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sexta-feira, 3 de maio de 2013

"A ilusão não se opõe à realidade, ela é uma outra mais sutil, que envolve a primeira com o signo do seu desaparecimento."
Jean Baudrillard

quinta-feira, 2 de maio de 2013

É QUANDO/ONDE AINDA

Algo cresce na fenda do concreto. Em meio à rigidez árida da certeza brota uma forma de resistência. Forma frágil. Ela discorda do entorno, sente que não se enquadra. Cresce assim, sem saber por quê; sem objetivos definidos, o sentido da sua existência surgirá no/do processo, ao longo dos embates, tanto das boas experiências quanto das ruins. Sempre uma nova hipótese brota entre as milhares que abandonamos pelo caminho.

O que cresce ali, afinal? Não se sabe dizer, não há nada igual ao redor, apenas semelhanças e diferenças. Não há sinônimo. Comparação indefinida/inexata. Invenção. Não é exatamente nada, está deslocado do eixo pressuposto. Mas ainda assim é alguma coisa. Um ser. Não se pode negá-lo, não se consegue ignorá-lo. Ele incomoda/provoca. Mesmo quieto, inquieta. Estranhamente familiar. Por quê?


Uma das sensações mais angustiantes de se colocar entre territórios emparedados, estruturas estabelecidas e rótulos é a falta de chão. Viver na fenda, na heterotopia, quase sem apoio, sempre ameaçado pela altura do penhasco e a gravidade da queda. Estar sem pertencer. Não ser um exímio isso ou aquilo, o especialista mais especializado, a precisão mais precisa, a referência. Beber do múltiplo o seu desejo de completude. Ser um pouco de cada coisa e um monte de nada. Oscilar entre a ilusão e a desilusão por tudo aquilo que poderia ter sido. Assumir a indefinição como possibilidade de vida. O inacabamento. O caminho sem fim. O universo.

Parece fácil. Vão dizer que tudo pode, que é covardia, que o difícil é conviver com as restrições. Mas no lugar da cobrança exterior surge uma enorme exigência própria. É de fato mais difícil, convoca um olhar desautomatizado, atenção redobrada. Procurar a sombra onde a maioria se encanta com a luz, onde o excesso cega e ludibria. Caminhar por um piso que não se reconhece, sempre um novo passo no desconhecido. Deixar-se afetar e criar a partir das afetações. É bem mais sincero assim.


Transitar entre mapas. Transpassá-los. Saltitar aqui e ali, habitar e mudar, procurar sem saber o quê. Manter o compromisso com o projeto, seja ele nítido ou não; permitir que se transforme ao seu bel-prazer. É o que resta. Perceber as fronteiras como ligações, locais de troca e passagem; interlocuções ao invés de limites/barreiras. Vizinhança. Estar no meio é, na realidade, estar conectado a tudo/todos. Almejar a liberdade, buscá-la, mesmo que ela desapareça ao toque mais sutil, mesmo que evapore quando se tenta agarrá-la.

É diferente de ficar em cima do muro. Estar no “entre” é um posicionamento político, o limiar entre a vida e a arte. Não se encaixar, não se enquadrar, não se encaixotar, não se enquadradar. Existir num lugar inexistente. Onde ainda. Posicionar-se na fenda entre os partidos é diferente de não tomar qualquer partido. Livre de dualismos, dogmas, maniqueísmos. Livre da verdade/mentira, certeza/fé, certo/errado, é/não é, realidade/ficção, consciência/inconsciência, corpo/mente, permissão/proibição, meu/seu, individual/público, bem/mal...

Viver o outro como si mesmo. Superar os condicionamentos a que estamos acostumados, recusar a ideia de “normal”, como se o normal existisse absolutamente. Posicionar-se num outro plano é, ainda assim, compreender que existe relação; o pertencimento surge da exclusão, o reconhecimento se dá pela diferença. Tudo condiz, convive, coincide. A questão é aceitar, acolher, positivar.

Reconhecer a ambiguidade. Experimentá-la. Vê-la acontecer por aí. Perceber que tudo tem de assim e assado, um pouco de cada; valorizar isso, aprender a lidar com as emoções sem precisar traduzi-las verbalmente. Nem sempre a palavra dá conta da emoção de lidar.


Viver a multiplicidade dos sentidos, os significados que atravessam as coisas e as resignificam. As transformações constantes, sempre necessárias. As diferentes camadas de significado implicadas na mesma coisa. A poética da obra aberta, a vida como ser vivo, cada dia com um humor. Assumir a imprecisão. Do tempo, das narrativas, dos eixos, das categorias, dos métodos. O esgotamento impossível. Retirar tudo das gavetas e mandar pelos ares. Jogar, brincar. Demolir a pretensão de verdade e não erigir memorial no lugar, não eleger substituto. Ver a roda girar como fizeram Marcel Duchamp e John Lennon, enquanto os loucos tentam provar sua razão, justificar a existência com importâncias. Os loucos com quem convivemos cotidianamente; deixá-los para lá. Inventar com as sombras projetadas nas paredes, divertir-se com a maleabilidade delas.

Quando o sabor da carne ainda não foi estragado pela salmoura do dia a dia; é quando ainda se choca, é quando ainda se revolta, é quando ainda – poetizou Paulo Leminski. É onde ainda. Sim. Sonhar acordado. Viver a fantasia da realidade; o real de estrutura ficcional. Manifestar-se. Narrar a própria história nas entrelinhas. Mas não é exatamente disso que se trata.

Obs.: Este texto jamais seria escrito sem as conversas com a amiga Renata Monteiro Buelau e sem o grupo de pesquisa que se reúne, sob orientação da profa. Dra. Eliane Dias de Castro, no Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional (FM/USP).

terça-feira, 23 de abril de 2013

TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA

Impressões anotadas logo depois de assistir à montagem de Antunes Filho, aqui reproduzidas:


Aquele comportamento estranho que é tão familiar. Os valores morais seguidos à risca, cegamente. Os relacionamentos postos de ponta-cabeça. Ação e relação. A esquisitice de ser. A emoção impregnada de maniqueísmos. Poder e não poder, permissão ou permissividade. Poder, poder! Poder ficar de joelhos. Deixa, vai?Interesses reunidos em prol de um único sujeito. Surpreende? Que nada. A baixeza, a baixaria, a bicharada. A raça animal. A dor do outro transformada em prazer pessoal e vice-versa. A falsidade ideológica e moral. O moralismo. A falta. O tango, o Édipo, a fratura exposta, a verdade posta à flor da pele vira drama, música, espetáculo. O castigo. Nelson Rodrigues.



"Sebastião Milaré, pesquisador teatral, apresenta ensaio de Toda nudez será castigada, dirigido por Antunes Filho, em homenagem a Nelson Rodrigues, no MIRADA – FESTIVAL IBERO-AMERICANO DE ARTES CÊNICAS DE SANTOS, durante o lançamento do Festival no Sesc Santos, em 15 de agosto de 2012." [fonte: SESC]

terça-feira, 9 de abril de 2013

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Clique na imagem para ampliar.
Olha só que surpresa boa! O Anuário Dasartes recém-publicado tem uma página sobre o artista Felipe Góes e cita um trecho do texto que escrevi para sua exposição em Porto Alegre. Já nas bancas, rs!

Site oficial: Dasartes 2013

terça-feira, 2 de abril de 2013

AOS VINTE E TANTOS

Li o poema abaixo e o adorei de imediato. Li e reli uma dezena de vezes então. Só depois percebi que renderia um ótimo pensamento para este meu dia de aniversário.

Penso nos milhares de sonhos que gostaria de já ter realizado com 29 anos. Penso que o tempo é curto demais para tanto.

Penso também que não quero envelhecer, não quero ser envelhecido, não quero pessoas que me envelheçam. Quero, ao contrário, somente a companhia de quem me faz crescer; todos os outros estão dispensados, podem voltar para a salmoura do dia a dia, o vazio do egoísmo, o subterrâneo da ética e da fé.

Penso nos milhares de sonhos acumulados, nos lugares a conhecer, nas obras a construir, nas descobertas a fazer. Penso nos 29 anos, tão fugidios! Penso demais, talvez.

Tenho meu próprio tempo. O tempo de uma vida pela frente.

Quando?

Agora.

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os dentes afiados da vida
preferem a carne
na mais tenra infância
quando
as mordidas doem mais
e deixam cicatrizes indeléveis
quando
o sabor da carne
ainda não foi estragado
pela salmoura do dia a dia

é quando
ainda se chora
é quando
ainda se revolta
é quando
ainda

Paulo Leminski, em Quarenta clics em Curitiba
(1976, aos 32 anos de idade)

segunda-feira, 1 de abril de 2013

"Sei que isso soa estranho. Mas tais ideias me ocupam cada vez mais, e preciso de cada vez mais esforço para voltar ao cotidiano."

Milva, quando ela ainda era bem jovem
(conto do alemão Ingo Schulze publicado na coletânea Celular).

sábado, 30 de março de 2013

O EU E O OUTRO

Comecei a ler mais um livro sobre o artista suíço Alberto Giacometti. Já é o quinto ou sexto, nem sei dizer. Sua obra inspira, em especial porque é também sua própria vida, seus amigos e familiares, o ateliê e as questões de forma e expressão que ele remoeu dia após dia, até seu falecimento em 1966. Identifico-me com Giacometti. Não porque somos parecidos, mas justamente pela diferença que existe entre nós. Eu admiro sua obsessão, a profundidade de suas investigações estéticas e seu desprendimento em relação à obra pronta. Eu queria ser um pouco assim, transformar minha leviandade em projeto, concretizar as flutuações, abrir mão dos compromissos e me enfiar de cabeça na poética para nunca mais ser arrancado de lá. Claro que não poderei jamais fazer isso. Não sou Alberto Giacometti, não vivo como ele vivia, não penso como ele pensava nem nada disso. Tampouco tenho um projeto tão bem estruturado, tão consistente. O que me agrada na comparação é simplesmente descobrir o que não sou naquilo que ele foi, e do mesmo modo descobrir a mim mesmo nas lacunas que Giacometti deixou por preencher.

O velho debate a respeito do que a arte é leva-nos a um número infinito de respostas, nenhuma delas conclusiva. Podemos elencar uma série de coisas que não parecem arte para, quem sabe, encontrar a resposta no que restará. Duvido que funcione, seria fácil demais, porém ainda assim é uma estratégia de ação. Arte, para mim, é tudo o que chamamos de arte e tudo o que os homens um dia chamaram de arte, entre outras possibilidades. A exclusão é um risco, enquanto a inclusão não ameaça; basta deixar a poética livre para se manifestar. Vejo arte em todas as pessoas, em todas as coisas e em todos os lugares, seja na forma de obra ou na de potência. Mas existe um porém a esse respeito que soa plausível: a obra requer o outro para ser arte. Quer dizer, não existe arte sem que haja alguém para vê-la, ouvi-la, lê-la etc. Ela não existe para si; esse é o limite da sua dita autonomia. Pintura não exibida, música não tocada, livro não publicado... longe das pessoas, as obras não conseguem se manifestar e permanecem inertes em si mesmas, na materialidade banal do mundo. 

O que chama atenção nas criações de Giacometti é esse cruzamento de olhares. Sua obsessão por retratar uma pessoa da maneira como a via produziu séries de obras feitas e refeitas umas sobre as outras, criadas, destruídas e recriadas novamente. Os relatos do crítico James Lord reunidos no livro Um retrato de Giacometti nos apresentam esse método angustiante, é uma leitura que recomendo a todos que se interessam por processo criativo e trabalho de arte. O livro fala de um retrato encomendado ao artista, cuja produção não demoraria mais do que uma tarde, mas que se estendeu ao longo de meses e meses, até esgotar a paciência do retratado. Porque, na medida em que o pintor o conhecia melhor, mudava a imagem que fazia dele, mudava a percepção do sujeito, a qual se refletia na impressão pictórica. Giacometti queria pintar a verdade fundamental de seus modelos, um idealismo inalcançável tornado insuficiência e sofrimento. Terminava a sessão feliz com o resultado, a missão quase cumprida, bastariam uns poucos retoques. Só que na manhã seguinte tanto ele quanto o outro estavam diferentes, então a tela era apagada e recomeçada; de novo, de novo e de novo.

Nessas obras, os retratados olham para nós, que nos colocamos diante da tela. Nós devolvemos o olhar. Mas o que vemos, na verdade, é o olhar do artista sobre o assunto; sua expressão manifestada na expressividade daquelas figuras. Descobrimos, desse modo, o próprio Giacometti por meio das obras que deixou. Suas pinturas e esculturas são também retratos do próprio artista. Ele está contido nelas de maneira tão intensa que o termo "contido" não é justo – o artista se expande para além da superfície da obra. Vemos claramente suas questões estéticas, suas crises e suas vontades.

Percebo também a mim mesmo. Não no que Giacometti pintou, mas nos espaços em branco, no que não há de mim na obra, no que não está dado. Descubro minha identidade pela diferença, olhando o que não sou, imaginando como gostaria de ser. Converso com Giacometti por meio de suas criações; descubro a arte como um campo necessariamente intersubjetivo. O outro não é o meu limite, como se costuma dizer, mas a experiência que me faz existir como eu mesmo, consciente de mim. Um corpo reflexivo que olha e é olhado, que toca e é tocado. "Quando o outro reflete a minha imagem espelhada, é às vezes ali onde eu melhor me vejo", cita o psicanalista João A. Frayze-Pereira. E completa: "é na diferença sensível existente entre o eu e o outro que se afirma a identidade".

Leio mais uma vez sobre Alberto Giacometti. A obra é sempre aprendizado. Entre as linhas, nas fissuras abertas por sua vida e arte, descubro a mim mesmo, leio a história do meu próprio ser, que também se faz e refaz a cada dia pelo gesto poético de existir, de estar no mundo, de me colocar à disposição da alteridade. Descubro minha vocação no que falta ao mundo, e o mundo em tudo aquilo que falta a mim. É por conta disso que ele é tão grande, tão rico, tão entusiástico e misterioso.

sexta-feira, 29 de março de 2013


"Tudo o que eu conseguir fazer será nada mais que uma pálida imagem daquilo que vejo, e meu sucesso será sempre menor que meu fracasso ou talvez sempre igual ao fracasso. Não sei se trabalho para fazer alguma coisa ou para saber por que não consigo fazer o que quero." Alberto Giacometti

quinta-feira, 28 de março de 2013

É TUDO FRUTA PODRE

Cesto de frutas, cerca de 1595, de Caravaggio

É tudo fruta podre. São as coisa que dão pra gente comê. Só fruta podre, escura, colhida antes do tempo. Cheia de veneno, pra gente comê. Não tem gosto de nada. Tem gosto podre. Nasceu de onde isso? Foi a fruta podre que me deu isso aqui, ó. Na barriga, tá veno? Esse ponto verde, essa verruga. Foi a fruta podre. Vô fazê o quê? É o que tem, não tem mais nada, só isso. Na hora de comê, só tem isso, não tem mais nada. A gente vai comprá na xepa e tá caro, tá tudo imbutido no preço, imposto, safadeza dessa gente, essas coisa, tudo imbutido. Essa gente, é. Agora tem essa verruga verde na barriga. Eu, ela cresce, tá sabendo? Tô ligado, tô vendo, ela cresce sim. Tá maior todo dia, a verruga. Não tem o que fazer. Eu queria tirá, mas não tem o que fazer. O médico lá do posto disse pra esperá pra vê. Tô vendo, tô vendo, não tem mais o que fazê, tem que esperá. Eu queria tirá, não quero verruga verde não, não é de mim. Fica esse negócio aqui cresceno. Parece pequeno pra você, não faz essa cara não, você não sabe como é. Mas vai sabê, vai sabê. Você também só come fruta podre, tô ligado, tô sabeno. Paga caro, num paga? Paga sim, não tem opção, tamo tudo numa só, tudo junto. Eu e você. Puta que pariu. Não quero mais isso não, sabe, não quero não, fazê o quê? Todo dia, todo dia a mesma coisa. Cê acha que a gente quer? Acha que eu quero? FALA BOBAGEM NÃO! Não fala bobagem. Já basta as fruta podre, basta disso, não quero engoli mais merda pelo ouvido. E a verruga, que que eu faço? Quero tirar, não quero isso em mim não, quero rancá fora. Olha!, olha!, tá cresceno, viu? Cê viu? Voltei no posto de saúde, não sei se disse, o medico não tava não, ninguém sabia, o moço pediu lá pra esperá. Espera ou volta depois. Ai, moço, tira vai, tira daí. Tem que esperá, tem que esperá pra vê. Vê o quê? Tá podre, tá tudo podre, tô sabeno. Eu quero tirá, não quero mais isso não.

segunda-feira, 11 de março de 2013

ESTILO CRÍTICO

Quando um artista do porte de Ai Weiwei grava sua própria versão de Gangnam Style, convém suspeitar de que existe algo por trás desse aparente modismo. O chinês já foi agredido, preso e teve seu ateliê fechado pela polícia; hoje, permanece sob os olhares do governo e proibido de sair do país. Tanto que não pôde comparecer à abertura da maior retrospectiva de sua obra já realizada na América Latina, em cartaz no MIS São Paulo. Não é à toa que seu estilo Gangnam inclui uma particularidade à coreografia: algemas.

O vídeo em questão foi banido na China. Porém, como o próprio artista afirmou certa vez, “em algum momento, todos terão de entender que não é possível controlar a internet”. Para comprovar, você assiste a ele aqui:




terça-feira, 5 de março de 2013

O HOMEM DA CAVERNA


Eu me senti um tanto abandonado quando assisti ao documentário A caverna dos sonhos esquecidos, que o alemão Werner Herzog realizou com maestria num dos lugares mais incríveis do planeta. Descoberta no sul da França em 1994, a Caverna de Chauvet, como foi batizada, estava isolada há milhares de anos devido a um deslizamento de terra. Espaço de tempo amplo demais para ser compreendido por quem raramente vive mais de um século. Havia ali vestígios de homens e animais, antepassados nossos. São ossadas, pegadas, desenhos nas paredes; sonhos que ficaram esquecidos, dos quais praticamente nada sabemos. Quem foram aqueles homens? Por que fizeram os desenhos? Podemos apreender alguma coisa da caverna com o imaginário de hoje, tão diferente? Quais são os significados possíveis? Restam suspeitas, hipóteses, ficções – é com o que devemos nos contentar. Foi dessa lacuna que emergiu a sensação de abandono; da fissura na rocha e no tempo. Uma sensação de vazio, de solidão, de "falta de chão", como se diz, por causa da nossa origem desconhecida. Não sabemos de onde viemos nem para onde vamos; somos o "meio" de algo apenas imaginável.

"Para o ser humano, mais importante que viver é sentir-se real, mais importante que preservar a vida é dotar a existência de sentido", escreveu o médico pesquisador Benilton Bezerra Jr. Revi minha caderneta e deparei com uma série de citações, colhidas ao acaso, com essa temática "existencial". A Caverna de Chauvet ativou certa inquietação em mim. Levantei a antena e comecei a captar sua frequência na tentativa de pertencer a algo tão maior e misterioso que se deixa facilmente confortar nos abraços do sagrado.

Quem eram os homens que passaram por Chauvet há mais de 30 mil anos? E os animais, já extintos? Ursos, mamutes, bichos enormes feitos para habitar um território infinito.

Lembrei do título de uma das obras de Bruno Munari exibidas na última Bienal de São Paulo: Reconstrução teórica de um objeto imaginário. Não é assim a nossa história? Uma construção hipotética que se refaz a cada descoberta. "Porque tudo é movimento, tudo é duração e descontinuidades, sempre haverá algo a mais que se veja. E, insisto, esse ponto novo percebido só agora impactará toda a vida que foi (mas que se mantém na memória do corpo), a que está sendo e a que virá", escreveu Vanessa Carneiro Rodrigues no Jornal Rascunho. 

Herzog mostra as pegadas de um lobo junto das de um menino. E completa: jamais saberemos se a criança foi acuada pelo lobo, se eram amigos, se as pegadas foram deixadas com um dia ou com cinco mil anos de diferença. Todas são histórias possíveis e, a seu modo, existem. Discorrer sobre a verdade e a mentira não cabe; a caverna está além desse maniqueísmo.

"Tentando calcular a probabilidade de dúvida de uma certeza quase absoluta", brincou o escritor Felipe Borges Valério no Facebook. Um trabalho definidamente imprevisível. A ciência exata não basta. Um dos responsáveis pelas pesquisas em Chauvet conta a importância de mergulhar nas profundezes dos seus silêncios inquietos e depois se afastar. Mergulhar na memória que se solidificou a cada gota de água, calcificada na forma de colunas para sustentar um tempo antigo perdido no presente. Colunas que, em muitos casos, ainda estão na forma de devir. Deixar-se pertencer. Depois, afastar-se fisicamente, para a superfície; afastar-se também no tempo e na teoria. Buscar em outras culturas significados ocultos na experiência sensível recém-vivida, buscar pontos de vista menos reticentes, usar outra linguagem. Não para descobrir a verdade, mas justamente para não acreditar em afirmações rígidas, para não se render a elas. Ninguém saberá nada sincero a respeito da caverna se a observar com olhos acostumados com a luz do exterior.


O filósofo Maurice Merleau-Ponty propõe um tempo que não existe por si só, com autonomia, mas que se estabelece por relações: a experiência do tempo. "O passado não é passado nem o futuro é futuro. Eles só existem quando uma subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva".

Em 1994, a caverna se reabriu a relações. A despeito de todas as câmaras e corredores que contém, ali dentro só conseguimos nos aprofundar em nós mesmos. "Mas o que somos nós?", quer saber a psicanalista Melanie Klein. "Tudo de bom e de mau pelo que passamos desde os primeiros dias de vida; tudo o que recebemos do mundo externo e tudo o que sentimos no nosso mundo interno. Se fosse possível apagar algumas das nossas relações do passado, com todas as memórias a que estão associadas, todos os sentimentos que desprendem, como nos sentiríamos empobrecidos e vazios!"


O escritor Mia Couto propõe uma solução para tal angústia que se baseia em aceitação e criação: "Temos sempre que explicar quem somos, e é uma miragem, é sempre uma coisa equivocada. Nunca somos uma coisa, não temos uma identidade, temos várias, e elas vão mudando com o tempo, vão mudando com a idade, vão mudando com a relação que a gente tem. (...) Essa área do não saber, essa ignorância, é extremamente fértil, portanto convivamos bem com isso".

É natural sentir-se pequeno diante da grandiosidade de Chauvet. Mesmo assim, como mostra o deslizamento de terra que a isolou e a preservou até hoje, devemos ter consciência de que tudo tem seu peso e sua medida, e que mesmo um pequeno deslocamento é uma revolução.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

UM MINUTO E UMA VIDA. E MUITO MAIS

"Nos anos 1970, Marina Abramovic viveu uma intensa história de amor com Ulay. Durante 5 anos, viveram num furgão realizando todo tipo de performances. Quando sentiram que a relação já não valia aos dois, decidiram percorrer a Grande Muralha da China; cada um começou a caminhar de um lado para se encontrarem no meio, dar um último grande abraço um no outro, e nunca mais se ver.

Vinte e três anos depois, em 2010, quando Marina já era uma artista consagrada, o MoMA de Nova Iorque dedicou uma retrospectiva à sua obra. Nessa retrospectiva, Marina compartilhava um minuto de silêncio com cada estranho que sentasse à sua frente. Ulay chegou sem que ela soubesse, e foi assim."*


*O texto acima foi retirado após uma série de compartilhamentos, e desconheço o autor. Achei ótimo o conjunto que faz com o vídeo, por isso resolvi reproduzi-los aqui. Se alguém souber o nome, peço que avise para eu conceder os devidos créditos.

GAME OVER, MARTA SUPLICY

Parece que a ministra Marta Suplicy confunde cultura com boa vontade. Ou videogame com tranquilizante, porque "deixa a criança quieta". Ou parece que entretenimento e cultura não podem coincidir. Difícil saber. É mais provável que ela apenas tenha dito outra porção de bobagens, o que não surpreende.

O videogame chegou ao MoMA, em Nova York, onde está fomentado debates. Curiosamente, lá ele é um fenômeno cultural.

Eu diria que aprendi muito jogando, quando podia dedicar mais tempo a isso. Sinto saudade. Mas é lógico que minha experiência pessoal não conta. O que vale a pena notar é o fenômeno cultural promovido pelo videogame, que transformou comportamentos e até mesmo a maneira como os jovens lidam com informação, entretenimento, design, arte, história... Tem muita gente talentosa trabalhando com isso, produzindo não apenas "joguinhos", mas ficção de alto nível.

No Brasil, os games permanecem banidos do programa Vale Cultura, a não ser que alguém explique para nossa ministra o que eles têm de culturais – ou que haja "boa vontade" dos desenvolvedores, seja lá o que isso signifique.

O trecho do debate (abaixo) foi originalmente publicado aqui:

Francisco Tupy – “O que o ecossistema que trabalha com jogos digitais, pesquisadores, desenvolvedores, professores etc. pode esperar do Vale Cultura?”

Marta Suplicy – “No caso dos jogos digitais, o assunto ainda não foi aprofundado o suficiente, mas eu acho que eu seria contra. Eu não acho que jogos digitais sejam cultura […]. Mas a portaria é flexível. Na hora em que vocês conseguirem apresentar alguma coisa que seja considerada arte ou cultura, eu acho que pode ser revisto. No momento o que eu vejo é outro tipo de jogo. Encaminhem para o ministério as sugestões que vocês estão fazendo. Eu tenho certeza que talvez vocês consigam fazer alguma coisa cultural. Mas, por enquanto, o que nós temos acesso, não credencia o jogo como cultura. O que tem hoje na praça, que a gente conhece (eu posso também não conhecer tanto!) não é cultura; é entretenimento, pode desenvolver raciocínio, pode deixar a criança quieta, pode trazer lazer para o adulto, mas cultura não é! Boa vontade não existe, então, vocês vão ter que apresentar alguma coisa muito boa”.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

POR CUBA, COM CUBA, EM CUBA

Sempre achei incrível, desde que li Pedro Juan Gutiérrez, como os ditos "dissidentes" de Cuba não querem sair do país para jamais voltar. Pelo contrário, eles querem sair justamente para voltarem sempre a um país melhor, do jeito que sempre sonharam, do jeito que lutam tanto para realizar. Se viajam, é para trazer o mundo ao seu local de origem, para transformá-lo.

A blogueira Yoani Sanchéz finalmente obteve permissão de viajar para fora de Cuba, e chegou agora ao Brasil, onde dará palestras e entrevistas. Quero que ela seja muito bem-vinda, recebida como heroína, não como simples agitadora.

Eu acho uma pena que, em pleno século XXI, ainda sejam necessárias resistências do tipo. Mas, se é necessário resistir, vamos fazer juntos.

"Um cubano sabe muito bem o que não pode fazer, mas infelizmente desconhece seus direitos – que foram negados, mascarados e encobertos por um governo que é reticente em reconhecer seu fracasso."

"Sou e somos tão valentes como aqueles que lutaram por uma verdadeira Cuba, em que a democracia e os direitos foram nossos estandartes. Somos como aqueles que não se dobraram diante de tanto tirano e carrasco."

Yoani Sánchez, em entrevista à Revista da Cultura


Conheça o blog da jornalista: Generación Y

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

"Não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que percebemos."

Maurice Merleau-Ponty, em Fenomenologia da Percepção

sábado, 2 de fevereiro de 2013

É CULTURAL

A gente assiste na tv, ouve no rádio, lê por aí e por aqui. São absurdos que sujam a imagem do país, fazem sentir vergonha de nós mesmos e, pior ainda, não permitem vislumbrar qualquer esperança de melhora. Corrupção correndo solta, impunidade, burocracia, ineficiência do Estado, falta de ética e de educação, falta de estrutura moral, social, urbana... São os atrasos com as obras da Copa, dinheiro desviado, mensalão, Ficha Limpa, Cachoeira, Tiririca, SUS, planos de saúde, telefonia, pirataria, metrô, inundação, desmoronamento, descaso, greve, PIB, passaporte diplomático, seca, coronelismo, pedofilia, tráfico, analfabetismo, displicência, superfaturamento, indulto de Natal, violência no trânsito, IPVA, IPTU, IR e assim vamos. Listando, parece o fim do mundo – o qual, diga-se de passagem, também falhou. Eu poderia citar muito mais, basta olhar ao redor e apontar (ah, se apontar resolvesse!). Vamos tomar jeito? Alguns acham que não. Outros acham que, um dia, sabe-se quando ou por que, baseados numa fé ingênua, o Brasil será um país de primeira linha, mesmo se ninguém mover um dedo para isso. Certo, certo, claro. Como num conto de fadas. Só que nós somos a cigarra, e não a formiga. Enfim, por que o país não vai para frente? A gente fecha o jornal, desliga a tv, dá de ombros e tem a resposta na ponta da língua, a palavra que resume tudo: “É cultural”.

Coisíssima nenhuma! Não venha justificar assim o comportamento apático de quem se contenta com tocar a vida, reclamar com a própria sombra e empurrar a sujeira para debaixo do tapete. Não venha justificar com essa palavra o que é contrário a ela. Porque é fácil sustentar o errado, basta fechar os olhos, abaixar a cabeça e deixar tudo como está, fingindo que não dá para mudar, que ninguém é forte o bastante. Entretanto, produzir cultura é dificílimo.

Registro de perfomance realizada por Paulo Bruscky em Recife, 1978

É um movimento intencionado, embate constante contra resistências e obstáculos, invenção de novos modos de existência e novas formas de interação, explica o médico pesquisador Benilton Bezerra Jr. Cultura é o único meio para a autorrealização. Para o psicanalista inglês Donald Winnicott, a cultura é uma formação posterior a do organismo que a produz. Trata-se da estruturação da vida psíquica, um movimento do ser em direção à vida, uma abertura em direção ao mundo.

Não sou revolucionário ou agitador de massas; nem autoajuda nem panfletário. Minha questão é o conhecimento da causa. Portanto, vamos colocar as críticas em seu devido lugar. O que me incomoda, de verdade, é ouvir que os problemas que nos assolam são culturais. O termo gera um entendimento errado, percebe? Porque cultura significa justamente o oposto. Cultura é aquilo que se cultiva, que se produz com talento, esforço, boas ideias e boa vontade. A cultura não brota em qualquer canto nem brota de um dia para o outro. Ela exige condições apropriadas do solo, da semente e do agricultor. Refiro-me à MPB, à literatura, à dramaturgia, ao futebol, ao Carnaval, às artes plásticas, ao design, à arquitetura, às pesquisas científicas, à política séria, à educação, à moda e à gastronomia, entre tantos outros espetáculos maravilhosos que o brasileiro é capaz de desenvolver.

Não se trata de hábito, porque a gente não se habitua a ela, não se pode banalizar. A cultura provoca. Ela vai nos provocar e emocionar e fazer reagir criativamente. Pode ser tradição ou não, afinal, novidade também é cultural. Por maior tradição que seja, a cultura veste uma roupa nova a cada evento e sempre nos surpreende com outra forma de beleza.

Temos o péssimo costume de dizer que “é cultural” para justificar as pobrezas ao invés de exaltar as nossas riquezas. Como se cultura fosse uma estrutura rígida à qual estamos sujeitos. Como se fôssemos determinados por ela e não o contrário. Ora, somos nós que fazemos a nossa cultura, seja no Brasil ou no mundo. Ela é movente, mutante, constrói-se e se modifica a todo instante por meio de nossas atitudes. Nada é pré-determinado, exceto o fato de que é com cultura que melhoramos a vida, a situação posta e o convívio. Mudamos a burca, o estupro coletivo, a recusa de transfusão de sangue, o uso de preservativos, a lei seca, a doação de órgãos, o preconceito, a célula-tronco, o casamento gay, a escravidão, o desrespeito, a falta de bom senso, a imoralidade, as medidas autoritárias, a injustiça, o paternalismo, a guerra e todos os outros abusos de poder. É por meio da cultura que desenvolvemos conhecimento e olhar crítico, que compreendemos melhor o mundo, que adquirimos bagagem para comprar brigas e debater as soluções possíveis.

Limpos e desinfetados (1987), de Paulo Bruscky

Talvez eu esteja me referindo não à cultura geral do mundo, mas a um ponto específico dela. Pois bem, é a minha maneira de encará-la. Seja como for, a cultura não é aquilo que se encontra estabelecido e, portanto, nos subjuga. Cultura é tudo o que podemos criar, transformar, melhorar. É uma história das formações sociais que ganha novas possibilidades a cada capítulo acrescentado.

“A cultura está situada no coração do ser”, escreveu a psicanalista Jan Abram. Sim, ela é parte de nós. Cuidado ao maldizê-la. É tentador colocar a culpa em quem, aparentemente, não pode se defender – só que ela se volta contra. Porque o mal, o desrespeito, a abstenção, a apatia e os excessos que se justifica com a desculpa fácil do “é cultural” revela, na realidade, uma grave falta de cultura.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

fazer é o que me faz

escrever é o que me resume
cantar é o que me toca
cozinhar é o que me alimenta
inventar é o que me cria
pintar é o que me ilustra
dizer é o que me explica
amar é o que me expande

viver é o que me mata.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Um homem triste
sem dúvida
Um homem triste
na dúvida

Da tristeza que não se sabe,
que se conhece bem.

A dúvida de sentir
sem saber explicar
A tristeza de não saber

Será?

A tristeza de não saber
Saber-se triste
porque

...

Um homem que sabe,
sabe-se triste
só.
“Essa busca da identidade é um grande assunto para todos nós. Não é uma coisa literária, não é um assunto filosófico. Temos sempre de explicar quem somos, e é uma miragem, é sempre uma coisa equivocada. Nunca somos uma coisa, não temos uma identidade, temos várias, e elas vão mudando com o tempo, vão mudando com a idade, vão mudando com a relação que a gente tem. Eu vejo que isso foi uma coisa que no início surgiu dramática em mim próprio. Tenho que saber quem sou, e eu era um cruzamento de tanta coisa, era um ser de fronteira, sou um filho de portugueses que nasceu em África e se converteu num africano. Vivo entre o mundo católico, o mundo dessas outras religiões que não têm nome, vivo entre o ocidente e o oriente, entre esse mundo de crenças e o cientista que também sou. Então, de repente, disse para mim: “O que é que eu sou?”. Parecia que eu tinha que saber, e é um drama não saber. Às vezes, o que disse a mim próprio e gostaria de dizer aos meus filhos e amigos é que não sofram, pois, ao contrário, quando souberem, aí sim vocês terão razão para sofrer. Porque essa área do não saber, essa ignorância, é extremamente fértil, portanto convivamos bem com isso.”

Mia Couto em entrevista ao jornal Rascunho número 153 (janeiro de 201).