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domingo, 29 de novembro de 2009

JOSÉ ANTONIO DA SILVA, “DITO” PRIMITIVO


Sem título, 1971

“Não admito que me chamem de primitivo, caipira ou ingênuo. Tem que me chamar de gênio. Já provei que sou.” J. A. Silva

É bobagem dizer que José Antonio da Silva (1909-1996) fez carreira como artista bruto, primitivo ou mesmo naïve. Ele apenas começou assim, espontaneamente, em São José do Rio Preto, 1946 – ex-lavrador e atual empregado de hotel, tinha 37 anos quando resolvera contrariar a família, comprar tintas, uns metros de flanela e enviar o resultado de suas experiências pictóricas ao Salão da Casa de Cultura da cidade, que seria inaugurado na ocasião. Para sua sorte, o crítico Paulo Mendes de Almeida havia sido convidado a compor o júri e o descobriu em meio às muitas telas de “um academismo rançoso” ali inscritas. Mantendo a tradição da história da arte, o bruto precisa ser revelado por alguém do circuito oficial; precisa ser escavado do limbo, do submundo da cultura, e lançado às bestas ferozes do mercado. Se isso acontece com o artista ainda vivo, sua barbárie falece invariavelmente, mais ou menos como acontece com os indígenas “não-civilizados” que de repente se veem visitados por uma tribo de brancos. Em outras palavras, o artista primitivo só permanece primitivo de verdade até ser trazido à civilização. Depois disso, passa a agir de acordo com o mercado e a pertencer, de uma maneira ou de outra, à história da arte.

Podemos dizer então que o primitivismo de José Antonio da Silva durou apenas esses poucos dias entre a realização de suas primeiras pinturas sobre flanela e a descoberta delas por Paulo Mendes de Almeida. Naquela circunstância, a comissão organizadora do salão anulou o veredicto do júri e concedeu a Silva somente o quarto lugar, desprezando a originalidade de sua obra. Dali para frente, ele jamais seria ingênuo novamente; viria para São Paulo, passaria a ter plena consciência das atitudes que tomava e, se aparentemente suas pinturas permaneciam primitivas, era porque ele assim as desejava. O público queria um artista bruto? Silva magistralmente lhe concedia.



Sem título, 1980


Natureza-morta com magnólias (1941), de Henri Matisse

Isso não desmerece sua arte. É apenas um fator irreversível e ao qual todos os artistas espontâneos estão sujeitos. Mas as pinturas de José Antonio tinham outras qualidades que permaneceram, além de muitas mais que foram sendo adquiridas com o tempo. Elas eram essencialmente críticas. Seus retratos da vida no campo, por exemplo, mostram árvores remanescentes de queimadas, pretas por fora, carne por dentro, violentadas, esquartejadas e abandonadas ao léu. Parece que, para o artista, homem e mundo são feitos do mesmo estofo, tal como escreveu Merleau-Ponty em O olho e o espírito. Suas pinturas detêm um incrível poder de síntese, principalmente as flores de folhas verdes, miolos coloridos e perspectiva reinventada ou simplesmente ignorada. Silva também parece ouvir as orientações de Matisse, que buscava pintar apenas o que era essencial à pintura; esquematizar sem pôr nem tirar, realizar uma pintura exata, fiel às ideias e aos sentimentos do pintor.



Sem título, 1968

Há também na obra de Silva um simbolismo incutido, talvez até mesmo inconsciente. Seu horizonte, por exemplo, é sempre alto, quase não deixa ver o céu, privilegiando a terra e a forte relação que o artista tinha com ela. As lavouras, os trilhos do trem e as procissões, por sua vez, são infinitos, traçam curvas pela tela e se perdem em algum ponto longínquo, como se o mundo fosse tão grande que não se pudesse medir – um mundo que vai para além do que os olhos de José Antonio podiam ver.



Sem título, 1969

Mas nem só o campo foi objeto de suas pesquisas pictóricas. Quando a crítica o acusou de imitar Van Gogh e o deixou de fora da IV Bienal de São Paulo, apareceu imediatamente enforcada em uma pintura. Quando não compreenderam suas ações ou não as valorizaram como ele gostaria, Silva também se vingava artisticamente; na negação do prêmio principal em São José do Rio Preto, por exemplo, o povo foi vendado e os jurados transformados em jumentos. Neste caso, a pintura cumpriu um papel místico, semelhante ao dos bonecos de vodu. Quando incendiaram a floresta, Silva pintou “A burice dos homens” (1987).

Sua personalidade forte não o impediu de conhecer os grandes mestres. Teve contato a obra de modernistas, inclusive europeus. Chegou a dizer que só existiam três grandes artistas no mundo: Van Gogh, Picasso e ele mesmo. Ou melhor: ele, em primeiro lugar, seguido por Van Gogh e Picasso. Seu primitivismo era um rótulo, utilizado apenas quando lhe interessava. Por trás da simplicidade que suas pinturas apresentam à primeira vista, encontra-se uma complexidade louvável, seja na escolha do tema, seja na relação deste com o artista, seja no discurso que produzem. Algumas de suas soluções estéticas são também interessantes, fruto de um olhar apurado em contraste com uma técnica medíocre. Sendo assim, podemos afirmar que José Antonio da Silva extravasou a ligação estrita que tinha com as tradições do campo e passou a pertencer também à tradição da pintura, bastou ser revelado pela crítica. Ele hoje ocupa um lugar na história; um lugar que escolheu e batalhou para conquistar. Justamente por conta disso, é muito difícil considerá-lo primitivo, mesmo esteticamente falando, tendo em vista que suas atitudes foram propositadas, voltadas ao circuito oficial, conscientes e, muitas vezes, assistidas. Como escreveu Paulo Pasta, artista plástico e curador da exposição realizada recentemente na Galeria Estação (SP), “Silva apoiou-se muito nessa noção de pintor primitivo, não só nos primeiros anos de sua carreira. Inteligente, aceitou-se como o artista que o meio queria ver”. Assim, podemos chamá-lo de pintor, músico e escritor espontâneo, muitas vezes esperto e outras tantas ingênuo, cheio de vontades e exageros, brasileiro típico da roça, embora mudado para a metrópole; explorador crítico tanto do universo ao seu redor quanto de seu universo interior. Um artista de fato, dito e assumido primitivo apenas porque o título lhe convinha.

domingo, 22 de novembro de 2009

AMAR NÃO É...


Amar não é... (pág. 24), de Rodrigo de Faria e Silva (texto) e Julianna Prosdocimi (ilustrações)


Se você não foi ao lançamento do livro, aqui vai um trechinho para dar vontade.

Atrás da aparente simplicidade dos textos e das imagens, estão escondidas verdadeiras reflexões sobre o amor (ou falta dele). São experiências vividas na pele e também no coração, que, de algum modo, nos levam a pensar onde acaba a ficção e começa a difícil realidade de amar.

São também apontamentos obtidos no particular e compartilhados com quem se mostrar interessado. Depois de lidos, resta a cada casal escolher o próximo passo a seguir.

Não são verdades e tampouco são mentiras. É apenas a vida, como ela é e como pode vir a ser.

sábado, 14 de novembro de 2009

LANÇAMENTO: AMAR NÃO É...



Rodrigo de Faria e Silva, autor de Zé Ferino e Da loucura dos homens, entre outros, lança na próxima segunda-feira o livro Amar não é... em parceria com a ilustradora Juliana Prosdocimi.

Clique na imagem acima para mais detalhes e apareça!

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

PUXE UMA CADEIRA, SIM?


A cadeira de Van Gogh (1888), de Vincent Van Gogh

Eu estava com uma amiga no Parque da Luz, em São Paulo, caminhando por entre as esculturas e jogando conversa fora. Não entendi, ela me disse. Não entendeu o quê? O que o artista quis dizer. E isso importa? Ela fechou a cara, deve ter me achado um grande mal educado, todo metido a saber de arte e ignorando a ignorância alheia. Quem eu penso que sou, hein? Vixe, deixa pra lá, esqueça. Vamos entrar na Pinacoteca e dar uma olhada na exposição do Matisse? Ok. Minha amiga botou os olhos na primeira tela e exclamou: é linda! E o que Matisse quis dizer?, perguntei. Sei lá. Ah, vai falar que agora não importa?! Enfim, era para refletir sobre o que acabávamos de viver, mas a verdade é que quem quase acabou de viver ali mesmo fui eu – a amiga ficou P. da vida com o comentário. Difícil, né? Às vezes, é mais fácil entender de arte do que entender de gente.

Aí eu pego um livro do Merleau-Ponty e as palavras me saltam à cara; ele me diz que só existe arte através da gente. O que eu faço, Mer? Vá entender de gente!

Fui me consultar com Matisse. O cara é mesmo danado de bom, até minha mãe aprova essa amizade. Ah, se ela soubesse o quanto o coitado foi mal dito na juventude, quando se meteu a sonhar com uma arte que acalmasse a mente bem no instante em que todo mundo queria ver o museu pegar fogo e a revolução tomar conta das galerias. O taxaram de bundão. E agora o bundão estava aí, com uma individual vinda diretamente do resto do mundo, com obras que custam os dois olhos da cara e sendo visitado por milhares. Tem pior: caindo na graça da mulherada.

Um tempo atrás, num papo com Duchamp, descobri que nenhum artista tem plena consciência do que cria. E que o bonito da arte é isso mesmo, interpretá-la à sua maneira, mergulhar com profundidade e desvendar segredos que muitas vezes nem estão nela, mas em você mesmo. Se o artista conseguiu ou não dizer o que queria, isso é problema dele, a gente não precisa se deixar influenciar. Pôxa, é com isso que Matisse sonhava: com pinturas que levassem a outros mundos. Para que complicar se podemos simplificar? Faça simples, faça de um modo que agrade ao coração e não intimide um pensamento ou dois. Ele não pintava para assustar, mas para atrair as pessoas, puxar uma conversa mais longa e menos superficial. Oi, você vem sempre aqui?, etc.

Quando comecei a me cansar daquele blá, blá, blá – história de artista é mais fantasiosa do que as de pescador –, veio Paul Klee com as cadeiras do Feuerbach. Sei lá de onde ele as tirou, mas a verdade é que minhas pernas estavam mesmo doendo. Aquela amiga do começo da crônica já reclamava há duas salas e umas tantas telas. Tinha medo de jogar a toalha bem em cima de uma obra-prima e a dois passos da lojinha! Klee explicou: não deixem o cansaço perturbar o espírito. O artista demora um tempão para criar as obras. Faz parte por parte, junta conceito e desenho, problema com solução, como se estivesse construindo uma casa. Tá achando que é fácil fazer simples? Que nada, dá o maior trabalhão, queima um neurônio atrás do outro. Aí vocês vêm visitá-lo, passam os olhos pela tela e querem esgotá-la assim, de relance? Vocês têm sorte é de ele não esfregar seus narizes nela! Portanto, acomodem as nádegas e valorizem um pouco nosso trabalho, ok? Arte não é publicidade, não tenta vender uma ideia quando vocês menos esperam. Tem que pedir com carinho, sugerir um relacionamento. É muito fácil andar pelo museu como quem passeia no parque e sair dizendo que não entenderam nada. Se vocês têm o moral de dizer que pinto igual criança, aposto que são adultos inteligentes o bastante para me compreenderem. E não precisam ficar sem graça, vou aceitar o comentário como elogio. Só me façam um favor, não se esqueçam mais disso: para entender um quadro, é necessário uma cadeira. Com essa correria diária atrás de sabe-se lá o quê, só é fácil dizer aonde não vamos chegar: a um conhecimento mais profundo das coisas. Então puxem uma cadeira. Vamos prosear.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

SARTRE, O ÚLTIMO TURISTA



Hoje, às 18h30, será lançado o livro A Rainha Albemarle ou o último turista, de Jean-Paul Sartre. O volume recolhe os diários da temporada do autor na Itália.

No evento, haverá uma conferência e uma leitura desses diários por Renato Janine Ribeiro e Augustin de Tugny, com imagens e sons preparadas por Juliano Gouveia dos Santos e Julio de Paula.

Clique na imagem acima para mais informações.


Local: Teatro Eva Hertz (Livraria Cultura do Conjunto Nacional), às 18h30.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

PEÇONHAS


Saturno (1821-1823), de Goya

Você mete a faca
entre os dentes
e tira da língua
o sangue dos outros.

Bífida
entre a vida e a morte
desconhece o amor.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

ALEIJÃO, DE EDUARDO STERZI



Na próxima terça, dia 3 de novembro, o escritor Eduardo Sterzi lança o livro ALEIJÃO no Espaço Parlapatões. Apareçam!

Espaço Parlapatões
Praça Franklin Roosevelt, 158
A partir das 19h.

domingo, 25 de outubro de 2009

PARADOXOS EM DOBRO



O universo onírico dos dois irmãos grafiteiros conhecidos como OSGEMEOS acaba de chegar ao Museu de Arte Brasileira da FAAP, em São Paulo. Trata-se da mostra Vertigem, que reúne obras antigas e inéditas, entre pinturas, esculturas e instalações. Mas a verdade é que nenhum destes termos se aplica com precisão àquelas criações. As pinturas têm um quê de muralistas, às vezes feitas sobre portas e janelas; não são telas propriamente ditas, como nos acostumamos a ver. O mesmo vale para as instalações, que lembram um estúdio cinematográfico, e para as esculturas, meio robóticas, tais como bonecos gigantes de um parque de diversões.

Sonho e imaginação são a matéria-prima destes artistas que misturam tão bem os contos de fadas com a roupagem popular do Brasil. A pobreza dos personagens trava um intenso conflito com a riqueza das cores e dos detalhes. É tudo muito bonito de se ver, ao mesmo tempo triste e belo. É agradável viajar por seus mundos tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximos de nós, da nossa realidade paradoxal.

Também fica no ar a seguinte pergunta: o que acontece com a arte de rua quando adentra o museu? O que será que ganha e o que perde com isso? Algumas poucas fotografias de grafites da cidade de São Paulo são deixadas como pistas para quem quiser arriscar um palpite.

O que percebemos de bate-pronto é que a interação com o público se transforma completamente. A arte de OSGEMEOS se distancia, faz-se “um outro” pendurada nas paredes do museu. Nem mesmo o aparato cênico desenvolvido pela FAAP consegue disfarçar essa distância. Ali, o grafite não pertence mais à cidade, aos moradores e aos passantes. Parece esquecer sua origem. Acaba sendo “elevado ao status de arte”, o que é muito bom por um lado e uma grande pena por outro. Ora, não deveria ser a mesma coisa, sendo assim ou sendo assada? Na prática, isso não procede. Mais um paradoxo entre tantos outros que OSGEMEOS nos propõem. Pura vertigem.




OSGEMEOS – VERTIGEM
De 25 de outubro a 13 de dezembro
MAB – FAAP/SP

terça-feira, 20 de outubro de 2009

ACERTE O TERRORISTA!


Sir Ian Blair

Em sua biografia, intitulada Policing Controversy, o ex-chefe da Scotland Yard elogia os dois policiais que assassinaram o brasileiro Jean Charles no metrô londrino, em 2005. Segundo ele, os dois deveriam ter recebido uma medalha cada, pois, se Jean fosse mesmo um homem-bomba, o trem teria explodido e milhares de pessoas estariam mortas.

Minha sugestão é que todos saiam atirando por aí. Quem sabe você não acerta um terrorista e ganha uma medalha?

A porta-voz da família do brasileiro, Yasmin Khan, acusou Blair de tentar reescrever a história.

Realmente, após um comentário infeliz como esse, podemos supor que sua biografia não passará de mera ficção. E de muito mal gosto, por sinal.



RECOMENDO:


O filme Jean Charles conta a tragédia ocorrida em 2005, com Selton Mello no papel principal.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

HOMENAGEM A HÉLIO OITICICA (1937-1980)

Na noite de sexta-feira, dia 16 de outubro de 2009, um incêndio destruiu grande parte da obra de Hélio Oiticica. Uma perda inestimável para a cultura brasileira. Um capítulo infeliz para a história da arte.



Cosmococa (1973)


Seja marginal, seja herói



Metaesquema expandido no espaço (década de 60)

sábado, 17 de outubro de 2009


sem título, 2004.


Sonhei que havia um espetáculo,
que necessitavam de um voluntário da plateia.

Não me manifestei.

Fui escolhido sob aplausos.
Luzes!, Luzes!
O que quis sonhar com isso tudo?

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

JOÃO E OS PÉS DE FEIJÃO

Ando fazendo coisas bastante esquisitas na Universidade de São Paulo. Algumas semanas atrás, por exemplo, fui incumbido de plantar três feijões em algodão umedecido e registrar seu crescimento com desenhos e notas. Não, não me enganei de classe, não assisti à aula do primário. A tarefa era puramente científica. Meus objetos de estudo não seriam apenas os feijões – eu também deveria me colocar do lado de lá da prancheta, observando, uma vez por semana, meu próprio jeito de observar. Esquisito, eu disse. Mas pouquíssimas pessoas têm consciência da força que as coisas exercem sobre nós.

Ao propor uma leitura psicanalítica das obras de arte, o professor João Augusto Frayze-Pereira diz que “pensar psicanaliticamente implica escutar”, ou seja, abrir-se para o mundo e prestar atenção no que ele nos diz. O mesmo pode ser visto no romance Sidarta, de Hermann Hesse, em que o barqueiro Vasudeva sugere ao ex-monge que escute os ensinamentos do rio. “Sem cessar, Sidarta aprendia dele. Antes de mais nada, aperfeiçoava-se na arte de escutar, de prestar atenção, com o coração quieto, com a alma receptiva, aberta, sem paixão, sem desejo, sem preconceito, sem opinião”.

Nesse sentido, meu experimento com os feijões revelou coisas interessantíssimas, entre as quais gostaria de destacar a dificuldade de separar o lado humano do científico. Ou, em outras palavras, a emoção da razão. Pois, no começo, tentei ser o mais técnico possível, registrando a incidência da luz, o formato dos utensílios etc. Com o tempo, no entanto, meu vínculo com a plantinha se fortaleceu, e os relatos foram ficando cada vez mais emotivos. Vê-la se desenvolver, criar raízes, abrir-se em duas metades e revelar folhinhas verde-escuras foi um pouco como criar um filho, guardadas as proporções. Fiquei angustiado com a demora do primeiro broto, que levou dias para aparecer; depois, me realizei ao ver o caule se elevando acima da borda do copo. No final, não apenas a replantei em um vaso maior, como acabei comprando outras para lhe fazerem companhia.

Sabe quem foi o responsável por essa mudança em minha percepção? O tempo.

Isso não é novidade. O grande escritor Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), ícone do Romantismo alemão e autor dos famosos O sofrimento do jovem Werther e Fausto, era também cientista, embora pouca gente conheça – e reconheça – essa sua faceta. Ao longo da vida, Goethe estudou diversos assuntos, tais como a luz e os fenômenos óticos, chegando a propor uma nova teoria das cores, em oposição à de Newton. Mas, veja só, foi estudando plantas que ele chegou a uma das suas conclusões mais importantes: a de que o tempo é um elemento primordial na busca do conhecimento. Segundo Goethe, só é possível chegar à verdade científica por meio de uma profunda observação da natureza, livre de preconceitos e ao longo do tempo. Isso porque, para compreender a essência do ser, precisamos analisar seu processo de formação.

O pintor modernista Henri Matisse (1869-1954) chegou a conclusões semelhantes ao refletir sobre a arte. Segundo ele, para superar a simples imitação da natureza e chegar a uma linguagem pessoal, o pintor deveria desenvolver uma relação profunda com os objetos que pretende representar, observando-os atentamente, fazendo com que lhe revelem sua essência. Essa percepção jamais seria imediata. Tal como pensava Goethe, ela seria obtida apenas através do tempo. Só assim Matisse conseguia incutir seu sentimento na pintura, o que acreditava ser indispensável.

Matisse também disse outra coisa interessante, dessa vez a respeito das composições pictóricas. Para ele, um simples ponto de tinta, quando acrescentado a uma tela, modifica todo o resto que já estava lá, pois eles passam a se relacionar imediatamente. Por isso, apenas o essencial deveria constar numa pintura – todo o excesso é desprezível.

Se traçarmos um paralelo entre essas ideias e o nosso cotidiano, perceberemos que todos os objetos ao redor nos influenciam, relacionando-se conosco e modificando nossas vidas à sua maneira. Quais deles são realmente essenciais? Quais são excesso e atrapalham a percepção da realidade?

O professor João Frayze afirma que a junção da psicologia com a arte ajuda a compreender melhor o ser humano, “num certo momento de sua história e em determinado círculo de civilização”. Ambas nos propõem reflexões, colaboram para tornar nossas ações mais conscientes e rendem um conhecimento mais profundo. O outro João, dos contos de fadas, me lembrou que coisas simples como pés de feijão podem nos levar às alturas, permitindo observar a vida por outro ponto-de-vista. Tudo através dos nossos sentidos e das relações com o mundo que eles nos proporcionam. Com o tempo, nossa sensibilidade cresce e passamos a nos sentir parte de algo muito maior: a natureza. Pois é, como pude verificar, os feijões são mesmo mágicos. Basta a gente olhar bem de perto, com o cérebro e o coração.

* * *

Apenas por curiosidade, selecionei algumas das anotações que fiz ao observar os feijões e as publiquei abaixo. Como não pude digitalizar os desenhos, talvez alguns trechos fiquem meio obscuros, mas dá para ter noção do que estou falando.

DOMINGO, 9H21
Só pude iniciar o exercício hoje. Escolhi os materiais pensando sempre em como eles melhor se adequariam aos meus objetivos. O copo, por exemplo, precisava ser baixo e largo, oferecendo bastante superfície para o algodão e facilitando os desenhos. (...) Fiquei curioso para saber como a umidade faz brotar os feijões. Deixei tudo no chão, bem próximo da janela, de modo que o experimento tenha claridade durante o dia. (...) Considero este um lugar estratégico, pois basta eu posicionar a cadeira nas proximidades para obter sempre o mesmo ângulo de visão.

SEGUNDA-FEIRA, 9H
O algodão continua úmido, o que me surpreendeu; achei que teria que regar meus feijões diariamente. (...) Acredito que os feijões devem receber claridade, mas não luz direta, então fechei as persianas. (...) De ontem para hoje, dá-me a impressão de que tudo mudou, exceto as sementes. Imagino que algo muito maravilhoso esteja acontecendo dentro delas, e que seja tão maravilhoso que elas não podem me mostrar.

TERÇA-FEIRA, 22H25
Nenhuma mudança. Estou achando que meus feijões vão me deixar na mão. O algodão continua bastante úmido. Será que preciso colocá-lo por cima dos grãos? Vou esperar mais um dia. Se nada acontecer, tentarei um plano B.

QUARTA-FEIRA, 22H25
Nada aconteceu, mais uma vez. Se é que “nada” pode acontecer mais de uma vez, assim, consecutivamente. (...) Será que devo enterrar meus feijões no algodão? (...) Até mesmo me cansei de desenhá-los nesta posição. Será que, se eu escolhesse outro ângulo, alguma coisa mudaria?

QUINTA-FEIRA, 22H15
Surgiu um pequeno broto, finalmente. (...) Trata-se apenas de uma pequena ponta amarela que rompeu a casquinha e começa a descer na direção do algodão molhado. Também notei uma lista branca no feijão de cima. (...) Fico feliz que o experimento tenha tomado este rumo.

SEXTA-FEIRA, 22H54
(...) Desconfio que um outro ramo tenha brotado por baixo, fazendo o papel da raiz. Seria uma surpresa interessante. E significaria que eu estava errado: os brotos teriam começado a surgir antes que eu pudesse vê-los. (...) Agora, estou ansioso para ver as folhinhas verdes surgirem no copo.

SÁBADO, 8H46
(...) Percebi que observar o crescimento destes brotos me faz pensar em muitas outras coisas, e fica difícil manter a concentração somente no experimento. Quer dizer, é difícil ser cientista sem deixar de ser humano. Tratar a ciência como algo artificial é esquecer a sua origem e os seus objetivos. Por isso, olho para meus feijões e vejo em seu desenvolvimento as fases da minha própria vida.

DOMINGO, 11H
(...) Estou começando a ter pena destes grãos, brotando no algodão. (...) Ontem, fui mexer nos vasos que tenho na sacada do apartamento e passei bons momentos com a mão na terra. (...) Meus olhos têm visto mais do que feijões brotando num copo. Sinto que, de algum modo, estou começando a enxergar melhor.

SEGUNDA-FEIRA, 21H39
O feijão 3 me surpreendeu enormemente. Em aproximadamente 36 horas, ele criou raízes e se suspendeu no ar. Fiquei maravilhado. É muito bom poder acompanhar o crescimento deles. (...) Ontem à tarde, fui a uma loja de plantas e comprei um pequeno musgo. (...) Suas folhas são minúsculas.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

CÉU, TEMPO BOM



O disco mais recente da cantora Céu, intitulado Vagarosa, está ainda mais difícil de definir, mais difícil de ser enquadrado em alguma modinha da nova MPB. Isso é muito bom, segundo meu jeito de encarar as coisas. Significa que Céu não imita ninguém, que possui estilo próprio e valoriza suas emoções, sabe interpretá-las, transformá-las em música. Num vídeo institucional da Natura, marca patrocinadora da turnê atual, ela diz: “Para mim, música é sentimento”. Em treze faixas muito bem produzidas, Céu deixa claro que consegue ouvir sua voz interior e extravasá-la com ritmos e melodias pra lá de criativas. Sua música é densa, detém uma profundidade reflexiva que eu não ouvia desde Pink Floyd. Às vezes, talvez por causa do scratch, lembra Portishead. Mas, referências à parte, ela jamais deixa de ser Céu.

A evolução entre os shows do primeiro e do segundo discos é notável. Também pudera, passaram-se quatro anos!

A Céu de hoje está mais madura. Aperfeiçoou o domínio sobre a voz – que considera seu verdadeiro instrumento – e conseguiu que a banda a complementasse em perfeita sintonia, fazendo uma mistura quase sempre inusitada de acordeão, samplers e tamborim. Suas letras, que já eram ótimas, mativeram a qualidade. Estão cheias de poesia, imagens oníricas, cultura brasileira e temas tão complexos quanto fluxos do tempo e do pensamento, tratados de modo a ficarem sempre a salvo do lugar-comum. É incrível como Céu apanha expressões do cotidiano e as transforma em algo interessante. Vide a frase “embrulhar para viagem”, da música Espaçonave (Pode mandar embrulhar / que eu quero te levar pra viagem / voltar pra nave mãe pra despressurizar / deixar o sol me beijar, me beijar). Pôxa, quem faz música de verdade com isso?

Seu show muitas vezes adquire tom de rito, em que os músicos levam o público ao transe; as horas passam e ninguém percebe. Às vezes, acontece de você se perder na levada e abandonar a letra. Mas o sentimento nunca se perde, está sempre ali, claro como a voz que a entoa. Céu tem também um jeito esquisito de dançar, meio tribal, meio duro, que aumenta ainda mais essa sensação. Ah, se todas as crenças contivessem a energia e a sensibilidade dessa artista… O mundo estaria girando em ritmo bem mais harmonioso, sem pausas ou contratempos.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A DAMA NA ÁGUA



As fotos de Elena Kalis são simplesmente fantásticas. Luzes, cores, harmonia, movimento. Tudo que se espera de uma boa fotógrafa. Com um detalhe: as imagens são captadas embaixo d’água. Nem todas, é verdade, mas a relação que travam com este elemento acaba por transformar nossa percepção. O que é essencial à vida também se torna essencial à sua arte. Assim, deixamos de ver meninas seminuas. Vemos ninfas envoltas por uma aura fantástica. Deixamos de ver piscinas. Vemos o universo dos contos de fadas. Deixamos de ver fantasias e bexigas. Vemos apenas rastros luminosos e pontos de cor. As fotos de Elena têm mesmo algo místico. Com água, ela consegue nos proporcionar um maravilhoso silêncio contemplativo, onde podemos mergulhar e sonhar. Com modelos imersas em magia, Elena nos deixa sem fôlego.


Veja alguns dos trabalhos de Elena Kalis aqui: http://elenakalis.carbonmade.com/.

Recomendo, em especial, o ensaio chamado Alice in Waterland.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

III SEMINÁRIO DE PESQUISA EM HISTÓRIA DA ARTE



Durante os dias 17 e 23 de outubro, vai se realizar na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) o III Seminário de Pesquisa em História da Arte. Todas as pesquisas são interessantes e representam a oportunidade de entrar em contato com o trabalho de muita gente. Eu participarei da mesa do dia 21, mediada pela profa. Dra. Veronia Stigger e composta também por Andrea Rocco e Taís Barreto. Quem puder, apareça!

Obs.: É necessário se inscrever para assistir aos seminários. Para fazer isso, clique aqui:
http://academico.faap.br/faap_pos/palestras/455.html

segunda-feira, 28 de setembro de 2009


A persistência da memória (1931), de Salvador Dali.

"A narrativa é sempre uma escavação original do indivíduo, em tensão constante contra o tempo organizado pelo sistema. Esse tempo original e interior é a maior riqueza de que dispomos."

Ecléa Bosi, em Sugestões para um jovem pesquisador (ensaio que compõe o livro O tempo vivo da memória).

quinta-feira, 24 de setembro de 2009


Ícaro (1947), de Henri Matisse

"Tudo o que vemos passa pela retina, imprime-se numa pequena câmara, depois se amplia pela imaginação".

Henri Matisse (1869-1954)

domingo, 20 de setembro de 2009

A PAZ FICA BEM MAIS PERTO DO QUE VOCÊ IMAGINA



Duas postagens atrás (dia 11 de setembro), fiz um breve comentário a respeito das ideias do mestre Hsing Yün, fundador da ordem budista que administra o Templo Zu Lai, em Cotia, Grande São Paulo. Eu tinha acabado de visitar o lugar e estava empolgado para saber tudo que acontece por lá. Agora, para quem ainda não conhece – e não sabe o que está perdendo –, gostaria de registrar a dica.

Com acesso fácil pela Rodovia Raposo Tavares, o Templo Zu Lai fica bem perto do caos urbano que caracteriza São Paulo, coisa de quinze minutos a partir da Cidade Universitária. No entanto, parece se tratar de outra dimensão.


Lá você encontra arquitetura e atividades tipicamente orientais, tais como Tai Chi Chuan, meditação e aulas de pintura sobre papel-arroz. É também uma ótima oportunidade de conhecer um pouco dessa cultura, que é bastante difundida pelo mundo e influencia muito mais nosso cotidiano do que podemos imaginar.

A paisagem é uma atração à parte. Os jardins são muito bem cuidados e a natureza impera, de modo a nos fazer sentir parte dela novamente. Há um lago povoado por tartarugas, bancos de madeira distribuídos entre as árvores e muita grama. Dá para passar horas relaxando em meio a uma atmosfera de paz e harmonia. O templo nos faz esquecer que estamos tão perto da capital. Ele nos faz sentir distantes de tudo e, justamente por causa disso, acabamos mais próximos de nós mesmos.


Outro ponto positivo (e um tanto quanto incongruente com os hábitos paulistanos): no Templo Zu Lai você só paga o que consome, ou seja, refeições, cursos ou artigos da lojinha. De resto, dá para passear sem gastar nada. Até o estacionamento é gratuito!

Como a maioria dos visitantes não resiste a uma comprinha, no Templo Zu Lai é possível adquirir livros, imagens, incensos etc. O café é gostoso, assim como os pães dos monges. Adeptos do vegetarianismo não podem deixar de almoçar no refeitório, onde se pode experimentar pratos que misturam a culinária zen com a brasileira de maneira muito criativa e saborosa. Vale a pena.




Resumindo, o passeio é ótimo para toda a família, para quem busca um programa fora do eixo shopping-cinema-restaurante e para todo mundo que gosta de conhecer lugares diferentes. Se bateu uma vontade, acesse o seguinte link e inclua o Templo Zu Lai na programação do próximo fim de semana: www.templozulai.org.br.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A ALMA BOA DE SETSUAN


Denise Fraga em A alma boa de Setsuan

Em A alma boa de Setsuan, de Bertolt Brecht, a protagonista Chen Tê pergunta a Deus como é possível alguém ser bom numa terra em que todos passam fome. Deus permanece calado. Ele deixa a resposta a nosso cargo.

Quem ainda não viu a montagem de Marco Antônio Braz, estrelada por Denise Fraga, sugiro que corra e compre os ingressos assim que possível. Com muita criatividade, eles conseguiram deixar o texto mais atual do que já é. E divertido também. Resumindo, a peça é imperdível.

Mais informações: www.teatrotuca.com.br