pensadores de áreas como a ciência, a filosofia e as artes. Há também o entrecruzamento de línguas, em especial o português, o inglês e o espanhol, sugerindo trânsitos culturais.

Nélio desenvolve suas narrativas com cenas breves, de acontecimentos quase sempre pontuais e determinantes, que arrasam a vitalidade das personagens. Pois não se trata apenas de uma violência que dá cabo à vida, mas de violências diversas que minam o próprio sentido da existência, levando o conceito de humanidade até o limite.

No fim, seus contos nos fazem perguntar: é o horror o que nos aguarda? Ou essa é uma profecia já realizada? Os comentários do autor a seguir nos ajudam a formular nossas próprias conclusões.

1. Em sua mensagem aos leitores, logo no início do livro, lemos que em Br2466 ou a pátria que os pariu existe uma “escrita como expurgo”, no sentido de que os textos vieram ao mundo num ato de libertação, talvez numa tentativa de se afastar das impurezas em que estamos metidos. Em que medida esses contos carregam um ideal de vida pessoal e social?
Olhando para eles com essa finalidade, acredito que indicam sentidos opostos aos que ali são representados e que levaram as personagens ao estado decadente em que se encontram. O que reconheço não ser tão óbvio, por isso, antes de publicá-los e mesmo agora, considero válido dizer algo aos leitores como introito à experiência literária propriamente dita. Os contos de Br2466 são antes de tudo uma sátira sobre a barbárie, sem concessões ao potencial de horror ao qual somos capazes de praticar, nem promessas fáceis e horizontes utópicos; pois acredito que, se quisermos desbarbarizar a sociedade, é preciso antes e acima de tudo não apenas desvelar suas máscaras, mas irmos fundo em suas entranhas a fim de reconhecermos o estado em que nos encontramos. Mais do que uma distopia, costumo me referir aos contos em questão como uma realidade aumentada ou imagem da nossa sociedade vista por uma lente de aumento. E nesse sentido, o da possibilidade de apontar para aquilo que nem todos veem, acho que eles cumprem bem o papel, se quisermos atribuir algum tipo de papel à literatura.

2. Diversas referências a livros, músicas, acontecimentos socioculturais, entre outras, permeiam os contos. Muitas vezes as citações estão explícitas, outras vezes elas se encontram veladas. Essa sua literatura acontece num diálogo com outros pensadores? Como você faz para manter sua voz em meio àquelas que influenciam sua escrita?
Sou bastante influenciado por tudo aquilo que me afeta. Mas costumo dizer que a música é a base primária de minha intelectualidade. Gosto muito de observar e estudar o que meus colegas contemporâneos têm feito, mais até do que os clássicos do cânone. Em todo caso, considero impossível não estabelecer diálogos quando nos dispomos a falar algo. Estamos sempre reverberando algum discurso, seja em sua totalidade ou de forma fragmentada e unida a outras vozes, concordemos com elas ou não. Em certa medida, isso nos leva ao velho problema da “apropriação” e da “mimese”, que, vale dizer, não se restringe à representação da natureza, no sentido mais comum do termo; mas como o empréstimo de imagens, pensamentos e sentimentos que extraímos de algum autor para fazer um uso distinto, aproximado ou irmos além do original. E assim chegamos na questão da voz pessoal, ou daquilo que nos distingue dos demais escritores. Volta e meia interrogo a mim mesmo quando analiso minha escrita e a escrita de outros colegas. Mas a questão que eventualmente me coloco não é se devo ou não me apropriar de algo ou mimetizá-los, mas como utilizar tais referências. Até mesmo porque, em termos de criação artística, ser original não é criar algo do nada, mas saber como ou em que medida mostrar, dizer ou representar de modo distinto aquilo que todo mundo vê, possibilitando experiências de outra ordem.

3. Como distopias não muito distantes – às vezes já realizadas –, seus contos mostram violências de diversas ordens, como opressões sociais, julgamentos morais, abusos de poder, entre outros absurdos, virulências, escatologias bastante factíveis. A humanidade é levada até um limite, que funciona como uma espécie de alerta. Por que escrever tendo em vista esse fim? E como você tem percebido a recepção de seu livro entre os leitores?
De modo muito trágico nos tornamos naqueles personagens históricos que nos inquietavam nas aulas de História do Ensino Médio. Durante muito tempo nos pareceu difícil acreditar como foi possível tamanha passividade, conveniência e cumplicidade com inúmeras tragédias e barbáries, como Auschwitz, e quando menos esperamos quase repetimos o erro. Penso que um alerta, uma advertência ou lembrete nos serve justamente para não confiarmos tanto em nossa memória ou na memória daqueles que elegemos para administrar e zelar nossa vida em sociedade. Quem leu Desumanizados e me acompanha sabe que a condição humana, a violência e a finitude da vida são questões caras em minha escrita. Em certa medida, Br2466 é um alargamento dessas questões, vistas e expostas com o auxílio daquela lente de aumento. Neste sentido, a recepção do livro tem sido bastante positiva, ao menos até aqui. Mesmo porque, assim como inúmeros escritores iniciantes, independentes ou publicados em pequenas casas editoriais, meu círculo de leitores é bem curto e a qualquer momento alguém considerará minha literatura uma perda de tempo. Isso faz parte do jogo e não me preocupa. Eu até poderia escrever meus livros de outra forma, mas prefiro acreditar que eles são exatamente o que deveriam ser. Cada obra exige um tom e um estilo único que somente seu autor ou sua autora são capazes de imprimir. O maior desafio de quem assume a ficção como ofício é representar aquele olhar diferenciado, mesmo quando falamos sobre as mesmas coisas.

4. Os contos da parte final parecem mais colados a acontecimentos recentes da nossa realidade. O que falta para essa “pátria que os pariu” se tornar uma “pátria que nos pariu”? E, aproveitando, de onde vem o “Br2466” do título, que parece indicar uma rodovia, uma lei, talvez uma data futura? Ou até um “666”, se somarmos o 2 e 4...
Talvez a grande questão que não se encontra no livro e dependa muito mais de nossa interpretação seja justamente essa, tentar entender em que medida a pátria ali representada é mãe das personagens que povoam suas páginas e não daquele que as escreveu e seus leitores. Se nosso olhar for pessimista/fatalista — ou realista, como eles se consideram —, talvez não haja diferença entre nós e os personagens de Br2466. Se assim encararmos a questão, então seu título pode muito bem ser compreendido como uma referência a esse caminho/rodovia em direção à barbárie, às leis que validam os Estados mais atrozes e totalitários, ou mesmo às representações apocalípticas. Se incluirmos uma data nessa semiologia, apesar da catástrofe em seu horizonte, não deixa de ser uma visão bastante otimista e utópica imaginarmos que a humanidade ou mesmo o planeta continuará existindo por mais quatro séculos, independentemente da forma como o exploramos. Em algum momento até cogitei utilizar BR666, mas logo considerei não muito criativo, sem falar no risco que tal referência implicaria nas leituras e interpretações. Na dúvida, preferi instigar o leitor a pensar sobre o título e abrir a possibilidade para que esse questionar o acompanhasse até o final da leitura, tendo a dúvida do que ali está escrito como companheira do início ao fim, colocando o pensamento em constante movimento.


O livro:
Br2466 ou a pátria que os pariu
Autor: Nélio Silzantov
Editora: Penalux
Ano: 2022
Clique para saber mais

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

QUEM SE ASSUSTA COM UM SUCESSO DESTES?

Saiba mais sobre o livro no site da editora Alfaguara

 
Gótico nordestino, de Cristhiano Aguiar, reúne nove contos em que tradições brasileiras se encontram com outras da literatura fantástica, com destaque para o horror do século XIX.

São histórias com clima bem construído e engenhosa condução do leitor pelo enredo, que sempre parte do drama de um personagem (diante de seus parentes e amigos, da comunidade, do destino etc.). Essa premissa particular acaba por ecoar algo mais geral, como políticas, futuros possíveis, relações sociais, entre outras. O resultado: trata-se mais de um livro sobre família do que propriamente um “horror raiz” feito de sangue e sustos. 

Ali, Campina Grande, cidade de origem do autor, se mistura com ficção científica, música, histórias em quadrinhos, Henry James, Poe e Lovecraft, nostalgia dos anos 1990, Covid-19 e inúmeras outras referências, em especial da cultura pop, numa miscelânea corajosa, que atualiza certos clichês do gênero, como vampiros e mortos-vivos.

Assim, o autor cria cenários, situações e conflitos complexos, sem cometer deslizes como o de explicar o que não precisa ser explicado, ou justificar o imponderável.

Seu livro tem ainda o benefício de aproximar de outras possibilidades literárias aqueles leitores mais chegados ao realismo, apresentando, sobretudo, o potencial de discussão política que o horror também oferece. Nesse sentido, o prêmio da Biblioteca Nacional conquistado pelo Gótico nordestino em 2022 não surpreende, mesmo se tratando de uma obra de gênero pouco reconhecido pela crítica em geral.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

DESPERTAR PARA A POESIA

Clique aqui para ver o livro no site da editora Quelônio


Dispersar todo sonho, de Lolita Campani Beretta, seria um chamado à vigília? Seus poemas, sem dúvida, oferecem uma (re)descoberta da realidade, como quando esmiúçam as diferenças e semelhanças entre facas e plumas, quando se debruçam sobre o corpo humano, quando pairam sobre o mar, quando se voltam às lembranças de infância, entre outros dos seus diversos temas. Em contrapartida, o libertário pulso criativo do inconsciente é também convocado a produzir epifanias, muitas delas de caráter surreal, como a de engolir pássaros, matar plantas com água fervente, lançar móveis pela janela, visitar um cinema abandonado no deserto... A riqueza desse imaginário sensato ou onírico nos acompanha nas mais de 100 páginas do livro, com o texto diagramado como num jogo ou numa dança, oferecendo mais esse elemento para nossa apreciação estética.

Somos, por vezes, conduzidos através de longas explanações, que têm algo de narrativas, versando sobre determinado assunto. Em outros casos, o poema se resume a uma só frase. Seja como for, já sempre uma intimidade prestes a implodir, pois não pode permanecer confinada na simplicidade das palavras com que se apresenta. Essa espécie de cotidiano pessoal vai ganhando ares de universal na medida em que o olhar lírico atento se dedica àquilo que, a princípio, parece desimportante, mas que se revela fundamental.

A fotografia, a areia da praia, a pele, a ruína, a fenda, a máquina, entre outros substantivos configuram formas de existência elaboradas com delicadeza, sinceridade, lentidão. Surpreende que nada do livro esteja fora do lugar, nada seja acessório, marca de uma maturidade invejável para a estreia da autora. Assim, Dispersar todo sonho é, no mínimo, um despertar para o que a boa poesia pode nos oferecer.


sexta-feira, 9 de setembro de 2022

EM CAMPINAS OU EM CARTAGO, A UNIVERSALIDADE É UMA ABSTRAÇÃO

Na entrevista a seguir, o escritor Fábio Mariano fala sobre sua novela Habsburgo, que apresenta uma trama de relações entre o próximo e o distante.

Habsburgo (Editora Patuá, 2019), de Fábio Mariano, é uma história de relações entre humanos, como muitas. Porém, diferente da maioria, traz como panos de fundo a vida universitária e o mercado de arte. Vemos os personagens Carlos e Coca Munhoz se conhecerem quando ainda são estudantes e desenvolverem uma amizade permeada por conflitos, mal-entendidos e mútua admiração. Coca, agenciado pelo companheiro, acaba por se tornar um artista plástico de carreira internacional, e o círculo de pessoas ao seu redor deixa a trama cada vez mais complexa. 

Fábio Mariano usa recursos narrativos para acentuar isso. Desde o flashback – praticamente a história toda é contada por Carlos durante o encontro com uma amiga num café – ao anacronismo e à sobreposição de espaços – Brasil e República Tcheca se confundem, assim como épocas distintas, de modo que Chopin, Campinas, pizzas e pieroguis, entre outras referências culturais se misturam, criando a estranha sensação de que algo se deslocou no tempo e no espaço.

Presos nessa rede, os personagens buscam formas de escapar. Quando nos damos conta, fomos capturados também, e seguimos com o livro aberto até que as páginas se esgotem.

Clique aqui para acessar o livro no site da editora Patuá


1. Em Habsburgo, Campinas e Cartago são coincidentes. Ouve-se Chopin como uma espécie de hit do momento, há um sentimento de que tudo foi realocado no tempo e no espaço. Identificamos algo familiar naquilo que parece estranho, tais como hábitos estrangeiros, receitas culinárias, nomes de lugares etc. Esse recurso indica certa universalidade das relações humanas, assim como de afinidades culturais, trânsitos, atravessamentos e influências em um mundo “globalizado”? Você teve que pesquisar referências para enriquecer o livro?

Eduardo, antes de mais nada, queria agradecer pelo convite e pela leitura atenta e cuidadosa do livro, que se revela nas perguntas complexas e interessantes que você coloca. Vou começar respondendo à questão da sobreposição entre Cartago e Campinas, porque Cartago é o meu universo desde o primeiro livro, O gelo dos destroieres, e atravessa os contos esparsos que publiquei, e também o terceiro livro, Ruído branco. Meu projeto literário sempre teve a ver com a criação dessa cidade, desse universo ficcional que dialogasse com Campinas, com esse paradoxo que é uma cidade “grande do interior”, a capital frustrada, o lugar onde as coisas abrem e depois fecham, onde existem sempre a noção de um potencial não realizado, como se fosse uma maldição. Ao mesmo tempo, Campinas é uma cidade em que, se você procurar, encontra coisas muito únicas, muito particulares. Eu me lembro, quando estudava russo, de procurar gramáticas nos sebos e encontrar uma gramática do russo em espanhol. Aquilo tem uma história, sabe, alguém que era falante nativo de espanhol e estava aprendendo russo, ou que era professor de russo e tinha alunos que falavam espanhol, existe uma história única naquilo. É uma cidade com uma universidade enorme, cheia de pessoas de todos os lados que vieram parar aqui, que ficaram. Eu nasci em São Paulo e vim para cá, e cresci sempre cercado de pessoas que não eram daqui; nesse sentido é mesmo uma cidade, um entrecruzamento de rotas onde as pessoas vão ficando. Por isso, em parte, Cartago é atravessada por pessoas de diferentes lugares – porque essas pessoas fundam restaurantes, abrem lojas, se empregam no serviço público, a vida inteira eu estive rodeado dessas pessoas, que vinham de outro lugar. Quanto às referências, acho que é importante dizer que esse livro nasce de uma pesquisa muito específica sobre as relações entre professor e aluno e, ao mesmo tempo, sobre o gênero novela. Antes de escrevê-lo, eu cursei uma disciplina na universidade que era justamente sobre a relação professor-aluno na literatura, e aquilo me marcou. Coincidência ou não, vários dos autores eram nascidos no antigo império austro-húngaro, o império dos Habsburgo. Eu sou fascinado por esse império justamente por ele ter sido, numa época de nacionalismos extremados, um império multinacional. Essa diversidade faz com que os pontos de vista diferentes que existem ali sejam muito enriquecedores. Acho que é o Eric Hobsbawm que fala (mas posso estar enganado nessa referência) que Sarajevo abre e fecha o século XX, e o estouro da primeira guerra mundial, ali, é de fato o fim de muita coisa, e isso me fascinava e fascina ainda. Então, ao mesmo tempo em que existiu uma pesquisa muito grande sobre o império, e aí sobre as filiações, as diferentes nacionalidades que o compunham e os diferentes interesses que o envolviam, todos eles pincelados no livro, há um interesse meu de longa data pelas produções culturais dele que é anterior. Eu escrevi o livro quase todo à mão, no primeiro rascunho, ouvindo o quarteto de cordas do Janácek “Sonata a Kreutzer”, que eu tinha ouvido ao vivo num espaço cultural aqui de Campinas uns anos antes e que tinha me deixado obcecado. Então, nesse sentido específico das referências culturais, eu não pesquisei diretamente para o livro – elas foram se encaixando naturalmente, em função de uma pesquisa anterior e mais extensa sobre o império dos Habsburgo.

2. A história aborda certos aspectos da produção, da circulação e do comércio de arte, e assim ajuda a desmistificar um tema que ainda hoje carrega certa aura. Você tem familiaridade com o assunto? De onde vem esse interesse e o que o levou a incluí-lo em Habsburgo?

A origem desse livro é um conto fracassado. O Coca Munhoz aparece, pela primeira vez, em O gelo dos destroieres, numa cena que é contada de um ponto de vista que não é o dele (é como se o conto fosse o negativo fotográfico dessa novela). E desde então eu tentava escrever um conto sobre o Coca, que teve uns quatro rascunhos, mas que não dava certo. Foi na disciplina que mencionei, sobre a relação professor-aluno, que a coisa se encaixou na minha cabeça; foi ali que eu achei uma forma. Ainda assim, eu escrevi quatro começos diferentes, em terceira pessoa primeiro, depois em primeira com o Coca, até achar finalmente a voz do Carlos. Porque isso para mim era importante – não falar desse mundo da arte com a propriedade de quem o viveu. Escolher o Carlos como narrador coloca a distância do espectador; por mais que seja um crítico, ele nunca consegue de fato adentrar o processo de criação. Eu pessoalmente não conheço nada do comércio de arte, então também é algo que fui indagando e pesquisando, mas não pelos detalhes, e sim para poder ambientar essa história. Eu queria trabalhar com um artista plástico porque, na verdade, é a arte mais distante de mim, e é uma das minhas grandes frustrações. Eu já tentei, e eu não consigo desenhar, pintar, esculpir, nada; não consigo ter a mínima habilidade em nada disso. Então, o processo criativo, que para mim na literatura é muito claro, na música faz sentido, já que eu toco instrumentos e já compus, mas nas artes visuais é um mistério total. Se você não domina a técnica, como é que você faz para saber as suas potencialidades de criação, as suas possibilidades, o que você consegue dizer e fazer? Então, a escolha do Carlos como narrador e o fato de ela ter destravado essa história tem a ver com conseguir achar um ponto de vista para falar que não fosse de um profundo conhecedor. Agora, quanto à dinâmica do mercado, a questão do assédio, os segredos, as informações privilegiadas, para mim isso é a marca de qualquer mercado, e esse glamour que recobre é uma máscara que, de fato, mistifica. Isso acaba dando uma espécie de validação, de salvo-conduto, para que pessoas reconhecidas como “gênios” tenham licença para ter comportamentos abusivos, violentos, destrutivos, o que é um absurdo. Por isso, também, eu quis explorar um pouco as ramificações desses comportamentos, os impactos, as marcas que não passam.

3. O mesmo vale para o ambiente universitário, tanto em relação ao ensino quando às pesquisas científicas. Sei que você tem uma afinidade particular com isso. De que maneira sua experiência pessoal atravessou o enredo do livro?

Uma das maneiras de entender esse livro, para mim, é uma grande homenagem à universidade onde me formei, a Unicamp, uma universidade que representa tudo o que eu quero e valorizo no ensino superior – um ensino público, gratuito, de qualidade e que se torne cada vez mais democrático e acessível. Algo que está em risco no Brasil há um bom tempo, e que temos que lutar para manter. De certa maneira, a vida do Carlos é tão atrelada a dois polos, o Coca e a universidade, que ele só narra isso. É como se nada mais existisse na vida dele – família, antecedentes, nada. É como se tudo começasse e terminasse na universidade. A Unicamp mudou a minha vida, e eu sou completamente ligado a ela – hoje, inclusive, profissionalmente, já que sou professor num dos colégios técnicos dela e faço o doutorado lá. Mas acho que, mais que tudo, o que eu procurei recriar ali foi o sentimento de estar na universidade, de atravessá-la, porque esse sentimento é algo que não encontrei na literatura brasileira ainda. A descrição das paisagens do distrito universitário e da própria universidade não é gratuita – ela é, também, uma representação e um diálogo com o que aconteceu com a Unicamp e o distrito da cidade onde ela fica, Barão Geraldo, entre 2007 e 2017, que eram minhas datas de referência naquele momento, e das descrições e histórias de um pouco antes. Mas na ficção a gente cria, transforma, faz alquimia com as referências, e há ali também pitadas de outros campi que eu conheci: a Unesp de Franca, a USP Pinheiros, a Uni Duisburg-Essen, onde estudei na Alemanha, e a Universidade do Mississippi, nos EUA. É engraçado que a relação com o livro é invertida – hoje, meu doutorado é sobre o academic novel americano, os romances que se passam na universidade e têm como personagens principais os docentes. Quando escrevi Habsburgo, eu ainda não fazia esse doutorado; em certo sentido, foi o livro que me levou ao doutorado e à pesquisa que faço hoje. O livro atravessou a minha experiência depois de minha experiência ter atravessado o livro. 

4. A história de Habsburgo parte da amizade do protagonista Carlos e de seu amigo artista Coca Munhoz, que se conhecem durante a graduação, e segue até o momento em que ambos têm carreiras consolidadas. Ao longo desse tempo, novos personagens aparecem e deixam tudo mais complicado. São abordados temas como as relações entre professor e aluno, amizades que se desfazem, jogo de interesses, assédios de vários tipos, contatos internacionais, passado e presente, vivos e mortos, enfim, apresenta-se uma circularidade da qual não se escapa e que aponta para algo maior, como a própria história da humanidade, que de alguma maneira jamais deixa de se repetir. Você tinha essa pretensão ao escrever o livro?

Com certeza. Se por um lado é um livro que tenta recriar um ambiente específico e um sentimento específico dentro de determinadas estruturas, pensar a partir da universidade e da trajetória de uma carreira docente, ele é também um livro que aponta, sempre, para algo que extrapola aquele ambiente. A gente costuma se referir a essas questões como universais, mas elas só acontecem dentro de determinadas configurações, o universal é sempre uma abstração. As amizades só acontecem dentro de uma certa configuração – a universidade, o bairro, a rua, as cartas, as redes sociais, e isso muda, cria especificidades, possibilidades diferentes. Mas para mim essas estruturas serviam justamente para que eu pudesse explorar questões, para que eu pudesse olhar para a humanidade. O título e a sinopse do livro não combinam muito – mas os detalhes todos do livro apontam para o título, e para um momento específico, para o fim do império dos Habsburgo, o momento de crise, o momento no qual as contradições dentro daquela panela de pressão que o era território austro-húngaro explodiram. Ali, não foi só um império que se desfez, foi uma configuração do mundo. Então, o que eu queria era explorar essas complexidades, não numa chave alegórica, mas de diálogo mesmo com as referências, uma espécie de montagem entre o livro e suas referências para provocar o leitor a fazer uma aproximação que chega a parecer um convite indevido, mas que teima, insiste, reaparece. Esses temas, a fundo, são a espinha dorsal do livro, o que não é dizer que o enredo é menos importante, porque é o enredo que permite a relação entre todos os temas, mas é um pouco como o André Malraux fala sobre o Faulkner: parece que ele cria primeiro as situações para depois imaginar os personagens nelas. Eu tinha esses temas todos em mim, mas precisava de um enredo e de uma voz, até que encontrei o Carlos.

5. A novela Habsburgo é seu segundo livro (o primeiro foi O gelo dos destroieres, de contos, publicado em 2018). Depois você publicou Ruído branco, também de contos, em 2021. Todos os três pela editora Patuá. Está trabalhando em novos projetos atualmente? O que vem por aí?

A história do Ruído branco é curiosa. Ele foi publicado numa parceria entre a Patuá e a Ofícios Terrestres, editora independente aqui de Campinas, do Gabriel Morais Medeiros, que é um baita poeta e um amigo de muitos e muitos anos. O livro foi contemplado pelo ProAC de 2019, e era para ter saído em 2020; ele até saiu, mas o projeto envolvia uma turnê de lançamentos pelo interior de São Paulo, e mais várias ações que tiveram que ser remanejadas por conta da pandemia. Acho que eu não consegui escrever sobre como a pandemia afetou o cotidiano de um personagem em parte porque ela afetou o meu projeto literário daquele momento – e aí, é estranho, mas de uma certa forma acho que a minha energia para pensar a relação pandemia-literatura ficou confinada nessa reconfiguração do projeto. E quem me apontou uma saída para isso foi justamente o Gabriel, quando me ofereceu a possibilidade de traduzir um poeta alemão chamado Paul Boldt. Saiu uma plaquete no ano passado, com quatro poemas, que integrou a coleção de plaquetes da Ofícios Terrestres, e em breve (estamos calculando para setembro ou outubro) deve sair a versão que tem 21 dos 84 poemas deixados pelo Boldt (é a primeira tradução dele no Brasil, eu espero que outros tradutores e estudiosos se interessem e mergulhem, traduzam, retraduzam!). Além disso, tenho um projeto de contos para o ano que vem, um projeto que vai se materializar e que é uma parceria com outros dois escritores que admiro muito. E eu ainda tenho outros projetos que vão avançando, mas a passos mais lentos; a verdade é que eu comecei a escrever os contos de O gelo dos destroieres lá em 2012, como um estudo para o ambiente e possíveis personagens de um romance. E o caderno de anotações para esse romance se desdobrou, se transformou em outros projetos, mas o núcleo dele também continua ativo. O que posso dizer com certeza é que, seja em que formato for, Cartago vai continuar sendo o cenário da minha ficção. E que vêm mais histórias de Cartago por aí!

terça-feira, 26 de julho de 2022

BRASIL, TERRA SERTANEJA


ERVA BRAVA, de Paulliny Tort (Editora Fósforo), reúne doze contos que se passam na cidade fictícia de Buriti Pequeno, no interior de Goiás. Daquela terra sertaneja brotam personagens como o agricultor turrão, a primeira-dama romântica, a benzedeira dedicada, a parteira feminista, o drogadito, o sineiro, o ludibriado, entre outros. Com seus dramas particulares, eles de alguma maneira contam do lugar onde vivem, assim como a cidade diz muito a respeito dos habitantes. No fim, uma parte não existe sem a sua contraparte. E digo contraparte porque tais relações não são pacíficas — boa quantidade dos conflitos do livro provém daí. Trata-se, sem dúvida, de um projeto literário belamente estruturado, com perspectivas e enredos variados, todos eles também conectados a um destino nada promissor: a destruição do município por um dilúvio no conto final, intitulado “Rios voadores”. Com isso, lava-se a alma de um Brasil perdido entre as modernidades, tradições e contradições do agronegócio, do tráfico de drogas, da corrupção, da herança colonial, da intolerância, do machismo, enfim, das violências todas que vivemos em nossas cidades reais.

quinta-feira, 24 de março de 2022

COMO SER MACUXI?


“A damurida, prato tradicional de meu povo
já fazia parte, de um jeito mágico, de meu paladar.
[…] As pimentas dançam no rio da minha memória,
invocando a antiga canção dos antepassados que me chama de volta
pra casa.”

Julie Dorrico, Editora Caos & Letras, p. 27

Acredito que a grande questão do livro Eu sou macuxi e outras histórias é aprender a ser/pertencer a essa etnia. Isso implica não apenas conhecer a língua ou praticar os costumes, mas reavivar uma memória que, no limite, é a própria essência cultural daqueles indígenas. 

Quem encara a jornada é a narradora dos textos que compõem o livro, que não são exatamente contos, são também poemas, relatos, fábulas, registros de acontecimentos. Narradora que ora é observadora, ora é personagem, ora cede a palavra e se torna ouvinte da avó, que por sua vez conta histórias por intermédio de uma tradutora – do macuxês para o inglês para o português para uma língua própria, inventada. Assim, coloca-se em pauta a tradição oral e as permanências e transformações que atravessam gerações. 

Mas talvez o que mais tenha me intrigado seja o abandono daquele “eu” convencional, numa atitude fundamental para a narradora se tornar macuxi. Ela faz isso contando não somente uma experiência sua de conhecimento e imersão, mas dando voz às mitologias fundadoras de um povo. Só assim, abandonando uma determinada “si mesma”, é capaz de aprender a ser ainda mais; aprender a ser uma indígena e uma nação macuxi ao mesmo tempo.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

ESCRITO NA AREIA


Textos para lembrar de ir à praia, de Rodrigo Luiz P. Vianna, traz poemas que têm em comum essa temática explicitada no título. O livro se divide em três partes: Escrito na areia, Ampulheta e Pérola. Que implicam também três destinações da areia, às quais são dedicados inúmeros versos. A sensibilidade e a criatividade do autor para escrever tanto a esse respeito são impressionantes. Sem dúvida, o grande destaque do livro fica com a sua exploração, que ganha aspectos, camadas, perspectivas e significados a cada página, trabalhados com uma cuidadosa elaboração.

Há jogos de palavras, como “mãos em concha” e “o labirinto se despedaça aos ouvidos”; há também ideias muito bonitas, apresentadas na forma de imagens sugestivas, como em “a circunstância tem vida e espessura” ou “cartografar durante o terremoto”. Há muito mais. Trata-se de um escrito capaz de produzir inusitados a partir de algo corriqueiro como um passeio no litoral. Por exemplo, quando nos fala da escultura conforme aquilo que falta a ela: “pedra pole a água / lapida ao longo da vida / as faltas da estátua”.

Sua complexidade nem sempre é fácil de apreender, e por diversas vezes me peguei flutuando em ondas de indefinição. Tal como faz o vento de um dos seus poemas, este livro “dissolve os limites / entre meu corpo e a praia”. Daí a sensação de desfazimento, da impossibilidade de se reter os significados diminutos, que escorrem por entre os dedos. Afinal, “a areia é um fragmento da areia”. Se por vezes enchemos as mãos com ela, outras vezes é ela que se agarra em nós. E seguimos assim, por simples prazer.

Publicado no Brasil pelas editoras Reformatório e Patuá em 2020.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

O QUE FAZ DE PICASSO UM PICASSO?

Gertrude Stein (1905-1906), de Pablo Picasso

Essa pergunta pode ser respondida de inúmeras maneiras e sob inúmeros aspectos. Um deles é o de sua amiga Gertrude Stein, que escreveu a respeito do artista ainda em 1938. No pequeno livro intitulado Picasso, publicado no Brasil pela editora Âyiné, ela traça um elogio da técnica, do talento e, principalmente, do seu olhar aguçado, que fez dele um verdadeiro “criador”. Segundo Stein, Picasso foi o primeiro capaz de enxergar sua época com os olhos do século XX. Afinal, se “nada muda nas pessoas de uma geração para a outra exceto a maneira de ver e de ser visto”, como lemos ali, o criador é o sujeito capaz de perceber esse movimento. “Ele é sensível às mudanças pois a vida e sua arte são inevitavelmente influenciadas pela maneira como cada geração está vivendo, pela maneira como cada geração está sendo educada e pela maneira como as pessoas se movem, tudo isso cria a composição dessa geração”.

Essa ideia se inspira num pronunciamento de Sir Edward Grey, citado por Stein, para quem os generais da 1ª Guerra Mundial ainda batalhavam como no passado, apesar de possuírem armamento do século XX. Apenas no auge do conflito eles teriam mudado essa percepção, o pensamento e as ações de combate.

A guerra é um ponto relevante no argumento do livro. A autora inverte o senso comum de que tudo se transforma com ela ao explicar que as mudanças na verdade já aconteceram e que o conflito apenas obriga as pessoas a reconhecê-las. Aliás, como Stein bem observa, as mudanças e as guerras jamais acabam, elas apenas dão a impressão de terminar. É aí que o olhar do criador se diferencia. Em suas palavras, “um criador não está à frente de sua geração, mas ele é o primeiro entre os seus contemporâneos a ter ciência do que está acontecendo”. Ele percebe e expressa a guerra antes que ela seja declarada. E o público, depois, deve reconhecer o seu trabalho, assim como as mudanças evidenciadas pelo confronto.

Todos foram obrigados a aceitar Picasso, que anteviu o conflito mundial ainda na década de 1900, diz Stein. Seu cubismo já expressava essa nova maneira de ver e de viver.

Dado o seu pioneirismo, para Gertrude Stein, Picasso foi herói de uma era, embora não tivesse clareza da amplitude do que fazia. Ela explica que “há heróis em todas as eras em que são feitas coisas que não podem deixar de ser feitas, e nem eles nem os outros entendem como nem por que essas coisas acontecem. Ninguém jamais entende, antes de elas serem completamente criadas, o que está acontecendo, e ninguém entende nada do que fez antes de terminar tudo”.

Depois de realizado, aquilo que parecia estranho vai sendo assimilado, ao ponto de ninguém mais se lembrar por que se estranhavam, por exemplo, as composições cubistas. Todavia, a grande luta de Picasso foi justamente pelo estranhamento, quer dizer, pela sua capacidade de estranhar aquilo que a todos parecia evidente. Com seu esforço para pintar como se desconhecesse, como se visse pela primeira vez, ele focou numa parte do todo por vez, tal como os nossos olhos fazem. Picasso percebeu que vemos no outro apenas uma sobrancelha ou um braço, o ombro esquerdo ou a mão direita; se observamos a boca, as orelhas serão uma construção da memória ou complementos da imaginação, o que simplesmente não o interessava. “Os pintores nada têm a ver com reconstruções, nada a ver com memória, eles se preocupam apenas com coisas visíveis”, afirma Stein, categórica. Assim, Picasso foi desconstruindo um paradigma visual e reeducando o olhar para perceber a contemporaneidade do século XX.

Fez isso pintando o corpo, ou melhor, a materialidade. A alma das coisas e das pessoas não lhe dizia respeito. E Picasso pintava como ele próprio via, não como os demais ou com uma visão generalizante. Essa insatisfação com certa aparência comum seria a sua singularidade, que em pouco tempo, porém, foi sendo absorvida e reproduzida, fazendo surgir réplicas de Picasso, secundárias em todos os sentidos.

E nem mesmo Pablo Picasso era um Picasso o tempo inteiro. Stein usa a imagem de expansões ou acúmulos para se referir a seus períodos de se deixar influenciar. E trata seus momentos de reinvenção como esvaziamentos daquilo que o afastava do seu “temperamento espanhol”, que para ela seria uma espécie de essência do artista. Os colegas franceses, a escultura africana, as cores de Matisse, tudo isso que comumente entendemos como elementos constitutivos da obra de Picasso, para Stein eram desvios.

Essa ideia de essência, tal qual a de gênio moderno (“que já nasceu sabendo tudo sobre pintura”, como ela escreve), mais as generalizações acerca das nacionalidades (como se todas as pessoas de um determinado país fossem iguais) e a lógica exagerada que busca justificar os resultados (como se a criação artística e a vida pudessem ser reduzidas a explicações simples) são alguns dos defeitos do livro, muitos dos quais perceptíveis apenas hoje, com o distanciamento que acumulamos em relação ao Modernismo. Todavia, a proximidade que a autora manteve com Picasso e o encanto por sua obra trazem pontos de vista bem mais cativantes do que encontramos outros textos teóricos ou críticos também disponíveis. Com sua intensa amizade e admiração, Stein faz de Picasso ainda mais Picasso.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

ARTE, CONJUNÇÃO ADVERSATIVA

 
Plugue (2018), de Nina Beier
 
O título da 34ª Bienal de São PauloFaz escuro mas eu canto – é um verso escrito por Thiago de Mello em 1963. Embora seu poema fale do trabalho na lavoura, podemos lê-lo sob a chave das tensões sociopolíticas entre os movimentos libertários e as repressões da época, muitas das quais, infelizmente, continuamos a vivenciar. Faz escuro. Mas eu canto. A escuridão persiste, assim como as formas de resistência a ela, entre as quais a esperança, a poesia, a alegria. E a curadoria de Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada cria espaço propício para que se possa exercitar o ato verdadeiramente revolucionário, sugerido no poema pela conjunção “mas”. Está aí o levante, a indignação, a denúncia, a resiliência, a afirmação da adversidade, o rompimento do ciclo, o desejo de mudança, a experiência alternativa, a apreciação da complexidade do mundo através de mais do que apenas um ponto de vista. “Mas” é a arte que se apresenta no Parque do Ibirapuera, na capital paulista, até 5 de dezembro de 2021.
 
Os mais de 1,1 mil trabalhos em exibição, criados pelos 91 artistas participantes, elaboram por vezes o escuro, por vezes o canto, se quisermos usar a mesma metáfora que parece balizar as escolhas dos organizadores. Eles abrangem um arco temporal que remete à formação do universo – representada pelos dois meteoritos – às produções desenvolvidas especialmente para a ocasião. Isso tudo disposto de modo a suscitar relações e, claro, sentidos interpretativos, questionamentos, atritos, reflexões, diferenciações, encontros de forças, entre inúmeras outras possibilidades.
 
Gustavo Caboco
Essa “poética da relação” tem base no pensamento do martinicano Édouard Glissant, filósofo, poeta, ensaísta, autor de um livro com esse mesmo título e uma das grandes referências conceituais da mostra. Tais relações já podem ser notadas na entrada, numa “sala” montada em torno do meteorito de Bendegó, símbolo de sobrevivência por ter resistido a variadas situações de risco, sendo o incêndio do Museu Nacional em 2018 a mais recente delas. Embora não esteja fisicamente presente por conta da dificuldade de se transportar suas 5,36 toneladas desde o Rio de Janeiro até São Paulo, sua história é retomada junto a outros trabalhos de arte que também colocam em questão a memória, a ancestralidade, a origem e a extinção nos seus mais variados sentidos.

Vemos ali, além de um meteorito menor – o de Santa Luzia, segundo em tamanho encontrado no Brasil – e de bonecas indígenas doadas pelos seus criadores para substituírem as originais queimadas – ambos os itens também provenientes do acervo do museu incendiado –, uma espécie de cosmologia inventada pelo artista Gustavo Caboco para problematizar sua identidade indígena; performances com declamações de livros feitas de memória, que aludem às deliberadas destruições por fogo do romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; cerca de 150 monotipias da série Boca do Inferno, de Carmela Gross, criadas a partir de imagens de vulcões; entre outros trabalhos.

Coloquei aspas na palavra “sala” porque não se trata exatamente disso: a bienal apresenta as obras em nichos, separados por três tipos de divisórias chamadas “peles”. Elas são feitas de policarbonato, juta ou madeira, e suas transparências e opacidades remetem tanto à filosofia de Glissant quanto aos ocultamentos de culturas, saberes, pessoas etc. realizados por gestos opressores conscientes ou não.
 
Ainda que algumas peças ocupem o espaço com maior liberdade, boa parte delas fica reunida sob a imantação dos 14 enunciados propostos pela curadoria. Esses enunciados são objetos, ideias ou narrativas que não pertencem necessariamente ao campo das artes, mas que carregam histórias e simbologias. O Museu Nacional é um deles, assim como o sino da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos, dita Capela do Padre Faria, em Ouro Preto; os retratos do abolicionista estadunidense Frederick Douglass; a obra de Paulo Freire; o filme Hiroshima mon amour, de Alain Resnais; e assim por diante.

Mais do que um punhado de grandes nomes, me parece que os curadores conseguiram fazer do conjunto de obras e artistas a verdadeira potência da exposição. A temática, de modo geral, trata das relações entre culturas, temporalidades, valores, atitudes, com destaque para questões oriundas do colonialismo – entre as quais, e talvez principalmente, as sobre a diáspora africana por meio do tráfico de escravos e o extermínio dos povos originários. Há também menções a práticas democráticas ou autoritárias, como por exemplo em A carga e Presunto, trabalhos criados nos anos 1960 e que se atualizam no Brasil de 2021. Isso tudo configura a força de resistência, assim como as limitações que toda exposição de arte apresenta.
 
Arjan Martins
As diferenças entre os participantes e as muitas semelhanças estéticas e formais de suas obras, por um lado, fazem pensar em como essas proximidades são construídas na contemporaneidade. Já as dificuldades que senti para assimilar certas propostas talvez indiquem minha condição de estrangeiro, inclusive em minha própria terra e entre as pessoas que aqui habitam. Isso é algo previsto, pois existe na mostra um convite declarado a que se estabeleçam relações, mesmo que as partes não sejam perfeitamente compreensíveis entre si.
 
“Da adversidade vivemos”, afirmou Hélio Oiticica em seu famoso ensaio sobre a Nova Objetividade brasileira. Esse artista, falecido em 1980, compõe um dos enunciados da 34ª Bienal de São Paulo. E a exposição, como um todo, parece reiterar sua proposta, mostrando que pela diferença entre as formas de vida se produzem também variadas criações artísticas.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

QUANDO O MUNDO LÁ FORA NÃO FAZ SENTIDO


 
“Eu imitava com grande facilidade o vídeo de treinamento a que assistimos na sala dos fundos, ou os gestos que o instrutor nos mostrava. Até então, ninguém jamais havia feito essa gentileza de me explicar claramente: ‘Este é o jeito normal de sorrir, este é o jeito normal de falar’.” (p. 22) 
 
Vencedor de prêmios importantes, best-seller internacional, Querida Konbini chega a soar um tanto ingênuo e repetitivo. Acontece que essas são também características da protagonista, funcionária temporária – há 18 anos – de uma loja de conveniência (konbini) em Tóquio, o que é considerado um desastre, profissionalmente falando. 
 
Seu jeito estranho de compreender as relações sociais, embora inadequado aos padrões, obedece a uma racionalidade sistemática típica daquele comércio popular, que todos os cidadãos frequentam e sabem como funciona. Percebe o paradoxo? É uma mulher tão bem encaixada no mecanismo que por isso mesmo deixa ver seu desencaixe. 
 
Li o romance em poucos dias e ele permanece crescendo em mim. É uma leitura que instiga com sua simplicidade, nos coloca diante da estranha ordem contemporânea e, oscilando entre risos e espantos, mostra como nossa sensibilidade também segue uma espécie de manual de atendimento ao cliente. 
 
Querida Konbini, de Sayaka Murata, foi traduzido do japonês e publicado no Brasil pela editora Estação Liberdade.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

AS "EXISTÊNCIAS MÍNIMAS" DE FLÁVIA RIBEIRO


Existências mínimas, de Flávia Ribeiro, na exposição Continuum

Em dado momento da pandemia, com a crise pessoal agravada, a artista Flávia Ribeiro precisou se recolher num sítio. Ali, não poderia continuar seus trabalhos com bronze fundido, então levou consigo algumas tintas guache, entre elas o seu vermelho favorito. Ao longo dessa temporada, recolheu gravetos de um velho ipê, já muito doente, algumas pedras, toquinhos de madeira remanescentes de uma construção feita há pouco no local. Não pensou em, com eles, criar arte, no sentido de executar um projeto artístico, muito menos em expor as pequenas esculturas que surgiam do longo processo de entalhar os gravetos com uma faquinha, pintar os toquinhos, empilhar pedras em formações instáveis. Todavia, depois de criadas, ficou impossível ignorá-las.

Na exposição Continuum, na Galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, essas esculturazinhas foram reunidas sob o título de Existências mínimas. Trata-se de uma referência ao livro As existências mínimas, de David Lapoujade, publicado no Brasil pela N-1 Edições, que fala de certas entidades virtuais, ou potencialidades que acompanham cada ser e carecem de realidade, como se não houvesse lugar para elas no mundo real. Aquilo que poderia ser e até certo ponto é; porém, de uma maneira precária, provisória, fictícia, sempre em busca do direito de existir mais intensamente.

Das cerca de trinta peças criadas no sítio, algumas já se quebraram, tamanha a fragilidade da sua composição. Essa fragilidade física talvez seja a grande força do conjunto que me chamou a atenção em meio aos demais trabalhos da mostra, disposto com singularidade entre a leveza e a translucidez dos desenhos em papel manteiga e a carga histórica e corpórea dos bronzes. Pois, criadas com uma espécie de gesto mínimo, também basta um sopro para se desfazerem, deixando de ser como são, e se tornarem outra coisa. Elas apontam, assim, para a nossa impermanência e ao mesmo tempo para a suposta longevidade da arte, talvez para o contrário também.

É com essa iminência que tais seres requerem seu direito de existir no mundo real e conquistam um lugar distinto na obra da artista, inclusive colocando o restante em questão. Como ela mesma comentou com o grupo de discussão sobre arte contemporânea do qual faço parte, as Existências mínimas surgiram sem planejamento e então foi preciso lidar com elas. Foi preciso se interrogar a respeito do que provocam, do que trazem de novo, de que relações estabelecem com a sua produção anterior; oferecem, assim, a oportunidade de se aprender com isso.

“Os virtuais têm a força do problemático”, diz Lapoujade. Para quem a força de um problema não é a sua tensão interna, mas a incerteza que ele introduz na (re)distribuição de realidade. Uma nova perspectiva irrompe e confunde a ordem de determinado plano de existência, deslocando os centros de gravidade.

Existência mínima, 2020, de Flávia Ribeiro

O filósofo explica ainda que cada existência provém de um gesto que a instaura, mas esse gesto não emana de um criador, é imanente à própria existência. De modo que, para ter lugar, ela precisa vencer a dúvida, o ceticismo ou a negação que contesta o seu direito de existir.

Pois não seria essa a qualidade daquelas pequenas esculturas de Flávia Ribeiro? Apresentarem-se sem serem convidadas, como um estrangeiro que bate à sua porta e coloca em questão o que acredita saber sobre si mesma? Um estranho imprevisto com o qual precisa dialogar, que invariavelmente a transforma, força-a para além do lugar-comum?

Elas são começos, esboços, fragmentos; quase se confundem com o puro nada, explica Lapoujade. Evidente que as Existências mínimas da artista não são uma representação do conceito desenvolvido no livro. Mas não tenho dúvidas de que as aproximações enriquecem de sentido ambos. Afinal, é próprio desses seres virtuais expandirem as possibilidades. “Seu ‘gesto’ próprio é suscitar outros gestos”, diz o filósofo; “são os virtuais que introduzem um desejo de criação, uma vontade de arte no mundo. Eles são a origem de todas as artes que praticamos”.

Como o novo está sempre posto em relação com o pré-existente, vejo também similitudes com outros trabalhos de Flávia Ribeiro, inclusive alguns da própria exposição. Por exemplo, com as estruturas delicadas do Campo para pensar I, espaço de imantação formado por uma base de parafina em que ideias ganham materialidade, como que desenhadas no ar com fios de arame e organza. Ou com o proposto “vir a ser” das suas esculturas intituladas Pré-objetos. Ou, ainda, com a pulsação da cor vermelha, que acentua algumas peças e, assim, em pitadas, se faz sempre presente.

As Existências mínimas são a amostra mais viva da intuição poética de Flávia Ribeiro, talvez um ponto de virada em sua trajetória, e com certeza um ponto de inflexão. Propõem caminhos alternativos, como as forquilhas do ipê. Carregam algo da brincadeira das crianças, que encaram o jogo da vida com seriedade, mas sem a sisudez de quem já se acostumou com as maneiras convencionais de existir. São receios e fragilidades assumidos; inconsistências e evanescências elaboradas na forma de uma coragem irregular, orgânica, primitiva, tão necessária para sobreviver na dureza do mundo real.


sexta-feira, 18 de junho de 2021

ALGUNS OLHARES PARA A ARTE DO PASSADO

Ao analisarmos uma pintura pelo viés da história da arte, vamos querer vê-la em seu tempo e seu contexto, tentando compreender o que representou para seus contemporâneos. A história de A noite estrelada, por exemplo, reconstrói a biografia de Vincent Van Gogh, sua internação voluntária no asilo de Saint-Rémy, na Provença, a janela do quarto por onde ele observava o céu noturno, a arquitetura dos vilarejos holandeses que o artista resgatou da memória e incluiu naquele vale iluminado pelo luar. Tudo isso por meio de documentos, como as cartas trocadas com seu irmão Théo, diários, registros variados deixados por pessoas próximas, relatos, análises técnicas da própria obra etc. A crítica de arte segue caminho semelhante, sendo por vezes indiscernível da historiografia. E tais narrativas se atualizam na medida em que novidades são descobertas e outras associações vão se produzindo. Mas estas não são as únicas formas de olhar a arte do passado.

No livro Studiolo, traduzido do italiano e publicado este ano no Brasil pela editora Âyiné, o filósofo Giorgio Agamben apresenta uma coleção de pequenos textos inspirados por trabalhos de arte que, conforme advertência do próprio autor, pretendem se colocar na tradição do comentário e não da crítica e da história. “Se chamamos de presente o instante em que uma obra chega à sua legibilidade, as obras comentadas no livro, ainda que compostas em um arco de tempo que começa em 5000 a.C. e chega até hoje, são todas igualmente presentes, convocadas aqui e agora em um instante eterno”, explica.

Ou seja, se a história e a crítica de arte leem as obras do passado sob a luz do nosso presente e contribuem, assim, para a elaboração de certa linha de tempo, a abordagem de Agamben é radicalmente outra: seu interesse nelas é ler o hoje sob a luz do passado, considerando que esse passado nunca se interrompeu. Afinal, de que maneira aquelas obras de arte impactam o entendimento de nossa época? Que heranças nos constituem enquanto seres humanos? Por que agimos como agimos e pensamos da maneira como pensamos?

A visão linear da história sempre foi um dos objetos da sua crítica, que desconstrói o formato cronológico ao investigar eventos que nunca cessam de acontecer. No caso da pintura de Van Gogh que citei antes, poderíamos pensar, talvez, na questão da loucura, na condição do olhar do artista, no imaginário e na memória, nas relações do sistema econômico com a organização social, na potência da criação artística e assim por diante. Todavia, A noite estrelada não é um dos trabalhos comentados em Studiolo.

O total de vinte e um textos – a maioria associados a pinturas de épocas muito diversas, desde a antiguidade clássica à modernidade – traça relações entre o próprio fazer artístico, observações acerca da imagem, história, literatura, filosofia, política, teologia, iconologia, entre outras áreas do conhecimento, como é comum nos escritos de Agamben. E, dada a sua extensão de, em média, apenas duas ou três páginas cada, eles se apresentam como lampejos; ideias pontuais, potencialmente muito maiores do que a forma concisa em que foram concebidos.

O título Studiolo remete ao gabinete particular onde os príncipes da Renascença se retiravam para meditar ou ler, rodeados pelas suas obras de arte favoritas. Agamben justifica, assim, a seleção das obras que comenta, as quais a princípio têm pouco ou nada em comum.

A respeito de Ninfa e pastor, pintura tardia de Ticiano, Agamben fala sobre a perda do mistério por meio da satisfação dos amantes e, assim, de certa inoperosidade da natureza humana, conceito já desenvolvido em outros livros seus. Ao dissertar sobre a janela de A noite, óleo sobre tela de Isabel Quintanilha, o autor trata dos limiares entre a realidade e a representação. Ao lermos seus escritos sobre o afresco pompeiano Aquiles renuncia a Briseida, aprendemos sobre certa condição do olhar. No comentário sobre Las hilanderas, de Velázquez, é colocada em questão uma possível ambiguidade entre o divino e o profano. Ao se debruçar sobre uma estatueta de traços femininos esculpida sete mil anos atrás, Agamben fala sobre a importância de entendermos o conceito de origem não como um ponto distante no passado, mas como a única via de acesso ao presente.

“A tarefa do pensamento”, escreve ele, “é arrancar os fenômenos da sua situação cronológica para restituí-los a essa dimensão de insurgência”. De modo que assim se sustente a inquietação causada pela distância temporal, ou seja, sem apaziguá-la por meio de uma consciência histórica que produz distanciamento confortável e se fazendo incapaz de enxergar a atualidade das obras do passado.

O pensamento, para Agamben, não pode ser apartado da forma. Ele jamais deixa de ser uma experiência de e com a linguagem. Por isso seu interesse na poesia e nas artes visuais. Por isso os comentários articulados com tamanho apuro. Se Studiolo não consta nas listas das obras fundamentais Giorgio Agamben, nem por isso deixa de ser uma leitura relevante para quem busca conhecer seus textos de teor estético e, claro, exercitar outras formas de olhar para a arte.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

FRATURAS NO COMUM

Saiba mais sobre o livro no site da editora Penalux

Havia Pedro no meio do caminho de Zé Ser, a cobra que veio do Paraíso prosear e versejar e tirar as nossas coisas do lugar. Criatura que desde sempre circula por aí abocanhando o próprio rabo, “que percorre estas bandas em busca de antídoto para monotonia”, nas palavras da própria, ou seja, solução para o tom único, a voz solitária, a ideia fixa. E entre Pedro e a cobra Zé Ser, o que se destaca é, justamente, o “entre”; melhor dizendo, os interstícios que marcam este pequeno livro de Fernando Sousa Andrade. Os intervalos, as pausas, as rupturas, as intermitências, os cortes, os vãos, os hiatos entre a música e o pensamento crítico, entre o verso e a prosa, entre melodias e cenas narradas como lapsos cantados de uma existência meio humana e meio animal. 

Esse espaço intermediário é explorado pelo autor com um método capaz de interromper o estabelecido. E o que lemos são, muitas vezes, questões de sujeitos perdidos no universo da linguagem; a linguagem e os sujeitos desconstruídos com esmero, como se Fernando garimpasse palavras nos escombros recém-criados e lapidasse novas possibilidades de sentido, buscando feitos, efeitos e defeitos reversos; as “linhas soltas e fluídas” que atribui aos músicos e filósofos, suas inspirações poéticas. “Toda palavra é só uma ciranda”, diz um dos versos, jogando com o leitor. 

Há sem dúvida esses atravessamentos todos em seus Interstícios (Penalux, 2021). São caminhadas poéticas ao ritmo de provas ou trovas. Indeterminações. Cadência de palavras contra certa decadência dos significados objetivos, alguns inesperados, algumas suspensões da lógica que, paradoxalmente, são criadas com analogias precisas, sonoridades e um inegável interesse filosófico. Mas o livro não é uma aplicação de conceitos nem uma suposta composição musical; é mesmo uma experiência literária que se articula entre a palavra e a vida, entre a linguagem dos seres e o silêncio da página branca, em intervalos preciosos que não cessam de acontecer – “eternos interstícios”, diz um dos textos ali reunidos. Fraturas no comum que o abrem para outros espaço-tempos poéticos.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

O QUE É A SUA OBRA DE ARTE?


Onde e como foi feita? Quanto tempo levou? Por que foram usados esses materiais, por que a técnica? A quem ela se destina? Por onde circula, onde está exposta? Do que ela trata; quais questões a mobilizam e quais ela agencia? Dialoga com alguém, apresenta referências específicas? Como ela se enquadra na sua trajetória artística? Já se falou algo a respeito disso tudo? 

No livro O que é um artista?, a escritora e socióloga Sarah Thornton entrevista “33 artistas em 3 atos”, conforme explica o título original em inglês, se traduzido ao pé da letra. No geral, são pessoas internacionalmente famosas e muito valorizadas pelo mercado, com vendas na casa dos milhões de dólares, alguns deles batendo centenas de milhões.

Evidente que se trata de um mundo bastante particular, que o livro faz parecer ainda mais restrito, como se existissem apenas aqueles artistas e que eles estivessem em todo lugar. Seja América, Europa ou Ásia, sejam as galerias de Manhattan, a Bienal de Veneza ou leilões em Dubai, Sarah encontra sempre os mesmos nomes, que encerram o escopo de sua pesquisa. E lá está ela, buscando definir a “persona” de cada artista, ou seja, a imagem e o discurso que o acompanham e que antecipam significados de seus trabalhos.

Sarah se interessa, especialmente, por isso que a celebridade artística tem de personalidade pública: um construto em larga medida ficcional e poderoso. De acordo com sua tese, “artistas não fazem apenas arte. Artistas criam e preservam mitos que tornam suas obras influentes”.

Um tanto generalista, sem dúvida. Inclusive, sabemos que uma parcela ínfima de artistas se sustenta apenas com a venda das próprias obras. Também no mundo da arte a desigualdade econômica é brutal. É preciso levar isso em consideração para ler os relatos do livro sem se iludir.

Sarah fez suas entrevistas em cafés, palestras, galerias, museus e nos estúdios ou residências dos seus interlocutores, entre outros locais. Seja em grandes eventos ou em situações intimistas, chama a atenção a maneira articulada como eles falam sobre a própria obra. Um discurso na maioria das vezes bem afinado, que se incorpora aos trabalhos e compõe a tal persona do artista. Concordando ou não com essas narrativas, sua persuasão é fascinante. Na medida em que respondem àquelas perguntas com que iniciei este texto, fui me dando conta de como elas qualificam a obra e o seu autor. Inclusive discursos “óbvios como o de Jeff Koons”, que fazem Sarah se “sentir na presença de um ator interpretando o artista”.

Cerca de três anos atrás, tive a oportunidade de entrevistar a brasileira Adriana Varejão, que não consta no sumário de Sarah Thornton, embora pudesse constar. Sua generosidade rendeu uma conversa de duas horas, durante a qual divagamos juntos, buscando esmiuçar e significar seus trabalhos. Eu havia me preparado para a ocasião, lendo quase todos os catálogos e entrevistas com a artista disponíveis. Ainda assim, foi um desafio fazer a conversa descolar daquela narrativa já conhecida a seu respeito, que não apenas insinua uma identidade para Adriana como também estabelece um lugar de conforto. Isso porque sua obra se encontra um tanto apresentada, ao ponto em que o discurso ameaça a todo instante sobrepassá-la.

Tomo esse exemplo pessoal para tentar compreender o que acontece com a tese de Sarah Thorton – cujos relatos são, além de tudo, habilmente interrelacionados, como se afinal lêssemos uma só história feita de capítulos sequenciais. Ainda sobre a persona, a autora explica: “não é fácil defender esse tipo de autoridade, mas é essencial para um artista que deseja obter sucesso”.

O sucesso a que ela se refere está diretamente associado à aceitação do mercado, todavia não se restringe àqueles poucos artistas milionários. Ao que me parece, saber falar sobre a própria obra é importante para todo o escalão, no sentido de que facilita seu conhecimento, aceitação e circulação. Entre outros benefícios.

A verdade é que esse quesito me pegou em cheio. Não produzo arte visual, mas literatura, e a ideia serve para ambas, assim como para o cinema, o teatro, a música etc. Fato é: ainda sinto uma dificuldade considerável de falar sobre meus trabalhos, articular as questões que me instigam, ajudar o público a se localizar. Estaria aí uma fraqueza? Afinal, se eu não consigo falar claramente sobre meus livros, como esperar que os leitores falem?

Ai Weiwei trata de liberdade de expressão; Damien Hirst, da linguagem do dinheiro; Andrea Fraser, das instituições artísticas; e assim por diante. Francis Alÿs, Cindy Sherman, Marina Abramovic, Gabriel Orozco e Beatriz Milhazes, entre os demais citados por Sarah Thornton, têm uma habilidade impressionante de colocar suas produções em palavras.

Ainda que essas narrativas tenham sido desenvolvidas com ajuda de diversos colaboradores, não podemos negar que existe aí também um exercício importante para o próprio artista: aprender a apresentar seus motivos, seus caminhos, sua intuição e sensibilidade; tudo isso em que acredita e que persegue esteticamente pela via da criação. Colocar em palavras formas de expressão por vezes indizíveis, que talvez habitem outro lugar que não o da razão e falem outra língua. Gerar empatia e abrir possibilidades de diálogo. 

Com um detalhe fundamental: falar da obra de modo a não esclarecer as questões nela implicadas, o que extinguiria toda a sua vitalidade, mas sim pretendendo enunciá-las. Ou seja, de modo que esse discurso possa compor a obra sem determiná-la. Um desafio do qual dificilmente se escapa, ao menos segundo a perspectiva de Sarah Thornton. De minha parte, adoraria saber o que pensa você, que chegou até este ponto dito final – e que por sorte nunca é.

domingo, 29 de março de 2020

VER APESAR DE TUDO

Já li uma porção de coisas sobre o holocausto judeu na 2ª Guerra Mundial, ou Shoah, em hebraico. Não porque sou aficionado pelo assunto, mas porque qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade e interesse histórico naturalmente se depara com livros, filmes, notícias, obras de arte, exposições, que de alguma maneira mantêm vivo aquele acontecimento. Há pouco li Cascas, misto de relato poético e ensaio produzido pelo filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman após sua visita aos campos de Birkenau, hoje parte do museu de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, onde colheu fotografias, impressões – de início intuitivas – e cascas de bétulas. Essas árvores são as poucas testemunhas remanescentes do genocídio perpetrado pelos nazistas naquele empreendimento sociopolítico que perseguiu judeus, entre diversos outros povos, culturas e ideologias menos falados e, assim, menos conhecidos hoje.

Fotografia feita por um avião de reconhecimento da Força Aérea Britânica em 23 de agosto de 1944, que veio a público apenas em 2004. A fumaça provém de um dos crematórios. Na época, os Aliados não compreenderam as instalações de Auschwitz-Birkenau porque eram inimagináveis, apesar das imagens.

Didi-Huberman comenta uma história já bastante escrita e bem estruturada, que justamente por isso vem até nós sem que estejamos procurando por ela. O que ele faz no livro, porém, é colocar em questão os modos como essa memória vai se transformando em história, em vez de apenas a reiterar tal como se costuma contá-la. Em especial ali, no museu erigido sobre o antigo campo de extermínio, onde o ser humano foi capaz de matar vinte e quatro mil dos seus semelhantes num único dia de 1944 e, algumas décadas depois, abrir uma loja de lembrancinhas especializada no tema.

O autor fala dessa cultura capaz de realizar ambas as coisas. “A questão toda está em saber de que gênero de cultura esse lugar de barbárie tornou-se o espaço público exemplar”, diz. Sua observação parte das três cascas de árvore colhidas na ocasião da visita – “Birkenau” significa “campo de bétulas” –, que até a Idade Média eram usadas para registrar textos e desenhos. Para reescrever a história, por exemplo, o museu substituiu os velhos arames farpados da época por novos, que de artefatos de barbárie passaram a se apresentar como produtos culturais. Didi-Huberman observa transformações similares no “paredão das execuções”, restaurado feito um simulacro do original, e nos galpões 13 a 21, que abrigavam prisioneiros, agora “pavilhões expositivos”, cada um dedicado a uma nacionalidade vitimada.

Apaga-se assim uma memória para fazer dela história, a qual é fundamentalmente uma criação humana. Nas palavras do autor: “todos os centros culturais – bibliotecas, salas de cinema, museus – podem construir uma memória de Auschwitz. Mas o que dizem quando Auschwitz deve ser esquecido em seu próprio lugar, para constituir-se como um lugar fictício destinado a lembrar Auschwitz?”

Quando o fim da guerra era certo, os nazistas dedicaram todos os esforços à dita “solução final”, que pretendia exterminar o maior número possível de judeus. Com a impossibilidade de se fabricar suficiente Zyklon B, pesticida usado nas câmaras de gás para as execuções em massa, as vítimas eram atiradas ainda vivas nos fornos crematórios. Ler sobre isso me provoca uma sensação de abismo, um medo profundo porque real e possível, como um pesadelo inimaginável que se materializa. Volto à minha realidade deslocado, sem jamais poder recuperar o prumo ou conseguir olhar as pessoas com os olhos de antes.

“Isto é inimaginável, logo devo imaginá-lo apesar de tudo”, afirma Didi-Huberman num ato de resistência. Pois o “impasse da imaginação foi uma das grandes forças estratégicas – via mentiras e brutalidades – do sistema de extermínio nazista”. Com a aproximação do exército soviético, em 22 de janeiro de 1945 os administradores do campo dinamitaram os fornos para apagar as evidências do inferno, mostrando que sabiam da gravidade do que fizeram.

Daí o mérito desse novo ensaio sobre o holocausto que Didi-Huberman se propôs escrever. Como ele diz, “o fogo da história passou. Partiu como a fumaça dos crematórios, soterrado junto com as cinzas dos mortos. Isso significa que não há nada a imaginar porque não há nada – ou muito pouco – a ver? Certamente não. Olhar as coisas de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido”. Pois é a partir dessa suposta invisibilidade que ele vai revendo e problematizando o papel dos museus, das curadorias, das imagens e livros; das maneiras, enfim, como produzimos discursos na história e, no limite, a subjetividade do presente. Porque “a memória não requer apenas nossa capacidade de fornecer lembranças circunstanciadas”. Escavar esses apagamentos do passado é uma dívida inegociável que herdamos.

De minha parte, penso em como aquela estratégia nazista de impasse da imaginação via mentiras e brutalidade persiste em nosso dia a dia, nas grandes e nas pequenas mídias, nas redes sociais, na publicidade, nos discursos oficiais, em moralismos, nos gestos a princípio inocentes feitos em nome de um suposto bem. Penso nas histórias outras que ainda não conseguiram se estruturar como a da Shoah, ao ponto de permearem o imaginário coletivo com tamanha força, e que, ainda assim, lutam bravamente por visibilidade. O holocausto negro, o indígena, o feminino, o dos perseguidos políticos, o dos miseráveis, cujos escombros estão postos diante dos nossos olhos, convocando-nos a escavá-los, e muitas vezes nos recusamos a ver, apesar de todos os que ali sucumbem sem a dignidade que merecem na morte e, claro, na vida.

segunda-feira, 2 de março de 2020

“TESTEMUNHO OCULAR” REFLETE OS ESTÍMULOS DAS IMAGENS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

A resenha abaixo foi publicada originalmente pelo escritor Fernando Sousa Andrade no portal Literatura & Fechadura. A primeira edição do Testemunho Ocular se esgotou na editora, mas ainda restam os últimos exemplares comigo. Se tiver interesse, mande e-mail para edualmeida@artefazparte.com e enviarei um para você com o maior prazer.


O eu e o objeto que lhe devolve o olhar. O objeto sorri, já que foi nutrição do olhar do outro. Não vamos aqui discursar sobre o efeito do sujeito. Pois aquele que olha (a sujeição do olhar) também pode virar uma imagem fremida dentro da retina de alguém.

Trocar efeitos de visão, ambos serem matéria concentrada do olho-entorno. Mas aqui situamos um narrador, aquele que conta uma ação sobre algo, e sua imagem toda serrilhada de sinapses, sensações que parecem que dão até arrepios em quem emite.

O que acontece quando procuramos o que não achamos? Não é somente a fuga, a falta de respostas. Um narrador precisa decifrar suas imagens, elas precisam ter receptores que encaixem na sua rede de quebra-cabeças. O que procura? Mas o objeto que procura também é seu desejo, que recebe estímulos de trocentas imagens por raios afora.

Diríamos que há uma poluição de imagens sem seu devido reconhecimento? Estas incitações, diríamos filosóficas, encontrei no livro Testemunho ocular, do escritor Eduardo A. A. Almeida, editora Lamparina Luminosa. São textos cujo arcabouço teórico investigam relações de causa e efeito das sondagens pelo que têm dentro de ações muitas vezes engendradas por enganos, cuja refração enganosa da imagem nos ofusca tal entendimento.

Se a paranoia é um delírio de uma imagem fabricada por uma fuga do real, inventamos narrativas para indexar o real de pura fantasia, assim como o medo de um urubu no conto Rapinagem, pode ter algum trauma oculto sob a ofensa da sua pulsão de morte. É como uma corrida atrás de algo como o pote de arco-íris atrás da montanha. E se este ideário fosse apenas um efeito de contraluz do que tem de estranho, oculto familiar, pela abordagem, aquele mesmo do caminho trilhado pelos arquétipos narrativos, um desejo, às vezes, é apenas seu medo camuflado.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A MALDADE É UMA ESPÉCIE DE INCAPACIDADE

Soube que o propósito da peça tinha se realizado quando as luzes se acenderam e vi três amigos abraçados, de pé, no meio da plateia. Visivelmente emocionado, um deles chorava. Também sensibilizado pela experiência, eu me dirigia à saída, acompanhado de minha esposa. Logo encontramos duas colegas, que de imediato comentaram: parecia feito para mim, tem uma proximidade muito pessoal. Era isso, fazer com que a plateia se deixasse afetar pela história de outros, desconhecidos, que responderam a um anúncio e enviaram relatos de suas experiências pessoais aos dramaturgos para que se transformassem em teatro. Desde histórias graves às mais singelas, pequenas, por vezes ordinárias e ainda assim tocantes, que remontam à singularidade de pessoas também diversas.


Pensando melhor, o propósito da peça Eu de você já tinha se realizado antes, na cena em que a personagem de Denise Fraga desaba no chão, sobrecarregada pelas neuroses nossas de cada dia. Uma mensagem de WhatsApp fora projetada no fundo do palco, solicitando ajuda. Uma, duas, três vezes. Até que uma jovem na plateia se levantou para socorrê-la. Acaso ninguém se dispusesse a isso, a peça teria que acabar ali, e revelaria que, afinal, a atriz estava errada. Pouco antes ela manifestara sua crença na potência transformadora do teatro. A espectadora que subiu no palco provou que, de fato, houve uma transformação: a ficção se fez realidade.

Esse processo começou quando a maioria sequer notara que já estava participando da encenação. Denise, em meio ao público, cumprimentava, tirava fotos, trocava sorrisos. Ela contou uma banalidade qualquer sobre um espetáculo anterior, intitulado A alma boa de Setsuan, quando iniciou esse ritual de receber os convidados pessoalmente. Foi nesse momento que conquistou nossa atenção, simpatia, disposição para ouvir narrativas alheias que, por um triz, não foram as nossas próprias.

E por que as ouvir? “Porque não há melhor espelho do que o outro. Porque sabemos quem somos a partir do que reverberamos. Porque é urgente ver o outro, olhar pelo olhar do outro, ser eu de você. O quanto nos ampliaríamos se conseguíssemos ser eu de você e você de mim, deixando-nos ambos atravessar por nossas experiências?”, pergunta a própria Denise Fraga no programa da peça, cuja idealização ela assina com José Maria e Luiz Villaça.

Entre os recursos que utiliza está o envolvimento direto com os presentes, que são convocados a contracenar, ler cartas, responder perguntas. Fato e invenção se diluem, assim como o discernimento entre o eu e eles.

Quem são eles? Ricos, velhos, brancos, pobres, negros, jovens. Outros. Cujos relatos são costurados com imagens, canções, filmes, memórias coletivas. E que a todo instante sussurram: o que nos difere? O que nos aproxima?


O espetáculo aposta em nossa disponibilidade para nos deixar sensibilizar e sermos, ainda que por instantes, um pouco como o outro. Viver uma cena da sua vida. Conhecer o mundo por seu ponto de vista.

Em um determinado momento, uma personagem dispara: a maldade é uma espécie de incapacidade. Incapacidade de quê? De nos permitirmos sofrer a dor do outro. De sorrir a felicidade alheia. Experimentar a sua maneira de ser. A incapacidade de estarmos abertos às inúmeras formas do viver resulta nessa maldade tão presente, que vai contaminando aos poucos as imagens, os discursos, os desejos. E que arruína toda capacidade de construirmos um comum – ou uma comunidade, se preferir.

Vivemos tempos turvos que nos convidam diariamente ao isolamento, ao medo do convívio e ao individualismo. Uma espécie de epidemia melancólica que nos tem aprisionado atrás de nossas telas geniais, que nos conectam e distanciam em alternância estroboscópica num abismo de encantamento e retórica. Um tempo que tem confundido e abalado a nossa esperança. Tenho a impressão de que cada dia nos distanciamos mais da potência que poderíamos ser se estivéssemos realmente conectados e acredito que o Teatro ainda é capaz de promover este milagre. Todos nós aqui, nesta sala, celulares desligados, escutando o silêncio, a respiração, a tosse, a risada do outro”, escreve a atriz.

A peça usa o bom humor para abordar temas sérios como política, sociedade, comportamento, abuso, discriminação, sonho, culpa – um artifício para ampliar nossa consciência e mobilizar a sensibilidade. Com singeleza e afeto, transforma o teatro numa praça pública em que as vidas se desenrolam, fazendo de nós mesmos seus atores e testemunhas. Produz assim aquele triz, momento do quase, em que somos arrebatados por uma perspectiva diferente, capaz de nos fazer vislumbrar o que poderíamos ser, caso não ficássemos reduzidos ao nosso euzinho particular.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

TODO SONHO É REAL

Eis que um dia o velho Benedito desperta de sonhos intranquilos sem estar transformado em nada: continua o mesmo velho pacato do dia anterior. Cada vez mais gagá, segundo a esposa, e só. Mas o sonho foi especial, como não acontecia há tempos, disto não restam dúvidas: alguém morreria naquela noite, na festa do padroeiro São Joaquim. O velho voltara a sonhar seus “sonhos de dom”.

“Ele nunca errou unzinho que fosse”, afirmam os vizinhos. Suas antigas previsões ajudaram muita gente naquele povoado do “bom sertão”, que poderia ser qualquer um e, de fato, é. Zé do Gás, pelo jeito, escapou de uma explosão. Não sei quem escapou do agiota. Só que desta vez não haveria escapatória: a morte era certa. Apenas a identidade do morto causava dúvidas, pois no sonho o velho não pôde ver direito.

É assim que Filipe Souza Leão estabelece o conflito do seu livro de estreia. A cidade inteira logo fica sabendo do ocorrido, levado de um canto a outro na garupa da moto do fofoqueiro Isaías, onde também anda amarrado um porco barrão, encomenda da festa que todos aguardam com a ansiedade febril de quem não conhece melhor oportunidade de divertimento. Haveria barracas de jogos e comidas, três quadrilhas juninas, a banda de Severino da Zabumba e até um grupo de pífano vindo de Caruaru. A previsão da morte chegou bem a tempo de se somar às expectativas.

Resenha publicada originalmente na Revista Tinteiro n. 2 (jun. 2019, editora da UFPR).

Os nomes das personagens chamam atenção. Benedito, “bem dito” ou “bem falado”, é quem recebe a visão; Isaías, como o profeta, é quem a espalha aos quatro ventos. O padre Eugênio, que se recusa a cancelar os festejos porque com eles deseja superar a popularidade de seu antecessor, tem muito de eu e pouco de gênio, embora não pareça notar. Não deixará sua trama se abalar por um suposto presságio. Aliás, não bastasse o finado padre Guido ter confirmado os sonhos de Benedito como dom divino, desde a chegada de seu substituto o velho deixara de fazer previsões. Uma coincidência infeliz, como inúmeras outras que afligem a comunidade.

Apesar do diz-que-me-diz, o livro é curto, como se a porção maior da história fosse contada pelos não ditos, pelos silêncios, pelos olhares desconfiados dos personagens. O autor cita como referência o romance Bonsai, do chileno Alejandro Zambra, podado ao ponto de apresentar nada mais que o fundamental. Ainda assim vemos acontecer diversas quase mortes: briga de peixeira, pau de sebo, busca-pé, desmaio de susto ou curtido no álcool. Só não houve a apresentação dos bacamarteiros, cujo cancelamento foi anunciado de improviso no calor da hora com o objetivo de evitar perigos maiores.

“A reclamação foi grande, porque Bacamarte era e talvez ainda seja um dos poucos talentos daquele fim de mundo”. É com essa ironia, humor sem decoro e sotaque marcado que Filipe conta um causo digno de cordel, como tantos outros que ouvia, ainda criança, em sua terrinha natal. As gírias também oferecem uma musicalidade típica, e junto da paisagem nos põem a imaginar uma cidadezinha de ricas fabulações perdida na aridez do sertão.

A alegoria prossegue. As diferenças entre aquela realidade e qualquer outra do Brasil atual também. Existe em ambas uma tensão feita fumaça no ar, um gosto pela tragédia, uma tendência a resolver divergências no grito ou, pior, a criar uma condição caótica em que elas jamais se resolvem.

O livro se divide em quatro capítulos: manhã, tarde, noite e manhã de novo, ilustrados por xilogravuras de Jefferson Campos, que oferecem outra camada de visualidade ao texto. Eles são percorridos por uma espécie de desejo velado para que a morte anunciada de fato se realize, e que seja a morte de um outro, claro.

Quando a fogueira se amansa e o sol desperta da ressaca, o povo arma uma revolta. Uma romaria leva meia cidade à casa do velho Benedito, onde se espera tirar satisfação pela promessa não cumprida. A morte antecipada se revela, quem diria, sonho coletivo. E o fim, por ironia, é quase onírico, não fosse a dura realidade a se impor.

Filipe conta a historieta de um lugar distante no espaço e no tempo, como se lêssemos sobre as nossas próprias raízes. Acontece que esse passado persiste, resiste e reincide. De alguma maneira, apesar dos personagens, cenários e acontecimentos provincianos, o livro fala sobre o Brasil “do futuro” que os brasileiros pretendem ser. Fala de um país que não se considera gagá, mas visionário, tal como o seu Benedito, ainda que muitas vezes se “esqueça de limpar o próprio rabo” após exercer as atividades cotidianas.

O dia em que o velho voltou a sonhar, de Filipe Souza Leão (Lamparina Luminosa, 2018. Xilogravuras de Jefferson Campos).